UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
“Com a condição de servir gratuitamente a mim ou a meus herdeiros”
Xxxxxxxxx, contratos e experiências de trabalho de libertos (Porto Alegre, 1884 – 1888)
Bruna Emerim Krob
Bruna Emerim Krob
“Com a condição de servir gratuitamente a mim ou a meus herdeiros”
Xxxxxxxxx, contratos e experiências de trabalho de libertos (Porto Alegre, 1884 – 1888)
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Linha de pesquisa: Relações sociais de dominação e resistência.
Orientadora: Profa. Dra. Xxxxxx Xxxxx Xxxx Xxxxxx
Bruna Emerim Krob
“Com a condição de servir gratuitamente a mim ou a meus herdeiros”
Xxxxxxxxx, contratos e experiências de trabalho de libertos (Porto Alegre, 1884 – 1888)
Orientadora: Prof.ª. Drª. Xxxxxx Xxxxx Xxxx Xxxxxx
Banca examinadora:
Profª Drª. Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Universidade Federal do Paraná
Profª. Drª. Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx Universidade Luterana do Brasil
Profª. Drª. Xxxxx Xxxxxx
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Às mulheres negras e suas lutas diárias pela afirmação de sua autonomia e liberdade
Resumo
A presente pesquisa parte da emancipação de escravos ocorrida em 1884 em Porto Alegre – ano que teria havido uma suposta “abolição antecipada” no Rio Grande do Sul, para buscar examinar as experiências de trabalho vividas por libertandos, no período transcorrido entre aquele ano e a abolição da escravidão no Brasil em 1888.
O processo emancipacionista em curso no país na segunda metade do século XIX pautava-se pela expectativa de uma abolição gradual, que se fizesse de maneira controlada e com respeito ao direito à propriedade escrava. A Lei de 1871 atendia a estes princípios, tendo alterado as bases do escravismo brasileiro e as condições para a conquista da liberdade. É nesse contexto mais amplo que observamos a estratégia de emancipação através de alforrias condicionadas à prestação de serviços adotada em Porto Alegre e estendida ao restante da província.
Analisamos, assim, as alforrias registradas em cartório entre 1884 e 1888, traçando um perfil dos libertandos e examinando as condições sob as quais alcançaram a liberdade. Os resultados a que chegamos foram contrastados com a memória oficial construída em torno da uma suposta antecipação da abolição na província. Tal contraste evidenciou que, além de a estratégia de emancipar através de alforrias condicionais ter significado a imposição de limitações ao gozo da liberdade, a própria quantidade de alforrias mapeadas esteve muito longe de extinguir de fato a escravidão.
Por outro lado, ao observar de perto o modo como os libertandos teriam vivenciado o período de cumprimento das condições impostas em suas alforrias, pudemos perceber as tensões em que aqueles sujeitos se viram enredados e as disputas em torno dos diferentes modos de compreender o que deveria ser um liberto sob condições. Houve aqueles que cumpriram com seus contratos de prestação de serviços. No entanto, outros tantos impuseram resistência aos desmandos senhoriais, recusando-se a agir conforme a vontade daqueles.
Entre estes dois extremos coube toda sorte de experiências. Nos limites do que lhes permitia o mundo do trabalho e os quadros da liberdade nos quais se inseriam na condição de libertos contratados, pudemos identificar uns ou outros tentando modificar suas condições de vida – de modo mais radical ou mais sutil, deixando transparecer o seu entendimento de que ser um liberto condicional não era o mesmo que ser escravo.
Palavras-chave: escravidão – liberdade - abolição – alforrias – Porto Alegre
Abstract
This study has as starting point the slave emancipation in Xxxxx Xxxxxx, 0000 - year that there had been an alleged "anticipated abolition" in Rio Grande do Sul – in order to investigate work experiences of freedmen between the year of manumission and the year of abolition of slavery in Brazil in 1888.
When discussing the underway emancipation process in the country during the second half of the nineteenth century, especially from the Law 1871, which came to change the foundations of Brazilian slavery and the conditions for the achievement of freedom, we insert the movement that led to emancipation of a large number of slaves in the province and especially in its capital, Porto Alegre - mostly with manumission conditioned to provide services - within the lords expectations of abolition to be done gradually, controlled and respecting the right of slave ownership.
In this way, we analyzed the registered manumission notarized between 1884 and 1888, drawing a profile of the freedmen and examining the conditions which they achieved their freedom. The results we got were contrasted to the official memory built around a supposed anticipation of the abolition of the province. This contrast showed that, besides the strategy of emancipation through conditional manumission have meant imposing limitations on the tenure of freedom, the number of the mapped manumission was very from the definitive slavery extinguishment.
On the other hand, to observe closely how the freedmen have experienced the period of fulfilment of the conditions imposed on their manumission, we could see the tension in those subjects who found themselves entangled, and the disputes around the different ways of understanding what should be a freedmen under conditions. There were those who fulfilled their contracts to provide services. However, many others have imposed resistance to aristocratic excesses, refusing to obey the will of those.
Between these two extremes, there was several different experiences. Within the limits of that permitted them to work and the freedom reality in which were inserted in the condition contracted freedmen, we could see some of themtrying to modify their living conditions - more radical or more subtly, stating their understanding that being a conditional freedmen was not the same as being a slave.
Keywords: slavery - freedom - abolition - manumission - Porto Alegre
Agradecimentos
Agradeço aos meus pais, Xxxxxxx e Xxxxx, por terem sempre me proporcionado as condições de estudo e por terem sempre incentivado e apoiado as minhas escolhas. Obrigada por todo esforço de vocês para que eu e meus irmãos tenhamos sempre as melhores oportunidades possíveis, obrigada pelo amor e por sempre acreditarem em nós. Ao Xxx, Xxxxx e Xxxx, meus manos e sempre “crianças”, obrigada por permitirem compartilhar com vocês minhas experiências pessoais não apenas como irmã, mas como estudante e professora. À Kuka, que me faz acreditar que alguns encontros nessa vida não são casuais. Aos caninos da minha vida, Xxxxxx, Xxxx, Xxxxx e Xxxxxxxx, cuja recepção
calorosa é sempre o momento mais leve do dia.
Agradeço à minha orientadora, Xxxxxx Xxxxxx, a quem admirei desde as primeiras aulas de Introdução à História em 2007. Seu rigor crítico como historiadora, e sua generosidade e paciência como docente tem me ensinado, desde muito, sobre nosso ofício. Estendo este agradecimento a todos os meus professores, do colégio à pós- graduação. Sem dúvida foram vocês que despertaram em mim a vontade de ser professora e historiadora.
Agradeço à professora Xxxxx Xxxxxx, que acompanhou minha pesquisa desde o trabalho de conclusão de curso, passando pelo exame de qualificação até a finalização do presente trabalho. Obrigada por sua leitura criteriosa e por todas as críticas e sugestões realizadas nesse percurso. Xxxxxxxx, nesse sentido, ao professor Xxxxx Xxxx, a quem também sou grata pelos apontamentos realizados na banca de qualificação.
Agradeço às professoras Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx por terem aceitado fazer parte da banca examinadora da minha dissertação. Seus trabalhos foram fundamentais para a realização de minha pesquisa e por isso fico especialmente feliz em poder tê-las na minha banca. Xxxxxxxx especialmente à professora Xxxxxx por se dispor a vir por sua própria conta ao Rio Grande do Sul participar deste momento.
Agradeço ao Xxxxxx Xxxxxx por ter me incentivado a seguir a pesquisa quando fez parte da banca do meu TCC, e por ter ajudado a definir meu projeto de pesquisa alguns anos depois. Xxxxxxxx também ao Xxxxx Xxxxx pelo incentivo lá na época do Xxxxxxxx e pelo auxilio no abstract nesta última etapa.
Obrigada àqueles com quem convivi nestes últimos anos e que direta ou indiretamente fizeram parte desta trajetória. Em especial aos meus amigos e também professores, Xx, Xxxx, Xxxx e Xxxx, com quem posso compartilhar, além da amizade, as angústia, os anseios e as lutas da profissão. Obrigada aos membros do grupo “Existe Amor no PPG”, porque não é apenas a pesquisa que une os pós-graduandos.
Agradeço às equipes dos arquivos pelos quais passei nesses últimos dois anos na figura do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, que tem realizado um excelente trabalho da conservação e divulgação de seu acervo, tarefas realizadas apesar das poucas condições proporcionadas pelo governo do estado.
Xxxxxxxx ao secretário do PPG, Xxxxxxx Xxxxxxx, por ter atendido e solucionado com atenção e sensibilidade às minhas intermináveis demandas burocráticas para dar conta da minha vida acadêmica e profissional. Xxxxxxxx também a CAPES pela bolsa que tornou viável a realização dessa pesquisa.
Por fim, agradeço à todos e todas que fizeram parte da minha formação como mulher, como professora e como pesquisadora. Do movimentos estudantil à prática docente nas redes públicas da educação básica, tenho aprendido a enxergar o mundo com os olhos de quem vê a profunda necessidade de transformá-lo. A esperança de que um outro mundo é possível é o que me move todos os dias.
Abreviaturas
AHPAMV – Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
APERS – Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul CRL – Center for Research Libraries
FEE – Fundação de Economia e Estatística
IHGRS – Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul MCSHJC – Museu de Comunicação Social Xxxxxxxx Xxxx xx Xxxxx NPH – Núcleo de Pesquisa em História
T – Tabelionado L – Livro
M – Mulheres H – Homens
Relação de tabelas
Tabela 1 – População escrava do Rio Grande do Sul (século XIX) 63
Tabela 2 – População escrava de Porto Alegre (século XIX) 65
Tabela 3 – Alforrias por tipologia (Porto Alegre, 1849 – 1888) 68
Tabela 4 – Alforrias condicionais (Porto Alegre, 1849 – 1888) 68
Tabela 5 – Tipos de alforrias I 88
Tabela 6 – Alforriados por tabelionato 90
Tabela 7 – Tipos de alforrias II 96
Tabela 8 – Alforrias condicionais 96
Tabela 9 – Cor dos alforriados 100
Tabela 10 – Faixa etária dos alforriados I 103
Tabela 11 – Faixa etária dos alforriados II 103
Tabela 12 – Naturalidade dos alforriados 107
Tabela 13 – Ocupação dos alforriados 111
Tabela 14 – Formas de pagamento de alforrias 122
Tabela 15 – Preço alforria distribuído por faixa etária 129
Tabela 16 – Tempo de serviço por faixa etária 133
Tabela 17 – Nº de alforriados por senhor 158
Tabela 18 – Locais de concessão de alforrias 161
Tabela 19 – Avaliação dos serviços dos libertandos por mês e por sexo 203
Tabela 20 – Presos na Cadeia Civil por cor e sexo 222
Tabela 21 – Delitos cometidos por libertos contratados 227
Relação de quadros
Quadro 1 – Detalhamento do pagamento das alforrias 123
Quadro 2 – Ex-senhores com animais entre seus bens 140
Quadro 3 – Avaliações dos serviços dos libertandos por mês 202
Quadro 4 – Serviços de libertandos na partilha de inventários post-mortem 203
Quadro 5 – Delitos cometidos por presos da Cadeia Civil 224
Quadro 6 – Data de alforria e de prisão de contratados 228
Relação de gráficos
Gráfico 1 – Alforrias registradas em cartório 62
Gráfico 2 – Alforrias por ano de registro 92
Gráfico 3 – Frequência de informações nas alforrias 94
Gráfico 4 – Sexo dos alforriados 97
Gráfico 5 – Alforrias condicionais 131
Gráfico 6 – Tempo de serviço das alforrias 132
Gráfico 7 – Local dos bens de raiz de ex-senhores 167
Relação de figuras
Figura 1 – Planta de Porto Alegre (1881) 162
Figura 2 – Planta de Porto Alegre (1888) 163
Relação de anexos
Anexo 1 – Circular nº 819 de 16 de Agosto de 1884 237
Anexo 2 – Quantidade de alforriados por mês (1884) 238
Anexo 3 – Quantidade de alforriados por senhor 239
Anexo 4 – Localização dos bens de raiz de ex-senhores por rua na área central 240
Anexo 5 – Quadro resumido dos inventários de ex-senhores 241
Anexo 6 – Ex-senhores com animais entre seus bens 243
Anexo 7 – Avaliações dos serviços dos libertandos a partir dos inventários 245
Sumário
Introdução 13
Capítulo 1 – Os horizontes da liberdade: as décadas finais da escravidão no Brasil e na província do Rio Grande do Sul 28
1.1 A historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil 29
1.2 Alforrias: significados, tipologia e prática no final do século XIX 38
1.2.1 As cartas de liberdade e os modos de alforriar 38
1.2.2 A prática da alforria a partir da Lei de 1871 52
1.3 As liberdades condicionais como estratégia de emancipação na província 61
1.3.1 Dimensões da população escrava 63
1.3.2 Costurando acordos: a tentativa de uma saída controlada 67
1.3.3 Há de parecer justo para que possa funcionar. 75
1.4 Entre o discurso e os resultados 77
Capítulo 2 – As alforrias e o perfil dos libertandos em Porto Alegre (1884 – 1888)
........................................................................................................................................ 86
2.1 Considerações sobre as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre 87
2.2 O perfil dos escravos alforriados 97
2.2.1 Sexo 97
2.2.2 Cor 100
2.2.3 Idade 102
2.2.4 Local de procedência 106
2.2.5 Ocupação 110
2.2.6 Estado civil e filiação. 113
2.3 Condições para a liberdade: os libertandos e os termos de suas alforrias 115
2.3.1 Alforrias gratuitas 116
2.3.2 Alforrias pagas 120
2.3.3 Alforrias condicionais 130
2.3.3.1 Prestação de serviços 131
2.3.3.2 Outras condições 144
Capítulo 3 – Caminhos para a liberdade: experiências de trabalho e o controle sobre trabalhadores libertos 148
3.1 Considerações sobre as fontes utilizadas. 150
3.2. Sobre os que alforriaram: bens e atividades de ex-senhores 156
3.3. Os que permaneciam: do cumprimento dos contratos de trabalho. 179
3.3.1 Da promessa da alforria por morte do senhor a contratado 180
3.3.2 Libertos como herdeiros 184
3.3.3 Filhos de mães libertas 190
3.3.4 Reafirmando contratos: avaliação e partilha dos serviços dos contratados. 201
3.4. O controle sobre trabalhadores libertos a partir dos registros policiais 207
3.4.1 Ocorrências da Cadeia Civil: sobre vigilância, repressão e resistência 216
Considerações finais 232
Anexos 237
Fontes 247
Referências bibliográficas 252
Introdução
A presente pesquisa parte da emancipação de escravos ocorrida em 1884 em Porto Alegre – ano que teria havido uma suposta “abolição antecipada” no Rio Grande do Sul, para investigar as experiências de trabalho vividas por libertandos, no período transcorrido entre aquele ano e a abolição da escravidão no Brasil em 1888.1 Ao lançar mão de uma série de documentos, foi possível a aproximação com pequenos fragmentos da vida de homens e mulheres que se inseriam nos quadros de uma liberdade marcada pelas ambiguidades do processo de emancipação gradual.
A desagregação da escravidão e o arcabouço jurídico elaborado para encaminhar a emancipação dos escravos marcaram a segunda metade do século XIX no Brasil, sobretudo em suas últimas décadas, ampliando significativamente as possibilidades de luta e de conquista da liberdade. A partir de 1871, a Lei do Ventre Livre tornou-se a forma por excelência pela qual deveria ser encaminhada a abolição: a expectativa das camadas senhoriais e da elite política era de que ela se desse de modo gradual, respeitando a propriedade e garantindo o controle social sobre escravos e libertos. A década de 1880, por sua vez, seria marcada pelo crescimento do movimento abolicionista e pela pressão cada vez mais contundente dos próprios cativos pelo fim da escravidão.
Em Porto Alegre, os anos de 1883 e 1884 marcaram a organização do movimento abolicionista. De composição social ampla, reuniu membros das várias tendências políticas - liberais, republicanos e conservadores dissidentes, dando origem, em 28 de setembro de 1883, ao Centro Abolicionista.2 É em agosto e setembro de 1884, porém, que
1 Na historiografia, costuma-se chamar de libertandos aqueles que, assim como os sujeitos alforriados sob condições, construíram suas vidas no terreno da indefinição entre as circunstâncias e incertezas de ser livre ou ser escravo. Assim como Ariza, em estudo recente, “(...) acreditamos que o termo, usado como uma categoria analítica fluida e permeável, possa abarcar a ambiguidade fundamental que estrutura a vida destes trabalhadores e sua busca pela liberdade, materializando os limites difusos entre os mundos da escravidão e da liberdade no XIX.” Cf. XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx. O ofício da liberdade: contratos de locação de serviços e trabalhadores libertandos em São Paulo e Campinas (1830 – 1888). Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2012.
2 Em abril de 1883 foi criada uma seção abolicionista pelo Partenon Literário, representada por Xxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxx. Tal seção foi responsável pela fundação do Centro Abolicionista em setembro daquele mesmo ano. XXXXXX XXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxxx. Apontamentos para a história do movimento abolicionista na Província do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Typografia da Reforma, 1888. A Sociedade Partenon Literário, fundada em 18 de junho de 1868 em Porto Alegre, foi uma associação literária considerada uma das principais agremiações culturais do Rio Grande do Sul no século XIX e reunia a jovem intelectualidade da época. Xxxxx Xxxxxxx discorre sobre o Partenon e a fundação das primeiras sociedades libertadoras no Rio Grande do Sul em MOREIRA, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. “Primórdios da luta contra o ‘cancro horrendo e contaminador’: o Partenon Literário e as primeiras sociedades libertadoras In Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre – 1858-1888. Porto Alegre: EST Edições, 2003
a campanha abolicionista atinge seu auge, levando a alforria de escravos em grande número, movimento este que estendeu-se pelo restante da província. Segundo estimativa anunciada pela presidência provincial, naquele ano teriam sido libertos algo em torno de 40 mil dos aproximadamente 60 mil escravos existentes no Rio Grande do Sul..3 Porto Alegre, a quem foi atribuída a iniciativa do movimento juntamente com a cidade de Pelotas, foi declarada livre da escravidão em 7 de Setembro de 1884 pelo Centro Abolicionista em sessão solene da Câmara de Vereadores, data escolhida em virtude da independência do Brasil.
A narrativa oficial construída em torno do movimento abolicionista de 1884 por parte de seus contemporâneos envolvidos tendeu a enfatizar o caráter supostamente pioneiro do Rio Grande do Sul em relação à questão da escravidão (à revelia, inclusive, de as províncias do Ceará e do Amazonas terem anunciado a libertação de seus escravos nos meses anteriores), passando a ideia de que, além de antecipar-se ao restante do império, teria havido uma abolição pacífica, protagonizada por senhores generosos, de modo controlado. Dessa memória, foi excluído qualquer protagonismo negro e ocultado um aspecto essencial de tais libertações: a grande maioria dos alforriados o fora com a condição de continuar a servir seus antigos senhores por prazos que variaram, em sua maioria, de três a cinco anos. Principal sujeito da emancipação empreendida, a figura do “contratado” - modo como foi como foi chamado o liberto com condição de prestação de serviços, fora, assim, silenciada e nada (ou muito pouco) se quis falar sobre as condições em que se tornavam livres.4
O que o discurso oficial costumou chamar de “abolição antecipada”, portanto, correspondeu a um compromisso político em torno de uma saída para o problema da escravidão na província. Assim, em que pese a composição social heterogênea dos envolvidos na campanha abolicionista de Porto Alegre, houve um acordo (ou uma estratégia, como preferimos) entre as elites para se conceder alforrias condicionadas à prestação de serviços. Tal medida permitia simultaneamente declarar os cativos livres, amenizando suas pressões, atender a uma opinião pública favorável ao fim da escravidão e seguir utilizando o trabalho dos libertandos, de modo que não houvesse uma ruptura
3 Center for Research Libraries. Relatório apresentado a S.Exc. Sr. Dr. Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx, 2o vice-presidente pelo Exm. Sr. Conselheiro Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, ao passar-lhe a presidência da mesma Província no dia 19 de Setembro 1885, p. 177. Disponível em: xxxx://xxx- xxxx.xxx.xxx/xxxxxx/xxxxxxxxxx/xxx_xxxxxx_xx_xxx
4 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx. A invenção branca da liberdade negra: memória social da escravidão em Porto Alegre. Revista de História e Estudos Culturais, Porto Alegre: vol. 6, ano VI, nº3 (jul/ago/set., 2009).
brusca na relação senhor-escravo e que não impactasse de modo negativo a economia e o serviço doméstico. Além disso, a liberdade condicional poderia ser também entendida como um estágio de aprendizado para a liberdade, solucionando outra preocupação, a de que os libertos trabalhariam apenas se fossem coagidos por seus ex-senhores: “O Centro Abolicionista pensa que não podemos libertar o escravo sem controlar a maioria dos libertos, que de outra forma, cairão na vagabundagem e na criminalidade.”5
Ao observarmos as alforrias registradas em cartório em Porto Alegre entre o ano de 1884, até a promulgação da Lei Áurea em 1888, chegamos ao total de 1.088 indivíduos alforriados, sendo que 994 (91,7%) tiveram suas cartas de liberdade registradas no ano da campanha abolicionista na capital e apenas 94 (8,3%), nos anos subsequentes. Desses
1.088 indivíduos, 839 (77%) foram alforriados condicionalmente. Salvo pouco mais de uma dezena de exceções, todos o foram com a condição de servir por mais alguns anos a seus antigos senhores. Dos demais, 186 (17%) receberam alforrias gratuitas e 63 (5,8%) pagaram pela sua liberdade. Ao se adotar a alforria condicional com prestação de serviços como forma prioritária de emancipação de escravos em Porto Alegre, a expectativa era a de que os libertandos seguissem servindo a seus antigos senhores. Considerando o contexto em que aquele processo estava inserido, chegamos então ao nosso problema de pesquisa:
Frente a uma liberdade pautada pelas ambiguidades que os colocava entre o cativeiro e a liberdade, como teriam agido, em contrapartida às expectativas senhoriais, os próprios libertandos diante de sua nova condição? Teriam cumprido com seus contratos? Descumprido? Renegociado? Em que condições o fizeram?
Nosso problema de pesquisa, portanto, tem sua origem no questionamento sobre o modo como os libertandos teriam entendido sua nova condição. Desse modo, tomamos como fio condutor de nosso estudo buscar perceber que tipos de relações de trabalho eles teriam estabelecido após a alforria. Devido à heterogeneidade dessas experiências e ao material exíguo com o qual pudemos contar, procuramos não apresentar números e padrões. Contudo, pensamos ter unido recursos suficientes para responder a algumas das
5 MCSHJC - Jornal do Comércio, 2 de outubro, 1884, p. 3, apud ZUBARAN, Xxxxx Xxxxxxxx. A invenção branca da liberdade negra: memória social da escravidão em Porto Alegre. Revista de História e Estudos Culturais, Porto Alegre: vol. 6, ano VI, nº3 (jul/ago/set., 2009), p. 4.
questões suscitadas inicialmente e a outras que foram se colocando no transcurso da pesquisa.
Ao considerar que no período estudado há uma ampla maioria de libertandos que deveriam estar cumprindo as condições impostas em sua carta de liberdade, estamos tratando de indivíduos cuja própria condição legal (o statuliber) era bastante indefinida, abrindo margem para que fosse alvo constante de disputas.6 Ao que tudo indica, os antigos senhores continuavam a tratá-los como escravos, ou ao menos tinham esta intenção: as condições impostas nos contratos de prestação de serviços, de um modo geral, vinham acompanhadas da condição de o escravo permanecer sob o mesmo teto do senhor, sem receber salários e tendo somente as mesmas garantias de quando fora escravo (moradia, alimentação, vestuário e botica). Porém, conforme afirma Xxxxxxxx, desde a Lei de 1871, era praticamente impossível que um escravo concebesse a liberdade como simples continuidade do cativeiro, de modo que procurava espaços para impor e negociar suas condições.7 Certamente não é à toa que, entre os anos de 1886 e 1887, os contratados tenham figurado nos autos policiais com maior frequência justamente por recusarem-se a cumprir com seus contratos, conforme já indicou Xxxxx Xxxxxxx.8
Parece que a estratégia senhorial em torno dos contratos estabelecidos nas alforrias condicionais durou menos que o esperado. Por esta razão, procuramos compreender como aqueles sujeitos teriam vivenciado o período em que o pleno gozo de sua liberdade estava suspenso por uma cláusula de prestação de serviços. É claro que não temos condições, e sequer haveria documentação para tanto, de buscar cada libertando individualmente, ou mesmo sua maioria. Mas, ao seguir vários indícios deixados através de fontes distintas – que resultaram, em grande medida, em um mosaico (sempre incompleto) formado através do exaustivo cruzamento dos documentos utilizados, consideramos ter apreendido ao menos um pouco do universo de possibilidades aberto àqueles homens e mulheres.
Além de uma absoluta maioria de alforriados condicionalmente, veremos que haviam outros tantos que, alforriados de outras maneiras, tiveram de seguir pagando o preço de sua liberdade. Nesse sentido, entendemos que as relações de trabalho que
6 Cf. XXXXXXX, Xxxxx. A carta de alforria In: Ser escravo no Brasil, 3º Edição, São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 176.
7 XXXXXXXX, Xxxxxx. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
8 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre – 1858-1888. Porto Alegre: EST Edições, 2003.
estabeleceram são um campo privilegiado para se observar o período imediato transcorrido após a alforria, isto porque eram os laços do trabalho, ou seja, as limitações impostas ao agenciamento de sua força de trabalho que seguiam prendendo o libertando a seu antigo senhor, uma vez que enquanto libertos com condição de prestação de serviços deveriam seguir servindo àqueles ainda por alguns anos.
Sendo assim, nosso recorte cronológico situa-se entre os anos de 1884 e 1888, tendo por objetivo observar o grupo de libertandos alforriados desde o momento da campanha abolicionista. Como pretendemos demonstrar ao longo do texto, as alforrias deste período tem características bem delimitadas e, do nosso ponto de vista, estão circunscritas em uma conjuntura política relativa aos encaminhamentos sobre a escravidão na província também bastante particulares. O marco final de nossa baliza cronológica corresponde à promulgação da Lei Áurea em 1888, já que, com o fim da escravidão, as alforrias condicionais perderiam a validade. Cabe salientar, porém, que estamos conscientes de que o 13 de Maio significou mais um dos momentos de rearranjos na vida daqueles libertandos. Se a Xxx Xxxxx deixava sem valor as condições impostas para a liberdade nas alforrias de outrora, por certo não desapareceram repentinamente as contradições em torno de suas vidas: o pós-abolição colocaria outros problemas e outras tantas contradições para aquelas pessoas.
Nesse sentido, ainda que um tanto arbitrário e de certa forma um pouco na contramão de uma historiografia que vem paulatinamente tentando superar o ano de 1888 como xxxxx xxxxxxx na história social do trabalho, o enfoque em um curto período foi a escolha que nos permitiu analisar com maior afinco a política de alforria em Porto Alegre nos últimos anos da escravidão no império, bem como as práticas sociais efetivadas pelos libertandos naquele período, algo que não seria possível como um recorte temporal mais amplo. Desse modo, a opção por estudar os anos transcorridos entre a efervescência abolicionista na capital em 1884 e a abolição da escravidão no Brasil poucos anos depois se adequou simultaneamente àquilo que era necessário para tentar responder a algumas de nossas indagações e ao tempo disponível para executar a pesquisa.
Com base no recorte temporal escolhido, que dá conta de uma conjuntura política da província do Rio Grande do Sul (e particularmente de Porto Alegre) inserida, por seu turno, no processo mais geral que pautou o emancipacionismo no Brasil, escolhemos uma das formas de olhar para os libertandos em questão. Sem perder de vista que se trata de experiências de vida únicas, ao analisar as cartas de liberdade registradas em cartório compreendemos aqueles indivíduos como grupo, não homogêneo, mas com importantes
características em comum. Apostamos, nesse sentido, em um estudo seriado das alforrias, levando em consideração as diferentes variáveis no que diz respeito tanto aos alforriados como às condições estabelecidas para a liberdade. Esta abordagem pode ser verificada no capítulo 2, quando analisamos as alforrias cartoriais. O foco se ajusta novamente e passamos a atentar para as experiências individuais em relação ao mundo do trabalho quando analisamos uma série de documentos nos quais buscamos observar o modo (ou “os modos”) como aquelas liberdades iam sendo construídas durante o período de cumprimento dos contratos de prestação de serviços. Esta outra maneira de olhá-los pode ser verificada no capitulo 3.
Em relação às fontes utilizadas, podemos dividi-las em três grupos: 1) o primeiro é composto por documentos relativos às libertações ocorridas no período, em que estão incluídos os registros cartoriais das alforrias e a Ata do Centro Abolicionista, da qual retiramos a lista de senhores que teriam alforriado escravos durante a campanha de 1884. Estes dois documentos foram a base para que empreendêssemos a seleção dos demais; 2) o segundo é composto por aqueles documentos que nos permitiram acompanhar os libertandos após terem conquistado sua alforria, sendo escolhidos por nós os inventários post-mortem e os testamentos de ex-senhores, autos de tutelas envolvendo mães libertas e documentos da Secretaria de Polícia da Província. Estes dois primeiros grupos dão corpo à pesquisa e à análise empreendida. 3) Já do terceiro grupo fazem parte uma série de outros documentos que deram suporte a questões pontuais, como os relatórios da presidência da província, alguns números de jornais, além de fontes impressas diversas. Por uma opção de organização da apresentação do texto, escolhemos apresentar os critérios de seleção e a discussão metodológica no início de cada capítulo.
A emancipação de escravos na historiografia gaúcha
A origem deste estudo há mais ou menos cinco anos se deu quando tivemos contato com a Ata do Centro Abolicionista, documento-monumento9 que faz parte de uma série de símbolos, narrativas e memória oficiais criadas em torno da abolição da escravidão no Rio Grande do Sul. A partir daí, a dúvida sobre o porquê se dizia ter havido uma “abolição” antecipada na província e como isto se dera nos remeteu à historiografia
9 LE XXXX, Xxxxxxx. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1990
sobre o tema. O primeiro contato resultou em trabalho de conclusão de curso, que ficou restrito ao estudo das alforrias relativas aos meses de agosto e setembro de 1884, auge do movimento na capital. A proposta de nossa pesquisa de mestrado, contudo, se deu justamente em função de que, na historiografia local, o destino daqueles libertandos após a alforria, aparecem em meio a trabalhos que dão conta de recortes cronológicos e de problemas de pesquisa mais amplos ou, simplesmente, distintos do que estamos apresentando.
Nesse sentido, apresentaremos aqui alguns dos estudos que mais diretamente se relacionam com nosso problema de pesquisa, quais sejam, aqueles que abordam o abolicionismo e o processo de emancipação na província, e aqueles que se dedicam ao problema dos libertandos contratados especificamente.10 Enunciaremos, assim, as características que consideramos mais relevantes nesses trabalhos e seus pontos de aproximação e distanciamento para que possam ser devidamente desdobrados ao longo dos capítulos. As transformações mais gerais ocorridas na historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil nas últimas décadas serão discutidas no primeiro capítulo, em que procuraremos pontuar suas implicações na historiografia do Rio Grande do Sul.
Na década de 1980, destacam-se as publicações de Xxxxxxxxx Xxxxx sobre o abolicionismo no Rio Grande do Sul.11 Orientada pelas análises macroestruturais privilegiadas à época, a autora se aproxima da leitura de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx ao afirmar que a escravidão havia sido aqui pouco representativa. A autora ressaltou a forte presença do imigrante, apontando a superioridade do trabalho livre em relação ao trabalho escravo. Sendo a escravidão pouco importante, a abolição teria sido, consequentemente, de pouca expressão social. Esta concepção levou Bakos a procurar a explicação para o abolição no Rio Grande do Sul na superestrutura político-ideológica, resultando na produção de estudos acerca dos debates parlamentares e das posições partidárias em
10 Sendo assim, os autores aqui discutidos não foram os únicos a abordar os tema. Na década de 1990, somente a título de exemplo, vão surgir trabalhos de pós-graduação envolvendo alforrias, abolição e outros problemas relativos à liberdade de escravos com atenção voltada para certas localidades do Rio Grande do Sul. Para conhecer estes títulos, verificar XXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxx (Org.). História da escravidão e da liberdade no Brasil Meridional. Guia bibliográfico Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2007, p. 26. Os autores aqui apresentados também não foram necessariamente os que mais produziram sobre o tema. Novamente a título de exemplo, dos anos 1980 em diante, em termos quantitativos Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx é possivelmente quem mais publicou sobre escravidão. Entraremos no mérito de sua produção no Capitulo 1, subitem “A historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil”.
11 Cf. XXXXX, Xxxxxxxx. O processo abolicionista no Rio Grande do Sul. Revista Estudos Ibero- Americanos. Porto Alegre, vol. 6, nº2 (dez. 1980), p. 121 – 148; RS: escravismo & abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982; Repensando o processo abolicionista no Rio Grande do Sul. Revista Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, vol. 14, nº 2 (dez. 1988), p. 117-138.
relação ao fim da escravidão. No entanto, sua contribuição reside em apresentar uma visão crítica sobre a “abolição antecipada”, chegando a entender o movimento como uma farsa, já que as alforrias condicionais não teriam modificado as relações sociais vigentes.
Com produções voltadas para outros campos da história mas que, naquela mesma década, abordaram o tema do abolição no Rio Grande do Sul, há os trabalhos de Xxxxx Xxxxxxx e de Xxxxxx Xxxxxxxxx.12 Ao abordar a escravidão e o problema da abolição, a autoras, assim como Bakos, dedicam-se principalmente às questões políticas que envolveram o abolicionismo na província, às disputas partidárias e ao papel de liberais, republicanos e conservadores no movimento de 1884, que teriam levado à generalização da emancipação de escravos por meio de alforrias condicionadas à prestação de serviços. Xxxxxxxxx argumenta que aquele movimento teria sido uma estratégia política cujo objetivo seria o de controlar a mão-de-obra através das alforrias condicionais.
Muito embora as mudanças transcorridas na historiografia e pesquisas posteriores tenham colocado em xeque algumas das visões sobre a escravidão no Rio Grande do Sul que sustentavam aqueles trabalhos, como se verá no capítulo 1, os estudos daquela década foram importantes ao criticar uma visão mais tradicional reproduzida pela historiografia que exaltava a suposta abolição antecipada exatamente de acordo com a imagem pretendida pelos contemporâneos aos episódios. A década de 1990, por sua vez, contou com uma série de produções das mais variadas orientações teórico-metodológicas. Houve também uma diversificação nos interesses de pesquisa e o enfoque no estudo da escravidão em diferentes localidades.13 Dessa época são os primeiros estudos de Paulo
12 PICCOLO, Xxxxx Xxxxxxx. Considerações em torno das interpretações das Leis Abolicionistas numa província fronteiriça. São Paulo: Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, v. 1, p. 533 – 563, 1973; Escravidão, imigração e abolição. Considerações sobre o Rio Grande do Sul In Anais da VIII Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH). São Paulo, 1989; O Discurso Abolicionista no Rio Grande do Sul, n/ publicado, 1989. XXXXXXXXX, Xxxxxx. Emergência dos subalternos. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1989; Trabalho livre e ordem burguesa (Rio Grande do Sul, 1870 – 1900). São Paulo: Revista de História, nº 120, p. 131 – 151, jan. e jul. 1989; A invenção da sociedade gaúcha. Porto Alegre: Ensaios da FEE, Ano 2, nº 14, 1993; De escravo a liberto: um difícil caminho. Porto Alegre: IEL, 198, p. 136. Dentre vários outros trabalhos que abordam a temática no período, gostaríamos de destacar o de Xxxxxxxx Xxxxx por se tratar exclusivamente do movimento de 1884 no Rio Grande do Sul. Em um texto descritivo sobre os eventos ocorridos em Porto Alegre e pelo interior da província naquele ano, a autora apresenta uma perspectiva de reiterar a ideia de uma abolição antecipada e de exaltá-la, incorrendo em uma reprodução do discurso oficial sobre o ano de 1884. MONTI, Verônica. O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul – 1884. Porto Alegre: Ed. Martins Livreiro, 1985
13 Algumas das publicações do período cujos temas se aproximam do nosso são: GATTIBONI, Xxxx xx Xxxxxx Xxxxxxx. A escravidão urbana na cidade de Rio Grande. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1993. XXXXX, Xxxxxxx Xxx. 1887: A revolta que oficialmente não houve ou de como os abolicionistas se tornaram zeladores da ordem escravocrata. História em Revista: v. 3, p. 99 – 122, nov. 1997. MACEDO, Xxxxxxxxx Xxx Pardense de. Emancipação de escravos In Lições da Revolução Farroupilha. Porto Alegre, ALERS, 1995, p. 37 – 40. XXXXXXX, Xxxxx. Da abolição à República: a agonia
Xxxxxxx sobre os libertandos contratados, e a tese de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx sobre a política de liberdade entre 1865 e 1888 no Rio Grande do Sul com enfoque em Porto Alegre. Ambos os autores estendem seus estudos pelas década seguintes, em que surgem também estudos diversos em torno das temáticas da escravidão e da liberdade.14 Nos anos 2000, juntam-se aos estudos de Xxxxxxx e Zubaran o de Xxxxx Xxxxxxxxx, abordando o processo de emancipação de escravos também no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre.15 Os trabalhos de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx privilegiam as experiências efetuadas por escravos, libertos e contratados em sua busca pela liberdade, bem como o seu papel no movimento abolicionista e em seu período subsequente. Estes autores contribuem ao apontar a construção de um discurso oficial em torno dos eventos emancipacionistas, que tinha como principal objetivo exaltar os membros do movimento abolicionista e os senhores de escravos, ao passo que se preteria a importância dos próprios negros no processo em questão. Nesse sentido, Xxxxxxx discute a construção de uma memória oficial cuja principal característica teria sido justamente o silenciamento da participação nos negros no movimento de 1884. A autora menciona, então, diversas instituições negras que existiram em Porto Alegre naquele período, como a Confraria Nossa Senhora do Rosário e a Sociedade Beneficente Floresta Aurora, dando também exemplos de indivíduos com papel de destaque no processo de emancipação, como o advogado negro Xxxxx Xxxx xx Xxxxx e o Tenente Coronel Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Xxxxxxx denomina a narrativa vitoriosa sobre a abolição em Porto Alegre de “uma invenção branca da liberdade negra”, produzida de comum acordo entre as elites políticas locais apesar de suas diferenças, pois considera que a mesma foi o “produto
do Estado escravista. Estudos Ibero-Americanos, v. 15, nº 2, p. 303 – 314, dez. 1989. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx. Fábulas de escravos e libertos no cenário da justiça em Porto Alegre – 1870/1888. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 1995. XXXXX, Xxx Xxxxxx Xxxxxxxxxx. As manumissões na cidade de Pelotas (1832 – 1849). Estudos Ibero-Americanos, v. 16, nº 1 e 2, p. 309 – 327, jul. e dez. 990. Para outros títulos, cf. XXXXXX, História da Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional... Op. Cit.
14 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Os Contratados: Uma Forma de Escravidão Disfarçada In Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, XVI (1,2): 211 – 224, jul. e dez.,1990; Faces da Liberdade, Máscaras do Cativeiro: experiências de liberdade e escravidão percebidas através das Cartas de Alforria – Porto Alegre (1858/1888). Porto Alegre: Arquivo Público do Estado: EDIPUCRS, 1996; Os cativos e os homens de bem... Op. cit.; Entre o deboche e a rapina: os cenários sociais da criminalidade popular (Porto Alegre – século XIX). Porto Alegre: Armazém Digital, 2009. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx & XXXXXXX, Xxxxxxx. Que com seu trabalho nos sustenta: as cartas de alforria de Porto Alegre (1748 – 1888). Porto Alegre: EST Edições, 2007. XXXXXXX, Slaves and contratados: the politics of freedom in Xxx Xxxxxx xx Xxx, Xxxxxx, 0000-0000. Tese de doutorado. New York: Xxxxx Xxxxxxxxxxxx Xxx Xxxx xx Xxxxx Xxxxx, 0000; A invenção branca da liberdade negra... Op. cit.
15 XXXXXXXXX, Xxxxx. The Practice of Politics in Postcolonial Brazil: Porto Alegre, 1845–1895. Pittsburgh, PA: University of Pittsburgh Press, 2005.
exclusivo e seletivo da imaginação branca, que certamente teve um impacto importante nos primórdios da historiografia da abolição no Rio Grande do Sul.”16
Em sua tese de doutorado, Xxxxxxx aborda a política de liberdade entre a Guerra do Paraguai (1865) e a Lei Áurea (1888) analisando as experiências da escravos e contratados. Uma das abordagens do seu estudo diz respeito ao modo como estes indivíduos recorreram à justiça, sobretudo a partir de 1871, como forma de alcançar a liberdade (tanto a alforria, no caso dos escravos, quando a remissão dos serviços devidos aos ex-senhores, no caso dos contratados). Ao verificar que os alforriados sob condições de prestação de serviços em muitos casos descumpriram com seus contratos, a autora faz a importante constatação de que, se em muitas situações os escravos apoiaram-se no discurso legal para garantir seus direitos, os contratados valeram-se, em sentido contrário, da violação legal dos termos que pautaram sua liberdade ao descumprir os termos estabelecidos nos seus contratos de trabalho. Nesse sentido, a autora conclui que as ações tanto de escravos quanto de contratados não permitiram que se concretizasse uma emancipação nos moldes do gradualismo tal como previam as elites, expectativa que orientou a estratégia de emancipação adotada em 1884.17
Xxxxx Xxxxxxx também destaca o aspecto político do movimento de 1884 e as expectativas em torno daquelas emancipações, chegando a denominar as alforrias condicionais como “formas de escravidão disfarçada”. São seus os estudos que abordam as experiências de escravos e libertos na Porto Alegre da segunda metade do século XIX, estudos em que tem espaço a condição particular dos contratados, oferecendo um panorama geral sobre o tratamento dispensado àqueles indivíduos pela polícia, suas possibilidades e restrições de trabalho e sociabilidades no meio urbano, etc. O autor abordou a questão em pelo menos cinco publicações, deixando muitas sugestões de caminhos pelos quais seguir para dar conta das experiências dos libertos com condições de prestação de serviços. Seus principais estudos, no entanto, possuem problemas de pesquisa distintos e recortes temporais bem mais extensos que os nossos, de modo que o problema dos contratados aparece em meio a outros tantos.18
Ao observar a cena política da província para abordar o processo de emancipação em Porto Alegre, Xxxxxxxxx discute o modo como os abolicionistas tentaram impor ao
16 ZUBARAN, A invenção branca da liberdade negra... Op. cit., p. 2-3. Este artigo é produto do primeiro capítulo de sua tese intitulado “The white invention of black freedom” In Slaves and contratados... Op. Cit., pp. 18 – 67.
17 ZUBARAN, Slaves and contratados... Op. Cit.
18 Os trabalhos foram referidos na nota de rodapé nº 14.
processo o seu modo de conceber a abolição – que incluía os pequenos comerciantes, as viúvas e outros que possuíam apenas um escravo ou dois, relegando a estes últimos um papel passivo no processo de emancipação de 1884. O autor busca nas dissensões ideológicas entre os partidos políticos em torno da questão da abolição os fatores que teriam resultado em uma emancipação através de alforrias condicionadas à prestação de serviços. Segundo ele, ainda que os partidos concordassem com a necessidade de pôr fim à escravidão, só com muita relutância liberais, republicanos e conservadores dissidentes aceitariam aliar-se.
A declaração de que Porto Alegre estaria livre da escravidão em 7 de setembro de 1884 teria sido, assim, o resultado de um intrincado processo em torno do acordo estabelecido entre a elite para processar uma abolição baseada no gradualismo. Um dos argumentos desenvolvidos é o de que os cismas existentes entre a elite masculina, juntamente com a exclusão da mulher e das questões “femininas” nos debates empreendidos na década de 1880, teria levado a uma “feminilização” da abolição. A participação das mulheres da elite teria impingido um caráter não partidário ao movimento: ao lançar mão de um discurso que apelava para a família, para a caridade e contra a degeneração moral da escravidão, seu papel teria sido decisivo para que o mesmo movimento se efetivasse nos moldes em que se deu face aos conflitos no âmbito partidário. Para o autor, a linguagem discursiva das mulheres serviu para contornar as disputas políticas da época.19
Para além do aspecto político, Xxxxxxxxx procura verificar as atitudes de escravos e libertos no contexto emancipacionista em Porto Alegre, demonstrando como os mesmos tentavam fazer valer o seu entendimento do que ocorria, lançando mão frequentemente da solidariedade e simpatia de terceiros (fruto do sentimento generalizado anti escravidão), como a imprensa, vizinhos etc. De um modo geral, uma liberdade mais completa que se afastasse do controle dos senhores era central para escravos e libertos, razão pela qual entidades negras seguiram comprando a liberdade de cativos remanescentes após 1884. Ao deslindar o modo como os contratados resistiram a uma certa política de domínio, argumenta que os mesmos mexeram nas esperanças da elite de que se tornassem dependentes, representando uma leitura desafiadora do que a emancipação naqueles moldes significaria.
19 Para o autor, esta feminilização teria servido não apenas para manobrar as diferenças partidárias e possibilitar o êxito do movimento, mas também servia à demarcação dos papéis de gênero naquela sociedade. XXXXXXXXX, The Practice of Politics... Op. Cit.
Reafirmando a visão crítica da geração anterior de historiadores acerca da abolição supostamente antecipada, estes autores, por sua vez, acompanharam as mudanças historiográficas ocorridas desde o final dos anos 1980 e deslocaram o foco das explicações macroestruturais e das disputas políticas que teriam levado à abolição. Passaram a dar, então, espaço ao papel dos próprios escravos nos acontecimentos que levariam ao fim da escravidão na província. Aqui as experiências de escravos, libertos e contratados tem peso importante e decisivo nas tensões que levariam à emancipação no Rio Grande do Sul. Também o próprio abolicionismo aparece de forma mais matizada, buscando-se perceber a diversidade dos diferentes agentes no seio do movimento.
Ainda que haja diferenças entre as abordagens empreendidas pelos autores das diferentes gerações que trataram do tema do abolicionismo e dos contratados, todos parecem estar de acordo que houve um esforço de coesão por parte dos partidos políticos sobre o modo como deveria se encaminhar a emancipação de escravos na província. A estratégia empregada foi efetivada pelo movimento abolicionista e resultou na adesão dos senhores, o que, por conseguinte, resultou em um grande número de alforrias condicionadas à prestação de serviços registradas nos cartórios da capital. Contudo, foi a historiografia mais recente, em que podemos incluir os trabalhos de Xxxxx Xxxxxxx, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, e Xxxxx Xxxxxxxxx que, em consonância com um movimento de mudança de abordagens mais geral na história social do trabalho e da escravidão em particular, passou a dar atenção ao papel cumprido pelos próprios escravos e forros na luta pela sua liberdade.20
Nesse mesmo sentido, sem dedicar-se exclusivamente ao tema, mas dando o devido espaço à política de emancipação adotada na província, problematizando e colocando em pauta os limites de uma abolição supostamente antecipada, outros estudos tem, recentemente, possibilitado conhecer o contexto em questão tanto para Porto Alegre quanto para outras localidades do Rio Grande do Sul.21 Todas estas pesquisas – e outras
20 As transformações aqui referidas serão discutidas no capítulo 1, subitem “A historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil”.
21 Dentre essas, podemos citar ARAÚJO, Thiago Leitão de. Escravidão, fronteira e liberdade: políticas de domínio, trabalho e luta em um contexto produtivo agropecuário (vila da Cruz Alta, província do Rio Grande de São Pedro, 1834-1884). Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2008; do mesmo autor, Nem escravos, em libertos: os contratos de prestações de serviços os últimos anos da escravidão na província de São Pedro. In: XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Xxxxxxxx-se livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de abolição. São Paulo, SP: Edusp, 2015; XXXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Os nomes da liberdade: ex-escravos na serra gaúcha no pós- abolição. São Leopoldo: Oikos, 2008; PERUSSATTO, Xxxxxx Xxxxxxxx. Como se de ventre livre nascesse: cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão – Rio Pardo/RS (c. 1860
– c.1888). Dissertação de mestrado. São Leopoldo: PPGH/UNISINOS, 2010; XXXXX, Gislaine. “É a
tantas relativas aos diferentes problemas em torno da escravidão e da liberdade, tem contribuído a seu modo, para se conhecer as últimas décadas da escravidão e o pós- Abolição no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre.
Xxxxxxxxx, contratos e experiências de trabalho em três capítulos
Nossa pesquisa está dividida em três capítulos: o capítulo 1 dedica-se, de modo geral, à contextualização da segunda metade do século XIX, sobretudo a partir da década de 1870, no que diz respeito às transformações sofridas pelo escravismo bem como das possibilidades abertas para a conquista da liberdade naquele período. Desse modo, buscamos saber o que disseram os historiadores ao longo das últimas décadas, em que a história do trabalho no Brasil como um todo, e a história social da escravidão em particular, sofreram transformações de cunho epistemológico e metodológico. Abordaremos, assim, o percurso da história da escravidão e da liberdade dos anos 1970 em diante, enfatizando alguns dos estudos são mais relevantes à nossa pesquisa.
Foi dada especial importância à discussão em torno do contexto emancipacionista das últimas décadas da escravidão e do papel cumprido pela Lei de 1871 para a prática de alforria bem como para as demais transformação relativas à vida em liberdade. De modo indissociável desse contexto e pautada pelas brechas abertas pela Lei do Ventre Livre, discute-se então, a estratégia de emancipação adotada a partir de alforrias condicionadas à prestação de serviços na província do Rio Grande do Sul, mantendo nossa atenção, no entanto, para o modo como a mesma se efetivou em Porto Alegre. Se a historiografia – conforme acabamos de mencionar, vem discutindo os sentidos da emancipação na província e matizando sua suposta antecipação ao resto do país, acreditamos ter contribuído nesse mesmo sentido ao apresentar a discrepância e as contradições entre uma cidade que havia sido declarada livre da escravidão e os resultados que o movimento pela abolição em 1884 efetivamente alcançou.
causa dos oprimidos a que abraçamos”: considerações sobre escravidão e liberdade nas páginas do jornal A Reforma (Porto Alegre/1870-1888). Porto Alegre: Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2014; XXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Além da Invisibilidade: História Social do Racismo em Porto Alegre Durante o Pós-Abolição (1884-1918). Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 2014.
Tal panorama nos permite compreender o sentido das alforrias registradas entre os anos de 1884 e 1888 nos cartórios de Porto Alegre. Este é o tema do capítulo 2, em que apresentamos os resultados de nossa pesquisa com as cartas de liberdade. Desse modo, apresentamos suas características gerais, bem como a tipologia utilizada e nossos critérios de classificação. Só assim, traçamos o perfil dos alforriados, obtido a partir das informações mais recorrentes nesses documentos. Ao conhecer as principais características daqueles homens e mulheres, passamos então a associá-las com os tipos de alforrias e os termos estabelecidos para sua liberdade, buscando compreender a relação eles.
Neste capítulo, discutimos as categorias utilizadas para classificação das alforrias. Ao retomar os critérios que nos fizeram dividi-las, de acordo com Xxxxx Xxxxxxxxx, entre alforrias gratuitas, pagas e condicionais (utilizadas de modo frequentemente automático na maioria dos trabalhos), o fizemos com a intenção de que, a partir da análise das fontes, fosse possível demonstrar e explorar as ambiguidades das liberdades conquistadas em sua prática social em contraste com o que, escrito no documento, poderia parecer (equivocadamente) um tanto simples. Conjugamos, para tal, uma análise seriada de todas as alforrias cartoriais registradas entre janeiro de 1884 e maio de 1888 com a consequente apresentação de dados quantitativos, a uma leitura mais acurada desses documentos, atentando para suas particularidades e experiências individuais, que estavam pautadas, no entanto, pelas possibilidades e limites colocados naquele contexto.
É no capítulo 3 que passamos a perseguir os libertandos enquanto cumpriam (ou deveriam estar cumprindo) com seus contratos de prestação de serviços. Nesse sentido, através da leitura de testamentos e inventários post-mortem de ex-senhores de libertos contratados, buscamos conhecer seus bens, a localização de suas propriedades e mapeá- las na Porto Alegre de então, com o sentido de buscar saber onde e como viveram os libertandos quando escravos, e como possivelmente continuariam a viver os que cumpriram suas alforrias condicionais. Grosso modo, esses documentos nos levaram àqueles que seguiram junto a seus senhores cumprindo com seus serviços, isso se, vez ou outra, os mesmos documentos não denunciassem que os libertandos haviam deixado seus antigos senhores, recusando-se a cumprir com seus contratos.
Outros documentos, como as ações tutelares envolvendo mulheres libertas e os documentos policiais, nos permitiram perceber de modo mais latente as tensões em torno dos libertandos que, durante aqueles anos da década de 1880, sofreram com a vigilância e repressão do poder público, o que se intensificou com o aproximar do 13 de Maio e
após a abolição. Os autos de tutela se mostraram uma via importante de acesso às mulheres que, como veremos, compunham a maioria dos alforriados. Estas mulheres, quando as encontramos tendo seus filhos tutelados (na maioria das vezes a seus antigos senhores) encontravam-se cumprindo os contratos de suas alforrias ou já haviam abandonado o cativeiro.
A documentação policial, por outro lado, nos remeteu àqueles que veementemente opuseram resistência e limites ao poder senhorial, chegando a dar entrada na Cadeia Civil por recusa ao trabalho ou por portar-se de maneira inadequada de acordo com os olhos de senhores e das autoridades da polícia. À exceção desses últimos documentos, cuja leitura da totalidade dos códices existentes para o período nos permitiu apontar algumas sugestões mais gerais, nesse capítulo nos dedicamos à aproximação com pequenos fragmentos de histórias de vida que, se são particulares e bastante heterogêneos, nos permitiram examinar os limites e possibilidades de homens e mulheres que viveram entre a escravidão e a liberdade.
Capítulo 1
Os horizontes da liberdade: as décadas finais da escravidão no Brasil e na província do Rio Grande do Sul
Este capítulo tem como objetivo esboçar um panorama geral das décadas finais da escravidão no Brasil no que diz respeito às possibilidades de consecução da alforria e da conjuntura política específica da província que resultou supostamente na libertação em massa de escravos no Rio Grande do Sul. Tal compreensão é fundamental para entender o caráter das alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre entre os anos de 1884 e 1888, na medida em que as mesmas fizeram parte de uma estratégia de emancipação adotada na província consonante às expectativas gradualistas que orientaram os encaminhamentos para o fim da escravidão no país. Ao observar o peso da população escrava na cidade em relação ao número de alforrias registradas em cartório, pretendemos discutir ainda o discurso construído em torno da campanha abolicionista em contraponto aos seus resultados. Desse modo, buscamos analisar o percurso da historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil nas últimas décadas, pontuando seus desdobramentos na produção historiográfica gaúcha.
Até a década de 1980, os estudos em torno da escravidão no Brasil dedicaram-se à enfatizar o papel violento e repressor do sistema escravista, colocando o escravo como vítima passiva, condicionado pela estrutura social. Tal abordagem, levada a cabo pela chamada Escola Sociológica Paulista, teve origem na crítica realizada por estes estudiosos à ideia de democracia racial de Xxxxxxxx Xxxxxx. O combate à concepção de que teria havido uma escravidão mais branda no país cumpriu um importante papel, mas deixou brechas para que, nos anos subsequentes, sofresse fortes críticas por parte dos historiadores. Preocupados em restituir o papel de sujeito do escravo na constituição de suas próprias vidas, historiadores criticaram a ideia de anomia social contida nos estudos anteriores e conformaram nova agenda de pesquisas que marcou uma virada nos estudos da história social da escravidão no Brasil. Desde então, as pesquisas têm se preocupado em analisar o cotidiano e as relações sociais tecidas por escravos e libertos, de modo a desvendar-lhes os embates e negociações com os senhores, buscando exaplorar os significados atribuídos às experiências de cativeiro e liberdade. Tais estudos tem se
dedicado, ao mesmo tempo, a buscar novas fontes para pesquisa e novas abordagens para fontes já conhecidas.22
Como consequência dessa virada, ao mesmo tempo epistemológica e metodológica, as visões dos historiadores sobre a relação entre escravidão e liberdade também mudaram. Assim, se durante muito tempo a historiografia, pautada prioritariamente por questões macroestruturais, tratou escravidão e liberdade de maneira segmentada, como se, quando liberto, o escravo passasse automaticamente às relações capitalistas de trabalho livre23, nas últimas três décadas, os estudos tem se dedicado a compreender a realidade vivida pelos sujeitos a partir de uma ótica que integra escravidão e liberdade como partes de uma experiência intercambiada, repleta tanto de rupturas quanto de continuidades e de contradições. Como pontua Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxx, as expectativas e os sonhos de liberdade eram construídos no seio da sociedade escravista e estiveram a ela integradas, de modo que os sujeitos agiam a partir de códigos culturais construídos naquela sociedade.24 A retomada desta produção historiográfica nas páginas a seguir nos permitirá apontar aqueles estudos que mais influenciaram nossa pesquisa e que orientaram as discussões realizadas ao longo dos três capítulos.
1.1 A historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil
Entre as décadas de 1930 e 1950, o papel do negro e as relações raciais no Brasil estiveram orientados pela obra de Xxxxxxxx Xxxxxx.25 Em Freyre, o passado colonial que originara uma cultura mestiça teria fundado as bases de um Brasil pautado por uma harmonia ou democracia racial. A relação senhor-escravo estaria baseada no paternalismo, o que tornaria a sociedade mais benevolente, visão da qual decorria a ideia de que aqui a escravidão fora mais branda do que em outros lugares. Na historiografia
22 Para um balanço mais completo da historiografia da escravidão no Brasil, ver o capítulo 1 de XXXXXXXX, Xxxxxx X. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Xxxxxxx Xxxxxx. Bauru: EDUSC, 2001.
23 Esta concepção está presente na ideia de transição (ou substituição) do trabalho escravo para (pelo) o trabalho livre. Para crítica esta concepção, segundo a qual, ao adquirir a liberdade, o escravo passaria automaticamente ao mundo das relações capitalistas de trabalho livre, cf. XXXX, Xxxxxx. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto História. São Paulo (16) fev. 1998. p. 25-38.
24 XXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxx. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista
– Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 40.
25 XXXXXX, Xxxxxxxx. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Xxxx Xxxxxxx, 1943; Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936.
gaúcha, a influência do autor pernambucano pode ser observada em Xxxxx xx Xxxxxxx. Um dos principais nomes entre aqueles que se dedicaram à história regional na época, o autor inovou ao incluir os africanos na formação do gaúcho juntamente a outros grupos étnicos, como indígenas e europeus. Entretanto, estabelecia hierarquias entre estes elementos, dando destaque aos luso-brasileiros. Além disso, tal como visões anteriores a sua obra, considerava que “no extremo sul, o negro havia sido menos oprimido ou oprimido com mais brandura que em outros lugares do Brasil”. Considerava ainda a presença demográfica do elemento africano pouco expressiva.26
Na década de 1960, os trabalhos sobre os negros e a escravidão mudariam sua orientação: naquele momento, os intelectuais passariam a preocupar-se com questões teóricas mais abrangentes acerca da estrutura e do caráter da sociedade brasileira.27 As críticas ao chamado mito da democracia racial de Xxxxxxxx Xxxxxx foram realizadas pelos estudiosos da Escola Sociológica Paulista, formada por nomes como os de Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx. Preocupados com a definição da suposta democracia racial, aqueles autores denunciaram a violência do sistema escravista e a desigualdade da sociedade brasileira.
De acordo com Xxxxxx Xxxxxx, a partir de então a ênfase deixava de ser dada a questão racial como mecanismo de reprodução ou criação de desigualdades sociais, para dar lugar às determinações estruturais como definidoras das mudanças. Segundo a autora, essa geração de intelectuais teve o mérito de repensar o lugar dos oprimidos na sociedade, mas o fez de acordo com alguns parâmetros:
Ao sublinhar com tamanha ênfase o ponto de vista estrutural, elegeram a estrutura econômica (percebida em uma esfera macrohistórica) como elemento desencadeador de toda a mudança. Todos os outros elementos da realidade histórica deviam, portanto, desprender-se ou se definir a partir dessas condições estruturalmente dadas.28
26 XXXXXX, História da escravidão e da liberdade... Op. Cit., p. 26. Cf. XXXXXXX, Xxxxx de. Os africanismos no dialeto gaúcho. In Revista do IHGRS, Porto Alegre, ano XVI, II trimestre, 1936, p.167- 226; O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul. In Revista do IHGRGS, ano XVII, 1o trimestre, 1937. [Sep.] Porto Alegre: Globo, 1937. A discussão em torno das origens e formação do Rio Grande do Sul e do papel do elemento negro remete ao século XIX. Já no século XX, antes mesmo de Xxxxxxx, quem vai discutir a formação sul-riograndense, pontuando seus diferentes aspectos, é Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx, que vai destacar o problema das raças (estabelecendo diálogo com as teses de Xxxxxxxx Xxxxxx), afirmando que o Brasil é mestiço mas que o Rio Grande do Sul, no entanto, possui maioria branca (e consequentemente “superior”). Sustenta, ainda, a ideia de que haveria aqui uma elite democrática que imprimiria relações amistosas aos trabalhadores livres pobres e escravizados. GOULART Xxxxx Xxxxx. A formação do Rio Grande do Sul. Pelotas: Livraria do Globo, 1927. Para uma revisão sobre a historiografia no Rio Grande do Sul entre o século XIX e início do XX, ver XXXXXX, História da escravidão e da liberdade... Op. Cit.
27 Idem, p. 29
28 Idem, p. 32
Baseado na violência e na exploração econômica, para realizar-se o sistema acabava por reificar o escravo, tirando seu direito a humanidade e o tornando anômico. Objetificado por sua condição jurídica e condicionado pela experiência do cativeiro, tal visão tirava completamente o protagonismo e a autonomia do escravo. Em Visões da Liberdade, um dos mais importantes trabalhos a criticar tal abordagem, Xxxxxx Xxxxxxxx denomina a visão dos intelectuais paulistas sobre os escravos de “teoria do escravo-coisa”.29 A anomia social do escravo presente nos estudos daqueles, acabaram por incorporar muito da ideologia senhorial das relações escravistas.
No mesmo sentido interpretativo, tais abordagens levaram ainda a uma ruptura entre o trabalhador livre e o trabalhador escravo, em que de um lado haveria o imigrante, livre, capaz de adaptar-se as relações capitalistas de trabalho livre, e de outro, o escravo, aniquilado pelo seu passado e impossibilitado de adaptar-se a novas condições de trabalho. Assim, segundo Xxxxxx, foi construída “uma oposição essencial entre escravidão e capitalismo que tendeu a desconsiderar as experiências históricas, na medida em que se priorizou o estudo das grandes estruturas, assim percebidas.”30
Em artigo sobre os sujeitos históricos no imaginário acadêmico, Xxxxxxxx e Xxxxx apontam no pensamento historiográfico o que denominam de “paradigma da ausência”: a ausência de classes definidas na história nacional abriria espaço, na narrativa histórica, para a ação do Estado, que substituiria esta lacuna, tornando-se então o principal agente histórico. Tal narrativa apagaria a atuação dos sujeitos, ocultando seus conflitos e diferenças.31 Este paradigma esteve presente nas interpretações dos estudos das décadas de 1960 e 1970. Os autores demonstram como a visão sobre os escravos empreendidas por aqueles estudiosos tem, senão suas origens, muita semelhança com os discursos dos contemporâneos dos escravos a quem se referiam, quais sejam parlamentares, viajantes estrangeiros, abolicionistas etc. Em tais discursos, o negro é descrito como alguém que necessita ser protegido, ensinado, tutelado pelos senhores ou pelo Estado, por fim. Esta visão justificaria ainda a exclusão dos descendentes de escravos e de trabalhadores pobres em geral em alcançar direitos de cidadania e de participação política. Assim, ao tentar explicar a marginalização dos negros na sociedade, vê-se uma assimilação da ideologia da sociedade escravista aos discursos sociológicos e historiográfico, impondo a escravos
29 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit.
30 XXXXXX, História da Escravidão e da Liberdade... Op. cit., p. 32
31 XXXXXXXX, Xxxxxx x XXXXX, Xxxxxxxx X. xx. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos na historiografia brasileira desde os anos 80. In: Cadernos AEL. Campinas UNICAMP, v. 14, n. 26, p. 16.
e libertos a marca da incapacidade para o trabalho livre, inabilitado pelo seu passado de xxxxxxxxx.
Dentre os autores daquela vertente que exerceram forte influência na historiografia sul rio-grandense, destaca-se a obra de Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional, de 1962. Xxxxxxx reconheceu a existência de escravos no Rio Grande do Sul desde ao menos o século XVIII, porém em número reduzido (à exceção de alguns centros urbanos, como Porto Alegre). Segundo sua visão, o trabalho escravo só se tornaria sistemático a partir do desenvolvimento de uma economia mercantil, o que teria ocorrido apenas nas primeiras décadas do século XIX com o desenvolvimento das charqueadas. O trabalho de Xxxxxxx teve ressonância na historiografia local das décadas de 1970 e 1980, pautando os interesses de pesquisa e os debates através de trabalhos como os dos marxistas Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx.32 Com críticas apenas pontuais a Xxxxxxx, este último autor corrobora com a ideia
de uma existência pouco expressiva de trabalho escravo no Rio Grande do Sul como um todo, o qual estaria concentrado basicamente nas charqueadas. Xxxxxxx Xxxxx argumenta, ainda, sobre a incompatibilidade entre o desenvolvimento da indústria charqueadora e a escravidão. Ao orientar-se pelo debate em torno do “modo de produção escravista” que teria existido no Brasil, este e outros autores voltaram seus estudos para a resistência escrava, denunciando a violência estabelecida na relação senhor-escravo e privilegiando o estudo das formas mais radicais de oposição à escravidão, como as fugas, sedições, aquilombamentos e crimes perpetrados em resposta aos maus-tratos e ao trabalho excessivo.33
32 XXXXXXX, Xxxxx. O capitalismo pastoril. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980. Em relação à Maestri, a título de exemplo de publicações antigas e recentes, cf. XXXXXXX, Xxxxx. O escravo no Rio Grande do Sul: A charqueada escravista e a gênese do escravismo gaúcho. Porto Alegre: EST/ UCS, 1984; Deus é grande, o mato é maior! Trabalho e resistência escrava no Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF Editora, 2002; O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência e sociedade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.
33 Citamos especialmente Xxxxxxx Xxxxx pelo fato de ter publicado uma considerável quantidade de estudos acerca da escravidão e do negro no Rio Grande do Sul e por ter orientado uma série de outros trabalhos. Sua visão bastante influenciada por Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx e por Xxxxx Xxxxxxxx segue sendo sustentada atualmente, capitaneando parte dos espaços públicos não acadêmicos ou especializados que tratam da questão da escravidão e do negro no Rio Grande do Sul. Entre os trabalhos orientados por Xxxxxxx já nos anos 1990 e 2000 e que seguem sua linha teórico-metodológica destacam-se ASSUMPÇÃO, Xxxxx Xxxxxxx. Pelotas: escravidão e charqueadas (1780-1888). Dissertação de mestrado. Porto Alegre, PPGH/PUC-RS, 1995 e ZANETTI, Valéria. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840
– 1860). Passo Fundo, RS: UPF, 2002. Estudando Porto Alegre em um período anterior ao nosso (1840 – 1860), esta última autora procura discutir a relevância do trabalho escravo no meio urbano, enfatizando seu caráter violento e as formas de resistência dos escravos (sempre entendidas como aquelas formas mais explícitas) e tecendo uma crítica a historiografia que enfatiza a negociação, afirmando que a mesma criava a imagem de um escravo passivo e acomodado ao sistema. Retornando aos autores da década de 1980, quem dialoga com Xxxxxxx, sustentando algumas de suas teses e contrariando outras em relação às
Ao referir-se à influência marxista sobre os trabalhos das décadas de 1960 e 1970, Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx afirma que, ao acompanhar o movimento da história como uma sucessão inevitável de estruturas econômicas, consideraram a abolição da escravidão como um momento de superação do modelo pré-capitalista de produção no Brasil, no lugar do qual teriam emergido relações capitalistas de trabalho para as quais o trabalhador “típico” seria o imigrante europeu.34 Percebe-se, assim, naqueles autores, um papel determinante da estrutura sobre os indivíduos, restando pouco espaço para a autonomia e protagonismo dos sujeitos históricos.
É justamente sobre este ponto que se fundamentaram as críticas e a virada historiográfica ocorrida na década de 1980. A partir daí, começaram a surgir trabalhos cujo objetivo principal esteve em restituir o escravo como sujeito histórico, rompendo com a ideia anterior de anomia. Assim, escravos e libertos, ao mesmo tempo em que deixaram de ser vistos como sendo determinados automaticamente pelas estruturas sociais, tiveram reconhecidos seu protagonismo e autonomia que, por sua vez, não deixaram de ser considerados sob as mais variadas circunstâncias coercitivas e limitadoras. Tal movimento, como apontam Xxxxxxxx e Xxxxxx, esteve em diálogo com os movimentos dos trabalhadores e da luta pela democratização do país e deles sofreu influência. O auge dessa interlocução teria sido o centenário da abolição, que possibilitou a divulgação de uma nova historiografia cujo centro estava no protagonismo dos escravos no processo que pôs fim a escravidão, ao mesmo tempo em que o movimento negro
charqueadas, é CORSETTI, Berenice. Estudo da charqueada escravista gaúcha no século XIX. Dissertação de mestrado. Niterói: ICHF/UFF, 1983. São da década de 1980 também os trabalhos de Xxxxxxxxx Xxxxx sobre o abolicionismo no Rio Grande do Sul, mencionados na introdução do presente texto. Influenciada pelas teses de FHC, em texto escrito no centenário da abolição a autora tenta situar-se em relação a historiografia nacional que caminhava no sentido recuperar o papel dos próprios escravos como sujeitos históricos. Bakos procura então mostrar o protagonismo do negro no processo abolicionista, sem no entanto abrir mão de considerar como formas de resistência apenas aquelas ações mais radicais, de reafirmar a explicação superestrutural da abolição e de ressaltar o despreparo do negro para o mercado de trabalho livre. BAKOS, O processo abolicionista no Rio Grande do Sul... Op. Cit.; RS: escravismo & abolição... Op. Cit.; Repensando o processo abolicionista... Op. Cit. O movimento efetuado por Xxxxxxxxx Xxxxx ilustra de certa forma a influência na historiografia do Rio Grande do Sul de uma mudança de direção nos estudos da escravidão e da liberdade a nível nacional na década de 1980, em que o tema passou a ter maior visibilidade, ensejando inclusive o interesse de pesquisadores de outras áreas e de diferentes matrizes teóricas a tratar do tema, como Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxxx, mencionadas na introdução de nosso texto. Não pretendemos aqui discutir toda a produção historiográfica do período. Uma revisão bibliográfica mais completa acerca da historiografia do Rio Grande do Sul, no entanto, pode ser verificada através do texto de introdução ao guia bibliográfico “História da escravidão e Liberdade no Brasil Meridional” de Xxxxxx Xxxxxx. Cf. XXXXXX, História da Escravidão e da Liberdade... Op. cit.; da mesma autora, “A escravidão no Brasil Meridional e os desafios historiográficos” In Xxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx et alii (orgs.), RS Negro: cartografia sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2008, p. 15-31.
34 XXXXXXXX, Xxxxxx. Entre as mãos e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Centro de Pesquisa em História Social, 1999, p. 58.
ocupava a cena pública combatendo a visão da abolição como uma dádiva, como uma concessão feita aos negros e na luta por reconhecimento de direitos. 35
Os novos trabalhos, então, passaram a buscar as experiências dos próprios escravos e a perscrutar o sentido conferido por eles próprios a suas vidas e lutas cotidianas. Dessa feita, novas questões foram sendo formuladas, o que levou a uma ampliação de problemas e um alargamento metodológico que pudessem dar conta de respondê-las. Sendo assim, novas dimensões do cotidiano escravo foram gradativamente sendo conhecidas, tais como a existência de famílias e redes de solidariedade; formas de resistência e acomodação que permitiam tanto melhores condições de cativeiro, quanto a conquista da liberdade; o acesso à justiça e o uso das brechas deixadas pelo Estado de modo a permitir a consecução da alforria etc.
Para tais objetivos, ao mesmo tempo em que se buscavam novas fontes, dentre as quais destacam-se os processos criminais e documentos policiais, fontes já conhecidas foram sendo revisitadas e inquiridas de modo que se pudesse buscar, nas entrelinhas, a voz de quem frequentemente não podia manifestar-se com facilidade ou tinha seus testemunhos escritos pelas penas dos opressores. De acordo com Xxxxxxxx e Xxxxx, para a historiografia, passou a ter importância desvendar as políticas de domínio da escravidão e o modo como os cativos lidavam com a exploração e a coerção senhorial.
Nesse sentido, pesou a influência dos estudos de E. P. Xxxxxxxx: os “costumes em comum” formatavam as experiências dos trabalhadores escravos e compunham a arena da luta de classes durante a escravidão no Brasil. Baseadas sobretudo nos conceitos de experiência e de agência thompsianos, a historiografia da década de 1980 em diante passou a encarar escravos e libertos como sujeitos históricos capazes de agenciar seus próprios destinos dentro dos limites e condicionamentos que pautavam suas relações com os senhores. De acordo com a noção de experiência do historiador britânico, as variadas formas de reconhecimento e consciência social se dariam no mundo material e nas vivências cotidianas. O pertencimento social não se produziria, desse modo, de forma abstrata, mas na experiência vivida (ou então, não existiria uma classe em si sem que antes houvesse uma classe para si, conforme as discussões no seio do marxismo).36
35 XXXXXXXX, Xxxxxx e FONTES, Paulo. História social do trabalho, história pública. Perseu, nº 4, ano III, 2009.
36 XXXXXXXX, X. X. A formação da classe operária inglesa. 3 vols. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Sob esta perspectiva, tem sido possível também encarar o pós-emancipação como uma arena de disputas em torno dos significados de liberdade, e não como uma realidade dada e única decorrente do escravismo. Os autores de Além da escravidão retomam a discussão ensejada por Xxxxxxx Xxxxxxxxx, segundo o qual o qual a liberdade foi gerada a partir da experiência da escravidão. De acordo com este autor, a liberdade não seria um estado natural, mas “um construto social, um conjunto de valores coletivamente comuns, reforçado pelo discurso ritual, filosófico, literário e cotidiano” cujos significados devem ser buscados em seus contextos históricos e sociais específicos, observando-se ainda os possíveis significados conflitantes de liberdade.37
Ao invés de escravos e libertos serem vistos como sujeitos anômicos resignados pela estrutura escravista, passaram a ser entendidos como agentes ativos no seio daquela sociedade, cujas visões em torno de sua condição impunham limites à dominação senhorial, ao mesmo tempo em que ajudavam a reproduzi-la. Assim, as experiências de escravos e senhores eram determinadas umas pelas outras, estruturando um conjunto de significados sociais gerais que pautavam as relações entre homens e mulheres.38
Decorrente desse movimento historiográfico, foi enfatizada a participação dos escravos em uma cultura legal. Desse modo, passaram a fazer parte do rol de problemas das novas pesquisas, por exemplo, a maneira como os escravos se apropriavam das brechas abertas pelo Estado imperial e suas instituições de modo a extrair e garantir direitos. Tais estudos demonstram, ainda, que, ao utilizarem-se das contradições existentes no seio do Estado, os escravos
sabiam que parte essencial do processo de desmantelamento da escravidão consistia em submeter o poder privado dos senhores ao domínio da lei, e por isso aprenderam a solapar a autoridade senhorial colocando-se sob a guarda do poder público, ainda que fosse na condição de réus em processos criminais.39
A historiografia vem, assim, de acordo com Xxxxxxxx e Fontes, abordando a agência escrava sob três perspectivas: enfatizando a participação dos escravos em uma cultura legal, independentemente da anuência de seus senhores; utilizando documentos policiais e criminais de modo a melhor explorar as práticas de resistência dos próprios escravos; e reconhecendo que a escravidão brasileira foi marcadamente africana até um período bastante tardio, devido à continuidade do tráfico negreiro até 1850.40 Os autores pontuam
37 XXXXXX, X., XXXX, X., XXXXX, X. Além da escravidão: investigações sobre raça, trabalho e cidadania em sociedades pós-emancipação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 45-46 e 50-52.
38 XXXXXXXX; XXXXX, Sujeitos no imaginário acadêmico... Op. cit., p. 22.
39 Idem, p. 25.
40 CHALHOUB; FONTES, História social do trabalho... Op. cit., p. 222.
que este movimento esteve em consonância com a forte militância do movimento negro também a partir dos anos 1980.
Como foi visto até então, houve uma mudança significativa do lugar conferido aos escravos e libertos. O reconhecimento de sua agência ao longo da história tem possibilitado conhecer novas dimensões do passado escravista brasileiro. Tal mudança de paradigma foi acompanhada de uma ampla revisão e ampliação teórico-metodológica. Superadas em grande medida algumas das dicotomias enunciadas pelas gerações anteriores, coube a tais estudos buscar os múltiplos sentidos da escravidão e da liberdade. Compreendendo os limites frágeis que separam as duas experiências no século XIX, é um denominador comum entre os historiadores que as mesmas, constituídas no cotidiano de homens e mulheres, estão pautadas pela dimensão do mundo do trabalho, o qual melhor permite observar as relações sociais do Brasil oitocentista.
Nosso estudo se dá, desse modo, nos marcos da influência da historiografia das últimas décadas, o que poderá ser mais bem percebido ao longo dos capítulos que se seguem mas, principalmente, na discussão em torno da conquista da liberdade e da prática da alforria nas últimas décadas da escravidão no Brasil. Ao discutirmos logo adiante os modos de alforriar e a maneira como a historiografia tem tratado o problema da conquista da liberdade, será possível examinar, por outro lado, a crítica sofrida por esta geração de historiadores das décadas de 1980 e 1990 através de trabalhos recentes de historiadores voltados ao estudo do período colonial e que criticam a ênfase dada à resistência escrava. Todas estas transformações ocorridas na historiografia da escravidão e da liberdade no Brasil podem ser percebidas também no Rio Grande do Sul. Ao compulsar os títulos publicados entre o final do século XIX e o ano de 2006 (entre livros, artigos, teses, dissertações e resumos publicados) que abordam diretamente ou tangenciam estas temáticas para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, Xxxxxx Xxxxxx observa um aumento progressivo de publicações nas últimas décadas. Nas décadas de 1950 a 1970, por exemplo, foram publicados 65 títulos. Já nos anos 1980, foram contabilizados 114 publicações, o que aumentou para 196 nos anos 1990. É nos anos 2000, porém, que há um salto na quantidade de títulos publicados: até 2006, há nada menos do que 416 referências. Soma-se a isso praticamente mais uma década de produções posteriores ao período comtemplado pela autora em seu guia, o que coincide com a expansão das
universidades e cursos de pós-graduação no Brasil.
No Rio Grande do Sul, dos anos 1990 em diante os trabalhos que se seguiram abordaram e tem abordado a escravidão e a liberdade de maneiras bastante diversificadas.
Embora haja ainda produções que remetam aos referenciais teórico-metodológicos dos anos 1970 e 1980, pode-se afirmar que os principais estudos do campo acompanharam as transformações ocorridas na historiografia das últimas décadas. Mencionando apenas aqueles que competem mais diretamente à nossa pesquisa, referenciamos na introdução do presente texto os de Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, que revisitaram temas como o do abolicionismo e do período relativo à emancipação de escravos no Rio Grande do Sul, dando ênfase ao protagonismo negro naquele processo.
Sem pretender anunciar os diversos estudos existentes, cabe aqui destacar, entretanto, a importância de trabalhos que, através de vasta pesquisa empírica, tem trazido importantes contribuições, como contestar a ideia de que a presença escrava no Rio Grande do Sul tenha ocorrido basicamente nas charqueadas e que tenha tido pouco peso na estrutura social;41 dedicar-se ao estudo do tráfico transatlântico e do tráfico interno de escravos42, além de outros tantos que tem se dedicado às múltiplas experiências de escravos, libertos e libertandos, e às temáticas relativas à abolição e ao período do pós- abolição.43
Neste ponto cabe salientar as dificuldades com as quais nos deparamos em relação à produção historiográfica do Rio Grande do Sul. Muito embora haja uma quantidade significativa de estudos envolvendo escravidão e liberdade, carecemos de trabalhos demográficos e outros estudos de fôlego com os quais pudéssemos colocar alguns de nossos resultados em contraste. Esta ausência é ainda mais significativa em relação à
41 Cf. XXXXXX, Xxxxx. Estancieiros, lavradores e comerciantes na constituição da estremadura portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: XXX, 0000; Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa. Revista Brasileira de História, v. 20, n. 39, p. 115-134, 2000; Campeiros e domadores: escravos da pecuária sulista, séc. XVIII. Anais eletrônicos do II Encontro escravidão e liberdade no Brasil meridional, 2005. 1 CD-ROM; Para além das charqueadas: estudo do padrão de posse dos escravos do Rio Grande do Sul, segunda metade do século XVIII. Anais eletrônicos do III Encontro escravidão e liberdade no Brasil meridional, 2007. 1 CD-ROM. XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Um Campo de Possibilidades: notas sobre as formas de mão-de-obra na pecuária (Rio Grande do Sul, século XIX). História – São Leopoldo: Unisinos. N. 08, V. 07, julho/dezembro, 2003. Do mesmo autor, Nos rodeios, nas roças e em tudo o mais: trabalhadores escravos na Campanha Rio-grandense. Anais do II Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional: Porto Alegre, outubro de 2005; ZARTH, P. Do arcaico ao moderno: as transformações no Rio Grande do Sul do século XIX. Ijuí: Ed. Unijuí, 2002.
42 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Dos escravos que partem para os portos do sul: características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790-c.1825. 2006. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2006; XXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Comércio de escravos do Sul para o Sudeste, 1850- 1888: economias microrregionais, redes de negociantes e experiência cativa. Tese de doutorado. Campinas: UNICAMP, 2012.
43 Deste último grupo fazem parte uma série de estudos, principalmente dissertações de mestrado e teses de doutorado que seria exaustivo mencionar. Alguns deles foram citados na introdução do presente texto e outros serão mencionados ao longo dos capítulos a partir.
Porto Alegre e, particularmente, em relação à década de 1880. Há ainda muito o que se pesquisar em relação a este período: vemos que os anos finais da escravidão, por exemplo, frequentemente aparecem “diluídos” na segunda metade do oitocentos. Isto estende-se também à produções de outras localidades, o que impossibilita comparações que poderiam ser relevantes. Do mesmo modo, há uma lacuna entre os estudos que privilegiam as décadas anteriores àquele período e o crescente interesse pelo pós- abolição.
1.2 Alforrias: significados, tipologia e prática no final do século XIX
A partir sobretudo da década de 1870 há um aumento da concessão de liberdades, as quais estiveram pautadas pela Lei do Ventre Livre (1871), que não somente modificou as formas de alcançar a alforria, como também, a partir de uma série de condições, inseriu aqueles indivíduos em situações extremamente ambíguas, tornando os contornos entre escravidão e liberdade bem mais fluidos.44 A variedade de estudos que envolvem alforrias e a conquista da liberdade é bastante rica e extensa na historiografia da escravidão do Brasil e das Américas como um todo. Sendo assim, nas próximas páginas pretendemos apresentar, em linhas gerais, os modos como a prática da manumissão vem sendo compreendida pelos historiadores do escravismo brasileiro; as principais características desse tipo de documento e suas variações; os sentidos atribuídos as alforrias por senhores e escravos e, por fim, a prática da alforria a partir da promulgação da Lei de 1871, observando alguns aspectos desta lei especialmente pertinentes ao nosso problema de pesquisa.
1.2.1 As cartas de liberdade e os modos de alforriar
Vista pelos senhores como uma concessão, a carta de alforria é um documento que permite analisar principalmente a ideologia senhorial e o modo como a consecução da liberdade estava inscrita em uma política de domínio mais geral. Conforme Xxxxxxx
44 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxx. A conquista da liberdade: Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996, p. 26.
Xxxxxxxx xx Xxxxx, na alforria é onde se registra um momento crucial da política de domínio paternalista, qual seja, a produção de dependentes.45 Desse modo, frequentemente, os senhores tentaram travestir a alforria como um ato de generosidade e caridade de sua parte. Concebida como uma dádiva, a liberdade era entendida como um favor concedido ao qual o senhor esperava a devida retribuição. Segundo Xxxxx, “nunca se deixa de insistir preliminarmente na generosidade ou na afeição pelo escravo demonstrada pelo senhor, assim como se faz referência aos bons serviços do escravo, à sua fidelidade, que o tornam elegível para a alforria.” O que isso supunha é que os “laços morais entre senhores e escravos existiam e não deveriam terminar com a manumissão.”46 Xxxx Xxxxxxx afirma que “A carta de xxxxxxxx era a prova da liberdade de um escravo, introduzindo-o na vida precária de uma pessoa liberta em uma sociedade escravista.” De acordo com a autora, durante o século XIX a carta de alforria era um ato de transferência de propriedade, em que “os escravos literalmente compravam-se ou eram doados para si mesmos.”47 A alforria – carta de liberdade, escritura de alforria, liberdade, alvará de liberdade ou manumissão, era um dispositivo legal. Poderia se dar durante a vida do senhor ou como sua última vontade, direta ou indiretamente, por escrito, ou não. Em geral, porém, era concedida por escrito, assinada pelo senhor ou por um terceiro a seu pedido. Ainda que não fosse obrigatório, o registro em cartório na presença de testemunhas tornou-se hábito para que se evitasse contestação.48 Provavelmente, em muitas circunstâncias o registro fora uma exigência do próprio escravo para garantir e comprovar sua liberdade. Muitas vezes se passavam anos entre a data de concessão da alforria e a data de seu registro, razão pela qual há frequentemente duas datas: a de
concessão e a de registro.49
As alforrias lançadas nos livros de notas em geral continham um cabeçalho indicando o “registro de uma carta de liberdade”, seguido pelo nome do senhor que a passava e do escravo beneficiado. A seguir, era transcrito o conteúdo da carta, que
45 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. Negros, estrangeiros. Os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 74.
46 Idem, p. 123-124.
47 XXXXXXX, Xxxx. A vida dos escravos no Rio de Janeiro... Op. cit., p. 439.
48 Segundo Xxxxxx xx Xxxxxx Xxxxx, “Nada havia, na legislação, que obrigasse o registro da carta de alforria em cartório. Nem mesmo para a compra ou venda de escravos era necessário o registro público. Somente em 1860 estipulou-se esta exigência, mas só para valores superiores a 200$000 (duzentos mil réis).” A referência da autora é a Lei no 1.114, de 27 de setembro de 1860. In: Coleção das Leis do Império do Brasil de 1860. Tomo XXI, parte I, p. 79-80. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1860. XXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese de livre docência. Niterói: UFF, 2004.
49 XXXXXXX, Xxxxx. Ser escravo no Brasil, 3º Edição, São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 177.
indicava os motivos pelos quais a mesma se dava (pelos bons serviços prestados, por amor, em razão de alguma data comemorativa etc.), incluídas aí as formas de pagamento ou condições impostas, quando era o caso. Constavam ainda a data e o local em que a alforria fora concedida. Por fim, assinavam o senhor e as testemunhas, seguidos pelo tabelião, que asseverava a validade do documento, incluindo a data e local de registro da alforria. Os textos das alforrias poderiam ser bastante breves ou então mais extensos e detalhados, o que era menos comum. Por este motivo, as informações que constam nesse tipo de documento variam bastante. Mais comum, porém, era constar o nome do senhor, o nome do escravo, sua cor, local de procedência e idade, e em alguns casos, seu estado civil e profissão. Após 1872, foi comum a inclusão do seu número de matrícula.
Nem todas as alforrias eram registradas em cartório. Elas poderiam ser concedidas oralmente ou em papel sem, contudo, ser lançadas nos livros notariais. Os escravos poderiam ser libertados ainda em verba testamentária ou na pia batismal. Embora teoricamente não pudesse haver este último tipo de alforria após 1871, os ingênuos poderiam ter seus serviços dispensados pelo senhor de sua mãe no momento do batismo, o que poderia também ser objeto de registro notarial. Não é possível precisar a proporção entre o número de alforrias registradas em cartório e a quantidade de alforrias realizadas. Sendo assim, é preciso ter em conta que as alforrias cartoriais dizem respeito a apenas uma parte dos alforriados.50
No entanto, conforme enunciou Xxxxx Xxxxxxxxx, está claro que “ao alforriado interessava essa escritura pública para melhor defender sua condição legal”.51 O caráter contratual verificado nas alforrias registradas em Porto Alegre entre 1884 e 1888, bem como o contexto de disputa em torno dos sentidos dessas liberdades nos faz crer que a maior parte das alforrias concedidas em âmbito privado tenha sido objeto de registro. Além de servir à comprovação da condição do liberto, a confirmação pública da liberdade poderia ser uma tentativa de garantia para os próprios senhores quanto ao cumprimento das condições estabelecidas na alforria.52
50 Xxxxx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx, ao analisarem as alforrias cartoriais registradas na Bahia (1819 – 1888), indicam que o índice de registros, em relação ao total de alforrias concedidas, pode ter chegado a 80%. Entretanto, os autores não explicam os critérios utilizados para tal afirmação. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, XXXXX, Xxxxxxx & XXXXXXXX, Xxxxxxx X. Notas sobre as tendências e padrões dos preços de alforria na Bahia, 1819-1888. In: XXXX, Xxxx Xxxx (Org.) Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense; Brasília: CNPq, 1988, p. 62.
51 XXXXXXXXX, Xxxxx. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989, p. 248.
52 Xxxxxxx Xxxxxxx, ao estudar as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre entre 1800 e 1835 também acredita na hipótese de que a maioria das alforrias tenha sido registrada, já que poderia servir como instrumento para os forros que poderiam se defrontar com situações em que sua condição fosse questionada.
A prática da alforria se modificou ao longo de todo o período escravista, de modo que é grande a variedade de tipos e condições impostas a sua consecução. Nas últimas décadas da escravidão, os registros notariais das cartas de liberdade expressaram, frequentemente, que as mesmas foram fruto de contendas judiciais ou se deram através das possibilidades abertas pelas leis de 1871 e 1885, muitas vezes à revelia da vontade dos senhores. Na historiografia, contudo, a prática da manumissão e a vida dos forros foram objeto de estudos apenas a partir da década de 1970. Aqueles estudos buscaram compreender tal prática e o lugar ocupado pela alforria na sociedade escravista.
Dentre algumas das pesquisas pioneiras com este tipo de documento e que tornaram-se a base para pesquisas posteriores estão os de Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx sobre os escravos na Bahia, e o de Xxxx Xxxxxxx para a escravidão no Rio de Janeiro. Os sentidos atribuídos às alforrias na sociedade colonial e imperial, contudo, foram e vem sendo objeto de discussão entre os historiadores. De um modo geral, a alforria é compreendida ora como concessão senhorial, atendendo, portanto, aos interesses dos senhores e a reprodução das relações sociais na sociedade escravista, ora como conquista escrava, explorando as margens de negociação e conflito entre senhores e escravos em que estes fizeram valer seus interesses à revelia daqueles.
Partindo de seus próprios estudos da década de 1970, Xxxxx Xxxxxxxx em O escravismo colonial concluiu, a respeito da prática da manumissão nas sociedades escravistas modernas, que em todas elas a alforria serviu prioritariamente aos interesses senhoriais. O autor acredita que a prática da alforria foi maior em períodos de crise econômica, em que os senhores poderiam livrar-se de escravos velhos, inválidos e improdutivos.53 Em sentido contrário, outros autores como Xxxxxx-Xxxx, Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxx e Xxxxx Xxx Xxxx xx Xxxxx, atestam que era justamente em momentos de prosperidade econômica que os escravos conseguiam alforriar-se com mais facilidade.54 Na década de 1980, em que se questionava os referenciais teóricos da Escola Sociológica Paulista, autores como Xxxxxx Xxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxx Xxxxxx vão buscar compreender as relações entre senhores e escravos e, ainda que não partam exatamente dos mesmos referenciais teóricos e que tenham problemas de pesquisa
XXXXXXX, Xxxxxxx. Liberdades negras nas paragens do sul: alforria e inserção social de libertos em Porto Alegre, 1800-1835. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008, p. 30.
53 XXXXXXXX, Xxxxx. O escravismo colonial, 4ª ed., São Paulo: Ática, 1985.
54 XXXXXX-XXXX, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. RJ, Civilização Brasileira, 1982; XXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx e XXXXX, Xxxxx xx Xxxx da. A presença do elemento forro no conjunto de proprietários de escravos. In: Ciência & Cultura. SP, 32(7): 836-881, 1980. Apud, EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 358.
distintos, estes autores observaram os caminhos trilhados por escravos e libertos em busca da liberdade, as práticas de alforria bem como os significados conferidos à liberdade por senhores e escravos.55 Mesmo compreendendo a alforria como parte de uma política de domínio senhorial, é enfatizado o papel dos escravos na conquista de sua liberdade, sendo a alforria encarada então como uma conquista fruto da agência escrava no sentido de influenciar e até mesmo subverter os mecanismos de dominação.
De acordo com Xxxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx, compreender a alforria e outros ganhos obtidos pelos escravos como mera concessão seria uma visão parcial, pois refletiria apenas a própria ideologia senhorial. A alforria, bem como outras conquistas dos escravos, era fruto da sua luta e resistência cotidianas, envolvendo diversos recursos e estratégias para contornar situações adversas em suas vidas, criar alternativas de sobrevivência e defender seus interesses, o que era permeado por ações de resistência propriamente dita, mas também de acomodação.
Estes autores utilizam-se do conceito de paternalismo, entendido como uma ideologia que servia como mediação de conflitos de classes, para compreender a relação entre senhores e escravos. Para eles, porém, o paternalismo não consistia em uma relação verticalizada, pois resultava de disputas entre senhores e escravos em que estes influenciavam no modo como se dava a política de domínio vigente. Conforme Xxxxxx Xxxxxxxx, a ideologia paternalista fundava-se no princípio da primazia absoluta da vontade senhorial. Na sua definição, o paternalismo
(...) trata-se de uma política de domínio na qual a vontade senhorial é inviolável, e na qual os trabalhadores e os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em relação a essa vontade soberana. Além disso, e permanecendo na ótica senhorial, essa é uma sociedade sem antagonismos sociais significativos, já que os dependentes avaliam sua condição apenas na verticalidade, isto é, somente a partir dos valores ou significados sociais gerais impostos pelos senhores, sendo assim inviável o surgimento das solidariedades horizontais características de uma sociedade de classes. (...) Todavia, já há cerca de três décadas de produção acadêmica na área de história social para demonstrar que, se entendido unicamente no sentido mencionado, o paternalismo é apenas uma autodescrição da ideologia senhorial (...). Em textos famosos, escritos desde o início da década de 1970, Xxxxxxxx e Xxxxxxxx, este abordando um contexto em que também havia escravidão, e depois muitos outros historiadores, mostraram que a vigência de uma ideologia paternalista não significa a inexistência de solidariedades horizontais e, por conseguinte, de antagonismos sociais.56
55 XXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750- 1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit.
56 XXXXXXXX, Xxxxxx. Xxxxxxx xx Xxxxx: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 46.
Assim, embora o paternalismo fosse parte de uma política de controle social, seus códigos eram constantemente redefinidos e disputados no cotidiano, de modo que os escravos faziam o possível para obter conquistas de seus senhores e subverter as regras de sua dominação.
Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxx em Das cores do silêncio, por sua vez, observou o modo como os escravos utilizavam certos benefícios, como a mobilidade espacial, a possibilidade de formar famílias, o cultivo de roças de subsistência e a própria consecução de alforria. A partir disso, demonstrou como os sentidos da liberdade eram construídos no seio do próprio cativeiro, tendo significados muito específicos para os escravos e também para os senhores.57 A autora pontua as descontinuidades em relação ao poder senhorial entre as duas metades do século XIX: na segunda metade do século, após a cessação do tráfico transatlântico, o consequente aumento do tráfico interno e a concentração da posse escrava, a escravidão perdia gradativamente a legitimidade, o que interferia fortemente nas formas de dominação vigentes. Com a política de domínio senhorial baseada no paternalismo ruindo, ficava cada vez mais difícil utilizar a alforria como forma de aumentar o poder moral dos senhores sobre os cativos. Xxxx Xxxxxx reconhece como a alforria, bem como outros pequenos benefícios materiais e simbólicos conferidos aos escravos, poderia ser utilizada como forma de controle senhorial, porém considera que isto não faz com que a mesma possa ser compreendida apenas como instrumento de domínio e, portanto, como concessão senhorial, posto que era resultado também da pressão exercida pelos escravos.
A conquista da alforria independentemente da vontade senhorial pode ser mais bem percebida a partir de pesquisas que ganharam força nos anos 1990, em que se enfatizou a presença escrava em uma cultura legal, procurando se observar os embates entre senhores e escravos que vieram a tornar a justiça uma verdadeira arena de conflitos e disputas. Estas contendas se davam tanto em torno da luta pela liberdade, quanto pela afirmação da condição dos negros livres e libertos, ou mesmo por questões relativas a condições do cativeiro consideradas aviltantes. Dentre outros estudos, pode-se mencionar o de Xxxxx Xxxxxxxx sobre a Corte no século XIX, e o de Xxxxxx Xxxxxx a respeito de
57 XXXXXX, Das cores do silêncio... Op. cit.
libertos de Campinas na segunda metade do oitocentos, que tomaram como fontes ações de liberdade impetradas por escravos contra seus senhores.58
Outro aspecto da justiça como campo de luta pode ser observado no trabalho de Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx sobre a Lei dos Sexagenários (1885).59 Ao estudar o seu contexto de produção, a autora demonstra que se as leis emancipacionistas (aí incluídas as de 1871 e de 1885) foram, por um lado, elaboradas segundo os interesses das camadas proprietárias e em seu favorecimento para garantir a continuidade do domínio senhorial, por outro lado, no entanto, as mesmas leis se deram em um contexto de disputas que pautaram o processo de sua própria elaboração, de modo que as mesmas foram também utilizadas pelos escravos em seu benefício, alterando seus significados originais.
Sob uma perspectiva distinta acerca da consecução da liberdade, Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx, em estudo de meados dos anos 2000, critica a concepção desenvolvida pela historiografia da década de 1980. Segundo ele, seduzida pela negação da “teoria do escravo coisa”, aquela geração teria deslizado para o extremo oposto, enxergando em todo tipo de atitude escrava formas de resistência.60 Contrariando a ideia de que a alforria seja uma conquista, este autor defende a concepção da alforria como um dom, em que senhor e escravo são respectivamente doador e donatário e que, portanto, este estaria preso àquele por laços de gratidão e dependência em retribuição à liberdade.
Embora Xxxxxx reconheça a participação dos escravos no estabelecimento dos termos do acordo que levava a alforria, defende que a prerrogativa de decidir sobre a mesma seria, em última instância, invariavelmente do senhor, sendo, desse modo, uma concessão. Algumas das ponderações deste autor sobre o papel do dom, ao observar-se a escravidão e a prática da manumissão na sociedade colonial especificamente (período em que concentra seus estudos), devem ser consideradas. No entanto, sua acepção da alforria como uma dádiva parece repetir a ideologia senhorial, que assim a entendia. Nesse sentido, sua visão não encontra respaldo quando analisamos a prática da alforria nas últimas décadas da escravidão, em que o poder decisório do senhor sobre a liberdade do escravo enfraquecia-se cada vez mais, de modo que os escravos passaram, em muitos
58 XXXXXXXX, Xxxxx. Liberata: a lei da ambiguidade – as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994; XXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxx. A conquista da liberdade: Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1996.
59 MENDONÇA, Entre as mãos e os anéis... Op. cit.
60 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. A remissão do cativeiro: alforrias e liberdades nos campos de Goitacases,
c. 1750 – c. 1830. Tese de doutorado Xxxxxxx: UFF, 2006.
casos, a impor sua vontade a partir das brechas abertas pela lei à revelia da aquiescência senhorial.61
Se o caráter das alforrias e sua função nas relações sociais na sociedade escravista são ainda objeto de discussão, a grande variedade de alforrias ao longo do extenso período em que durou a escravidão no Brasil e, mais do que isso, as condições ambíguas a que ficavam sujeitos os escravos após alcançarem a liberdade, também foi objeto de diferentes classificações. Definir a tipologia de alforrias e inseri-las nessas categorias é pois tarefa um tanto arbitrária. Contudo, discutir os aspectos gerais das cartas de liberdade aqui estudadas, quais sejam as de Porto Alegre entre os anos de 1884 e 1888, tem fundamental importância para compreendermos os termos em que aqueles libertandos as obtiveram, o que, por conseguinte, certamente marcou suas experiências de liberdade posteriores.
Nesse sentido, tomamos emprestada a classificação tipológica empreendida por Xxxxx Xxxxxxxxx no livro Homens Esquecidos, em que dedica uma parte ao estudo das alforrias de Campinas no século XIX. Em que pese as particularidades da localidade observada pelo autor (trata-se de uma zona de plantation, cuja mão-de-obra estava majoritariamente empregada no eito), o mesmo empreende uma divisão entre os tipos de alforrias que acabou, em suas linhas gerais, orientando a análise e classificação desses documentos de diversos estudos posteriores. Em seu texto, Xxxxxxxxx traça o perfil do alforriado campineiro entre os anos de 1798 a 1888 para, em seguida, examinar as condições sob as quais aqueles indivíduos alcançaram sua alforria, bem como as transformações ocorridas na prática de manumissão no século XIX.62
O autor divide as alforrias em dois grandes grupos: as onerosas e as gratuitas. Enquanto as alforrias gratuitas caracterizavam-se pela ausência de qualquer tipo de ônus ou condição, as onerosas eram aquelas em que era exigida uma contrapartida do escravo. Tais contrapartidas poderiam ser pagamento em dinheiro ou mercadoria, prestação de serviços ou alguma combinação entre estas. Quanto às alforrias onerosas, elas interessavam ao senhor na medida em que o indenizavam pela perda do direito sobre o escravo.63
Ao tratar das alforrias gratuitas, Xxxxx Xxxxxxxxx cita o jurisconsulto Xxxxxxxx Xxxxxxxx, para quem a alforria era sempre gratuita devido ao “estado natural” de
61 Outro autor que, na mesma linha de Xxxxxx, considera a alforria como uma concessão senhorial, é Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. Cf. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social. Xxxxx Xxxxx, Xxx Xxxxx, x.0000 - c.1850. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: PPGH/UFRJ, 2005.
62 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. Cit.
63 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. Cit., p. 281.
liberdade, comum a todos os homens, a que o escravo era restituído. Ao alforriar, o senhor abria mão de seu direito sobre o cativo que, por sua vez, nada mais recebia além do que já possuía de acordo com a “lei natural”. O autor xxxxxx, porém, que esta visão de nada servia para o escravo que recebia uma alforria onerosa visto que, perante à lei positiva, a gratuidade da alforria para o escravo derivava da ausência de ônus. Assim, define a alforria gratuita como aquela que não impunha nenhuma forma de pagamento ou compensação por parte do escravo, como a prestação de serviços. No entanto, numa outra perspectiva, Xxxxxxxxx afirma que “a alforria nunca foi gratuita. Mesmo sem ter de pagar dinheiro ou prestar serviços para receber a alforria, o indivíduo durante sua vida de escravo já entregara valores para o senhor, sem que tivesse havido uma contrapartida de valores iguais entregues ao escravo.” E lembra, conforme enunciou Xxxxxx Xxxx, que se a alforria com xxxx constituía uma dupla exploração, a gratuita não deixava de sê-lo, visto que acabava-se com a relação formal entre senhor e escravo sem que este tivesse algum tipo de compensação.64
Xxxxxxxxx retoma Xxxxx Xxxxxxxx, que concorda que a alforria nunca foi gratuita ou incondicional: dentre as razões mencionadas para a concessão de alforrias, via-se a referência aos “bons costumes”, a “lealdade”, e a “obediência” dos escravos, deduzindo que a expectativa da liberdade servia para condicionar o comportamento dos escravos.65 Nesta interpretação, só haveria gratuidade em casos em que o senhor se forçava a alforriar um escravo por mau comportamento, por exemplo, proibindo-o de retornar à cidade ou localidade em que vivia enquanto escravo. A alforria gratuita poderia interessar ao senhor em casos em que, por exemplo, quisesse se livrar de escravos improdutivos ou indesejados.66 Xxxxxxxxx lembra ainda que havia incentivos fiscais a quem alforriasse um escravo gratuitamente: a Lei dos Sexagenários isentava o senhor que alforriasse gratuitamente um escravo de qualquer dívida com a Fazenda Pública por impostos relativos ao mesmo.67
64 XXXX, Xxxxxx da violência... Op. Cit., p. 220. Apud, EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 297.
65 XXXXXXXX, O escravismo colonial, Op. cit., p. 356. Apud, EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 297.
66 A ideia de que a alforria poderia ser utilizada pelos senhores para livrarem-se de escravos inválidos foi contestada por Xxxxx Xxxxxxx, que verificou que escravos idosos não costumavam ultrapassar os 10% entre os alforriados, assertiva com a qual Xxxxxxxxx concorda, já que, para Campinas, o número de idosos alforriados em geral esteve de acordo com seu peso na população escrava. MATTOSO, Ser escravo no Brasil... Op. cit.
67 Lei nº 3.270, art. 1º, §10. Coleção de Leis e Decretos do Império do Brasil. Disponível em: xxxx://xxx0.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/Xxxxxxxxx
Abordando outra face desse tipo de alforria, Xxxxxx Xxxxxx teria levantado a hipótese de que a gratuidade da alforria poderia beneficiar o senhor na medida em que poderia incentivar aqueles que permaneciam escravos a trabalharem mais e com mais boa vontade, na esperança de também obterem sua alforria.68 Nas alforrias ditas gratuitas é, do nosso ponto de vista, mais difícil de se conhecer o percurso trilhado pelo escravo até sua obtenção. Uma situação que exemplifica tal dificuldade é aquela em que a alforria, mesmo sendo declarada como gratuita, foi em realidade registrada apenas após o cumprimento de algum tipo de condição ou de pagamento, o que fica evidenciado pela distância temporal entre a data de concessão e de registro da liberdade. Além disso, nelas a ideologia senhorial de que a alforria tratava-se de um favor ficava ainda mais explícita, mesmo que a liberdade tenha sido fruto de anos de trabalho árduo e obediente.69
Dentre as alforrias onerosas, depreende-se da subdivisão feita por Xxxxx Xxxxxxxxx as categorias de pagas e condicionais. No caso das alforrias pagas, o pagamento poderia se dar através de mercadorias (aí incluídos escravos dados em substituição daquele que se alforriava) e de dinheiro. O pagamento em dinheiro era o mais comum e aproximava- se, segundo Xxxxxxxxx, de um contrato de pagamento. Tal pagamento poderia ser feito pelo próprio escravo, que apresentava seu pecúlio ao senhor, ou então através de terceiros, como familiares, amigos ou instituições filantrópicas. Os pagamentos frequentemente estendiam-se por prestações que poderiam durar vários anos. O recurso a uma terceira pessoa que pudesse adiantar o valor do escravo ao senhor era uma maneira a qual o cativo poderia recorrer para levantar o dinheiro de sua alforria. O pagamento desse tipo de empréstimo dava-se comumente através de prestação de serviços.70 Segundo o autor, porém, embora se assemelhe com uma alforria condicional por prestação de serviços, as mesmas não se equivaliam, “porque envolvia não somente uma terceira parte, o credor, como também o senhor recebia o preço da alforria à vista, como contrapartida. (...)”71
A partir de 1871, a legalização da prática costumeira de acumular pecúlio somada ao crescimento do tráfico interprovincial levou ao aumento de agenciamento do pecúlio, já que os escravos buscavam evitar o esfacelamento de seus núcleos familiares e laços de
68 XXXXXX, Xxxxxx X. The demography and economics of brazilian slavery, 1850-1880. Tese de doutorado. Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx, 0000, p. 507. Apud, EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 298. 69 O papel da alforria na política de domínio senhorial baseada no paternalismo, bem como a consequente ideologia da liberdade como uma dádiva será devidamente discutida nas páginas a seguir.
70 Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxx Xxxxx dedicou sua dissertação de mestrado a estudar os trabalhadores libertandos que, para alcançar sua liberdade, estabeleceram contratos de locação de serviços com terceiros como forma de indenizar seus senhores e senhoras, submetendo-se a condições de trabalho que marcaram uma entrada extremamente precária nos quadros da liberdade. XXXXX, O ofício da liberdade... Op. Cit. 71 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 284
sociabilidade diante da possibilidade de serem vendidos para outras províncias. Diversos trabalhos têm abordado as formas de acúmulo de pecúlio por parte dos escravos, como no caso dos escravos de ganho que juntavam pequenas somas restantes do que entregavam a seus senhores, a doação de terceiros, incluídos aí os esforços familiares para a alcançar a alforria etc. Uma dessas maneiras era o depósito em poupança na Caixa Econômica ou na Tesouraria da Fazenda, por exemplo, dinheiro que serviria para apresentar ao senhor como pagamento pela alforria, o que ocorreu em muitos casos em juízo, a contragosto dos proprietários de escravos.72
Quanto aos valores das alforrias, os mesmos devem ser observados na especificidade de cada localidade e período. Em geral, porém, não parece ter havido muita discrepância em relação ao preço de mercado. Observa-se, no entanto, aquelas alforrias em que os escravos recorreram à justiça para obtê-las, as quais foram fruto de duras contendas em torno do valor: nesses casos, estava em jogo não apenas o valor econômico sobre o escravo, mas o poder moral do senhor, os quais frequentemente exigiam preços exorbitantes. Nessas situações, a decisão final ficava a cargo do juiz e da correlação de forças estabelecida entre as partes envolvidas no julgamento.
As alforrias condicionais, por sua vez, em geral estipulavam a prestação de serviços. Nesses casos, “o senhor abria mão de seu direito sobre o escravo em troca de um compromisso de realizar uma determinada tarefa ou de servir por prazo estipulado.”73 A alforria condicional mais comum não era a que especificava a tarefa a ser realizada, mas a que delimitava um prazo de trabalho a ser cumprido. Xxxxx Xxxxxxxxx identifica para Campinas uma realidade que pode ser observada também para Porto Alegre através dos dados apresentados por Xxxxx Xxxxxxx e Tatiani Tassoni74: até a década de 1870, a condição mais comum era a de que o libertando deveria trabalhar até a morte do senhor. Depois, porém, o tempo de prestação de serviços passou a ser limitado a no máximo sete anos em virtude da Lei de 1871.
Quanto à condição de servir até a morte do senhor, Xxxxxxxxx destaca que o momento da morte do proprietário era sempre um momento de tensão para o escravo, devido a partilha da herança. Desse modo, considera a alforria dada em vida, mas condicionada a servir até a morte do senhor mais vantajosa do que a alforria passada em
72 Cf. XXXXXXXX, Xxxxx. A poupança: alternativas para a compra da alforria no Brasil (2.ª metade do século XIX). Revista de Indias, v. 71, p. 137-158, 2011.
73 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 286.
74 XXXXXXX; XXXXXXX, Que com seu trabalho nos sustenta... Op. Cit.
testamento, já que esta dependia da disputa e divisão de bens entre os herdeiros. De todo modo, a alforria condicionada à morte do senhor era uma maneira de tentar manter o escravo preso a promessa de liberdade, a qual deveria ser retribuída com bom comportamento, deferência e lealdade, sobretudo antes da Lei do Ventre Livre, em que a alforria poderia ser revogada por ingratidão.
No que diz respeito às alforrias condicionais com tempo de serviço delimitado, aquele autor observa que nas últimas décadas da escravidão, as mesmas teriam adquirido mais semelhanças a um contrato de trabalho. Isto se deve primeiramente à diminuição do tempo de serviço a ser prestado para sete anos, que seria reflexo da Lei do Ventre Livre, além disso, se verificaria a inclusão de salários a serem pagos durante esse prazo. Dessa forma, o valor da liberdade teria um preço bem específico a ser indenizado ao senhor. Em relação ao pagamento de salários, observa que em Campinas eles foram mais comuns nas décadas de 1870 e 1880, sugerindo que, nessa época, somente a promessa de liberdade talvez já não fosse suficiente. Além do mais, na década de 1880 começaram a aparecer outros benefícios, o que talvez fosse resultado da Lei dos Sexagenários, cujo regulamento listava uma série de direitos e obrigações para escravos libertados pelos fundos de emancipação e empregados com contratos de prestação de serviços.
Como qualquer contrato, a alforria com prestação de serviços podia ser modificada, o que poderia beneficiar ou prejudicar o liberto. Em seu trabalho, Xxxxxxxxx observa que em diversas cartas de alforria os escravos quitavam sua dívida de dinheiro através de uma prestação de serviços com salário estipulado, ou liquidavam um tempo de serviços devido através de pagamento em dinheiro. Esta prática era chamada de “remissão” e parece ter sido tão comum quanto a prestação de serviços. Os registros de remissão de serviços começaram a aparecer a partir de 1860. Segundo o autor, casos como estes ilustram como
a carta de xxxxxxxx estava assumindo feições cada vez mais próximas de um contrato de trabalho e como o preço da liberdade de um escravo tinha um valor bem específico, fosse em dinheiro, fosse em tempo de serviço. Mas (...) também sugere que o próprio escravo, apesar de ter passado praticamente toda sua vida anterior como escravo, tinha condições de entender as equivalências entre dinheiro e tempo de trabalho, condições estas que podiam ter facilitado sua transição para o regime da escravidão para o regime de trabalho livre.75 (Grifo nosso)
Outra modificação sofrida pelas alforrias foi a desistência de serviços devidos pelos libertandos por parte dos senhores. Isto ocorreu não somente com os libertos condicionais,
75 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 284
mas também nos serviços devidos por ingênuos e sexagenários conforme as leis de 1871 e 1885 respectivamente.
Em que pese todas as diferenças entre o período e a localidade estudados por Eisenberg (Campinas, de 1798 a 1888), e o nosso objeto de estudo, acreditamos que sua observação sobre a semelhança das alforrias condicionais a contratos de trabalho é bastante pertinente para nossa análise. Em geral, todos os casos encontrados pelo autor da década de 1870 em diante encontram semelhança com as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre entre 1884 e 1888. Como veremos no capítulo 2, muitas das alforrias desse período, em sua maioria condicionadas à prestação de serviços, preocuparam-se em delimitar tanto quanto fosse possível os direitos e sobretudo os deveres dos libertandos, incluídas aí as formas punitivas previstas na lei. Além do mais, esta percepção contratual se estende para outros aspectos relativos ao agenciamento da força de trabalho dos libertandos, como os recursos acionados por estes para remir seus serviços por nós encontradas nos registros cartoriais, e o momento da morte de ex- senhores, em cujos inventários era reafirmada a noção do contrato da alforria com a estipulação de um valor para os serviços devidos pelos libertandos (esta questão será discutida no capítulo 3).
Por se tratar da maioria dos libertandos de que tratamos nesse estudo, é particularmente importante compreender a situação dos libertos sob condições. Tal situação não foi de fácil interpretação aos contemporâneos dos cativos, sendo também objeto de discussão entre os historiadores. Segundo Xxxxx Xxxxxxx, o liberto sob condições seria um grupo à parte – nem escravo, nem livre, juridicamente definido e com uma situação social particular. De acordo com a autora,
No Brasil, o statuliber, o alforriado sob condição, foi sempre considerado livre perante a lei. O direito dá-lhe personalidade jurídica. Contudo, o pleno gozo e exercício da liberdade são retardados até caírem todas as cláusulas restritivas enumeradas na carta de alforria. O escravo statuliber brasileiro é equiparado ao menor não-emancipado. Pode, assim, adquirir bens, está livre dos castigos corporais e de todas as punições impostas aos escravos. Ante os tribunais, não é julgado como escravo. O liberto sob condições não pode ser vendido, alienado, hipotecado. Não pode, por isso, voltar à condição anterior de escravo, é uma pessoa inteiramente à parte; veremos, porém, como os senhores conseguirão contornar este aspecto da lei. Em caso de prática de delito, o statuliber responde direta e pessoalmente às acusações. Seus filhos nascem livres. Seu trabalho deixa de ser considerado escravo.76
Discordando de afirmativa tão contundente, Xxxxxx Xxxxxxxx afirma que Xxxxxxx teria se baseado no livro de Perdigão Xxxxxxxx, A Escravidão no Brasil, o qual, por sua vez, teria sido bem mais sutil na argumentação de que o liberto sob condição teria sido sempre considerado livre.77 Ao acompanhar o raciocínio de Xxxxxxxx e analisar processos cíveis da década de 1860, em que a justiça teve que se manifestar sobre a condição legal do escravo liberto condicionalmente, o autor demonstra que Xxxxxxxx, na década de 1860, fazia perceber que sua situação não fora de fácil interpretação jurídica, apesar de ser sabida a tendência ao reconhecimento da liberdade. O autor afirma que os resultados por ele obtidos e por outros pesquisadores, como Mary Karasch78, indicam que provavelmente a questão da condição legal destes libertos tenha se resolvido de maneiras diversas ao longo do tempo, e segue afirmando, em relação aos processos encontrados por ele, que tenderam a favorecer a liberdade, mas que foram resultados de longas batalhas judiciais cujos desfechos eram, em verdade, imprevisíveis.79
Xxxxxx Xxxxxx, através do estudo de ações de liberdade de escravos de Campinas, apresenta situações em que fica claro que a condição dos libertandos estava muito além do que se supunha ser seus direitos. A conquista da liberdade era apenas uma parte do caminho a ser trilhado. Tanto para conseguir a alforria quanto para reafirmá-la, o liberto precisava “fazer uso de várias estratégias, criando e aproveitando as oportunidades que pudessem surgir.” 80 Segundo a autora, os direitos e deveres dos libertos não estavam definidos a priori; antes, eram constituídos de conflitos que envolviam expectativas diferentes em torno das vivências e dos limites dessa liberdade. Através dos processos estudados mostra que, embora os senhores tivessem a expectativa de que seus ex-escravos continuassem a lhes dever obediência, fidelidade e gratidão quando libertos (tornando inócua a distinção entre as duas condições), isso não significava que a liberdade fosse um engodo. Ao contrário, ela era definida a partir de um conflito de interesses e sua afirmação, objeto de luta cotidiana.
Esta observação é muito importante para o modo como olhamos para as alforrias condicionais. Embora o objetivo de manutenção dos laços do cativeiro seja evidente ao lermos as alforrias, assim como a expectativa de que o liberto – independentemente do tipo de alforria que recebesse, se tornasse um dependente de seu senhor, ao considerá-las
77 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit.
78 KARASCH, A vida dos escravos no Rio de Janeiro... Op. cit.
79 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 186.
80 XXXXXX, A conquista da liberdade... Op. cit., p. 71.
como mera continuidade do cativeiro estaremos observando-as com os olhos da casa grande, ou dos sobrados, neste caso. As ações de liberdade estudadas para outras localidades, como as de Campinas aqui mencionadas, não autorizam esta leitura. Xxxxxx Xxxxxx demonstra que os libertandos tinham noção de seus direitos e parâmetros de justiça em relação à sua condição. Embora nem sempre saíssem vencedores, eles questionavam seus senhores na justiça quando sentiam-se logrados, mostrando que “acreditavam que ser liberto condicional era ter direitos”, o que indica que entendiam sua situação como sendo diferente da de escravo.81 A autora afirma ainda que a condição dos libertos sob condições era de uma ambiguidade desconcertante: se já não podiam mais ser objeto de comércio, podiam, por outro lado ter seus serviços negociados. “Agora não era ela própria a ser alienada, mas o seu trabalho.”82 As disputas em torno dos significados da liberdade estudadas pela autora nos processos impetrados por escravos de Campinas tem origem em toda sorte ambiguidades que cabiam nas alforrias condicionais.
Disputas que envolvessem a liberdade, para os senhores, não diziam respeito tão somente à força de trabalho dos libertos, mas também à tentativa de manutenção de um certo poder moral sobre o libertando, poder este que tivera suas bases fortemente abaladas ao menos a partir de 1871. Como veremos no capítulo seguinte, tais disputas e todas suas contradições podem ser percebidas nos termos estabelecidos nos contratos de prestação de serviços, nas justificativas dos senhores, enfim, em uma série de vestígios de oralidade presentes nas cartas de alforria.
1.2.2 A prática da alforria a partir da Lei de 1871
A prática da alforria deve ser observada de acordo as transformações mais amplas sofridas pela escravidão no Brasil. Na segunda metade do século XIX, as discussões decorrentes do fim do tráfico de escravos em 1850 e o futuro da mão-de-obra no país assumiram papel fundamental. Desde os anos 1870, a quantidade de alforrias aumentou consideravelmente, acompanhando o aumento da rejeição à escravidão, às pressões escravas e aos encaminhamentos emancipacionistas. Nesse sentido, a Lei de 1871 teve um forte impacto sobre as políticas de libertação. Para Xxxxx Xxxxxxxxx, naquele momento histórico a alforria refletia a correlação de forças na sociedade sobre a questão da
81 XXXXXX, A conquista da liberdade... Op. Cit., p. 62.
82 Idem, p. 85.
legitimidade da escravidão.83 Xxxxxx Xxxxxxxx, por sua vez, identifica que, a partir daquela década, teria se verificado uma atitude ainda mais firme dos escravos no sentido de obter sua liberdade. Para o autor, a Lei do Ventre Livre foi uma conquista dos escravos perante o Estado, e muitas de suas disposições já faziam parte da prática costumeira de libertar. Ao mesmo tempo, a lei se constituía em fator de sobrevivência para as classes senhoriais, servindo como elemento de ordem.84
Xxxxxx Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx, em obra sobre a Lei dos Sexagenários (1885), insere as leis produzidas no final do século dentro do contexto da abolição gradual pretendida pelas elites nacionais.85 Os debates acerca dos encaminhamentos sobre o fim da escravidão, acirrados a partir da proibição do tráfico em 1850, giraram em torno do compromisso com o gradualismo, com a manutenção da ordem e com o respeito ao direito de propriedade sobre o escravo. O contexto jurídico em que insere-se a Lei de 1871 orientava-se de acordo com aqueles princípios de modo que, segundo a autora, aquela lei “era mais que uma coleção de medidas: ela continha, em seu ‘espírito’, a garantia do gradualismo do processo de abolição”, que estava alicerçado nas expectativas de libertar os escravos aos poucos, mantendo-os sob domínio dos ex-senhores, e garantir que a abolição se desse de forma lenta. Além disso, trazia a promessa da indenização.
O projeto final da lei apresentado à Câmara dos Deputados em maio de 1871 foi aprovado praticamente sem modificações no dia 28 de setembro. Em seu primeiro artigo, pelo qual ficaria conhecida como Lei do Ventre Livre, liberta os filhos das escravas nascidos a partir daquela data, ficando os donos de suas mães obrigados a criá-los e tratá- los até os oito anos. Após, teriam a opção de receber 600$000 de indenização do Estado, ou de gozar dos serviços do ingênuo até que completasse 21 anos. A remissão dos serviços do menor poderia ocorrer através de pagamento pelo próprio ou por terceiros. 86 A lei criou ainda o Fundo de Emancipação, cujas verbas serviriam para libertar tantos escravos
83 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. cit., p. 260.
84 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit.
85 MENDONÇA, Entre as mãos e os anéis... Op. cit.
86 Sobre o papel da lei de 1871 acerca dos filhos ingênuos e o modo como as brechas deixadas pela mesma foi utilizada por senhores e ex-senhores para manter o domínio sobre aquelas crianças, marcando uma prática de tutela que ultrapassou o 13 de maio de 1888, ver a contribuição do trabalho de Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx. A autora faz uma interessante discussão sobre como a lei positivou uma série de costumes relativos à prática da alforria no sentido de universalizar direitos, de acordo com os preceitos da modernidade e do liberalismo que marcaram o final do século XIX, enquanto em relação aos ingênuos a mesma lei deixou brechas a partir das quais faziam-se prevalecer práticas costumeiras utilizadas por senhores e ex-senhores para utilização de filhos de escravas e libertas como mão-de-obra barata e precarizada. Essa discussão será comentada no subitem do terceiro capítulo intitulado “Filhos de mães libertas”. Cf. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume, 2003.
quanto fosse possível; libertaria os escravos de posse do Estado, além daqueles incluídos em heranças não reclamadas ou abandonados pelos donos; e instituiria a matrícula geral de escravos, na qual deveria constar nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação, se fosse conhecida. Por fim, instituiria no Artigo 4º o direito legal de o escravo acumular pecúlio conseguido através de doações, legados ou heranças, e, com o consentimento do senhor, xxxxxx que conseguisse com o seu trabalho. No mesmo artigo, constava ainda o direito de o escravo adquirir a alforria mediante apresentação de valor que representasse a indenização de seu preço e, no caso de não haver acordo, tal preço seria dado por arbitramento judicial.
A aprovação do projeto que resultou na lei de 28 de setembro de 1871 foi o golpe decisivo para o fim a escravidão no Brasil: findado o tráfico transatlântico, principal fonte de reprodução de braços escravos, a lei acabava com a reprodução pelo ventre. Em um sentido geral, a lei foi uma investida mais contundente do Estado em relação à transição do trabalho escravo para o mercado de trabalho livre em curso, passando a intervir em relações antes restritas ao âmbito privado da relação entre senhor e escravo, e definindo uma política mais abrangente em relação à organização do trabalho dos libertos. Tais características, contudo, não a tornam uma política acabada e de longo prazo na organização e disciplinamento do trabalho livre no Brasil.87 Como sua consequência, colocava-se a preocupação cada vez maior de garantir que os egressos do cativeiro se tornassem trabalhadores. Isso não deveria, porém, ocorrer de maneira abrupta: era preciso garantir que ocorresse através de formas intermediárias entre a escravidão e a liberdade, de modo que não rompessem bruscamente com os elementos que permeavam a relação senhor-escravo.
Xxxxxx Xxxxxxxx, afirma que durante a segunda metade do XIX, “o escravo foi impondo seus atributos de homem, negando sua coisificação e, assim, provocando a necessidade das classes dominantes de pensar em um novo modo de inseri-lo na sociedade agora como trabalhador livre.”88 Desse modo, era preciso não apenas propor medidas práticas que obrigassem o liberto ao trabalho, mas também reformular conceitos que rompessem a imagem do trabalho como algo degradante, tal como era visto o trabalho escravizado. O autor sugere que era preciso, pois, formular uma nova ética do trabalho que justificasse a sua obrigatoriedade. Nesse sentido, não bastaria apenas a repressão, mas
87 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit., p. 200.
88 EISENBERG, Homens esquecidos... Op. Cit., p. 53.
medidas no sentido de “educar” os “novos” trabalhadores segundo às intenções e expectativas das classes dominantes.
A este respeito, Xxxxxx Xxxxxx ressalta a importância do direito de acumular pecúlio. Segundo a autora, o mesmo estava associado justamente a ideia de formar um certo tipo de trabalhador, incentivando a poupança de modo a convencer o liberto de que poderia alcançar a sua liberdade bem como uma melhor posição social, fruto do esforço e do trabalho disciplinado. Na dúvida de que tal ideologia fosse de fato eficaz, contudo, estava implícito tanto na lei de 1871 quanto na de 1885 a ideia de que o liberto deveria ser tutelado pelo senhor ou pelo Estado para que aprendesse a ser livre, “explicitando o medo de que se tornassem arredios a qualquer controle e entregues à ociosidade.”89
A propósito do papel cumprido pelo Estado e seu arcabouço legislativo, Xxxxx Xxxxxxxx, ao analisar ações de liberdade da Corte no século XIX, demonstra que a citação das leis nesses processos foi cada vez mais frequente antes mesmo de 1871, o que demonstraria um aumento do papel conferido à legislação para arbitrar sobre as libertações, evidenciando o aumento da importância das leis para o funcionamento do Estado, o que por sua vez fazia parte da construção desse próprio Estado.90 A autora diverge de Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, para quem, no Brasil, teria prevalecido o direito costumeiro em detrimento da lei positiva, tendo o Estado pouco interferido nas relações escravistas até 1871.91 Para Grinberg, a interferência do Estado nessas relações pode ser encontrada antes daquele ano, ainda que a legislação vigente anteriormente, baseada nas Ordenações Filipinas, aludisse ao costume.
A Lei do Ventre Livre constituía-se, assim, no compromisso do Estado com a abolição gradual e, embora tenha encontrado resistência em sua aprovação – contando com a rejeição das províncias do sul e sudeste, não é à toa que seria amplamente reivindicada nos anos finais da escravidão pelas classes proprietárias, incluindo os mesmos setores que a haviam renegado, como o método prioritário, senão exclusivo, através do qual deveria se encaminhar a abolição. Assim, se a lei ficou conhecida por tratar da emancipação de um setor da população escrava (os ingênuos), ela teve o sentido mais geral de regular as formas possíveis de o escravo obter alforria, tirando a possibilidade de conceder a liberdade exclusivamente da mão do senhor (ainda que tenha
89 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxx. Tratos e contratos de trabalho: debate em torno de sua normatização no século XIX In História em Revista, Pelotas, volume 10, 201-211, dezembro/2004, p. 207.
90 GRINBERG, Liberata... Op. cit.
91 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
mantido fortemente presente a autoridade senhorial, como na exigência de autorização para o acúmulo do pecúlio).
Ao que concerne nosso estudo, é particularmente importante observar os dispositivos da lei que regulamentam a locação de futuros serviços a terceiros em favor da liberdade e que abordam a alforria com cláusula de serviços:
Art. 4º §3: É outrossim permitido ao escravo, em favor da sua liberdade, contratar com terceiros a prestação de futuros serviços por tempo que não exceda de sete anos, mediante o consentimento do senhor e aprovação do Juiz de Órfãos.
Art. 4º §5: A alforria com cláusula de serviços durante certo tempo não ficará anulada pela falta de implemento da mesma cláusula, mas o liberto será compelido a cumpri-la por meio do trabalho nos estabelecimentos públicos ou por contratos de serviços a particulares.
Sobre as cláusulas de serviços, o Regulamento de 13 de novembro de 1872 vai além: para fazer valê-las, define como responsável o juiz de órfãos nas comarcas gerais, e o de direito nas comarcas especiais onde não houvesse juiz de órfãos. A esses, havendo perigo de fuga, ou de ocorrência da mesma, caberia ordenar a prisão do liberto contratado, como medida preventiva. A prisão, porém, não poderia exceder trinta dias.92
A lei não estabelece estatutos para as alforrias com condição de prestação de serviços, e também não define as normas para a contratação de serviços junto a terceiros. No entanto, o Art. 4º §3 tornou-se uma ferramenta utilizada para o estabelecimento de alforrias compensatórias, possibilitando a continuidade da exploração dos trabalhadores libertandos. O Art. 4º §5, por sua vez, obrigava que o liberto com prestação de serviços se empregasse de outras maneiras em caso de não cumprimento da cláusula.
No Rio Grande do Sul, foram estes dispositivos da lei que orientaram o sistema de emancipação adotado a partir de 1884. Em 16 de agosto deste ano, quatro dias após comissões abolicionistas terem iniciado seus trabalhos de negociar a libertação de escravos com seus senhores pelas ruas de Porto Alegre, o presidente da província Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx emitia circular que visava responder dúvidas suscitadas em várias localidades sobre o modo pelo qual o senhor de escravos poderia alforriá-los com cláusulas de prestação de serviços e sobre o meio de compeli-los ao cumprimento das condições.
92 Decreto nº 5135 de 13 de Novembro de 1872. Coleção de Leis e Decretos do Império do Brasil. Disponível em: xxxx://xxx0.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/Xxxxxxxxx
A orientação do presidente era simples: bastaria a enunciação do tempo de serviço a ser prestado para que a alforria tivesse o mesmo valor de um contrato de locação de serviços a terceiros previsto na Lei de 1871. Pouco tempo depois, a interpretação do presidente conferida à lei, que equivalia a alforria condicional por prestação de serviços e a locação de serviços com terceiros em prol da liberdade, seria aprovada pelo Ministro da Agricultura (anexo 1). Como se verá a seguir, a campanha abolicionista promovida na capital levou a concessão de uma ampla maioria de alforrias condicionais por prestação de serviços. O mesmo teria ocorrido no restante do Rio Grande do Sul que, segundo relatório da presidência da província do ano seguinte, teria libertado algo em torno de 40 mil dos seus 60 mil escravos.93
Ao analisar a alforria com prestação de serviços da escrava Xxxxxxxx, Xxxxxxxx afirma que “(...) a alforria condicional destruíra a ficção legal de que Xxxxxxxx era “coisa”, pois passou a lhe atribuir vontade própria, o que a tornava capaz de realizar a condição prevista na escritura de liberdade.”94 A lei passava, desse modo, a reconhecer o escravo como capaz de estabelecer um contrato e, portanto, de cumpri-lo sujeito às suas formas punitivas. Segundo o autor, naquele momento estaria se mostrando a falência de uma política de domínio baseada nas relações entre senhores e escravos: se ao longo do tempo o direito de alforriar concentrado nas mãos dos senhores era um dos pilares de controle social sobre o trabalhador, servindo a uma “estratégia de produção de dependentes, de transformação de escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários”95, nos anos finais da escravidão esta política já estaria indo à bancarrota, sendo quase impossível que um negro pensasse a liberdade como simples continuação da servidão. Eis porque, com a lei, na medida em que se tirava do proprietário o direito absoluto de determinar a liberdade do escravo, era preciso pensar em outras formas de controle.
A questão da política de domínio senhorial e o papel da lei de 1871 para as últimas décadas da escravidão no Brasil é um aspecto que encontra leituras distintas entre os historiadores. A leitura proposta por Xxxxxxxx sugere uma ruptura na política de domínio que, a partir da lei, começava a falir. Esta política, conforme apontara Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx (enfatizando, porém, a primeira metade do oitocentos), tinha como um de seus
93 CRL - Relatório apresentado a S. Exc. Sr. Dr. Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx, 2o vice-presidente pelo Exm. Sr. Conselheiro Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, ao passar-lhe a presidência da mesma Província no dia 19 de Setembro 1885, p. 177
94 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit., p. 177.
95 Idem, p. 138.
pilares a prerrogativa senhorial de conceder xxxxxxxx, que colocava a questão da liberdade nos marcos das relações pessoais possibilitando, por conseguinte, a tentativa senhorial de manter os libertos como seus dependentes.
Xxxxxx Xxxxxx, por outro lado, sem deixar de reconhecer os impactos da lei de 1871 sobre a prática da alforria e para a conquista da liberdade, argumenta que nas últimas décadas da escravidão houve um acirramento de tensões, já que a expectativa senhorial observada por Xxxxx não desapareceu. Para Xxxxxxxx, antes da lei a “ideologia de domínio” que vigorava era “mais uma peça da engrenagem de uma política de domínio que imaginava a existência de senhores protetores e escravos dependentes; depois, torna- se cada vez mais a ficção do contrato regulado e controlado pela suposta equanimidade da burocracia governamental e judiciária”.96 Xxxxxx argumenta que, ao contrário de desaparecer tal ideologia, a própria interferência do Estado nas relações antes privadas que envolviam a alforria se deu em meio a muitas ambiguidades. Para a autora,
[A lei de 1871] conservava o direito senhorial de exercer o controle na formação do pecúlio dos seus escravos, deixava o ingênuo sob tutela dos senhores etc. Se as décadas de 70 e 80 se diferenciam das anteriores é menos por substituírem uma “política de domínio” até então vigente e mais por atualizarem, diante das novas circunstâncias, as formas de pensar e agir sobre a escravidão.
Várias atitudes senhoriais confirmam essa visão, segundo a autora, como ex- senhores que deixavam legados a libertos estabelecendo, no entanto, os modos como poderiam usufruí-los, deixando entender que aquelas pessoas não teriam condições de gerir seu patrimônio ou impondo condições relativas ao ir e vir, ao modo de habitar dos libertos etc. Tais limitações impostas para o gozo da liberdade fazem a autora questionar- se sobre em que bases estariam pautadas a relação entre ex-senhor e liberto.
Afinal, que tipo de condições eram estas que, por princípio, não permitiam uma ruptura da relação senhor/escravo e transportavam antigas obrigações, como a sujeição e a obediência como limites para o “gozo” da liberdade? As liberdade condicionais, além de evidenciarem as expectativas senhoriais, mostram também como a definição do que vinha a ser escravo ou liberto era controversa. O que era realmente ser liberto, ou ser um liberto condicional? Quais os direitos que essa liberdade garantia? Quais os direitos que os libertandos conquistavam com a liberdade condicional?97
96 XXXXXX, A conquista da liberdade... Op. cit., p. 139.
97 Idem, p. 65 – 67.
A análise das Ações de Liberdade estudadas por Xxxxxx em Campinas demonstram como os libertandos se posicionavam frente às expectativas senhoriais. Frente a condições para a liberdade que, no mais das vezes, lhes permitiam apenas permanecer vivendo como escravos, com a esperança apenas de gozar sua liberdade no futuro, aquelas pessoas, através da justiça, demonstravam ter noção de seus direitos. Demonstravam que a relação que pretendiam ter como seus ex-senhores e com a sociedade era diferente da que haviam tido enquanto escravos.
Xxxxx Xxxxxxxx faz uma reflexão interessante acerca da lei de 1871, problematizando os sentidos e limites de seu alcance. Se por um lado a referida prevê a alforria em várias situações, tornando-a um direito inscrito em lei, por outro, para obtê-la o escravo precisaria seguir à risca todas as suas determinações. A lei teria, então, uma outra faceta: a de restringir a liberdade, segundo as especificações legais. A autora chega a esta conclusão de acordo com a análise de ações de liberdade na Corte: antes da lei, a falta de provas sobre a condição de um escravo garantia sua liberdade; a partir da lei, justamente a falta de provas lhe negaria a liberdade. Desta feita, a lei teria também o significado de cerceamento da possibilidade de obtenção da liberdade, já que seria livre somente o escravo que estivesse de acordo com as possibilidades abertas pela lei. A Lei de 1871 teria sido o mecanismo que possibilitou algum controle sobre as táticas de alforria, estando, portanto, de acordo com o projeto de emancipação gradual.98
Pode-se entender, nesse sentido, a possibilidade de contratação de serviços em benefício da liberdade prevista na lei como uma maneira de se manter o domínio senhorial sobre o libertando, de acordo com a expectativa de uma ruptura lenta e de uma liberdade tutelada. Assim, o que se verificou em Porto Alegre e em outras localidades cujas alforrias mediante cláusula de prestação de serviços foram estudadas, é uma realidade em que o liberto deveria viver por mais alguns ou mesmo vários anos segundo uma relação de trabalho bastante semelhante a de quando era escravo. Ao se pensar a alforria nesses moldes, ela atende a pelo menos duas expectativas de imediato: a de se tentar manter o domínio sobre a força de trabalho do liberto, e a de assegurar o destino do liberto para que não se tornasse um vagabundo, garantindo-se que fosse um trabalhador.
Na década de 1880, a legislação referente ao tema da abolição passaria por um novo processo de discussão. Em 1884 seria apresentado e discutido pelo Gabinete Xxxxxx o projeto que levaria, no ano seguinte, a aprovação da Lei dos Sexagenários, durante o
98 GRINBERG, Liberata... Op. cit.
Gabinete Xxxxxxx. As expectativas percebidas nos debates em torno da Lei de 1885 estavam igualmente de acordo com a ideia de uma abolição gradual. Segundo Xxxxxx Xxxxxxxx, naquele momento a Lei de 1871 “era considerada uma espécie de ‘roteiro’ que, tendo estabelecido os parâmetros pelos quais o processo de abolição seria encaminhado, deveria ser rigorosamente seguido para que tal processo respeitasse a ordem legal.”99 Assim, frente às novas propostas que se faziam em relação à abolição, muitos parlamentares reivindicaram a Lei de 1871 como orientadora de qualquer outro encaminhamento ou mesmo como sendo suficiente para levar ao fim da instituição no país. A lei que antes fora rejeitada por setores significativos de grandes proprietários de escravos passava, então, a ser reivindicada.
Embora do ponto de vista das classes proprietárias a lei atendesse aos anseios de um processo de emancipação gradual e cauteloso, Xxxxxx Xxxxxxxx ressalta que ela foi também “o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros.”100 Xxxxxx Xxxxxxxx, por sua vez, afirma que a eficácia da lei deve ser observada em relação aos significados feitos pelos sujeitos históricos das possibilidades criadas por ela, e que nas décadas de 70 e 80, “o campo jurídico foi reconhecido pelos escravos como um espaço de encaminhar seus projetos de liberdade”101, se definindo, de acordo com Xxxxxxxx, como campo de luta social.102 Xxxxxx Xxxxxx chama a atenção ainda para a dificuldade em se legislar sobre a organização do mercado de trabalho no Brasil durante o século
XIX. Pois se já era difícil definir quem eram os cidadãos, e quais seus direitos e deveres, ainda mais complexo era dar conta de normatizar as múltiplas experiências de escravos, libertos, trabalhadores livres nacionais e imigrantes, do campo e da cidade. “Restou à lei e à justiça explicitarem-se como arena na qual se dava o conflito destes diferentes interesses.”103
Se as possibilidades abertas pela Lei de 1871 modificaram a prática da alforria no Brasil, abrindo novas possibilidades para os escravos, ao mesmo tempo, tais possibilidades frequentemente colocaram aqueles que conquistaram a liberdade em um terreno de indefinição entre a escravidão e a liberdade. As incertezas e ambiguidades da
99 MENDONÇA, Entre as mãos e os anéis... Op. cit., p. 97 100 CHALHOUB, Visões da Liberdade... Op. cit., p. 232 101 Idem, p. 370.
102 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
103 XXXXXX, Xxxxxx e contratos de trabalho... Op. cit., p. 210.
condição dos libertandos foram, assim, alvos de diferentes leituras e expectativas, por eles próprios e por seus senhores, e alvo de disputas que se deram tanto nos embates cotidianos, quanto pelas vias legais.
1.3 As liberdades condicionais como estratégia de emancipação na província
Os anos de 1883 e 1884 foram marcados pela ampla organização do movimento abolicionista no Rio Grande do Sul, que resultou na campanha pela emancipação e alforria de escravos neste último ano. Segundo estimativa anunciada no relatório do Presidente da Província Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx de 19 de setembro de 1885, naquele ano teriam sido libertos algo em torno de 40 mil escravos, aproximadamente 67% dos 60 mil escravos existentes na província até então.104 No mesmo relatório, o presidente atribui o mérito da iniciativa às cidades de Porto Alegre e Pelotas. Em Porto Alegre, somente naquele ano, foram registradas em cartório as alforrias de 994 escravos. Até a Lei Áurea, em 1888, outras 94 alforrias foram registradas. É nestes homens e mulheres que viveram sob a escravidão na capital da província que concentraremos nossas análises.
Para o período que vai de 1884 a 1888 temos, então, o total de 1.088 alforrias registradas nos livros notariais, distribuindo-se da seguinte forma:105
104 CRL, Relatório apresentado a S. Exc. Sr. Dr. Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx... Op. Cit.
105 Nota sobre apresentação de tabelas, quadros, gráficos e figuras: como padrão, incluiu-se entre parênteses após o título de tabelas, quadros, gráficos e figuras, a localidade e o período a que se refere. Sempre que estes dois itens não estiverem especificados, significa que dizem respeito a Porto Alegre, no período que vai de 1884 a 1888.
Gráfico 1 – Alforrias registradas em cartório
6%
17%
77%
Pagas Gratuitas Condicionais
Fonte: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias.
Das 839 (77%) alforrias condicionais, nada menos que 826 (98,4%) o foram com a condição de o libertando prestar serviços por mais alguns anos a seu senhor ou a terceiros por ele designado.
Partimos da ideia de que a libertação de escravos na província – ou a suposta “abolição antecipada”, se deu em torno de uma estratégia política adotada pela maioria das tendências políticas da época e pelo movimento abolicionista organizado, estratégia que esteve comprometida com a ideia de uma emancipação gradual dos cativos. Para compreender melhor tal estratégia, bem como o caráter das alforrias registradas em cartório em Porto Alegre desde 1884 até a abolição da escravidão no império em 1888, faremos neste tópico algumas considerações sobre a campanha abolicionista ocorrida naquele ano no Rio Grande do Sul e sobre o discurso oficial criado a respeito da mesma. Apresentaremos também os dados relativo a população escrava na capital com o objetivo de contrastá-la com a número de alforrias registradas em cartório no período. Tais apontamentos iluminam o modo como foi compreendida a emancipação de escravos na província nos últimos anos da escravidão. Queremos com isto, por um lado, contextualizar em termos gerais o momento político vivido na província em relação à questão da escravidão e, por outro, comparar a população escrava da capital com o índice de registros de alforrias em cartório entre os anos de 1884 e 1888.
1.3.1 Dimensões da população escrava
Desde os fins do século XVIII, o Rio Grande do Sul passou a inserir-se economicamente no mercado interno nacional, sobretudo pela produção de trigo (que perdeu força ao longo do século XIX) e pela atividade pecuária. Ao longo da história, a Província desenvolveu uma economia dependente da economia monocultora de exportação, complementando a economia nacional e abastecendo o mercado interno. É nesse contexto de integração à economia nacional que o Rio Grande do Sul passa a utilizar o trabalho escravo, cuja importância acentua-se com o desenvolvimento da agricultura extensiva e do comércio de charque. Apesar de o contingente de cativos ter aumentado com o estabelecimento das charqueadas, sua presença foi constante em todos os setores da vida provincial até 1888, seja nas lides rurais, seja em atividades urbanas e domésticas.
Xxxxxx Xxxxxx, em estudo sobre o peso da população escrava na província, utiliza como fontes os relatórios da Diretoria Geral de Estatística, que trazem as listas de matrícula de escravos. Contrastando com os dados provenientes do Recenseamento Geral do Brasil de 1872, fonte mais utilizada para demografia do período, que apresentariam o total de 67.791 escravos, Xxxxxx contabiliza 83.370 para os anos de 1872-73. De acordo com os dados do autor, os escravos corresponderiam a 18,5% da população total de
450.392 habitantes.106
A tabela abaixo apresentada por Xxxxx Xxxxxxxxx representa a população escrava existente na província na segunda metade do século XIX. No biênio 1883-84, o Rio Grande do Sul tinha a sexta maior população escrava do império.107
Tabela 1 - População escrava do Rio Grande do Sul (século XIX)
Ano | Escravos | Total | % Escravos |
1814 (a) | 20.611 | 70.656 | 29,2 |
1858 (a) | 70.880 | 282.547 | 25,1 |
1872 (b) | 67.791 | 434.813 | 15,6 |
1883 (a, c) | 62.138 | 700.000 | 8,9 |
Fontes: (a) Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, RS: escravismo e abolição (Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982), p. 18. (b) Recenseamento da população do império... 1872, Vol. 17, p. 205. (c) Xxxxx, O abolicionismo... pp. 156-7. (d) |
106 ARAÚJO, Novos Dados sobre a Escravidão... Op. Cit.
107 XXXXXXXXX, Xxxxx X. Campaign of all Peace and charity: gender and the politics of abolitionism in Xxxxx Xxxxxx, Xxxxxx, 0000 – 1888. Slavery and Abolition, nº 22, p. 83 – 108. 2001.
Sabe-se ainda que em 1884, a população escrava era de 60.000 indivíduos e, no ano seguinte, 20.709 indivíduos, sem que se saiba, no entanto, a população total. Para 1887, a população total era de 944.616, da qual 8.430 (0,8%) eram escravos.108 Os dados relativos à este último ano são oriundos da matrícula de escravos do Rio Grande do Sul, realizada em virtude da Lei de 1885 e de seu regulamento do mesmo ano, cujo encerramento se deu em março de 1887. Este quadro demonstra a redução de 62% de escravos de 1884, quando da campanha abolicionista na província, para o ano seguinte; mas registra também a presença escrava na província até às vésperas da abolição no império.
Centro político-administrativo da província, Porto Alegre viveu o florescimento e crescimento comercial ao longo do século XIX, em especial sua segunda metade. Os quatro rios navegáveis ligados à cidade (Gravataí, Sinos, Caí e Jacuí) faziam da cidade um forte entreposto comercial. Devido à próspera produção, principalmente de São Leopoldo, na década de 1860 a cidade tornou-se um importante centro comercial, cumprindo o papel de escoador dos produtos agrícolas das zonas coloniais que abasteciam tanto o mercado local quanto outras regiões do país. Além dos produtos essenciais, era possível encontrar um forte comércio de produtos dos mais variados que atendiam às necessidades das classes mais abastadas.
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx observa as transformações ocorridas na capital ao longo do século XIX. A respeito da demografia e o peso da população escrava na cidade, conclui que seu perfil se aproxima do restante da província, porém com um pouco mais de indivíduos libertos, o que era mais comum na cidade do que no campo. Nesse sentido,
Paraphrasing Xxxxxxx Xxxxxx, Porto Alegre was in, but not of, slavery society, and unlike other Southern cities such as Rio de Janeiro or São Paulo, it was not integrated into a plantations economy but rather was more integrated to agricultural diversification of the immigrant zone (German and Italian), wich turned out to be the state’s most economically vigorous regions, outshipping the tradicional livestock e economy.109
Porto Alegre contava ainda com chácaras que produziam gêneros de subsistência e que empregavam trabalhadores escravos. Xxxxxx Xxxxxx constata que 64% (5.741) dos 8.970 escravos matriculados na cidade residiam em zonas consideradas rurais em 1872-
108 PICCOLO, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Escravidão, imigração e abolição. Considerações sobre o Rio Grande do Sul In Anais da VIII Reunião. Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica (SBPH). São Paulo, 1989, p. 121
109 ZUBARAN, Slaves and contratados... Op. Cit., p. 20.
3, contra 3.229 (36%) em zonas consideradas urbanas, contrastando com a ideia de uma Porto Alegre vista como um espaço principalmente urbano na segunda metade do século110, realidade esta que pouco deve ter mudado em pouco mais de dez anos.
Também no ramo industrial a cidade cresceu, contando em 1865 com 38 fábricas, como de chapéus, velas, caldeiras, tamancos, selas, ferraria, além de olarias.111 Todos estes setores se utilizavam da mão-de-obra cativa. Assim, embora trate-se de uma realidade com as características urbanas de uma cidade em crescimento, os contornos da capital não podem ser definidos exclusivamente nesses termos, de modo que devemos pensar as condições de vida daqueles homens e mulheres, no cativeiro ou em liberdade, nos moldes de uma realidade também rural. Como foi o comum na vida das grandes cidades em todo o Brasil, em Porto Alegre o trabalhador escravizado exerceu um sem- número de funções. Mesmo nos anos finais da escravidão, continuava a exercer as mais variadas atividades e ter fundamental importância na vida urbana.
Sobre a distribuição demográfica, Xxxxxx Xxxxxx apresenta para Porto Alegre, utilizando as fontes mencionadas anteriormente um total de 8.970 escravos em 1872-73. Contemplando a década seguinte, Xxxxxxxxx apresenta o seguinte quadro:
Tabela 2 - População escrava de Porto Alegre (século XIX)
Ano | Escravos | Total | % Escravos |
1814 (a) | 2.312 | 6.111 | 37,8 |
1858 (b) | 4.443 | 16.313 | 27,2 |
1872 (c) | 8.155 | 43.998 | 18,5 |
1884 (d) | 5.790 | 40.000 | 14,4 |
Fontes: (a) Fundação de Economia e Xxxxxxxxxxx, Xx Xxxxxxxxx xx Xxx Xxxxx x Xxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx: censos de 1803 – 1950 (Porto Alegre: FEE, 1981), p. 50. (b) População da província no fim do anno de 1858, segundo o mappa tirado pelas listas de famílias, Estatística, maço 1, lata 531, AHRGS. (c) Recenseamento da população do império do Brazil a que se procedeo no dia o de agosto de 1872 (Rio de Janeiro: Directoria Geral de Estatística, 1873 – 76), Vol. 17, pp. 205-206. (d) Verônica A. Xxxxx, O abolicionismo: sua hora decisiva no Rio Grande do Sul – 1884 (Porto Alegre: Martins Livreiro-Editor, 1985), p. 156. |
Para os diferentes anos da década de 1880 contamos novamente apenas com o número de escravos: em 1882, eram 6.068 escravos, dos quais 3.069 (50,6%) eram
110 ARAÚJO, Novos Dados sobre a Escravidão... Op. cit.
111 XXXXXXX, Xxxxxxx. Calabouço urbano: escravos e libertos em Porto Alegre (1840 – 1860). Passo Fundo: UPF, 2002, p. 59.
homens e 2.999 (49,4%) eram mulheres112; em 1884, conforme a tabela anterior, eram 5.790; em 1885, ano seguinte à campanha abolicionista, existiam ainda 1.815 escravos e, em 1887 foram matriculados 58 escravos.113 Para a década de 1880, os dados populacionais devem ser observados ainda com mais cuidado, uma vez que as diversas situações intermediárias as quais estavam submetidos cativos alforriados, como as que se encontravam os libertandos contratados, mascaravam as matrículas.
Embora o número de escravos tenha diminuído desde a década de 1870, é preciso considerar que crescia a quantidade de libertos e libertandos entre a população. O período que se segue às leis de 1871 e 1885 marca a entrada nos quadros da liberdade de indivíduos cujos estatutos sociais estavam pautados por ambiguidades e indefinições que ora os aproximavam, ora os afastavam do ser livre e ser escravo. Entre eles encontravam- se libertandos contratados, sexagenários que cumpriam os anos de serviços previstos em lei para indenização de seus senhores, ingênuos e ex-ingênuos tutelados, além de livres pobres que, compartilhando espaços sociais, solidariedades e ocupando o espaço urbano em busca da sobrevivência e do trabalho, atribuíam sentidos à construção da liberdade.
Nesse sentido, cabe salientar o que enunciou Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx sobre a presença numérica de escravos e libertos nas cidades, ao estudá-los na São Paulo da segunda metade do século XIX: desde a época colonial, escravos e libertos, crioulos ou africanos, ocuparam toda sorte de funções das economias citadinas. Nas cidades, chamavam a atenção “por seus trejeitos, cores e sons, contrastando com a reclusão e hábitos disciplinados das famílias senhoriais”. As cidades eram marcadas pela heterogeneidade de grupos de cativos mas, “sobretudo, a diversidade de formas e relações coexistentes abria indistintamente aos negros o espaço das ruas”. Ainda segundo a autora, “A visibilidade de escravos e negros livres nas formações sociais urbanas provinha não tanto da extensão numérica de tais indivíduos no cômputo da população citadina, mas de atributos que lhes eram conferidos pela organização do trabalho e da vida social.114
112 XXXXXXX, Os cativos e os homens de bem... Op. Cit., p.29. A informação foi retirada do Jornal do Comércio, 20/06/1882 e 17/11/1882.
113 BAKOS, RS: escravismo & abolição... Op. cit., p. 22. Para o ano de 1885, a informação foi retirada de Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx em “Relatório apresentado a S. Exc. o Sr. Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx - Porto Alegre” (O Conservador, 1886. p.182-2); e para o ano de 1887, do Jornal A Ordem, 13/4/1887.
114 XXXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1888). São Paulo, Hucitec/História Social, USP, 1998, p. 63 – 64.
1.3.2 Costurando acordos: a tentativa de uma saída controlada
Como se viu anteriormente, a segunda metade do século XIX foi marcada por mudanças profundas na escravidão brasileira, bem como pela elaboração das leis emancipacionistas que vieram a ampliar significativamente as possibilidades de luta pela liberdade e alterar a prática da alforria no país. A Lei de 1871 orientou o modo como deveria se encaminhar a abolição: de maneira gradual, respeitando a propriedade e garantindo o controle social sobre escravos e libertos. Conforme Xxxxxx Xxxxxxxx, ao discutir a Lei dos Sexagenários e o contexto de produção das leis emancipacionistas, a liberdade com que se sonhava era aquela que produzisse dependentes aos antigos senhores.
O atrelamento pessoal fazia parte de uma concepção mais ampla e podia definir o lugar ocupado por um indivíduo naquela sociedade. “Ainda que a liberdade pudesse trazer aos escravos a liberdade jurídica, havia de se assegurar que as desigualdades fossem mantidas.” A autora prossegue afirmando que na década de 1880, “quando se falava em liberdade, não se falava necessariamente em negação absoluta das relações de escravidão.”115 As medidas que pressupunham a continuidade das relações entre senhores e libertos presentes tanto na lei de 1871 quanto na lei de 1885, ao tentar preservar a possibilidade de manutenção dos libertos sob o domínio dos ex-senhores, tentava estabelecer uma linha de continuidade entre a escravidão e a liberdade. Tal perspectiva orientou o movimento abolicionista levada a cabo na capital do Rio Grande do Sul e a estratégia adotada para emancipar escravos quatro anos antes da promulgação da Lei Áurea.
Por outro lado, ao estabelecer equivalência entre a alforria condicional sob prestação de serviços (realizada com o próprio senhor) e o contrato de prestação de futuros serviços (realizado com terceiros), fica implícita a incerteza de que os libertandos anuiriam aos traços de continuidade presentes nas alforrias condicionais e que as cláusulas das mesmas seriam cumpridas. Desse modo, a construção da imagem do forro “contratado” – modo como os libertos condicionais passaram a ser referidos em uma série de documentos (na imprensa, nos tabelionatos etc.), parece ter feito parte da estratégia de emancipação adotada.116 A ideia de que um contrato fora estabelecido carregava o peso
115 MENDONÇA, Entre as mãos e os anéis... Op. cit., p. 101.
116 Assim, ao nos referirmos aos “contratados” no presente estudo, referimo-nos aos libertos com alforrias condicionais sob prestação de serviços, e não a indivíduos que locaram seus serviços a terceiros em prol da
da dívida contraída pelo liberto e buscava assegurar, sob a forma da lei, o cumprimento da condição imposta na alforria. Como se verá adiante, as alforrias registradas em cartório no período estudado procuram definir o tanto quanto possível os termos em que estaria pautada a liberdade, explicitando principalmente os deveres dos libertandos.
Nas tabelas abaixo, com dados apresentados por Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx, é possível verificar como a prática da alforria variou ao longo do século XIX em Porto Alegre, sobretudo na década de 1880, quando da campanha abolicionista na província e da estratégia adotada de emancipação com alforrias condicionais. A segunda tabela é um desdobramento do segundo item da primeira (“alforrias condicionais”).117
Tabela 3 - Alforrias por tipologia (Porto Alegre, 1849 – 1888)
Período | 1849/1858 | 1859/1868 | 1869/1878 | 1879/1888 | ||||
Tipos | Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % |
Pagas | 360 | 39,6 | 538 | 39,1 | 808 | 43,3 | 427 | 21,6 |
Condicionais | 313 | 34,4 | 516 | 37,5 | 409 | 21,9 | 971 | 49,1 |
Sem ônus | 200 | 22 | 213 | 15,5 | 357 | 19,1 | 345 | 17,4 |
Não consta | 36 | 3,9 | 109 | 7,92 | 292 | 15,6 | 234 | 11,8 |
Total | 909 | 100 | 1.376 | 100 | 1.866 | 100 | 1.977 | 100 |
Tabela 4 - Alforrias condicionais (Porto Alegre, 1849 – 1888)
Período | 1849/1858 | 1859/1868 | 1869/1878 | 1879/1888 | ||||
Tipos | Nº | % | Nº | % | Nº | % | Nº | % |
Prestação de serviços | 22 | 2,4 | 25 | 1,8 | 68 | 3,6 | 866 | 43,8 |
Morte do senhor | 289 | 31,8 | 327 | 23,8 | 321 | 17,2 | 100 | 5,1 |
Serviços Militar | - | - | 145 | 10,4 | 5 | 0,3 | 1 | 0,05 |
Outros | 2 | 0,2 | 19 | 1,4 | 15 | 0,8 | 4 | 0,2 |
Total | 313 | 34,4 | 516 | 37,5 | 409 | 21,9 | 971 | 49,1 |
alforria ou a trabalhadores que estabeleceram outros tipos de contratos. Optamos aqui por utilizar a mesma terminologia verificada nas fontes e na própria historiografia sobre o tema.
117 Os dados foram originalmente apresentados em uma só tabela que comtemplam ainda os dados relativos aos século XVII e a primeira metade do XIX. Optamos por separar em duas tabelas distintas para melhor apreciação das informações, dividindo-os em uma tabela com a divisão de alforrias gratuitas (sem ônus), pagas, condicionais e “não consta” (em que não consta o motivo ou condição da alforria e não foi possível classificar, portanto), e outra tabela em que constam as subdivisões da categoria “condicionais”. Apresentamos os números com apenas uma casa decimal, diferentemente da tabela original. XXXXXXX; XXXXXXX. Que com seu trabalho nos sustenta... Op. cit., p. 24. Aqui cabe uma observação: ao compulsarmos as alforrias do período que vai de 1884 a 1888, encontramos algumas diferenças com os dados desses autores. Como o quadro acima ter por finalidade apenas observar a prática de alforria ao longo da segunda metade do século e não causa prejuízo ao que estamos querendo discutir neste momento, deixaremos para problematizar estas diferenças no capítulo 2, onde será exposta nossa metodologia de classificação das alforrias.
Na primeira metade do século XIX, as alforrias pagas foram predominantes, seguidas pelas condicionais e pelas sem ônus, nessa ordem, à exceção da década de 1830, em que foram as condicionais as mais frequentes. Das condições impostas neste tipo de alforria, também na primeira metade dos oitocentos, a de servir até a morte do senhor foi a mais comum.118 Como se pode ver, até o final da década de 1870, o padrão mantém-se o mesmo: a maioria é de alforrias pagas, seguidas pelas condicionais por morte do senhor e pelas alforrias ditas sem ônus, respectivamente. É na década de 1880 que as alforrias condicionais, com a maioria por prestação de serviços, assumem o primeiro lugar.
O movimento abolicionista que marcou a década de 1880 no Brasil cresceu e organizou-se também em Porto Alegre, com o surgimento de associações libertadoras tais como a Sociedade Emancipadora Rio Branco (1881), a Seção Abolicionista do Partenon Literário (1883), a Sociedade Esperança e Caridade (1883), a Libertadora Mercantil (1883) e o Centro Abolicionista de Porto Alegre (1883).119 O mesmo movimento ocorria no interior da província. Nos anos de 1883 e 1884, a campanha abolicionista foi intensamente discutida na imprensa local, destacando-se o Jornal do Comércio (do Centro Abolicionista), A Reforma (do Partido Liberal), A Federação (do Partido Republicano) e também nos jornais O Mercantil e O Século. Este período foi marcado ainda pela realização de diversos eventos em prol da emancipação de escravos.120
O Centro Abolicionista, fundado em 1883 em Porto Alegre, foi formado a partir da iniciativa de liberais como Xxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxx Xxxxx Xxxx, reunindo, contudo, membros de todas as tendências políticas, inclusive conservadores dissidentes. Em agosto deste ano, na reunião do Centro no Teatro São Pedro, foram nomeadas comissões libertadoras que deveriam percorrer os distritos da capital, subúrbios e freguesias negociando as libertações dos proprietários de escravos. Após campanha de rua iniciada em agosto, descrita na Ata do Centro Abolicionista destinada a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 7 de setembro de 1884 a capital foi considerada livre da escravidão, data escolhida em comemoração à independência do Brasil. Naquele
118 Sobre a década de 1830, é possível pensar que a excepcionalidade seja devida à proibição do tráfico em 1831, e que a concessão de alforria condicionada à morte do senhor tenha sido uma saída para manter a ordem e as expectativas dos escravos sob controle (sobretudo dos provenientes do tráfico ilegal), colocando a liberdade como uma possibilidade no horizonte, ainda que distante e indefinido.
119 De acordo com Torres Homem, a Sociedade Emancipadora Visconde do Rio Branco era composta principalmente por alunos da Escola Normal, e a Sociedade Esperança e Caridade era constituída por escravos e alguns libertos. TORRES HOMEM, Apontamentos para a história do movimento abolicionista..., Op. cit., p. 6.
120 No capítulo 2 de “Os cativos e os homens de bem...” Xxxxx Xxxxxxx estuda as associações libertadoras desde o final da década de 1860, observando seus programas políticos e composição social. Cf. XXXXXXX, Os cativos e os homens de bem... Op. cit.
documento, foram anunciados os nomes de 796 senhores, que teriam libertado 2.272 escravos até aquela data.121
Ao analisar o discurso abolicionista na província, Xxxxx Xxxxxxx afirma que, embora alicerçados sobre diferentes discursos, as divergências entre liberais, conservadores e republicanos eram apenas aparentes, pois estavam todos de acordo com a necessidade de manter a organização da produção e garantir o controle social sobre os libertos.122 Em estudos mais recentes, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, ao discutir a construção da memória social em torno da abolição em Porto Alegre, e Xxxxx Xxxxxxx, ao estudar as alforrias e a vida dos libertos na segunda metade do século XIX, assumem este mesmo ponto de vista.
Assim, em que pese a composição social heterogênea dos agentes envolvidos na campanha abolicionista em Porto Alegre, construiu-se um compromisso político sobre o modo como deveria se emancipar os escravos na província, qual seja, a partir das alforrias condicionadas à prestação de serviços. A este compromisso nos referimos como sendo uma “estratégia” que, naquele momento em que a escravidão se encaminhava para o fim e que as pressões escravas forçavam alguma medida, permitia simultaneamente declarar os cativos livres e seguir utilizando sua força de trabalho.
Seja nos jornais, seja nos Relatórios de Presidentes da Província ou em ofícios de autoridades diversas, por volta de 1884 eram frequentes as referências aos contratos de prestação de serviços como etapa necessária de preparo do escravo para a liberdade. Um artigo d’A Reforma, proclamando a libertação de quase todos os escravos da capital, parece explicitar bem o motivo de tal estratégia:
Não se trata de desorganizar repentinamente e sem transição o trabalho; não pretendemos encher as ruas de vadios. O que queremos é que Porto Alegre, de 28 de Setembro em diante, só conte com homens livres em seu recinto, embora estes ainda estejam sujeitos a alguns anos de trabalho, como se dá com muitos dos que foram libertados nos últimos dias. Há nisto dupla vantagem. O trabalho doméstico e a pequena indústria não ficam desorganizados e os ex-escravos se preparam, n’um interstício de trabalho, para o gozo pleno dessa liberdade, que a tanto tempo anhelavam (sic). As liberdades concedidas com a condição de 2 ou 3 anos de serviço, que devem ser prestados ao ex-senhor, são benefício para os próprios libertados.123
121 AHPAMV – Ata do Centro Abolicionista, folhas 12 a 25.
122 XXXXXXX, Xxxxx. “O Discurso Abolicionista no Rio Grande do Sul.”, n/ publicado, 1989.
123 MCSHJC – Jornal A Reforma, 15 de Agosto de 1884, p.1.
Nos argumentos, não havia novidade: era preciso garantir a continuidade do trabalho dos libertos para que não houvesse impacto na economia e no serviço doméstico, e evitar o caos social que, no caso de uma libertação total e imediata, naturalmente levaria os libertos a vagabundagem e ao ócio. Além disso, as alforrias eram descritas como uma dádiva concedida pelo senhor, que além da liberdade, garantiria a devida e necessária proteção ao ex-escravo.
Assim, o movimento abolicionista da capital como um todo privilegiou a política conciliatória da libertação sob cláusulas de prestação de serviços, mostrando que havia um compromisso entre os agentes políticos em torno de uma abolição gradual, que respeitasse o direito à propriedade e a indenização, além de manter presente a ideia de que o liberto deveria ser controlado ou então cairia no ócio. O próprio caráter das festividades abolicionistas, como banquetes, eventos no Teatro São Pedro e a Quermesse promovida para arrecadar fundos para a campanha, anunciam um movimento formado e encabeçado majoritariamente por setores mais favorecidos em geral que provavelmente não estavam dispostos a medidas radicais.
Quanto à participação dos negros, embora tenha sido convenientemente omitida do discurso oficial, tiveram papel ativo durante o movimento abolicionista no Rio Grande do Sul. Em artigo dedicado à abolição em Porto Alegre, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx chama a atenção para a participação dos negros no processo da abolição na cidade, silenciado no discurso abolicionista regional, que formaram sociedades abolicionistas, como a Confraria de Nossa Senhora do Rosário, a Sociedade Beneficente Cultural Floresta da Aurora e a Sociedade Emancipadora Esperança e Caridade124. A autora destaca a participação de lideranças negras, como o advogado abolicionista Xxxxx Xxxx xx Xxxxx e do tenente Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx.125
Em relação à atuação dos partidos, à época da campanha abolicionista o cenário político-partidário da Província estava dividido entre liberais, conservadores e republicanos. Desde o final da década de 1870, a presidência da província era ocupada pelos liberais, que procuraram manter uma postura conciliatória em relação ao fim da escravidão dentro dos marcos de uma abolição gradual. Na Assembleia Provincial, a questão servil ocupou apenas papel secundário, sendo que somente em 1880 é que se fez
124 Cf. XXXXXXX, Quebrando os grilhões do cativeiro: o emancipacionismo organizado In: Os cativos e os homens de bem... Op. cit., p. 81 – 194.
125 ZUBARAN, A invenção branca da liberdade negra... Op. cit.
menção ao movimento abolicionista, demonstrando a resistência em se discutir os encaminhamentos necessários à questão, então em curso a nível nacional.126
Liberais e republicanos disputaram entre si para assumir o protagonismo do processo abolicionista com o objetivo de aumentar seu prestígio, coesão interna e angariar apoio popular.127 Ambos criticavam a escravidão; sua divergência residia, contudo, nos encaminhamentos políticos a serem dados, bem como nos objetivos e razões pelos quais assumiam a questão em seu programa. Os liberais, divididos internamente na província, acabaram por apenas reproduzir os pensamentos do partido nacional, defendendo a abolição mediante contratos de trabalho, respeitando o direito à propriedade e tentando a conciliação dos interesses dos diversos grupos que exerciam pressão a respeito do problema. Já os republicanos, influenciados pela doutrina positivista, assumiram na província uma posição mais radical, pelo menos em termos programáticos, defendendo a libertação sem indenização. Aos conservadores, xxxxx atacar as proposições abolicionistas, acusando-as de ameaçar a ordem, defendendo, assim, ser suficiente a emancipação através dos dispositivos da Lei de 1871 e das libertações voluntárias pelos particulares.
Mesmo os republicanos, com um discurso mais radical de libertação imediata e sem indenização, acabaram sendo coniventes com as libertações sob condição. Em relação às cláusulas de serviços, nada é mencionado no jornal A Federação, órgão oficial do partido, no mês de agosto, auge da campanha, em que se privilegiou as exaltações ao movimento. Sobre o caráter das libertações que ocorriam, destaca-se a seguinte menção, dentre muitas, em seu jornal: “(...) é que a abolição aqui vai se operando sobre este moralíssimo princípio: a abolição sem indenização pecuniária. Não tem direito a indenização aquele que, cedendo aos impulsos do dever, restitui o homem ao domínio de si mesmo.”128 Assim, o discurso radical de libertação imediata e sem indenização parece tratar-se de fato da contrariedade à indenização pecuniária, ou seja, em moeda; não considerando os anos de trabalho não remunerado que os libertos teriam ainda de prestar a seus senhores como uma forma de indenização.
O presidente da província Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx, por sua vez, em relatório apresentado em 1886, afirmou que sua participação no movimento de dois anos antes consistira apenas em orientar a conveniência das libertações por meio de locações
126 BAKOS, RS: escravismo & abolição... Op. cit., p. 56.
127 Idem, p. 18.
128 NPH - Jornal A Federação, “A liberdade victoriosa”, 16 de agosto de 1884
ou cláusulas de prestação de serviços.129 Através da Circular de 16 de Agosto de 1884, declarava ser suficiente a menção do tempo de serviço a ser cumprido pelo liberto, tendo a alforria o mesmo valor que um contrato de serviços a terceiros, como previsto pela Lei de 1871, ficando o liberto imediatamente livre, estando, porém, obrigado a prestar os serviços sob pena de ser compelido a fazê-lo em estabelecimentos públicos ou a particulares conforme intervenção judicial, de acordo com a mesma lei (anexo 1).
Em relação ao não cumprimento do contrato, na circular se afirmava que a jurisprudência e os tribunais “tem uniformemente compreendido o caso de infração da cláusula do Art. 83 do citado Reg. de 1872, como equivalente da infração do contrato de serviços, julgando-lhe aplicáveis o processo, competência e meios coercivos aí estabelecidos” (anexo 1). Ou seja, em caso de não cumprimento, o senhor deveria reclamar ao Juiz de Órfãos, o qual deveria proceder sumariamente com o processo de acordo com a Lei nº 108 de Outubro de 1837 (Art.14) e, no caso de o liberto ser condenado à prestação de serviços em estabelecimentos públicos, seus jornais seriam destinados ao contratante/ex-senhor. Ainda em caso de fuga, poderia ser decretada a prisão preventiva, por não mais de 30 dias, porém. Pouco tempo depois, a interpretação do Presidente conferida à lei, que considerava a igualdade entre alforria por prestação de serviços e contrato para a liberdade, seria aprovada pelo Ministro da Agricultura.130
Como se viu, a campanha abolicionista foi marcada pelo comprometimento de todas as tendências políticas em torno da libertação com cláusulas de prestação de serviços. Ademais, no mesmo ano ocorreriam as eleições gerais e locais, e era fundamental um posicionamento abolicionista junto ao eleitorado urbano. Desse modo, a libertação proclamada na capital em 1884 pelos partidos e pelo Centro Abolicionista pôde viabilizar-se por meio de um sistema de alforrias que encontrou respaldo na Lei de 1871. Tal episódio foi devidamente documentado: em março de 1884, a Câmara Municipal de Porto Alegre deliberaria a criação de um Livro de Ouro dedicado às questões abolicionistas; também o Centro Abolicionista faria o livro de atas dirigido à Câmara mencionado anteriormente. Ambos os documentos descrevem em detalhes as realizações da campanha na cidade. Segundo Xxxxxxx, tais documentos gozaram do privilégio de criar uma versão oficial para os fatos, e trataram de enaltecer figuras da época, em geral
129 BAKOS, RS: escravismo & abolição... Op. cit.
130 MCSHJC - Jornal A Reforma, 14 de Setembro e 15 de Outubro de 1884
políticos e comerciantes, elogiar a abolição gradual e deixar para as gerações futuras um relato que excluía os escravos de qualquer protagonismo em relação à sua libertação.131
Criar um documento de “memória social” significa organizar o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido. No caso da abolição no sul do país, a ideia era evitar a recordação dos enganos (contratos de prestação de serviço), dos conflitos (a resistência escrava), da participação negra na sua própria libertação (a alforria). (...)132
Nesse mesmo sentido, pensa-se não somente o ato de anunciar os nomes dos senhores que alforriavam em tais documentos (o que do mesmo modo era feito através de jornais), mas também o ato de registrar a alforria em cartório deveria ter tido um papel bastante importante. Se por um lado, o registro da alforria em cartório tinha o sentido material bem específico de oficializar a condição de liberto (e, no caso particular das alforrias condicionais, assegurar-se, no interesse do senhor, do cumprimento das cláusulas estabelecidas, e no interesse do libertando, de proteger-se de investidas contra sua condição), por outro lado, registrar uma alforria e torná-la ato público - anunciado em documentos como a mencionada Ata do Centro Abolicionista ou nas páginas dos principais periódicos em circulação – poderia ter um caráter simbólico bastante importante. Ao registrar uma carta de liberdade, os senhores tornavam pública e oficial a “generosidade” para com seus escravos, o que poderia ser importante tanto por conta do contexto político de pressão do movimento abolicionista, quanto pela tentativa de tornar os libertos dependentes, de modo que continuassem a servi-los.
Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx dedica um artigo a análise da construção da memória oficial em torno da suposta abolição antecipada ocorrida na província, e destaca quatro aspectos que permearam o discurso abolicionista na capital: 1) o caráter nacionalista e patriótico atribuído às alforrias concedidas, tentando remontar a um passado heroico dos gaúchos desde os tempos coloniais; 2) passado este que, por sua vez, relegava à província protagonismo histórico frente à abolição, que teria origem na Revolução Farroupilha (1835-1845) e na criação da Sociedade Libertadora (1869) que tinha a finalidade de libertar crianças escravas; 3) a imagem da abolição pacífica, enfatizando a harmonia entre os partidos e a ausência de conflitos sociais, buscando manter a proteção do ex-senhor sobre o liberto; e 4) a propagação da ideia da ausência de libertações onerosas, ocultando
131 Um outro documento que corre nesse mesmo sentido é a publicação do professor da Escola Militar e participe do Centro Abolicionista, Xxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx. TORRES HOMEM, Apontamentos para a história do movimento abolicionista... Op. Cit.
132 XXXXXXX, Os cativos e os homens de bem... Op. cit., p. 171
as alforrias condicionais e pagas, o que, ao fim, fortalecia todos os elementos anteriores presentes no discurso.133
1.3.3 Há de parecer justo para que possa funcionar
Conforme discutimos até agora, as alforrias concedidas sob cláusulas de prestação de serviços permitiam (ou ao menos era isso que se esperava) que se mantivesse ainda por algum tempo a continuidade do domínio senhorial sobre a força de trabalho do liberto, dando tempo para as adaptações necessárias. Em um momento de incertezas em relação ao tempo que sobreviveria o regime servil no país, em que outras duas províncias, Ceará e Amazonas, já se tinham declarado emancipadas; em que se debatiam novos encaminhamentos para o problema da abolição (o projeto que levaria a Lei de 1885); e em que a pressão escrava e o abolicionismo radical se alastravam pelo interior da província de São Paulo, levando a fugas em massa das fazendas que ecoavam por todo império134, as possibilidades abertas pela Lei de 1871 poderiam cumprir um papel bastante importante, pois garantia em todas as hipóteses a indenização ao senhor desde uma aparência de equanimidade.
Um acordo costurado nesse sentido poderia permitir simultaneamente libertar escravos, dando resposta aos anseios e pressão dos próprios cativos e a uma opinião pública crescentemente contrária a escravidão, e garantir os interesses dos proprietários de escravos. Contudo, se houve uma estratégia de encaminhar a emancipação de escravos na província de comum acordo a liberais, republicanos e conservadores dissidentes, endossada pelo movimento abolicionista que se organizou para negociar as alforrias com os senhores em uma campanha de rua, a mesma não poderia efetuar-se à revelia da aceitação dos próprios escravos.
Desse modo, ao tomarmos as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre entre 1884 e 1888, observamos o quanto estiveram amparadas em um discurso legal: foram comuns as menções à Lei de 1871, a seu regulamento do ano seguinte, e a circular expedida pelo presidente da província com a orientação sobre os procedimentos que deveriam ser adotados para as libertações em 1884. Pensamos ser possível estabelecer um
133 ZUBARAN, A invenção branca da liberdade negra...
134 Cf. XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx P. T. O Plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro /São Paulo: Editora UFRJ/ Edusp, 1994.
paralelo com a concepção de E. P. Xxxxxxxx sobre a lei, segundo o qual a mesma, considerada como instituição, pode muito bem ser assimilada a lei da classe dominante, servindo como instrumento de dominação de classe. Mas a lei também pode ser vista como ideologia ou regras e sanções específicas, que mantém uma relação ativa e definida com as normas sociais. A lei pode ser vista, ainda, simplesmente na sua funcionalidade, tendo relativa autonomia.135 Segundo o autor, “é inerente ao caráter específico da lei, como corpo de regras e procedimentos, que aplique critérios lógicos referidos a padrões de universalidade e igualdade”.136 Se não fosse assim e, ao contrário, servissem explicita e invariavelmente aos interesses da classe dominante à revelia das relações existentes na sociedade, as leis não teriam efeito e não serviriam para legitimar o poder de classe alguma.
Segundo Xxxxxxxx, é condição para sua eficácia ideológica que a lei pareça justa, obedecendo princípios de igualdade e universalidade. O historiador xxxxxx que, além disso, não se pode tomar a ideologia dominante como mera ideologia, visto que mesmo os dominantes precisam legitimar seu poder conforme padrões morais, sentindo-se úteis e justos.137A lei impõe, portanto, restrições à própria classe dominante, que precisa agir conforme as regras e sanções estabelecidas, de modo que cabe àquela lei mediar e legitimar as relações de classes existentes, mascarando injustiças muitas vezes. Por outro lado, o exercício do domínio através das formas da lei não é o mesmo que fazê-los sem nenhuma mediação, arbitrariamente. Este espaço existente muitas vezes pode fornecer alguma proteção àqueles que não têm poder.
Podemos pensar, a partir desse ponto de vista, que a alforria condicional, como estratégia adotada em Porto Alegre para pôr fim à escravidão, embora carregasse consigo o interesse de que, como libertos, os alforriados deveriam continuar a servir seu senhor, a mesma deveria ter condições que, ainda que não o fossem, tivessem uma aparência justa. Esta aparência buscava suas justificativas na velha concepção da alforria como dádiva. O que a leitura das alforrias informa é que os senhores seguiam pintando a liberdade como uma concessão fruto de sua generosidade, a quem seus protegidos e tutelados ex-escravos deveriam fidelidade e boa conduta.
Se a lei de 1871 e o contexto em que foi produzida foram capazes de colocar a conquista da liberdade no patamar de direito assegurado pela lei positiva, não foram
135 THOMPSON, Costumes em comum... Op. Cit., p. 351
136 Idem, p. 353
137 Idem, x. 000
xxxxxxx, xx xxxxxxx, xx xxxxxxxx xxx xxxxxxxx uma ideologia que esperava, através das relações pessoais, produzir libertos dependentes e perpetuar relações que não afastassem muito da escravidão. Essa tensão provocada a partir das duas últimas décadas da escravidão na relação senhor-escravo tornou a conquista e a afirmação da liberdade uma questão cada vez mais política.
A legislação emancipacionista expressava de certa forma a legitimação das relações sociais existentes, sobretudo se considerarmos os aspectos que favoreciam a prerrogativa senhorial sobre a força de trabalho do libertando, como os dispositivos que previam uma liberdade marcada por restrições e ambiguidades, tal como as alforrias condicionadas à prestação de serviços e outros tantos arranjos possíveis para sair do cativeiro. Por outro lado, essa própria legislação, que no geral serviu como instrumento de dominação de classe, se configurou em um campo de conflito em torno das interpretações e expectativas que as partes nutriam sobre a “nova” relação estabelecida.138 Este conflito só pode ser percebido quando observamos o modo como as condições foram cumpridas pelos libertandos que, como demonstraremos nos capítulos seguintes, modificaram os termos de seus contratos após estabelecida a alforria, ou mesmo recusaram-se a cumpri-los.
Se as alforrias condicionais explicitavam o desejo senhorial de que o libertando seguisse servindo aos ex-senhores como um dependente, é preciso buscar compreender as cláusulas estabelecidas nas alforrias, por um lado, como tendo sido em alguma medida também objeto de negociações ou resultado de relações de força entre partes desiguais – senhor e escravo, e, por outro lado, que para cumprir o objetivo de atender aos interesses senhoriais, era preciso que estivessem pautadas sobre parâmetros mínimos de expressar certa justiça, fazendo-se cumprir sua função ideológica.
1.4 Entre o discurso e os resultados
Neste capítulo, tivemos como objetivo abordar algumas questões que consideramos pertinentes à nossa pesquisa. Levando em consideração que a grande
138 Um importante trabalho sobre os domínios da lei no Brasil segundo a ótica de E. P. Xxxxxxxx, aproximando os campos do Direito e da História, é a coletânea organizada por Xxxx e Xxxxxxxx. Cf. XXXX, Xxxxxx Xxxxxx; MENDONÇA, Xxxxxx. Direitos e justiças no Brasil: ensaios de história social. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006.
maioria daqueles indivíduos recebeu alforria condicionada a prestação de serviços, achamos necessário retomar as possibilidades abertas para a consecução da liberdade a partir da década de 1870 e o modo como, no Rio Grande do Sul e, especificamente, em Porto Alegre, tais possibilidades tornaram-se uma saída para emancipar escravos a partir de contratos de prestação de serviços, o que permitia ao mesmo tempo alforriar e manter os libertos servindo a seus senhores ainda por algum tempo.
Ao observarmos o discurso produzido à época, vimos que houve a intenção de se construir a imagem de uma emancipação pacífica, consensual, de caráter patriótico cuja espontaneidade expressaria a “generosidade do povo gaúcho”. Nesse ínterim, a participação dos negros no movimento fora tacitamente silenciada. Embora se tenha construído a imagem de uma abolição antecipada na província, os dados referentes à população escrava demonstram que o movimento de 1884 não foi tão definitivo quanto quis se fazer parecer. Alguns elementos reforçam este argumento: os dados relativos à população escrava remanescente na capital; o número de escravos beneficiados pela Lei dos Sexagenários; a atuação do Centro Abolicionista em prol da emancipação de escravos até a data da abolição definitiva no império.
O impacto e as discussões provocadas em virtude da aprovação da Lei dos Sexagenários (1885), da proibição da pena de açoites (1886) e da própria Xxx Xxxxx (1888) apontam que os problemas e preocupações colocados pelo fim da escravidão aos proprietários de escravos e ao poder público não se esvaziaram devido à estratégia de emancipação efetivada em 1884.139 Isso porque, além de continuarem existindo indivíduos escravizados não só em Porto Alegre, mas em todo o Xxx Xxxxxx xx Xxx000, a abolição definitiva no 13 de Maio deixaria sem validade os contratos estabelecidos nas alforrias condicionais quatro anos antes.
139 Em sua dissertação de mestrado, Xxxxxxxx Xxxxx discute tais questões que envolviam o trabalho escravo no império após o movimento de 1884, e sua recepção e impacto na província por parte dos partidos políticos (enfocando, em seu estudo, o Partido Liberal e seu órgão de imprensa, o jornal A Reforma), problematizando a suposta abolição antecipada no Rio Grande do Sul. XXXXX, Xxxxxxxx. Capítulo 4 – A década decisiva: 1888 In “É a causa dos oprimidos a que abraçamos”: considerações sobre escravidão e liberdade nas páginas do jornal A Reforma (Porto Alegre/1870-1888). Dissertação de mestrado. Porto Alegre: PPGH/UFRGS, 2014.
140 Em 1887, quando do encerramento da matrícula ocorrida em virtude da Lei de 1885, várias cidades possuíam ainda centenas de escravos, como Rio Grande (844), Canguçu (739), Encruzilhada (645), Cachoeira (464), São José do Norte (408). Cf. CRL. Relatório apresentado ao Illm. e Exm. Sr. Dr. Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx, vice-presidente da província do Rio Grande do Sul pelo conselheiro Xxxxx Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxx por ocasião de passar-lhe a administração da mesma província em 25 de abril de 1887. Porto Alegre, Officinas Typographicas do Conservador, 1887, p. 32 – 33.
Em 19 de setembro de 1885, ao passar a administração da província ao segundo vice-presidente, o então presidente Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx apresentou o quadro de escravos matriculados no Rio Grande do Sul até agosto daquele ano e um breve balanço da campanha do ano anterior. No relatório, declara que em 1884 o movimento abolicionista restituíra a liberdade de cerca de 40 mil escravos em toda a província, tendo cada município emancipado escravos na medida de suas possibilidades. Conforme a matrícula, contudo, restariam ainda 22.709 escravos dos cerca de 60 mil existentes até 1884.141 O presidente afirma, porém, que há distorção nesses dados, pois dever-se-ia levar em consideração a morosidade para dar baixa na matrícula de escravos alforriados ou falecidos. Para calcular o número de escravos que realmente encontrava-se nessa condição, Xxxxxx recorreu então ao valor arrecadado das taxas provinciais sobre escravos, e estima que haveriam em toda a província de fato 12.000 escravos.
Quanto a Porto Alegre, embora tenha sido declarada emancipada em 7 de setembro de 1884, a mesma matrícula realizada em 1885 apontava a existência de 1.815 escravos. Do levantamento feito para verificar o número de escravos a serem beneficiados pela Lei de 1885, havia 312 sexagenários.142 Mesmo dois anos depois, em 1887, quando foi encerrada a matrícula de escravos ocorrida em virtude daquela lei, foram matriculados 58 escravos. Nessas estimativas, não entravam os libertos sob cláusulas de prestação de serviços. Embora os números referentes a população escrava devam servir mais como um indicativo do que propriamente ser considerados como exatos, chama a atenção a discrepância entre o número de escravos, o número de libertações anunciadas na Ata do Centro Abolicionista, e o índice de registro de alforrias em cartório no período.
Conforme vimos anteriormente, em 1884 haveriam 5.790 escravos na capital. Na Ata do Centro Abolicionista foram anunciados os nomes de 796 proprietários que teriam libertado o total de 2.272 escravos em Porto Alegre e suas freguesias, o que corresponde a apenas 39,2% do total de escravos existentes na cidade. Considera-se também que provavelmente nem todos os escravos arrolados residissem em Porto Alegre, já que
141 O Jornal A Reforma publicou, em fevereiro de 1886, um mapa organizado pela Tesouraria da Fazenda referente a situação da escravidão na província. De acordo com este mapa, teriam sido libertados 46.787 escravos, sendo 22 mil sem ônus, 23.617 com ônus e 1.170 escravos beneficiados pelo Fundo de Emancipação. Quanto aos que permaneciam escravos, seriam em torno de 20 mil, sendo 14.603 homens e 12.639 mulheres, números dos quais deveriam ser subtraídos os sexagenários, beneficiados pela Lei de 1885. A informação é de BORBA, É a causa dos oprimidos a que abraçamos... Op. cit., p. 147.
142 CRL. Relatório apresentado pelo Exm. Sr. Xxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, Xxxxxxxxxx xx Xxxxxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx a S. Exm. O Sr. Marechal de Campo Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx, 1º vice-presidente, ao passar-lhe a administração da mesma Província em 8 de maio de 1886. Porto Alegre, Officinas Typographicas do Conservador, 1887, p. 59.
poderiam pertencer a senhores que tinham propriedades no interior da província ou então que estivessem apenas de passagem pela capital na época da campanha abolicionista.
A diferença é ainda maior em relação às alforrias que foram de fato registradas em cartório: apenas 994 são de 1884, o que corresponde a 17,2% dos 5.790 escravos existentes na capital, sendo que apenas 823 são dos meses de agosto e setembro, auge da campanha abolicionista nas ruas de Xxxxx Xxxxxx.000 Mesmo se tomarmos todos os 1.088 alforriados entre 1884 e 1888, eles correspondem a apenas 18,8% do total de escravos existentes em 1884. Ainda que sejam considerados os livros notariais que possam ter se perdido ao longo do tempo, o índice de alforrias registradas corresponde a um percentual bem distante da totalidade de escravos existentes para o período.
Podemos fazer ainda um último exercício de comparação do número de alforriados em relação à população escrava da capital. Nesse caso ele será hipotético, com os cálculos “favorecendo” o discurso da emancipação em massa. Ao comparar a lista de registros de alforrias e a da Ata do Centro Abolicionista, chegamos a 1.121 nomes de senhores, dos quais apenas 208 nomes se repetiram nas duas listas (este dado será discutido no capítulo 3). Como não é possível chegar a um número absoluto de escravos que teriam sido alforriados a partir daquelas duas listas, já que os números não coincidem (em geral, alguns senhores anunciaram mais alforrias do que de fato registraram, mas o contrário também ocorreu), vamos considerar o número mais alto para o nosso cálculo. Por exemplo, se o senhor anunciou na Ata do Centro Abolicionista ter libertado 8 escravos, mas registrou a alforria de apenas 5, consideraremos o número oito. Vamos considerar também que absolutamente todos estes alforriados residissem na capital, o que sabemos não ser verdade. Mesmo com este cenário favorável ao discurso abolicionista, chegamos ao número de 2.818 alforriados, que corresponderia a apenas 48,7% do total de 5.790 escravos existentes na capital. Ou seja, restariam ainda outros 51,3% que sequer haviam estabelecido contratos de prestação de serviços para a liberdade.
É claro que é preciso considerar dois aspectos relativos às alforrias registradas em cartório como fonte para o estudo a aquisição da liberdade: um deles é que os historiadores reconhecem a impossibilidade de precisar com exatidão a proporção de libertos que tiveram sua alforria registrada em cartório, além do mais, não podemos
143 Em 6 de agosto de 1884 foram nomeadas comissões libertadoras em reunião do Centro Abolicionista no Teatro São Pedro, e no dia 12, foi iniciada a libertação de escravos pela Rua dos Andradas, a principal da cidade à época. A campanha se estendeu até o início de setembro, quando a província seria declarada livre da escravidão no dia do aniversário da independência, em 7 de setembro daquele ano. Para a distribuição de registros de alforrias por mês no ano de 1884, ver anexo 2.
assegurar que todas as cartas de liberdade consignadas com os tabeliões tenham chegado até nós. Outro aspecto diz respeito ao fato de que muitas alforrias não eram de fato registradas em cartório (não havia obrigatoriedade para tal, como já se mencionou), e outros modos de alforriar não necessariamente iam parar nos livros de notas, tais quais as manumissões resultantes de disposições testamentárias.
Porém, considerando todo o aspecto simbólico e político em torno do movimento abolicionista na capital, é estranho que o número de alforrias registradas seja tão pequeno em relação à população escrava e mesmo em relação as libertações anunciadas pelo Centro Abolicionista em sua ata. Para esta diferença, sugerimos algumas hipóteses:
a) Estariam faltando livros notariais no Arquivo Público, como parece ter ocorrido com os livros do segundo tabelionado, em que há o de nº 22 e o de nº 24, aparentemente faltando o de nº 23 para completar a sequência numérica;
b) Em relação às freguesias da cidade, ou também estariam faltando livros, ou houve um sub registro nessas localidades, ou os senhores que ali residiram não aderiram com tanta ênfase à campanha abolicionista, não alforriando seus escravos;
c) Xxxxxxxx xxxxxxxxx registradas de outras maneiras que não aquelas feitas junto aos tabeliães;
d) Foi dada pouca importância ao registro das alforrias propriamente dito, sendo suficiente para muitos senhores apenas anunciá-las publicamente;
e) Existiriam ainda mais escravos libertos sob condições sujeitos a ter suas alforrias registradas apenas após o cumprimento da dita condição;
f) Os senhores teriam anunciado mais liberdades do que realmente promoveram. Quanto à ausência de registros notariais, ainda que possam estar faltando livros,
precisaria haver seis vezes o número de registros verificado para que a quantidade de alforrias se aproximasse da população escrava da cidade. À exceção das freguesias, não conseguimos verificar a que regiões correspondiam cada tabelionato de modo que pudéssemos perceber alguma discrepância entre as regiões com mais habitantes e a proporção de registros para aquela localidade.144 A criação dos tabelionatos ocorria em
144 Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx apresentam informações diversas sobre os tabeliões de Porto Alegre durante o século XIX através de documentos diversos, contudo, nenhuma alude ou permite a inferência dos locais por eles atendidos. Sobre estas figuras, imortalizadas por uma crônica de Achylles Porto Alegre em sua “História Popular de Porto Alegre”, os dois autores dizem o seguinte: “Pareceu-nos importante a descrição de [Achylles] Porto Alegre dos cartórios e seus tabeliães, por mostrar-nos como não eram ‘cousas’ situadas à margem do movimento urbano, mas parte intrínseca do seu movimento. Conhecedores privilegiados dos moradores da vila, os tabeliães faziam de seus cartórios verdadeiros ‘observatórios sociais’.” XXXXXXX; XXXXXXX, Que com seu trabalho nos sustenta... Op. cit. P. 72. A referência ao
ordem crescente e cronológica, de modo que os primeiros tendiam a ser os mais antigos e correspondentes, portanto, às localidades também mais antigas da cidade. Remetendo à história administrativa da cidade, a Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus era a mais antiga e deu origem ao que viria a se tornar Porto Alegre em 1772. Em 1832, no entanto, foi dividida em três freguesias, sendo elas a de Madre Deus, das Dores e do Rosário. As três freguesias constituíam o que seria hoje a área central da cidade, que até o final do século XIX eram as mais populosas da capital, conforme se verá no capítulo seguinte.145 Em relação à desproporção entre o número de registros e o tamanho da população,
o mesmo foi verificado nos tabelionatos das freguesias, em que parece ter havido (ou chegado até nós) menos alforrias do que possam de fato ter ocorrido. O recenseamento de 1872 aponta uma população de 2.824 habitantes para a Freguesia de Belém e de 1.520 para a Freguesia de Pedras Brancas, o que à época correspondia à 9,9% da população da capital.146 Como se verá no capítulo seguinte, no entanto, entre 1884 e 1888 as duas freguesias, juntamente com o Distrito da Barra, somaram apenas 54 (5%) alforrias das
1.088 compulsadas. Na Ata do Centro Abolicionista consta que foram enviadas uma comissão para a Freguesia de Belém e três comissões para a Freguesia de Pedras Brancas, para que fossem negociadas as libertações com os senhores. É pouco provável que estas localidades tenham ficado de fora das libertações empreendidas em 1884 a ponto de ter um número tão diminuto de registros. No terceiro capítulo se verá, por exemplo, que, dos 24 inventários de ex-senhores analisados, quatro possuíam bens em Pedras Brancas e um em Belém. Desse modo, reforça-se a hipótese do subregistro ou da ausência de livros notariais. Entretanto, não é possível dimensionar o impacto no conjunto de libertações ocorridas.
Sobre a existência do registro de alforrias em outros tipos de documentos que não os cartoriais, não temos notícias. Até mesmo as alforrias deixadas em testamentos, conforme observamos em nossa amostra desses documentos (a ser apresentada e discutida no capítulo 3) passaram por modificações durante a campanha de 1884. Pudemos verificar em vários casos senhores que haviam registrado em seus testamentos que seus escravos ficariam livres quando de sua morte, mas vieram a registrar alforrias condicionadas a
cronista é a seguinte: PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1940.
145 APERS. História Administrativa dos Municípios do Acervo dos Tabelionatos. Porto Alegre: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, 2004, p. 4.
146 FEE. De Xxxxxxxxx xx Xxx Xxxxx x Xxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx: censos de 1803 – 1950. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística/ Museu de Comunicação Social Xxxxxxxx Xxxx xx Xxxxx, 1986,
p. 81
prestação de serviços para os mesmos escravos durante a campanha abolicionista daquele ano. Ademais, entre os registros cartoriais verificamos poucas alforrias que condicionavam a liberdade à morte do proprietário (como se verá no capítulo seguinte), demonstrando que no período estudado, esse tipo de alforria já não era recorrente.
A hipótese de que o registro propriamente dito da xxxxxxxx tenha sido pouco importante para os senhores, por sua vez, não nos parece plausível, visto que o mesmo ato servia tanto para que o senhor tornasse público seu gesto, quanto de garantia para o liberto, que poderia ter sua condição questionada e que, principalmente para fins de mobilidade, precisaria de um meio de comprovar sua condição jurídica. Ao longo desse capítulo foi possível perceber toda a construção de um discurso oficial em torno da campanha abolicionista e da suposta abolição antecipada, parecendo pouco provável, nesse sentido, que um movimento tão bem documentado tenha relegado a um segundo plano o ato de oficializar o gesto que se pretendia enaltecer.
A hipótese de que existiriam ainda mais escravos libertos sob condições sujeitos a ter suas alforrias registradas apenas após o cumprimento da dita condição é bastante provável. Como veremos no capítulo seguinte, as alforrias condicionais mais comuns foram as que estipularam cláusulas de quatro e cinco anos de prestação de serviços pelo libertando. Tendo sido este tipo de alforria a que orientou o movimento pela emancipação de escravos na capital, pode-se pensar que muitos senhores concederam alforrias condicionais a seus escravos em âmbito privado, deixando para registrá-la apenas após o cumprimento da condição. Já a hipótese de que os senhores anunciaram mais alforrias do que de fato concederam verificou-se, mas não se mostrou tão significativa quanto se poderia imaginar. Ao compilarmos a lista de senhores provenientes dos registros cartoriais com a da Ata do Centro Abolicionista chegamos a um total de 1.121 senhores, dos quais apenas 48 (4,3%) anunciaram mais alforrias neste último documento do que de fato registraram.
É bem possível que em alguma medida todas estas hipóteses tenham concorrido para haver tamanha diferença entre a população escrava e o número de alforrias de que se têm notícias (entre as registradas e as anunciadas). O que ocorre, no entanto, é que esta diferença numérica expressa que, ainda que tenha havido um amplo movimento pela libertação de escravos – movimento este pautado pela construção de uma estratégia que previa uma emancipação gradual e controlada através de contratos de prestação de serviços – a verdadeira data da abolição em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul é o 13 de Maio de 1888. Se através das alforrias condicionadas à prestação de serviços houve
uma tentativa de antecipação da camada senhorial a um fim iminente da escravidão no Império, no sentido de garantir a continuidade do trabalho dos libertos e de se precaver quanto ao destino daqueles que eram tidos por vagabundos e avessos ao trabalho, esta antecipação não pôs fim a escravidão, e sim inseriu uma massa de indivíduos nos quadros de uma liberdade permeada por ambiguidades, ao passo que seguiram existindo outros tantos indivíduos ainda na situação de cativeiro.
Dessa feita, através de pesquisas de variados suportes documentais e com diferentes abordagens, que vem já de quase duas décadas e contam com trabalhos bastante recentes, tem se desconstruído a ideia de uma suposta abolição antecipada no Rio Grande do Sul. Há, nesse mesmo sentido, outras visões acerca das “abolições” no Ceará e no Amazonas, também ocorridas em 1884. A dissertação de mestrado de Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx, sob orientação de Xxxx Xxxxxx, problematiza a abolição no Ceará, contestando o suposto pioneirismo daquela província na abolição no Brasil ao indicar que após o 25 de março de 1884 (data da “abolição antecipada”) seguiam existindo escravos na província. O autor indica, de modo semelhante ao que vemos no Rio Grande do Sul, a construção de uma memória em torno de um fato que resultou no silenciamento de outras histórias relativas à escravidão e à liberdade naquele período.147 Também em relação ao Amazonas, que teria abolido a escravidão em 10 de julho de 1884, há estudos que deslindam outras histórias para além daquela que promove o enaltecimento de uma suposta benevolência da elite escravocrata, demonstrando a existência de cativos após aquela data e os embates em torno da construção e afirmação da liberdade que se seguiram.148
* * *
As considerações realizadas até agora são fundamentais para compreensão do capítulo seguinte. Nas próximas páginas, apresentaremos o perfil dos libertandos entre os anos de 1884 a 1888, e é preciso ter em conta sua representatividade em relação ao total da população escrava existente em Porto Alegre à época. Ao considerar que as alforrias do período são, em sua maioria, produto do movimento pela emancipação de escravos
147 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias, memórias e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. Dissertação de mestrado. Niterói: UFF, 2012.
148 Cf. XXXX, Provino Pozza. Ave libertas: ações emancipacionistas no Amazonas Imperial. Dissertação de mestrado. Manaus: UFAM, 2011.
promovido em Porto Alegre e estão marcadas por um momento político e social bem específico, situados no contexto mais amplo dos encaminhamentos para a extinção da escravidão no Brasil, consideramos tais documentos como um conjunto com características bem marcadas, conforme pretendemos demonstrar. Assim, se neste capítulo tivemos como objetivo discutir o momento em que se deram as alforrias em Porto Alegre a partir de 1884, bem como as prerrogativas jurídicas que as orientaram, as quais compunham um cenário que pretendia encaminhar a emancipação de escravos de modo gradual e controlado, no capítulo seguinte serão apresentadas as principais características do grupo de libertandos entre 1884 e 1888 vistas a partir das alforrias cartoriais.
Por um lado, se o universo das alforrias registradas em cartório representar o conjunto de escravos existentes na cidade e de libertandos sem alforria registrada em cartório, então o perfil que traçamos poderá nos informar um pouco a respeito daqueles homens e mulheres que circulavam pelas ruas da capital em meados da década de 1880. Por outro lado, tal perfil, informado por características tais como sexo, idade, cor, local de procedência etc., ao ser analisado paralelamente ao conteúdo das cartas de alforria – tipologia e condições, permitirá vislumbrar os termos em que aqueles sujeitos lançaram- se à vida em liberdade.
Capítulo 2
As alforrias e o perfil dos libertandos em Porto Alegre (1884 – 1888)
No capítulo anterior, abordamos basicamente quatro questões pertinentes a nossa pesquisa: 1) os significados da carta de alforria e os modos de alforriar vistos pela historiografia, em que discutimos a tipologia com a qual trabalharemos no presente capítulo; 2) a prática da alforria após a Lei de 1871 e o contexto mais geral dos encaminhamentos emancipacionistas das últimas décadas do século XIX; vimos também como os dispositivos dessa lei autorizaram a prática da alforria condicionada a prestação de serviços por tempo determinado; 3) o modo como se deu e emancipação de escravos no Rio Grande do Sul e, particularmente, em Porto Alegre, a partir da campanha abolicionista de 1884, em que quisemos discutir as bases que orientaram a concessão de alforrias condicionais e, por fim, 4) ao discutir a ideia de uma suposta abolição antecipada construída por uma memória oficial, observamos, em contrapartida, os resultados decorrentes daquele movimento vistos a partir do número de alforrias registradas e anunciadas pelos abolicionistas. Estes elementos são fundamentais para a leitura das alforrias analisadas no presente capítulo.
Buscar conhecer as relações de trabalho estabelecidas por libertandos após alcançarem sua alforria, fio condutor de nosso estudo, passa por conhecer suas principais características enquanto grupo. Sendo assim, apresentaremos o perfil dos alforriados cujas liberdades foram registradas em cartório entre os anos de 1884 e 1888. Em um primeiro momento, tomaremos as variáveis que mais frequentemente aparecem nas alforrias, analisando-as de modo isolado. Ou seja, buscaremos saber qual o peso de cada sexo entre os alforriados, como distribuem-se por faixa etária, qual sua cor, local de procedência, ocupação etc. Em um segundo momento, observaremos como tais características aparecem relacionadas a cada tipo de alforria. Nesse sentido, primeiramente será apresentado o perfil mais geral para, em seguida, abordarmos sua relação com cada tipo de alforria (gratuitas, pagas e condicionais).
Decorrente do problema mais geral que orienta nossa pesquisa, a compreensão da relação entre as características dos libertandos com suas alforrias nos coloca a seguinte questão: se houve no Rio Grande do Sul uma estratégia política de encaminhar a
libertação de escravos a partir de alforrias por prestação de serviços, de modo que, em Porto Alegre, a década de 1880 foi a única ao longo de toda a segunda metade do século XIX em que as alforrias condicionais superaram as alforrias pagas, e se nessa estratégia estava em jogo a continuidade de domínio sobre a força de trabalho dos libertandos, como teria esta disputa se expressado nos termos em que as alforrias foram concedidas? Quem alcançou a carta de liberdade sem ônus ou condição? Além dos diferentes preços pagos por homens e mulheres pelas alforrias, as liberdades compradas permitem-nos enxergar a trajetória até sua consecução ou os acordos estabelecidos para o pagamento? Das liberdades condicionais, que termos delimitaram os contratos? Como variaram os tempos de serviços a serem prestados de acordo com o sexo e idade dos alforriados?
As respostas a esses questionamentos são importantes na medida em que informam os termos e as limitações em que estariam pautados o ingresso dos ex-escravos nos quadros da liberdade. Primeiramente, no entanto, faremos algumas considerações sobre o conjunto de alforrias com o qual trabalhamos, expondo e discutindo nossas opções de classificação.
2.1 Considerações sobre as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre
A quantificação realizada se deu pelo número de indivíduos alforriados. Nos livros notariais, um mesmo registro poderia referir-se a mais de um escravo alforriado. Entretanto, a grande maioria referia-se a liberdade de apenas uma pessoa. Para o período que vai de 1884 a 1888, compulsamos, então, 1.088 indivíduos sendo alforriados por 533 senhores.149 Nesse sentido, sempre que nos referirmos a números de alforrias, estaremos contabilizando indivíduos.
149 As alforrias referidas dizem respeito ao fundo Tabelionato do Município de Porto Alegre do APERS: Livro de Registros Diversos do 1º Tabelionato de Porto Alegre (Livros 27, 28, 29 e 30), Registros de Procurações do 2º Tabelionato de Porto Alegre (Livros 22 e 24), Registros Ordinários do 3º Tabelionato de Porto Alegre (Livros 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12), Tabelionato Público, Judicial e de Notas de Porto Alegre, Freguesia de Belém Novo (Livro 13), Tabelionato Público, Judicial e de Notas de Porto Alegre, Freguesia de Nossa Senhora do Livramento das Pedras Brancas (Livro 11 e 12) e Tabelionato Público, Judicial e de Notas de Porto Alegre, Distrito da Barra (Livro 5). Ao longo desse trabalho, as cartas de alforria serão identificadas apenas pelo tabelionato (T) e número do livro (L), seguido pela numeração de folhas e da data (ex.: APERS – Registro de alforria. 1ºT, L:06, 30r, 22/08/1884). Quanto tratar-se dos registros das freguesias de Belém Novo e de Pedras Brancas, e do Distrito da Barra, será indicado com a sigla TPJN, seguido dos demais itens (ex.: APERS – Registro de alforria. TPJN, L:05, 12v, 12/09/1884). Todas as tabelas referentes às alforrias compulsadas por nós para os anos de 1884 a 1888 terão as fontes referidas da seguinte forma: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias.
Assim sendo, as alforrias estão distribuídas - entre gratuitas, pagas e condicionais, da seguinte maneira:
Tabela 5 - Tipos de alforrias I
Tipo | Nº | % |
Gratuitas | 186 | 17,1 |
Pagas | 63 | 5,8 |
Condicionais | 839 | 77,1 |
Total | 1088 | 100 |
Fonte: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias. |
a) Sobre a representatividade das alforrias:
O primeiro aspecto a pontuar diz respeito a representatividade das alforrias registradas em relação à população escrava existente em Porto Alegre no período. Partimos da população estimada em 5.790 escravos para o ano de 1884. Sendo o total de alforriados a partir deste ano até a promulgação da Lei Áurea no número de 1.088, temos então o registro das alforrias de 18,8% do total de escravos existentes na cidade naquele ano. No capítulo anterior apontamos algumas possibilidades para uma baixa taxa de registro de alforrias justo no contexto em que a capital da província havia sido declarada livre da escravidão. Contudo, para traçar o perfil dos libertandos o que nos interessa aqui é ter em conta a proporção de registros em relação a totalidade da população escrava, compreendendo que os mesmos correspondem a apenas uma parcela dos libertandos e da população cativa, como discutimos anteriormente. Considerando, no entanto, que estas alforrias sejam representativas da totalidade de indivíduos que se encontravam na condição de escravos naquele momento, então o perfil a que chegamos pode nos informar um pouco sobre as características dessa parcela da população no período estudado.
b) Os limites da cidade e os registros cartoriais
Outro aspecto a pontuar diz respeito ao espaço geográfico a que correspondem as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre e suas freguesias. Conforme o
recenseamento de 1872, Porto Alegre era composta por sete paróquias (ou freguesias).150 São elas (seguidas pelo número de habitantes conforme o censo): Nossa Senhora do Rosário (14.104), Nossa Senhora Madre de Deus (9.023), Nossa Senhora das Dores (4.632), Nossa Senhora de Belém (2.824), Nossa Senhora do Livramento das Pedras Brancas (1.520), Nossa Senhora da Conceição de Viamão (8.295) e Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia (3.600). A cidade contava ainda com o Distrito da Barra, que fazia divisa com a Freguesia de Pedras Brancas. Na década seguinte esta divisão viria a sofrer algumas alterações. Em 1880, as freguesias de Nossa Senhora dos Anjos da Aldeia e Nossa Senhora da Conceição de Viamão seriam elevadas à categoria de vilas, aquela tornando- se Nossa Senhora dos Anjos de Gravataí, e esta incorporando aos seus limites parte da freguesia de Belém. Em janeiro de 1884, a capela do Menino Deus, arraial situado nos subúrbios da cidade, foi elevada à condição de freguesia.151
As três primeiras freguesias (Rosário, Madre de Deus e Dores) faziam parte do que hoje chamaríamos de área central da cidade; a de Belém correspondia ao atual bairro Belém Novo, na zona sul; Pedras Brancas correspondia ao atual município de Guaíba e o Distrito da Barra, à atual Barra do Ribeiro, sendo ambos limites contíguos. Para além da divisão administrativa, Porto Alegre era formada também pelos seus subúrbios, fruto da expansão que vinha sofrendo ao longo do século XIX: havia os arraiais do Menino Deus, do Partenon, dos Navegantes de São Manoel e de São Miguel. No terceiro capítulo serão explorados com maior acuidade os espaços da cidade: em diálogo com outras fontes
150 Os termos paróquia e freguesia equivalem-se e servem para referir-se às unidades territoriais que davam corpo às cidades. De acordo com o arquiteto Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxx, “Tradicionalmente, a palavra Freguesia carrega duas acepções: a de igreja paroquial e a de lugar da cidade ou do campo em que vivem os fregueses. (...) No Império, a organização do espaço provincial também estaria calcado na unidade elementar da freguesia, base inclusive das novas municipalidades em instituição.” O autor segue afirmando que “De sua gênese nominal, portanto, depreendem-se três esferas históricas de significação do termo: um sentido eclesiástico, derivado das formas de divisão dos bispados e constituição de suas comunidades religiosas, ordens, irmandades e confrarias; um sentido jurídico, até bem recentemente confundido com o anterior, de subdivisão administrativa da vila e da cidade, muitas vezes para encaminhar junto à comunidade o estabelecimento da justiça, a vigilância e o asseio da paróquia, o registro de nascimentos, mortes, casamentos, a formação de infantarias e companhias de defesa, a realização de censos, a distribuição dos tributos e serviços, a gestão e a inspeção policial; e um sentido econômico de constituição de um mercado local e de uma clientela autônoma.” Seu artigo traz uma importante contribuição ao historicizar os termos utilizados para dividir os espaços urbanos, do Brasil colonial ao republicano, propondo-se a analisar como essas representações funcionaram para marcar divisões internas às cidades brasileiras e organizar ao longo de todo o século XIX “formas de apropriação, pertencimento e controle dos lugares urbanos”. XXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx. Recortes da cidade: códigos da divisão e da vida em comum no império In: Cinco Séculos de Cidade no Brasil. Anais do Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, v. 6, n. 2 (2000). 151 As referências acerca da história administrativa de Porto Alegre foram retirada das seguintes fontes: FEE, De Província de São Pedro a Estado do Rio Grande do Sul... Op. cit., pp. 39 e 81; APERS. História Administrativa dos Municípios... Op. cit.; XXXXXX, Xxxx Xxxxxx e XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. s/ed. Xxxxx Xxxxxx, 0000.
compulsadas, será possível vislumbrar os locais pelos quais circulavam os senhores, escravos e libertandos em questão.
Os livros notariais que encontram-se no Arquivo Público e dos quais compulsamos as alforrias são os dos 1º, 2º e 3º Tabelionatos da capital. Já os do Tabelionato Público, Judicial e de Notas de Porto Alegre correspondem às freguesias de Belém Novo, de Pedras Brancas e do Distrito da Barra. Na tabela abaixo segue o tabelionato e o número de alforriados registrados em cada um:
Tabela 6 - Alforriados por tabelionato
Tabelionato | Nº | % |
1º Tabelionato de PoA | 247 | 22,7 |
2º Tabelionato de PoA | 123 | 11,3 |
3º Tabelionato de PoA | 664 | 61,0 |
Freguesia de Belém | 51 | 4,7 |
Freguesia de Pedras Brancas | 02 | 0,2 |
Distrito da Barra | 01 | 0,1 |
Total | 1.088 | 100 |
Fonte: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias. |
O breve panorama da divisão da cidade esboçado anteriormente serve como subsídio para entender a distribuição de alforrias desta tabela. Ao iniciarmos nossa pesquisa, optamos por considerar toda esta Porto Alegre que acabamos de, grosso modo, descrever. Com o andamento da pesquisa, conforme se verá no capítulo seguinte, a escolha mostrou-se acertada. Ao não considerar apenas o núcleo central da cidade, mais urbanizado e populoso, pudemos observar o modo como os sujeitos envolvidos em nosso estudo circulavam por diferentes espaços, entre lugares de características bastante distintas.
Como mencionamos ao final do capítulo 1, não foi possível estabelecer uma área de correspondência para cada um dos tabelionados, exceção feita aos tabeliães que atendiam às freguesias. Contudo, o que era uma de nossas preocupações iniciais (tentar inferir os locais de moradia e de trabalho de senhores e libertandos a partir do local onde foram registradas as alforrias) foi mostrando-se uma mera formalidade. Em primeiro lugar, devido a percepção de que aquelas pessoas frequentavam distintos lugares da cidade: senhores residiam em um lugar e trabalhavam em outro; escravos jornaleiros e
libertandos prestavam seus serviços em diversos lugares e não necessariamente moravam com seus senhores etc.
Em segundo lugar, é claro que as pessoas deveriam procurar o tabelião mais próximos de sua casa ou trabalho para realizar seus registros, entretanto, não havia uma regra para isso. O fato de a alforria ter sido registrada em um determinado lugar não significa que senhor e escravo residissem no mesmo. No caso de Porto Alegre, por ser capital e, portanto, centro político e administrativo da província, era comum constar nos livros cartoriais registros de indivíduos residentes em outras localidades. Os motivos poderiam ser vários: não haver um tabelião em uma certa localidade; pessoas que estavam apenas de passagem pela capital e que faziam seus registros junto àqueles tabeliães etc. No caso das alforrias, poderia haver ainda casos de senhores que residiam na capital mas que possuíam escravos em propriedades no interior da província.
c) Sobre as datas das alforrias
Outro ponto a ressaltar é a data das alforrias com que trabalhamos. Conforme mencionado no capítulo anterior, em geral elas apresentavam duas datas: a “data de concessão”, que era comumente a data em que o senhor concedera a alforria ao seu escravo em âmbito privado, e a “data de registro”, em que a mesma fora lavrada nos livros de registros cartoriais. A data de concessão era indicada ao final da transcrição do conteúdo da carta, enquanto a data de registro era indicada junto à assinatura do tabelião. Às vezes elas coincidiam, à vezes não. Há geralmente a diferença de alguns dias ou meses entre uma em outra, mas às vezes passavam-se anos entre a concessão de uma alforria e seu devido registro.
Consideramos que o conjunto de alforrias por nós estudado é bem demarcado em suas características devido ao contexto político e social vivido na província e em Porto Alegre. A estratégia de emancipação de escravos adotada e a campanha empreendida pelo movimento abolicionista levaram a uma concentração de registros no ano de 1884, dentre os quais pudemos observar, inclusive, que alguns senhores xxxxxxx-se da campanha que então ocorria e registraram alforrias que já haviam sido concedidas anteriormente de modo privado, inclusive mudando seus termos e adotando a alforria condicionada à prestação de serviços. Por essa razão, trabalharemos aqui com a data de registro das liberdades.
O objetivo foi justamente tentar perceber, por um lado, os casos em que as alforrias foram registradas somente após transcorridos anos da data de sua concessão, indicando que nesse meio tempo provavelmente houve o cumprimento de alguma condição ou algum tipo de pagamento. Por outro lado, também foi nosso objetivo verificar a incidência de registros de alforrias durante o auge da campanha abolicionista nas ruas da capital (ver anexo 2). De acordo com a data de registro das alforrias temos, então, para o período estudado a seguinte distribuição:
994
Gráfico 2 - Alforrias por ano de registro
44 | 25 | 9 | 4 | 12 | |
1884 | 1885 | 1886 | 1887 | 1888 | Não consta |
Fonte: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias.
Ao observar estes números, justificamos outra opção que fizemos: ao longo deste trabalho, apresentaremos os dados referentes às alforrias para todo o período compreendido entre 1884 e 1888, indistintamente. O primeiro motivo se dá pelo fato de existirem poucas variações das 94 alforrias registradas entre os anos de 1885 a 1888 em relação à totalidade do conjunto. O segundo motivo é que, se considerarmos que das 94 alforrias registradas entre 1885 e 1888, 47 (50%) tem a data de concessão em 1884, então temos para este ano 1.040 escravos que tiveram a alforria registrada ou então concedida naquele ano, o que corresponde a 95,6% dos 1.088 alforriados compulsados. Além do mais, pensamos que todas as alforrias referentes ao período estudado estão pautadas por uma mesma lógica de concessão de liberdade, discutida no capítulo 1, e que apresentá-
las em separado, por ano de registro por exemplo, não traria grandes benefícios para análise. Ao contrário, tornaria a apresentação dos resultados confusa e truncada.152
d) Contratos reconfigurados
Outra questão relevante diz respeito aos registros que alteraram os termos estabelecidos em alforrias condicionais. Tratam-se de desistências por parte do senhor de tempo de serviço devido pelo libertando; de remissão de serviços em que, conforme foi mencionado no capítulo anterior, o escravo ou um terceiro em favor deste apresentava um valor como pagamento pelo tempo de serviço devido; ou ainda, a transferência dos serviços dos libertandos a terceiros. Estes registros ora aparecem junto a alforria, constando a data em que a liberdade fora concedida e depois acrescentado o registro e a data da desistência, remissão ou transferência, ora aparecem sozinhos. Tais casos somam 38 registros, os quais preferimos chamar de reconfigurações de contratos e tratá-los em separado das cartas de alforria, já que estes casos pressupunham que a liberdade já tivesse sido concedida.
Nas remissões de serviços podem ser acrescentadas ainda a desistência de serviços de ingênuos: em geral, o registro se dava junto a alforria da mãe, o que ocorreu em 12 situações, mas poderia estar separado da mesma, o que ocorreu em 4 casos, os quais também optamos por separar das alforrias. Assim, ao trabalharmos com os livros notariais de Porto Alegre, chegamos ao número de 1.130 registros, dos quais 1.088 correspondem a alforrias propriamente ditas, 38 registros são referentes a reconfigurações de contratos, e 4 correspondem à desistência de serviços de ingênuos que não estavam vinculados às alforrias de suas mães.153
152 As diferenças que existem das 94 alforrias registradas entre 1885 e 1888 residem na distribuição por sexo: são 60,4% de mulheres e 39,6% de homens, e na distribuição por tipologia, sendo 23,1% ditas sem ônus, 14,3%, pagas, 61,5%, condicionais (todas sob prestação de serviços) e 1,1% de outro tipo. A maioria (57,7%) é de pretos, todos crioulos em idade produtiva.
153 Aqui cabe uma observação em relação aos nossos números e aos apresentados por Xxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx em seu catálogo das alforrias de Porto Alegre nos séculos XVIII e XIX. Para o período de 1884 a 1888, os autores apresentam o total de 1.077 alforrias, enquanto nós encontramos 1.088. Isto se deve provavelmente às nossas opções por trabalhar com a data de registro e de separar as desistências, remissões e transferências das cartas de liberdade, conforme explicamos. Entretanto, ainda assim chegamos a um número maior que os autores, isto porque localizamos alguns registros que não se encontram no guia. Mesmo com estas pequenas diferenças, o levantamento realizado por Xxxxxxx e Xxxxxxx muito nos ajudou a ter dimensão da prática de alforria na segunda metade do século XIX em Porto Alegre e, sobretudo, na década de 1880 na sua totalidade. Inclusive, as alforrias referentes à períodos anteriores a 1884 mencionadas ao longo da pesquisa (mais precisamente no capítulo 3) foram retiradas do guia em questão. Cf. XXXXXXX; XXXXXXX, Que com seu trabalho nos sustenta... Op. cit.
e) Sobre as informações observadas nas alforrias
Quanto às informações encontradas nas alforrias e com as quais trabalharemos logo adiante, foram as seguintes: nome do escravo, cor, local de procedência, idade, profissão, estado civil, número de matrícula, e muito raramente a filiação. Além disso, são informados o nome do senhor, de seu cônjuge em alguns casos, das testemunhas, do tabelião, a data de concessão e seu local, e a data de registro. Também constam as condições em que a carta de liberdade foi concedida, se gratuita ou onerosa. A frequência de cada tipo de informação referente aos escravos se deu da seguinte maneira:
Sexo
100%
Cor
Idade
Local de procedência
Ocupação
Estado civil
0%
20%
40%
60%
80%
100%
120%
Gráfico 3 - Frequência de informações nas alforrias
3% | |||||
5 | |||||
49% | |||||
21% | |||||
6% | |||||
6% | |||||
Fonte: APERS – Livros de Notas dos tabelionatos de Porto Alegre e suas freguesias
Como foi possível ter certeza do sexo de todos os indivíduos, todas as tabelas daqui em diante serão apresentadas levando esta variável em consideração. Embora, como se pôde notar, as informações sejam bastante irregulares nos registros, visto que seu conteúdo dependia do senhor, do tabelião etc., consideramos privilegiada a frequência com que apareceram, além do sexo, a cor, a idade e a origem dos libertandos para a constituição do seu perfil.
f) Dos tipos de alforria
Por fim, gostaríamos de fazer algumas considerações sobre nossos critérios ao tipificar as alforrias. Trabalhamos aqui com as a divisão de alforrias gratuitas, pagas e condicionais. Retomando o que desenvolvemos no capítulo anterior, consideramos o seguinte: 1) alforrias gratuitas, quando não era necessário nenhum tipo de pagamento ou cumprimento de condição, 2) alforrias pagas, quando o próprio alforriado, ou um terceiro em favor deste pagava o valor do escravo ao seu senhor e, 3) alforrias condicionais, quando a concessão da liberdade pressupunha algum tipo de obrigação. Este tipo, por sua vez, está subdividido em três campos: a) condição de prestação de serviços, b) condição de servir até a morte do senhor e c) outra condição. Deste último campo fazem parte apenas quatro alforrias, que dizem respeito a prestação de serviço na marinha (1), de o libertando acompanhar o senhor, sem nenhuma outra especificação (1), e de restrição à mobilidade do libertando (2).
Incluir documentos do passado em categorias que criamos no presente é sempre um desafio e tarefa um tanto arbitrária. Elas precisam ser maleáveis o suficiente para dar conta de realidades múltiplas ao mesmo tempo em que precisam estabelecer parâmetros bem definidos de acordo com o problema que nos orienta. Nesse sentido, embora utilizemos a classificação tripartite, nosso olhar ao tipificá-las foi sempre o de tentar demonstrar as situações intermediárias e ambiguidades em que estavam colocados os libertandos. Isto se deve principalmente à grande variedade encontrada no conteúdo das alforrias: não são poucas as que misturaram diversos tipos de condições, como pagamento em pecúlio e prestação de serviços, pagamento em dinheiro por terceiro a quem o escravo passaria a dever serviços, aguardar a morte do senhor e ainda prestar serviços por um determinado tempo a seus familiares, pagamento de parte de seus jornais como liberto ao senhor por algum tempo, prestação de serviços com retribuição pecuniária etc.
Nesse sentido, ao classificá-las, optamos pela tipologia que melhor permitisse entrever a possível realidade e dificuldades a serem enfrentadas pelo libertando em sua nova condição. Isto pode ser exemplificado pela situação em que uma terceira pessoa pagava pela liberdade do escravo ao senhor, a quem aquele passaria, então, a dever determinado tempo de serviço. Tais alforrias poderiam ser consideradas como condicionais por prestação de serviços, mas optamos por classificá-las como pagas com o intuito de demonstrar que mesmo o pagamento não significava a liberdade imediata ou
a ruptura dos laços com o cativeiro, e também porque o senhor recebia integralmente o valor de seu escravo no ato da transação.154
Do mesmo modo, quando a liberdade foi concedida gratuitamente após a morte do senhor, por cumprimento de testamento, mas não houve nada que indicasse que a dita alforria fora prometida anteriormente, ela foi considerada como gratuita. Cabe ressaltar, ainda, que mesmo as cartas tidas como sem ônus, por aparentemente assim o serem, podem ter sido concedidas após anos de prestação de serviços. Isto é possível ser observado em algumas alforrias que possuem um largo espaço de tempo entre sua data de concessão e sua data de registro, podendo ter sido concedida sob condições, mas somente registrada, isto é, tornada oficial, quando do cumprimento das obrigações, aparecendo então como gratuitas.
Feitas as considerações necessárias, temos então a seguinte distribuição de alforrias entre os anos de 1884 e 1888 (a segunda tabela depreende-se da primeira):
Tabela 7 - Tipos de alforrias II
Tipo | Mulheres | % | Homens | % | Total | % |
Gratuitas | 105 | 8,1 | 81 | 15,9 | 186 | 17,1 |
Pagas | 38 | 6,6 | 25 | 4,9 | 63 | 5,8 |
Condicionais | 436 | 75,3 | 403 | 79,2 | 839 | 77,1 |
Total | 000 | 000 | 000 | 100 | 1.088 | 100 |
Fonte: APERS - Livros de Notas do 1º, 2º e 3º tabelionato de Porto Alegre e suas freguesias.
Tabela 8 – Alforrias condicionais
Tipo | Mulheres | % | Homens | % | Total | % |
Tempo de serviço | 432 | 99,1 | 394 | 97,8 | 826 | 75,9 |
Morte do senhor | 4 | 0,9 | 4 | 1,0 | 8 | 0,73 |
Outra condição | 0 | 0 | 5 | 1,2 | 5 | 0,46 |
Total | 436 | 100 | 403 | 100 | 839 | 77,1 |
Fonte: APERS - Livros de Notas do 1º, 2º e 3º tabelionato de Porto Alegre e suas freguesias.
154 Este é o caso da preta Xxxxx, crioula, de 20 anos, escrava de Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx e de sua mulher Xxxxx xx Xx Xxxxxxxx, cuja alforria foi paga pela quantia de 300$000 pelo senhor Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxxx, “a quem esta liberta se obriga[va] espontaneamente a pagar a mesma quantia em prestação de serviços a quinze mil réis mensalmente”. Embora não se possa ter certeza, a dita alforria, por ter um espaço de quase dois anos entre sua data de concessão e de registro, só se tornara oficial após o cumprimento da condição devida. APERS - Registro de alforria. 1ºT, L:28, 36v, 18/02/1885.