Resumo:
Contratos (sobre bens) informáticos: notas sobre a formação, conteúdo, incumprimento e open source
Xxxx Xxxxx x Xxxxx*
Resumo:
Este artigo aborda os traços principais do regime jurídico português relativo à formação, qualificação, conteúdo e incumprimento dos contratos informáticos, definidos como aqueles que têm por objeto bens informáticos, em especial dados, programas de computador e prestação de serviços de computação. Procura ter em conta as especificidades e práticas deste mercado e aborda o caso particular das licenças open source.
Abstract
This article deals with the main features relating to the formation, qualification, content, and non-performance of computer contracts, defined as those which have as their object computer goods, in particular data, computer programs, and the provision of computer services. It does so from the viewpoint of Portuguese la. It aims to consider the specificities and practices of this market and addresses the particular case of open-source licences.
1. Introdução 1
2. Formação do contrato 2
3. Tipos contratuais e qualificação 4
4. Conteúdo 8
4.1. Estrutura típica 8
4.2. objeto – a licença 14
5. Incumprimento 17
6. Free/Open Source 23
1. Introdução
Este artigo aborda os traços principais da formação, conteúdo, incumprimento dos contratos informáticos, definidos como aqueles que têm por objeto bens informáticos.1 A generalidade da contratação em relação a tecnologia, com destaque para software, é
* Advogado e Prof. Auxiliar da Universidade Católica Portuguesa (Porto). E: xxxxxx@xxx.xx W: xxx.xxx.xx. Este texto constitui o suporte de aulas e, por isso, mantem um tom propositadamente pedagógico. Beneficiou dos generosos comentários de Xxx Xxxxxx, que se registam e agradecem. Os erros são, naturalmente, imputáveis ao Autor.
1 Como xxxxxxxx XXXXXXXX ASCENSÃO, ‘Direitos do utilizador de Bens Informáticos’ in OLIVEIRA ASCENSÃO, Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação (Almedina 2001) p. 38 não existe uma categoria própria de contratos informáticos. Em todo o caso, na linha de XXXXXXX XXXXXX, I Contratti Informatici (Key 2018) p. 13, prefiro adotar a designação contratos informáticos para me referir àqueles contratos que têm por objeto bens informáticos, em especial dados, software e prestação de serviços de computação. Os chamados contratos digitais, incluem também a aquisição de bens e serviços analógicos por via eletrónica e esse aspeto não será tratado. Do mesmo modo, não dedicarei atenção à aquisição (autónoma) de hardware.
contratação internacional (privada), ou seja, está em contacto com mais do que um ordenamento jurídico. Há, nesses casos, necessidade de determinar a lei aplicável, o que (geralmente) está na disponibilidade das partes.2 Por causa da natureza internacional destes contratos existe também um conjunto bastante relevante de práticas e cláusulas habituais
– que comummente se designa lex mercatoria (conjunto de regras, disposições e práticas que o comércio internacional sedimentou).3
Neste domínio, da contratação relativa a tecnologia, a lex mercatoria usa essencialmente o Direito norte-americano como quadro jurídico de referência. Assim, não é raro que mesmo quando sujeitos ao Direito Português estes contratos sejam redigidos em inglês, e recorram a conceitos que não são próprios do nosso ordenamento jurídico. O que coloca um problema curioso: como interpretar e aplicar contratos sujeitos ao direito português que usam noções que não são próprias do nosso ordenamento jurídico (como disclaimers, danos indiretos ou indemnification)?4 Creio que se deve assumir que as partes conhecem os conceitos congéneres no quadro jurídico de referência e os estão a querer usar como expressão da sua vontade, ou seja, estão a incorporar esses conceitos na lex contractus, exercendo a sua autonomia privada. Em todo o caso, a análise que se segue é feita
2. Formação do contrato
Há tipicamente na contratação – e isto é especialmente verdade para a contratação num contexto empresarial – uma utilização de termos próprios, siglas e acrónimos e uma formalização do processo contratual.5
Por via de regra as trocas de informação sensível, exigidas para qualquer negociação ou demonstração mais substancial, são precedidas da assinatura de um acordo de confidencialidade (NDA - non-disclosure agreement).
Mesmo entre empresas privadas, quando a aquisição ou o objeto é complexo, é comum ser organizado um concurso ou outro processo “competitivo” de aquisição de tecnologia.6 Por vezes começa por haver um RFI (request for information), em que são recolhidas principais ideias, sugestões para a solução de um problema e configurações
2 XXXXX XXXXX XXXXXXX, ‘Contratos Internacionais da Propriedade Intelectual’ in AAVV, Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial (Almedina 2011) pp. 25-53.
3 XXXX XX XXXX XXXXXXXX, ‘Reflexões sobre a governação e a regulação da Internet, com especial consideração da ICANN’ in AAVV, Estudos de Direito Intelectual em Homenagem ao Prof. Doutor Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx (Almedina 2015) pp. 000-000.Xx mesmo autor, de forma mais desenvolvida, XXXX XX XXXX XXXXXXXX, ‘O Direito autónomo do comércio internacional em transição: a adolescência de uma nova «lex mercatoria»’ in AAVV, Estudos jurídicos e económicos em homenagem ao Prof. Doutor Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxx (Almedina 2006) pp. 847-886. Sobre o conceito em profundidade vide ORSOLYA TOTH, The Lex Mercatoria in Theory and Practice (OUP 2017).
4 Para um exemplo do problema vide XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXX, ‘Ainda o problema da fixação contratual dos direitos do credor: as cláusulas sole remedy, basket amount e no consequential loss’ ROA [2020] pp. 119-151.
5 Não cuidaremos de tratar aqui em detalhe da formação dos contratos comerciais. Sobre isso veja- se XXXX XXXXXXX, Direito dos Contratos Comerciais (Almedina 2011) pp. 123 e ss. e XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contratos I (Almedina 2015) pp. 81 e ss.
6 XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contratos I...cit., pp. 137 e ss. Nestes casos, em especial nas empreitadas, é frequente remeter-se para as regras da contratação pública. Sobre o tema vide XXXXX XXXX XXXXXX / XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, ‘Aplicação de normas substantivas de direito público a contratos de empreitada de obra particular: Um caso de fuga para o direito público?’ in AAVV, Estudos dedicados ao Professor Doutor Xxxxxxxx xx Xxxx Xxxx Xxxxxx, 2015, pp. 255-281.
técnicas aplicáveis.7 Segue-se um RFP (request for proposal) em que são já apresentadas propostas comerciais, com preço, calendário de pagamentos e, frequentemente, prazos de entrega. Para garantir a seriedade dos participantes no processo, existem por vezes pedidos de garantias, como cauções (bond ou letter of credit) e nalguns casos fixam-se mesmo regras detalhadas de concurso.8
Como estes processos são longos é normal que as partes registem, por exemplo, a escolha do vencedor deste concurso, através de um documento de adjudicação (notice of award), ou se assine uma carta de intenções (LoI – Letter of Intentions) ou memorando de entendimento (MoU – Memorandum of Understanding). No fundo, as partes capturam, frequentemente ainda no domínio da responsabilidade pré-contratual, a essência do acordo a que chegaram e que pretendem verter em contrato.9
Ainda durante as negociações, por vezes as partes acordam em fazer uma prova de conceito (PoC – proof of concept) ou de valor (PoV – proof of value) em que se procura demonstrar a funcionalidade da tecnologia a contratar. Isso deve distinguir-se do acesso completo à tecnologia antes da contração definitiva ou da consagração um período experimental (trial).
A contratação é frequentemente feita através de um contrato-quadro (o chamado master agreement)10 acompanhado de notas de encomenda (order forms) ou orçamentos (quotes), elaboradas pelo fornecedor e/ou ordens de compra emitidas pelo comprador (purchase orders).11 Este contrato-quadro pode ou não ser um contrato de adesão.12 Nos casos mais complexos a contratação seguirá a modalidade habitualmente designada “contratação conjunta”, ou seja, a discussão e elaboração de um texto contratual comum, assinado por ambas as partes.13
7 Cfr. WARD CLASSEN, Software Licensing and Cloud Computing (ABA 2020) pp.4 e ss. com valiosas sugestões práticas sobre a condução destes processos. Em Portugal vide MENEZES CORDEIRO, ‘Da Abertura de Concurso para a Celebração de um Contrato em Direito Privado’ BMJ 369 (1987) pp. 27– 81.
8 Estas regras têm natureza contratual e são pressuposto da participação.
9 Vide MARIANA FONTES DA COSTA, Ruptura de Negociações Pré-Contratuais e Cartas de Intenção (Coimbra Ed. 2011); XXXX XXXXX XX XXXXXXXX, Princípios de Direito dos Contratos (Coimbra Ed. 2011) pp. 195 e ss.;XXXXXXX XXXXXX, ‘Negociações e responsabilidade pré-contratual nos contratos comerciais internacionais’ ROA [2000] pp. 49-71 e XXXXXXX XXXXXX XXXXXX, ‘Acordos Intermédios: entre o Xxxxxx e o Termo das Negociações para a Celebração de um Contrato’ ROA [1997] pp. 565-604 .Na verdade, como neste contexto vale a liberdade de forma, poder-se-á dar a formação de um contrato pela troca de correspondência eletrónica (veja-se WARD CLASSEN, ob. cit., p.19, citando precedentes da jurisprudência norte-americana) ou mesmo oralmente, o que obriga a especiais cautelas.
10 Sobre a noção de contrato-quadro veja-se, por todos, XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, O Contrato-Quadro no Âmbito da Utilização de Meios de Pagamento Electrónicos (Coimbra Ed. 2011) passim, esp. pp. 15-168. Na jurisprudência, equacionando contrato-quadro com master agreement, veja-se p.ex. Ac. TRL 13.IV.2015 (p. 471/14.8TVPRT.P1). No contexto da contratação pública vide XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, Direito dos Contratos Públicos (Almedina 2023), pp. 182 e ss.
11 Neste contexto pode facilmente colocar-se o problema de battle of the forms em que a nota de encomenda remete para determinadas condições de fornecimento (tipicamente através de uma hiperligação) e ordem de compra sujeita a aceitação a outras regras contratuais. Sobre o problema cfr. XXXXXXX XXXXX XX XXXXX, Conflito de Clausulados e Consenso nos Contratos Internacionais (UCE 1999) (rejeitando as soluções, como first shot e last shot, que dão prevalência a uma das partes).
12 Como sublinha XXXXX XXXXXX XXXXXXXXX, ob. cit., pp. 105 e ss. o contrato-quadro, apesar de fixar regras para os contratos subsequentes, pode ter sido negociado. No contrato de xxxxxx, as cláusulas são elaboradas unilateralmente pelo predisponente, limitando-se a outra parte a aceitar ou não o contrato.
13 XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contratos II (Almedina 2015) pp. 121 e ss.
De um modo geral esta contratação não está sujeita a especiais exigências de forma, sendo habitual utilizar-se sistemas de assinatura eletrónica ou uma pura contratação por meios eletrónicos (o chamado click-through ou clickwrap). Também ocorre contratação totalmente automatizada, através de tecnologia chamada Electronic Data Interchange (EDI) ou mesmo com agentes de Inteligência Artificial.14 É também frequente que o texto do contrato (ou parte dele) seja apenas referenciado através de uma hiperligação. Esta prática é legalmente admissível (tendo em conta a liberdade de forma), mas coloca o problema (probatório e/ou substantivo) de variação do conteúdo da hiperligação ao longo do tempo do contrato. A não ser que a possibilidade de alteração unilateral esteja expressamente prevista, valerão as condições que constavam do link à data da assinatura, sendo, por isso, aconselhável que o contraente imprima ou crie um registo eletrónico dessas condições no momento da contratação.15
Quando estejam em causa entidades adjudicantes sujeitas às regras de contratação pública, o procedimento contratual a seguir será determinado pelas regras dos contratos públicos.16 Na generalidade dos casos, isto ditará o lançamento de um procedimento concursal. Não obstante, haverá situações em que a existência de direitos de propriedade intelectual e/ou a natureza não fungível da tecnologia a adquirir ou desenvolver implicarão a contratação por ajuste direto fundado em critérios materiais.17
3. Tipos contratuais e qualificação
No domínio da contratação de tecnologia a prática contratual evolui muito rapidamente e fenómenos como a computação em nuvem, parte de uma tendência mais ampla de “servitização” (servitization), tendem a esbater as barreiras entre a prestação de serviços e o fornecimento de bens.18 Nesse sentido, a conexão de contratos e a existência de contratos mistos é frequente.19 Por outro lado, a possibilidade de remunerar com dados pessoais ou de estes aparecerem como contraprestação coloca igualmente em causa a classificação dos contratos como onerosos ou gratuitos.20
Revela-se útil, para efeitos expositivos e analíticos, adotar uma classificação dos contratos informáticos. Nesse sentido, podemos ter:
14 Cfr. XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXX, ‘A celebração de contratos por EDI – Intercâmbito Electrónico de Dados’ in AAVV, Estudos em Comemoração do Décimo Aniversário da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho (Almedina 2004) pp. 297-338.
15 Sendo que em contratos com consumidores são relativamente proibidas as cláusulas que “atribuam a quem as predisponha o direito de alterar unilateralmente os termos do contrato, exceto se existir razão atendível que as partes tenham convencionado” (art. 22.º/1/c) DL 446/85).
16 Arts. 2.º e 7.º do Código dos Contratos Públicos.
17 Ver arts. 24.º e ss. do CCP. Sobre o tema cfr. XXXXX XXXXX XXXXXXXXX, ob. cit., pp. 432 e ss.
18 XXXXXX XXXXXX, ‘Online and Its Effect on the “Goods” Versus “Services” Distinction’, IIC [2013] pp. 137–139.
19 OLIVEIRA ASCENSÃO, ‘Direitos do utilizador...cit., p. 39. Veja-se p. ex. Ac. TRC de 25.X.2022 (p. 3639/20.4T8LRA.C1): “Constitui um contrato misto, com elementos de compra e venda e prestação de serviços, o acordo celebrado entre A. e R. com vista ao fornecimento de software já existente e sua instalação no cliente, com migração dos elementos de anterior pograma informático, permitido por via do disposto no artº 405 nº2 do C.C., e a que se aplicam predominantemente as regras próprias da prestação de serviços (artº 1154 e segs. do C.C.)”.
20 Esta classificação é, desde logo, importante para efeitos da fixação dos respetivos critérios interpretativos à luz do art. 237.º do CC. Criticando esta opção cfr. XXXXXXXX XXXXXXXX, ‘White Smoke, but Smoke Nonetheless: Some (Burning) Questions Regarding the Directives on Sale of Goods and Supply of Digital Content’ERPL 2 (2020) pp. 256-258, assinalando a sua dificil compatibilização com as regras da proteção de dados.
a) Contratos de criação ou adaptação – em que uma das partes é contratada para desenvolver e/ou implementar uma solução tecnológica. Na generalidade dos casos não está em causa um desenvolvimento de raiz, mas antes adaptações e desenvolvimentos adicionais. Frequentemente estas atividades confundem-se com a configuração, instalação ou adaptação do sistema fornecido, constituindo contratos mistos (com uma componente de compra e venda de tecnologia e outra de prestação de serviços).21 Tipicamente as tarefas, especificações e requisitos são descritos num documento, de caráter essencialmente técnico, designado Statement of Work (SoW) ou caderno de encargos. Estes tipos de contratos aproximam-se, na sua estrutura e função económico-social, da empreitada22 e da prestação de serviços23 e, entre as categorias aqui apresentadas, são aqueles em que se geram mais facilmente conflitos e dificuldades.24
b) Contratos de transmissão (de direitos de propriedade intelectual). O que está em causa não é a aquisição da tecnologia, mas sim dos direitos exclusivos relativos à sua exploração económica. Estes contratos não apresentam particulares especificidades no domínio da informática.25 Esta categoria pode sobrepor-se com os contratos de criação ou adaptação, até porque a regra supletiva é que o direito de autor sobre software pertencerá a quem o encomende (art. 3.º DL 252/94).
c) Condições de serviço ou regras de utilização. É habitual que certos websites, plataformas, mercados online ou aplicações estabeleçam regras de utilização desse serviço, incluindo frequentemente uma política de privacidade. Pode discutir-se se a natureza destas regras é verdadeiramente contratual ou se não constituirão antes regulações do dono.26 Na verdade, em muitos destes casos, o serviço é oferecido gratuitamente e sem restrições. Nesse sentido, a navegação de um site ou a utilização de um determinado serviço informático não implica necessariamente a conclusão de um contrato. Outras vezes, estas regras são parte do contrato, gratuito ou oneroso, que deve ser aceite pelo utilizador para poder aceder ao serviço ou criar uma conta, constituindo aquilo que é habitual designar-se por EULA (End User License Agreement). Estes contratos sobrepõem-se parcialmente com a
21 Sobretudo quando este sistema é complexo e tem de interagir com outros sistemas informáticos. Nesta linha vide Ac. TRL de 8.IX.2015 (p. 89359/10.7YIPRT.L1-7): “É de qualificar como “contrato de prestação de serviços inominado” o contrato em que uma parte adjudica a outra a prestação de serviços na área informática, designadamente serviços de desenvolvimento, implementação e manutenção de software e hardware, helpdesk e formação.”. Também assim Ac. TRP 26.III.2009 (p. 10489/05.6TBBRG).
22 Nesse sentido, é habitual preverem-se entregáveis, critérios de aceitação, prazos de garantia e de reclamação de defeitos, penalidades e até mesmo fiscalização/gestão conjunta dos trabalhos.
23 Sobre a (ausência de) disciplina do contrato de prestação de serviços em Portugal vide XXXX XXXXX XXXXXXXX, ‘O contrato de prestação de serviço no Direito português’ RDCom (2020) pp. 571-638.
24 Sobre o tema vide XXXXXXXX XXXX/XXXXXX XXXXX/XXXXXX XXXXX, IT Contracts and Dispute Management: A Practitioner's Guide to the Project Lifecycle (EE 2018).
25 Sobre o seu regime em geral vide AAVV, Contratos de Direito de Autor...cit.
26 A diferença essencial passa pela forma de vinculação, as regulações do dono não exigem um ato de aceitação. XXXXX XXXXXX, ‘Regulações do Dono. Uma Fonte de Obrigações’ in AAVV, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Xxxxxx xx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, vol. II (Almedina 2002) pp. 255-293. Para um exemplo curioso da aplicação desta figura pode ver-se o Acórdão TRC de 2.X.2007 (p. 569/04.0TBMLD.C1) lidando com um pedido indemnizatório em virtude do vexame sofrido pelo disparo (infundado) de um alarme num supermercado. Esta discussão tem interesse prático desde logo em virtude de se admitir com muito mais facilidade a variação unilateral das regras no caso das regulações do dono.
categoria seguinte,27 mas constituem inevitavelmente cláusulas contratuais gerais, que não são passíveis de negociação individual e, por isso, estão sujeitas a um controlo mais apertado do seu conteúdo.
d) Contratos de distribuição, em sentido amplo, incluindo a concessão de direitos de utilização (licenças/acessos) ao utilizador final.28 O que está em causa é a concessão de uma autorização (licença) para utilização (própria ou por terceiros)29 da tecnologia ou informação (dados).30
A distribuição pode ser direta, em que o produtor licencia a tecnologia ao utilizador, ou indireta, recorrendo a intermediários.31 Nesse segundo caso, existem contratos em que esses distribuidores (agentes, mediadores ou comissários), frequentemente designados referral partners, ganham uma comissão pela promoção de celebração de contratos. É possível, mas mais raro, haver uma concessão comercial. Há também frequentemente acordos de revenda. 32 Esta revenda pode ser feita essencialmente de duas formas: pode ser feita declaradamente – o cliente final sabe que está a adquirir uma tecnologia que não é produzida pelo vendedor; mas também é possível que se dê o chamado OEM (do inglês Original Equipment Manufacturer, também designado white labeling)33 - em que o revendedor assume como seu um produto, tecnologia e/ou serviço que na verdade não produz. Neste contexto existem também os chamados Independent Software Vendors (ISVs) ou Value Added Resellers (VARs), que irão acrescentar funcionalidades à tecnologia que recebem, fabricar produtos (de hardware ou software) ou oferecer serviços que incluem essa tecnologia. Nesses cenários misturam-se frequentemente aspetos de distribuição, criação e adaptação.
Outra prática diz respeito aos chamados Managed Services Providers, que são empresas que prestam determinados serviços, sobretudo relacionado com tecnologias de informação (p. ex. gestão de equipamentos e infraestruturas informáticas ou serviços de impressão e digitalização), em outsourcing.34 Algumas desta atividades são desenvolvidas
27 Por exemplo a celebração de um contrato de acesso a uma API ou a uma plataforma pode incluir ou remeter para as regras de utilização desse serviço.
28 A tendência mais recente é de aproximar estes contratos da prestação de serviços, uma vez que os recursos computacionais (designada infraestrutura) são essencialmente assegurados pelo prestador.
29 É habitual que uma empresa adquira um determinado número de acessos/licenças para os seus trabalhadores ou prestadores de serviços.
30 Como explica OLIVEIRA ASCENSÃO, ‘Direitos do utilizador...cit., p. 41 se a tecnologia é protegida por direitos exclusivos, então estes contratos são contratos de licença. Dando nota do conceito amplo de bem digital no Direito da União Europeia vide XXXX XXXXXXX, ‘The Concept of Digital Content and Digital Services in European Contract Law’ in EuCML 1(2022) pp.6-13.
31 XXXXX XXXXXXXX, Contratos de Distribuição Comercial (Almedina 2009) pp. 62-63.
32 Este tipo de negócios levanta problemas curiosos de eficácia relativa das obrigações e subcontratação. Como é sabido o revendedor não poderá transmitir mais do que aquilo que adquire (nemo plus iuris). É comum que o negócio financeiro seja feito com o revendedor, mas que a entrega seja feita diretamente ao utilizador final, que poderá ter de aceitar (diretamente ou como flowdown/back-to-back) as condições do produtor (a fórmula comum é “bill to” revendedor e “ship to” utilizador final).
33 A origem desta designação, abreviatura de Original Equipment Manufacturer, advém dos fabricantes de produtos físicos (por exemplo micro-ondas ou máquinas de lavar roupa) que incluíam software produzido por terceiros. Para efeitos de responsabilidade do produtor (Decreto-Lei nº 383/89, de 6 de Novembro) o OEM tanto poderá ser o produtor real como o produtor aparente, sendo responsabilizado em ambos os casos.
34 Este outsourcing levanta especiais questões, nomeadamente determinar quem é que deve adquirir as licenças de utilização de tecnologia se o prestador de serviços ou o beneficiário. Sobre o fenómeno
pelos chamados Integradores de Sistemas,35 que, dependendo dos projetos, podem ser meros revendedores ou criarem soluções altamente complexas para a necessidade específica de um cliente, entregando-lhe um projeto de “transformação digital” , “chave na mão” (turnkey), que integra um conjunto de tecnologias de diferentes fornecedores.
A lei portuguesa não contém muitas normas sobre contratos informáticos. No regime jurídico dos programas de computador (DL 252/94) consta o art. 11.º. O número 1 indica que estes negócios devem reger-se pelas regras gerais dos contratos ou contratos cujas regras ou disposições possam ser utilizadas analogicamente.36 O art. 18.º/1 do regime jurídico das bases de dados (DL 122/2000) dispõe no mesmo sentido.37
Como vimos, os contratos de criação (desenvolvimento ou adaptação de software, geração de bases de dados e/ou criação de uma solução tecnológica) tenderão a aproximar- se do contrato de empreitada.38 O entendimento dominante na jurisprudência afasta a aplicação direta das regras da empreitada no caso de obras incorpóreas e imateriais, mas não impede a sua aplicação analógica.39
cfr. XXXXXXXXX XXXXXXX XXXXXXX, O Contrato de Outsourcing (Coimbra Ed. 2010). Nalguns sectores, como o sistema financeiro, existem obrigações particulares relativamente à utilização de entidades terceiras para o desempenho de funções e que, entre outras coisas, impõem determinadas cláusulas contratuais. É o caso das Guidelines on outsourcing arrangements da Autoridade Bancária Europeia (EBA) e mais recentemente do Regulamento 2022/2554 (DORA). Estas regras são de aplicação mais ampla cobrindo a generalidade dos serviços cloud (na linha da equiparação entre outsourcing e cloud feita p. ex. por XXXXXX XXXXX, Praxishandbuch Softwarerecht (X. X. Xxxx 2018), pp. 487 e ss.).
35 Conhecidos em inglês por Global Systems Integrators. São empresas multinacionais de prestação de serviços informáticos, como as consultoras EY, KPMG; PWC, Deloitte, Capgmemini, CGI, TCS, Wipro, etc.
36 Sobre o tema dos contratos atípicos veja-se XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, Contratos Atípicos (Almedina 1995) e XXX XXXXX XXXXXX, Tipicidade e Atipicidade dos Contratos (Almedina 2000). Como resumido por XXX XXXXXX, ‘O contrato de alojamento a estudantes’ in AAVV, Estudos de Arrendamento Urbano, vol. IV (UCE 2023) pp. 124-125 “A qualificação de um contrato – entendida como recondução de um contrato à esfera de sentido própria de um tipo legal – deve tomar em consideração elementos tão diversificados como a função económico-social do negócio, o seu sentido ou finalidade, a sua configuração, o seu objeto, a contrapartida, a qualidade das partes e até o nome escolhido por estas para designarem o contrato.”.
37 Numa linha próxima VINICIUS XXXXXX XXXXXXXXX, ‘Os contratos de desenvolvimento e manutenção de software: o caráter duradouro e as influências do scrum sobre a tipologia, a cessação e as responsabilidade contatuais’ CLR V(2) (2021) pp. 145-170. Este enquadramento é relativamente comum numa perspetiva comparada. A doutrina alemã tende a ir no sentido da aproximação aos contratos de compra e venda (Kaufvertrag), empreitada (Werkvertrag), locação (Mietvertrag) e tipos mistos (v.g. XXXXX XXXXXX-XXXXXXXXXXXX, ‘Vertragstypologie der Computersoftwareverträge’ CR [2004] pp. 161-166). Para uma visão sumária do tipo de contratos vide XXXXXXX XXXXXX, Tecnology Licensing: A primer (Amazon 2018) pp. 27 e ss. e XXXXXXXX XXXXXXXXX, ‘IT Agreements – from software to cloud services’ in XXXXXXX XX XXXXX (ed.), Accords de technologie/ Technology Transactions (Schulthess 2018) pp. 53-72.
38 OLIVEIRA ASCENSÃO, ‘Direitos do utilizador...cit., p. 41.
39 O que aliás parece ser pressuposto no art. 1155.º. Veja-se p. ex. o acórdão do TRL de 5.XII.2020 (p. 27024/18.9T8LSB.L1-6), aplicando o artigo 1229.º do Código Civil no contexto do incumprimento de um contrato de prestação de prestação de serviços, para criação e desenvolvimento de uma plataforma web para incorporar e automatizar o processo de negócio das Escolas Academia Sporting. No sentido da aplicação direta das normas à “empreitada intelectual” vide XXXXX XX XXXXX XXXXXXX, ‘Do conceito de obra no contrato de empreitada’ ROA [1994] pp.569-622. No sentido do texto e com referências adicionais cfr. XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, ‘Contratos de Propriedade Intelectual. Uma Síntese’ in AAVV, Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial (Almedina 2011) p. 12 e MENEZES LEITÃO, ‘Os efeitos do incumprimento dos contratos de Propriedade Intelectual’ in AAVV, Contratos de Direito...cit., p. 120.
Os contratos de licença aproximam-se por vezes de contratos de compra e venda, em que a tecnologia ou os dados são vendidos como uma coisa e outras vezes do contrato de locação (em que há uma coisa móvel cujo gozo é cedido temporariamente), quando está em causa uma subscrição.40 Se a licença é gratuita, poderemos convocar as regras do comodato.41
Quando esteja em causa uma mera adaptação ou gestão da tecnologia, entraremos no âmbito da prestação de serviços, pelo que se aplicará o regime do mandato por via do artigo 1156.º CC, sem prejuízo de se convocarem certas normas da empreitada.
O art. 11.º/2 do DL 252/94 e o art. 18.º/2 do DL 122/2000 esclarecem que os arts. 40.º, 45.º a 51.º e 55.º do CDADC relativos aos contratos de direito de autor são igualmente aplicáveis no contexto da contratação que tenha por objetos programas de computador e/ou bases de dados.42 Como explica XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX,43 a principal relevância desta remissão está na exclusão das normas exigentes (arts. 41.º a 44.º CDADC) quanto ao conteúdo e formalidades dos contratos de transmissão e de licença. Assim, neste domínio valerá a liberdade de forma (art. 219.º CC).44
4. Conteúdo
4.1. Estrutura típica
O Direito Privado assenta no princípio da autonomia privada e, por isso, desde que se respeitem os limites da lei, não existem grandes obstáculos à criatividade dos agentes económicos na modulação do conteúdo dos seus contratos.45 Além disso, será necessário ter em conta o regime do Regulamento (UE) 316/2014, de 21 de março de 2014, que, sob certas condições, isenta os acordos de transferência de tecnologia da aplicação do artigo 101.º do TFUE.46
40 XXXXXXX XXXXXX, I Contratti Informatici...cit., p. 39.
41 Neste sentido XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX ‘Contratos de Licença de Software e de Bases de Dados’ in AAVV, Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial (Almedina 2011) pp.353 e ss.
42 Esta remissão não foi afetada pelo DL 47/2023, de 19 de junho, que alterou o CDADC e o DL 122/2000 em transposição da Diretiva 2019/790. Entre as alterações encontram-se novos artigos em matéria de contratos (sobre estes em detalhe vide XXXX XXXXX X XXXXX, ‘O que muda nos contratos de Direito de Autor com a transposição da Diretiva 2019/790?’ JURISMAT n.º 17 (2023), pp. 197-214). Ora, a Diretiva 2019/790, no seu art. 23.º/2, exclui expressamente a aplicabilidade destas regras aos programas de computador pelo que esta remissão deve ser objeto de uma interpretação restritiva. 43 ‘Contratos de Licença...cit., p.352.
44 Não concordo com XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX, ‘Contratos de Licença...cit., pp. 354-355 quando sugere a sujeição à forma de escrita dos contratos de licença produção e distribuição (OEM) em virtude de os qualificar como “locação de obra para fins de edição”. Em contrapartida, concordo com o Autor quando sugere a possibilidade de aplicação analógica das regras do contrato de agência (DL 178/86, de 3 de julho).
45 Sobre esses veja-se XXXXX XXXXXX XX XXXXXXXX, Os Limites à Liberdade Contratual (Almedina 2017) e XXXX XXXXXXX, ob. cit., pp. 179 e ss.
46 Sobre este regime cfr. XXXXXX XXXXX/XXXXXX XXXXXXX, EU Competition Law (OUP 2016) pp. 826 e ss. Especificamente no contexto das tecnologias da informação vide XXXXX XXXXXX, ‘ICT Supply Chain Licensing under the Technology Transfer BER and the Subcontracting Notice’ CRi 5(2017) pp. 134- 139.
O paradigma quanto à contratação de tecnologia é um de contratos mercantis (entre empresas, comerciais ou não), onerosos, singulares (por oposição a contratos de adesão)47 e que não sejam de execução instantânea.
É frequente estruturar-se um contrato formal (i.e. escrito) com os seguintes elementos:
a) Cabeçalho/capa, frequentemente com a designação do tipo de contrato;
b) Identificação das partes;
c) Preâmbulo/considerandos;
d) Fórmula verbal que apresenta o clausulado (v.g. “acordam na celebração do presente contrato que se regerá pelas seguintes cláusulas” ou “é ajustado e reciprocamente aceite”);
e) Definições e cláusulas sobre interpretação do contrato;
f) Objeto do contrato/obrigações das partes (incluindo obrigações acessórias tais como a obrigação de confidencialidade e restrições de uso);
g) Cláusulas de responsabilidade e garantia;
h) Cláusulas relativas a vicissitudes das partes e/ou do contrato, incluindo previsões sobre a cessação do contrato e os seus efeitos;
i) Outras cláusulas gerais não cobertas em seções anteriores (v.g. força maior, no waiver ou validade da assinatura eletrónica);
j) Cláusulas relativas à resolução de litígios e direito aplicável;
k) Data, local e assinaturas;
l) Anexos/apêndices.
Como é sabido, o texto será o limite da interpretação do contrato (art. 238.º CC)48 e a prática negocial levou a que um conjunto relativamente alargado de cláusulas contratuais se tornassem muito frequentes no âmbito da contratação mercantil.49 Ainda que com pequenas variações linguísticas, é habitual determinar-se que o texto do contrato reflete integral e exclusivamente o acordo das partes (cláusula de integralidade/entire agreement), determinar o direito aplicável ao contrato (em caso de contratos internacionais) e estipular que a invalidade de uma dada cláusula não afetará a validade do contrato (cláusula de severability/redução).50
47 Não obstante, algumas destas cláusulas, ainda que inseridas em contratos singulares, poderão ser qualificadas como cláusulas contratuais gerais, o que, nos termos do art. 4.º do DL 446/85, determina a sua sujeição ao regime legal previsto para as cláusulas previamente elaboradas. Sobre este regime cfr. XXX XXXXXX XXXXXXX, Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (Coimbra Ed. 2013) e XXX XXXXX, Contratos de adesão e Cláusulas contratuais gerais (Almedina 2021).
48 Com um sumário sobre o tema e referências adicionais veja-se XXX XXXXX XXXXXX, A interpretação dos Contratos (Almedina 2016). No caso particular do software há uma previsão expressa que impõe a interpretação funcional do contrato (art. 11.º/3 do DL 252/94). De acordo com esta regra de inspiração alemã (Zweckübertragungslehre cuja origem remonta a um artigo de 1922 da autoria de XXXXXX XXXXXXXX) a interpretação do contrato deve ter em conta o propósito prático das partes, que originou e justifica a existência do contrato. Este princípio parece prevalecer sobre a outra regra interpretativa nos contratos gerais de Direito de Autor, o in dúbio pro auctore.
49 A expressão cláusulas contratuais é aqui empregue no sentido de formulações, geralmente escritas, que são parte do contrato (na linha de XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contratos II (Almedina 2016) p. 15). 50 Como se nota rapidamente, o inglês é a atual língua franca da contratação internacional. Também por isso, a influência dos quadros conceptuais anglo-saxónicos faz-se sentir especialmente, passando alguns destes conceitos a integrar a lex mercatoria (assim XXXXX XXXXXX XXXXX, ‘Das cláusulas de garantia nos contratos de compre e venda de participações sociais de controlo’ DSR ano 2 vol. 2 (2010) p. 116 n. 3).
O que se pretende nesta seção é apenas elencar, sem pretensão de exaustividade, algumas dessas cláusulas usuais, ditas boilerplate.51 Assim, não se referem cláusulas cuja utilização ocorre apenas num contexto típico específico (p. ex. as cláusulas de contratos de distribuição relativas a preço de revenda ou de determinação do âmbito territorial do exclusivo, ou certas cláusulas dos contratos de sociedade, compra e venda, trabalho, mandato ou licença), nem as cláusulas de certos tipos contratuais relativas ao seu conteúdo/objeto (tal como compra e venda a prestações ou compra e venda de empresas), mas antes cláusulas genéricas, habituais na generalidade dos contratos, independentemente da sua qualificação.52
Para efeitos de organização desta lista creio que podemos distinguir entre: I) cláusulas sobre interpretação, formalidades e valor do contrato; II) cláusulas relativas às obrigações principais/objeto do contrato; III) cláusulas de responsabilidade e garantia; IV) cláusulas relativas a vicissitudes das partes e/ou do contrato; V) cláusulas de adaptação; VI) cláusulas relativas a fluxos de informação; VII) cláusulas relativas à relação com terceiros; VIII) cláusulas de direito internacional privado; IX) cláusulas relativas à resolução de litígios. Nesta tabela enunciam-se, sem pretensões de exaustividade, algumas cláusulas mais frequentes.53
I) cláusulas sobre interpretação, formalidades e valor do contrato | ♦ Definições ♦ Identificação das partes (incluindo extensão a empresas afiliadas) ♦ Regras de interpretação (nomeadamente valor interpretativo das epígrafes, enumerações, contagem de prazos, referência a legislação, pessoas, géneros ou quantidade) e integração ♦ Ordem de precedência de documentos ♦ Versão linguística ♦ Contagem de prazos |
51 XXXX XXXXXXXX / VICTOR WARNER, A-Z Guide to Boilerplate and Commercial Clauses (Bloombsbury 2017) p. 2 “… the term ‘boilerplate’ is used broadly to mean contract terms that are often found in commercial agreements, almost irrespective of the subject matter of the agreement.”. Não obstante é importante ter atenção aos falsos cognatos, nomeadamente entre Direito Inglês e Direito Norte- Americano (p. ex. “indemnity” tende a ter significados distintos). Além disso, como é evidente, a mesma cláusula pode ser habitual num determinado contexto contratual e ser esdrúxula noutro tipo contratual.
52 É certo que esta divisão não é perfeita, apenas tendencial.
53 Vide XXXXXX XXXXXXXX/XXXXX XX XX, Drafting International Contracts (Transnational Publishers, Inc. 2006) (com perspetiva comparativa); XXXXXXX XXXXXXXX, Boilerplate: Practical Clauses (Xxxxx & Xxxxxxx 2015) e XXXX XXXXXXXX/XXXXXX XXXXXX, ob. cit. (ambos ao abrigo do Direito Inglês); XXXXX XXXX (ed.), Le clausole dei Contratti Del Commercio Internazionale (Giuffrè 2016). Sobre a redação destas cláusulas a obra essencial é XXXXXXX X. XXXXX, Manual of Style Contract Drafting (ABA 2023). Em Portugal discutindo algumas destas cláusulas no contexto da compra e venda de empresas veja-se JOSÉ FERREIRA GOMES, M&A: Aquisição de Empresas e de Participações Sociais (AAFDL 2022) pp. 247 e ss. No contexto específico da contratação de tecnologia cfr. XXXXXXXX XXXX/XXXXXX XXXXX/XXXXXX XXXXX, ob.cit.; XXXXXXX XXXXXX, Tecnology...cit.; XXXXX X XXXXXX, The Tech Contracts Handbook (ABA 2021) (direito norte-americano); WARD CLASSEN, ob. cit.; XXXXXX XXXX, Negotiating Software Contracts (Bloomsgbury 2013) (Direito Inglês); XXXXXX XXXXX, ob. cit., pp. 753 e ss. (Direito Alemão).
♦ Contrato completo/acordo total (entire Agreement) /forma convencional para alterações ao contrato ♦ Regras sobre assinatura/ número de exemplares/ Assinatura eletrónica ♦ Qualificação / Independência das partes / independência dos contratos (Trennungsklausel) ♦ Cláusulas de elaboração conjunta / no bias against drafter / contra proferentem ♦ Declarações de conhecimento/convicção (acknowledgement) (tipicamente inseridas nos considerandos/preâmbulo) ♦ Sobrevigência (survival) | |
II) cláusulas relativas às obrigações das partes, objeto e circunstâncias do contrato | ♦ Definição do objeto (purpose) / obrigações principais (appointment) / obrigações acessórias ♦ Lugar de cumprimento ♦ Meio(s) de pagamento ♦ Determinação do cumprimento (e.g. critérios de aceitação ou sucesso, especificações e requisitos técnicos) ♦ Tempo (prazos/ time of the essence / juros) ♦ Preço – ajuste ou atualização de preço, cálculo de preço, etc. ♦ Cláusulas sobre impostos ♦ Compensação ♦ Delimitação do objeto de contrato (disclaimers) |
III) cláusulas de responsabilidade e garantia | ♦ Exclusão e limitação de responsabilidade ♦ Cláusula penal (fixação antecipada do dano, puramente compulsória e propriamente dita), incluindo mínimos indemnizatórios (e.g. basket amount) ♦ Sinal ♦ Agravação de responsabilidade ♦ Duty to mitigate losses ♦ Cláusulas relativas à responsabilização independente de culpa (chamada indemnity ou indemnification) ou que permitem a transmissão de responsabilidade (direito de regresso) (nomeadamente em sede de responsabilidade contra-ordenacional, civil ou penal) |
♦ Regulação/transmissão de risco (v.g. Incoterms) ♦ Garantias e representações (representantions and warranties) ♦ Códigos de conduta e responsabilidade social ♦ Respeito por todo o Direito aplicável ♦ Cláusulas anti-corrupção ♦ Cláusulas relativa ao controlo de exportações e sanções comerciais ♦ Prazo de reação (caducidade convencional de direitos) ♦ No Waiver ♦ Cláusulas relativas aos meios de reação ao incumprimento (sole remedy / cumulative remedies) ♦ Cláusulas relativas à contratação de seguros ♦ Solidariedade / ligação de responsabilidade (Cross-default) ♦ Negative pledge ♦ Garantias de cumprimento (reais e pessoais) | |
IV) cláusulas relativas a vicissitudes das partes e/ou do contrato | ♦ Condição (suspensiva e resolutiva) (conditions precedent e conditions subsequent) ♦ Modo/cláusula modal ♦ Cessão da posição contratual/intransmissibilidade/novação/ change of ownership/control ♦ Cláusulas de preferência ou opção (right of first refusal) ♦ drag-along / tag-along (venda potestativa conjunta, direito do vendedor “principal” no 1º caso e do “adicional” no segunda) ♦ Entrada em vigor e duração (incluindo renovação) ♦ Cessação do contrato (resolução, caducidade, termo, denúncia, revogação) ♦ Suspensão total ou parcial do contrato ou de certas obrigações ♦ Efeitos da insolvência ou resolução ♦ Non-disparagement (proibição de pronúncias negativas ou pejorativas) |
V) cláusulas de adaptação | ♦ Atualização de preços |
♦ Alteração das circunstâncias: Hardship / Força maior /Limite do sacrifício /material adverse change ♦ Comparação: preço mais favorável ou condições mais favoráveis (most favoured nation) ou equivalentes (pari passu) ♦ Redução (severability) ♦ Conversão/compromisso a encontrar cláusula economicamente equivalente ♦ Cláusulas de alteração (change control) | |
VI) cláusulas relativas a fluxos de informação | ♦ Confidencialidade / publicidade ♦ Proteção de dados pessoais (incluindo acordos relativos ao processamento de dados (data processing agreements) e transferências internacionais de dados) ♦ Propriedade Intelectual (regulação da titularidade e licenças) ♦ Domicílio convencional /contactos ♦ Formas de comunicação / notificação ♦ Cláusulas relativas à reutilização de informação (v.g. o direito de utilizar dados anonimizados para melhorar o produto ou para treinar modelos de inteligência artificial) ♦ Cláusulas relativas à segurança da informação ♦ Cláusulas sobre fiscalização / auditoria |
VII) cláusulas relativas à relação com terceiros | ♦ Non-solicitation /Non-poaching ♦ Obrigação de não concorrência ♦ No third-party beneficiary ♦ Desinvestimento e transição |
VIII) cláusulas de direito internacional privado | ♦ Designação de direito aplicável ♦ Cláusula de jurisdição (tribunais competentes) |
IX) cláusulas relativas à resolução de litígios. | ♦ Processos internos de resolução de litígios (escalations / dispute boards) ♦ Distribuição de ónus da prova ♦ Cláusula por meio da qual se prescinde do direito ao julgamento por júri ou a certos remédios/meios de tutela ♦ Cláusulas de mediação ♦ Cláusula compromissória ♦ Covenant not to sue |
4.2. objeto – a licença
Como vimos um contrato informático carateriza-se por ter um bem informático (normalmente software e/ou informação) como objeto mediato. Esse bem informático pode ser prestado como coisa (entregando-se o dito objeto num suporte físico ou através da Internet) ou como serviço (domínio da chamada computação em nuvem).54 Em todo o caso, a generalidade destes bens informáticos são protegidos por direitos de propriedade intelectual.55 Isto significa que a entrega da coisa (p. ex. o código e/ou os dados)56 é necessariamente acompanhada por uma autorização para a respetiva utilização – a chamada licença.57 O titular dos direitos é livre de fixar em que condições é que autoriza a utilização dos bens informáticos.58
A licença pode ser gratuita ou onerosa. Naquelas situações, frequentes no caso dos modelos de negócio assentes em publicidade, em que o cliente (tipicamente consumidor) prestará uma contrapartida com atenção e/ou dados (aumentando a probabilidade de sucesso da publicidade que lhe é exibida) o contrato deve ser entendido como oneroso.59
54 Aí estaremos frequentemente perante contratos mistos – em que a infraestrutura (o hardware) em que o software corre é igualmente assegurado pelo “vendedor”. Uma questão que tem levantado dificuldades e discussões é a aplicabilidade da Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias (Viena 1980, em Portugal aprovada pelo Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto) à compra e venda de software. Alguns tribunais têm considerado que os bens digitais estão incluídos na noção de mercadoria, que não exige um formato tangível (cfr. XXXXXXXXX XXXXXXXXX, 'Die Anwendung der CISG auf Verträge über digitale Inhalte – Einfluss der RL (EU) 2019/770 und 2019/771', Zeitschrift für Internationales Wirtschaftsrecht (2023) pp. 99–106). No entanto, a maior parte da doutrina considera que estas regras não se aplicam bem no contexto de contratação tecnológica e a prática mostra que a generalidade dos contratos internacionais exclui expressamente a aplicação da Convenção. No sentido da aplicação da Convenção de Viena a todo o software cfr. XXXXX XXXXX XXXXXXX, ‘A convenção de Viena sobre a compra e venda internacional de mercadorias’ in XXXX XX XXXX XXXXXXXX (coord.), Estudos de Direito Comercial Intenracional, vol. I (Almedina 2004) p.
274. Sobre a possibilidade de aplicação da Convenção a contratos internacionais sobre dados cfr. XXXXXXXX XXXXXXX, 'To Boldly Go, Part I: Developing a Specific Legal Framework for Assessing the Regulation of International Data Trade under the CISG', 44(3) University of New South Wales Law Journal (2021) pp. 878–918 e XXXXXXXX XXXXXXX, 'To Boldly Go, Part II: Data as the CISG’s Next (but Probably Not Final) Frontier', 44(4) University of New South Wales Law Journal (2021) pp. 1482–1523. Sobre o regime, entre nós, veja-se XXXXXXXXX XX XXXXXXX XXXXXXX, Compra e Venda Internacional de Mercadorias: a CISG (Almedina 2021).
55 Por isso mesmo é que XXXXXX X. XXXXXXXXXXXX, Software Law and Its Application (WK 2018) p. 275 se refere a este tipo de contratação como “Propriedade Intelectual em ação”.
56 Na Alemanha, tendo a limitação da noção de coisa a objetos corpóreos (§90 BGB), a classificação do software como coisa é controversa (cfr. XXXXXX XXXXXXXX, Softwareverträge (X. X. Xxxx 2015) p. 1 e XXXXXX XXXXX,ob. cit., pp. 309 e ss.). Em Portugal o tema parece-me pacífico.
57 O termo licença é polissémico referindo-se tanto ao contrato como à coisa fornecida (sobre a noção cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, ‘A «Licença» no Direito Intelectual’ in AAVV, Contratos de Direito de Autor...cit., pp. 93-112). Alguns autores (tipicamente norte-americanos) entendem que não é correto referir a licença no contexto da contratação de computação em nuvem uma vez que o software corre na infraestrutura do prestador de serviços cloud (cfr. p. ex. XXXXX X XXXXXX, ob. cit., p. 25). No entanto, esta afirmação ignora que o browser precisará de fazer uma cópia local de determinados elementos do software para que o computador do cliente possa interagir com o serviço cloud e que frequentemente o fornecedor de serviços cloud continua a distribuir uma aplicação que corre no dispositivo do cliente (v.g. as aplicações Dropbox ou Gmail) e que permite, entre outras coisas, que o software possa funcionar sem acesso à Internet.
58 A este propósito falam-se de modelos de negócio. Para uma análise cfr. XXXXXX XXXXXX, Business Models in the Software Industry (Springer 2013).
59 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Manual...cit., p. 62. Estas situações estão agora reguladas no DL 84/2021, de 18 Outubro (traspondo as Diretivas 2019/770 e 2019/771). Sobre o tema vide XXXX XXXXXXX, ‘Data as Counter-Performance: What Rights and Duties do Parties Have?’ JIPITEC [2017] pp. 1-8; XXXXXXXXX
Nos contratos onerosos é habitual ficcionar alguma escassez escolhendo uma ou mais métricas para quantificação dos limites da licença. Assim, podem vender-se “utilizadores” (definidos através de pessoas, máquinas, “assentos”, ou qualquer outra noção), tempo de utilização, memória, número de documentos, objetos computacionais (e.g. tokens, API calls, número operações, botões), etc.60
As restrições podem colocar-se a nível temporal, pessoal, técnico e territorial.
Assim, é habitual distinguirem-se as licenças quanto à sua duração – existem licenças perpétuas e licenças temporárias (normalmente designadas subscrições), que podem envolver uma vinculação diária, mensal, anual ou plurianual. A tendência tem sido no sentido das licenças temporárias (pelo período de um ano ou de um mês), fornecidas em cloud (ou seja, com atualizações e suporte incluídos pelo período da subscrição).61 É frequente prever-se a renovação automática das subscrições. Essa cláusula, será válida tanto no contexto comercial como nos contratos com consumidores, impondo-se neste último caso que o prazo de oposição à renovação exigido seja relativamente curto (artigo 22.º/1/h) DL 446/85).
A licença é normalmente pessoal, mas pode ser definida com base na localização (a chamada site license).62 Em contexto empresarial não é raro que se negoceie uma licença coletiva, permitindo a várias entidades de um mesmo grupo contratar ao abrigo do mesmo documento ou que uma das entidades do grupo compre para benefício de outras entidades. Neste contexto, colocar-se-á com alguma frequência a questão de saber se haverá solidariedade ativa e/ou passiva.63 Outro aspeto é saber se a licença admite sublicenças e, em caso afirmativo, em quantos graus (isto é, saber em que medida é que o sublicenciado pode ele próprio emitir uma licença).64
A licença pode dizer respeito ao código-fonte ou ser apenas uma licença quanto ao código-objeto/executável. A entrega do software pode fazer-se através da cessão do código para instalação e gestão pelo cliente (na gíria chama-se a isto on-premise ou self managed software) ou facultada com serviços de computação (o chamado SaaS – modalidade de computação em nuvem). No segundo caso atualização e acesso a novas versões tendem a estar incluídos no preço (na computação em nuvem o software é fornecido continuamente e de forma dinâmica), já no caso de software on-prem o acesso a novas versões pode ser cobrado à parte. Assim, o mais frequente é que a licença perpétua diga respeito apenas a uma determinada versão do software e que o fornecedor monetize as atualizações e os serviços associados (como suporte ou manutenção).65
DIX, ‘Daten als Bezahlung’ ZEuP [2017] pp. 1-5. XXXXXXXXX XXXXXX / XXXXXX XXXXXXX, / XXXX XXXXXXXXXXXX,
(eds.), Data as counter-performance-contract law 2.0?, Nomos, Baden-Baden, 2020 e, entre nós, XXXXXXXX XXXXX XXXXX, ‘Dados pessoais como objeto mediato de negócios jurídicos onerosos’ ROA [2022] pp. 607-646.
60 Outra modalidade que a prática negocial consagrou é a chamada Enterprise license, em que a utilização da tecnologia dentro de uma determinada organização é ilimitada.
61 Ainda existem por vezes licenças irrevogáveis – esta hipótese levanta discussões, mas parece ser legalmente admissível. Sobre o tema das procurações irrevogáveis cfr. XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, A Procuração Irrevogável (Almedina 2017).
62 Por vezes as site licenses confundem-se com as enterprise licenses, especialmente em organizações que permitem o trabalho remoto.
63 A resposta supletiva ao abrigo do Direito Português será a solidariedade para os comerciantes (art. 100.º CCom) e a conjunção nos restantes casos (art. 513.º do CC). É habitual que este tema seja resolvido por previsão expressa.
64 Isto é diferente da cessão de posição contratual ou da novação subjetiva.
65 Aliás, é habitual que a versão apenas seja suportada por um determinado período de tempo, gerando, desse modo, um incentivo para que o utilizador adquira uma nova versão.
As faculdades do licenciado são objeto de variação, nomeadamente saber se este pode transformar o software, preparar obras derivadas, distribuir, disponibilizá-lo ou revendê-lo. As circunstâncias em que o software pode ser usado (as chamadas restrições de uso) são normalmente objeto de regulação detalhada.66 Por vezes a autorização para utilização da tecnologia fica restrita a um determinado domínio de atividade, indústria ou aplicação
Tipicamente distinguem-se três tipos de licenças. A licença exclusiva em que o próprio titular dos direitos fica impedido de explorar aquele bem imaterial. Só o licenciado e mais ninguém podem explorar aquela Propriedade Intelectual. A licença única (sole license) em que só há um licenciado, o que implica que o titular dos direitos e o licenciado podem ambos explorar o bem imaterial e a licença não exclusiva em que o titular não assume qualquer compromisso ou garantia relativamente à emissão de outras licenças.67 A generalidade da distribuição de software é feita através de licenças não exclusivas, também chamadas licenças de uso em atenção à sua função “tipicamente autorizativa”.68
Em termos territoriais é possível adotar uma definição verdadeiramente local (e.g. uma morada), restringir a licença a um país ou região, mas é cada vez menos frequente que as licenças sejam territorialmente limitadas.
Não é raro que os serviços complementares à licença, como documentação, suporte, formação (training), instalação e configuração técnica estejam incluídos. Muitas vezes são serviços com caráter residual, que não alteram a qualificação do contrato.69 Noutros casos estas prestações representam uma importância suficiente (nomeadamente em relação a software complexo que tem de ser adaptado às exigências especificas do cliente) para que passemos a ter um contrato atípico misto.70 Por outro lado, estes serviços podem ser prestados por pessoas diferentes do produtor do software, com ou sem a autorização deste.71 Habitualmente os serviços de programação, operação e adaptação do software são designados “professional services”.
66 São restrições típicas a impossibilidade de fazer engenharia inversa, de desenvolver um produto concorrente, de utilizar o software de forma contrária à documentação técnica, de o utilizar para atividades ilícitas ou em sistemas críticos, a imposição de fazer uso apenas interno (não podendo usar o software para prestar serviços a terceiros ou operar o software em nome de terceiros). É importante ter em conta que algumas dessas cláusulas, sobretudo quando se transmita a propriedade intelectual de parte da tecnologia, poderão ser enquadradas como cláusulas de inalienabilidade e, nesse sentido, inválidas. Sobre o tema cfr. XXXXXXX XXXXX, Cláusulas de Inalienabilidade (Coimbra Ed. 1992). Para um exemplo na jurisprudência vide Ac. STJ 16.III.2013 (p. 230/08.7TBPNH.P1.S1), que considerou uma cláusula que imponha que a alienação de um bem fosse precedida de uma autorização da Câmara Municipal constitua uma cláusula de inalienabilidade perpétua, logo nula por contrária à lei (art. 280.º do CC) “pois introduz num negócio jurídico de disposição de bens uma limitação que fere o princípio da livre disponibilidade dos bens que é inerente ao estatuto real da propriedade (arts. 405.º e 1315.º do CC).”. Sobre as restrições de uso em contratos de software cfr. XXXXXX XXXXX, ob. cit., pp. 709 e ss.
67 Ao abrigo da autonomia privada as partes podem configurar licenças parcialmente exclusivas (para uma determinada aplicação, indústria, etc.) e/ou temporariamente exclusivas.
68 XXXXXXX XXXXXX, I Contratti Informatici...cit., p. 38.
69 Da mesma forma que a (cada vez mais rara) eventual transferência de propriedade sobre o suporte da tecnologia (v.g. disco ou pen) não afeta a qualificação do contrato.
70 Veja-se p. ex. Ac. TRP 26.III.2009.
71 Em determinadas tecnologias os produtores criam esquemas de formação e certificação que em grande medida são controlados através do direito de marcas e da publicidade. No entanto, face à jurisprudência C-63/97, BMW (EU:C:1999:82) não parece que o titular do direito de marcas possa impedir a utilização não autorizada da marca por um terceiro que se queira, com verdade, apresentar-se como especialista numa dada tecnologia.
5. Incumprimento
As regras gerais (e especiais do contrato com que haja maior analogia) do cumprimento e não cumprimento das obrigações manter-se-ão plenamente aplicáveis no contexto dos contratos informáticos.72 Dentro dos limites da autonomia privada (em que avulta o artigo 809.º do Código Civil e o regime das cláusulas contratuais gerais) as partes poderão fixar regras especiais relativamente ao cumprimento e incumprimento do contrato. Normalmente fazem-no desde logo determinando o objeto do contrato, definindo especificações e fixando critérios de sucesso ou aceitação.73
É também frequente determinaram-se níveis de desempenho do software (especialmente em cloud) e dos serviços de apoio e manutenção (suporte), tais como velocidade de resposta ou tempo de (in)disponibilidade (normalmente fixado mensalmente e em percentagem) nos chamados acordos de nível de serviço (service level agreements).74 É habitual que estes estabeleçam como penalidade para o incumprimento créditos de nível de serviço (se o software estiver indisponível ou com erros de funcionamento durante um determinado período de tempo), isto é, créditos contratuais (service credits) que podem ser deduzidos em serviços futuros. Na ausência destas regras convencionais, podemos dizer que há um incumprimento parcial e direito à redução da contraprestação em obediência aos artigos 792.º, 793.º e 802.º do Código Civil.75
A noção de cumprimento defeituoso tem de ser habilmente interpretada neste contexto. Como explica XXX XXXXX,76 tendo em conta as imensas possibilidades de interação com um programa de computador, por mais simples que este seja, revela-se impossível proceder a um teste exaustivo de software antes de este ser comercializado. Logo, devem aceitar-se os erros como uma inevitabilidade.77 Por isso, os Tribunais ingleses já declararam:
72 Veja-se, entre muitos outros, BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações (UCE 2017) e XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXX, Contratos I: Perturbações na Execução (Almedina 2019).
73 Estes fazem mais sentido perante projetos ou software “à medida” (que tipologicamente se aproximam da empreitada).
74 XXXXX X XXXXXX, ob. cit., p. pp. 70-79. Sobre o tema vide XXXX XXXXXXXX / XXXX XXXXXXXX (eds), Cloud 3.0.: Drafting and Negotiating Cloud Computing Agreements (ABA 2019).
75 Nalguns casos a impossibilidade será temporária, noutros parcial, podendo ser imputável ou não ao devedor.
76 Information Technology Law (OUP 2011) p. 486. Na mesma linha veja-se XXXXXXXXX XXXXXXXXX, ‘Bugs and Xxxxxxxx’ IJLIT vol.13(1) (2005) pp.118–138.
77 Xxxxx é frequente empregar-se um disclaimer of warranties com um texto nesta linha: “PROVIDER DOES NOT WARRANT THAT THE SOFTWARE, SUPPORT, PROFESSIONAL SERVICES, OR DELIVERABLES WILL BE UNINTERRUPTED, ERROR-FREE, OR COMPLETELY SECURE. CUSTOMER ACKNOWLEDGES THAT THERE ARE RISKS INHERENT IN INTERNET CONNECTIVITY THAT COULD RESULT IN THE LOSS OF CUSTOMER DATA, CONTENT OR USAGE DATA. TO THE MAXIMUM EXTENT PERMITTED BY APPLICABLE LAW, PROVIDER PROVIDES THE SOFTWARE, SUPPORT, PROFESSIONAL SERVICES, AND DELIVERABLES “AS IS”, WITHOUT WARRANTY OF ANY KIND, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO, EXPRESS OR IMPLIED OR STATUTORY OR OTHER WARRANTIES OR CONDITIONS, INCLUDING WARRANTIES OF MERCHANTABILITY, SATISFACTORY QUALITY, FITNESS FOR A PARTICULAR PURPOSE, AND THOSE ARISING OUT OF COURSE OF DEALING, USAGE, OR TRADE. CUSTOMER SHALL HAVE SOLE RESPONSIBILITY FOR THE ACCURACY, QUALITY, INTEGRITY, LEGALITY, RELIABILITY, APPROPRIATENESS AND OWNERSHIP OF ALL CUSTOMER DATA.” (o uso frequente de maiúsculas em cláusulas deste estilo resulta de uma interpretação da exigência do Direito norte-americano (§ 2-316 Uniform Commercial Code) de que os disclaimers devem ser “conspicuous”. Em Portugal existe um requisito semelhante na lei do contrato de seguro (art. 37.º/3 do DL n.º 72/2008, de 16 de Abril) e o art. 21.º/i) do DL 446/85 inclui entre as cláusulas proibidas nos contratos com consumidores aquelas
“Not every bug or error in a computer programme can therefore be categorised as a breach of contract” 78 e, indo mais longe, “no buyer should expect a supplier to get his programs right first time”.79
A meu ver, isto significa duas coisas. Primeiro, que nem todos os erros de funcionamento do software devem ser enquadrados como incumprimento contratual e, segundo, que o remédio preferencial deve ser a correção de erros. Isto alinha-se aliás com a solução do direito português, segundo a qual a resolução não é possível se a parte impossibilitada for de escassa importância tendo em conta o interesse do credor (art. 802.º/2 do Código Civil).80
Os tipos de defeitos podem ser, i.a., defeitos de funcionamento, faltas de funcionalidade, incompatibilidade, má conceção e/ou execução (p. ex. utilização excessiva de recursos computacionais ou baixa velocidade de operação), falhas de segurança, documentação insuficiente ou falta de robustez.81 Em tudo isto será essencial delimitar o objeto da prestação através da interpretação do contrato, sendo que os padrões da indústria e daquele tipo de software serão importantes para perceber quais as legítimas expectativas de um declaratário normal.
No caso de contratos com consumidores será necessário atender ao regime do DL 84/2021, de 18 Outubro, que abrange contratos de fornecimento de bens (em geral), incluindo bens que necessitem de conteúdos e serviços digitais para desempenharem as suas funções.82 Aí prevê-se a existência de uma hierarquia dos direitos do consumidor previstos nos art. 15.º e 35.º do DL 84/2021: reparação83, substituição84, redução do preço e a resolução, sem prejuízo do recurso à exceção de não cumprimento e, quando aplicável, indemnização.85 Caso a falta de conformidade se manifeste nos primeiros 30 dias após a entrega do bem o consumidor poderá optar imediatamente pela substituição ou resolução do contrato (art. 16.º). Findo esse prazo e verificada a falta de conformidade o consumidor só terá a possibilidade de escolher, em primeira linha, entre substituição ou reparação. Visto que a resolução é uma solução mais onerosa para o profissional, privilegiam-se soluções
que “se encontrem redigidas com um tamanho de letra inferior a 11 ou a 2,5 milímetros, e com um espaçamento entre linhas inferior a 1,15»”.
78 Eurodynamic Systems plc v General Automation Ltd (6.IX.1988).
79 Saphena Computing v Allied Collection Agencies Ltd [1995] FSR 616.
80 Para uma discussão interessante acerca da qualificação do software utilizado por construtores automóveis para enganar os testes de emissões (Dieselgate) cfr. XXXX XXXXX, ‘Manipulated Software as a Minor Lack of Conformity?’ EuCML 2(2023) pp. 71-75.
81 Para uma análise detalhada destes e de outros defeitos cfr. XXXXXX XXXXX, ob. cit., pp. 623 e ss.
82 Sobre este regime cfr. XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxx e Venda e Fornecimento de Conteúdos e Serviços Digitais - Anotação ao Decreto-Lei Nº 84/2021, de 18 de Outubro (Almedina 2022) e XXXXXX XXXXXXXXX, ‘O novo regime da compra e venda de bens de consumo – exegese do novo regime legal’ RDCom (2021) pp. 1463-1528.
83 Arts. 2.º/a) e 18.º/2/a) do DL 84/2021: a reparação não acarreta qualquer custo para o consumidor. 84 Arts 2.º/a) e 18.º/2/a) e /7 do DL 84/2021: a substituição do bem não envolve o pagamento de qualquer custo, e também não pode ser cobrado qualquer valor pela utilização do bem substituído. Como sublinha XXXXXX XXXXXXXXX, ob. cit., p. 1500 o TJUE rejeitou, no acórdão C-406/06, Quelle (EU:C:2008:231) a existência de qualquer enriquecimento sem causa nestas situações.
85 Na vigência do DL 67/2003 era controversa a existência de uma hierarquia entre os direitos de reparação/substituição, redução do preço e resolução. A maioria da doutrina rejeitava essa hierarquia, pelo que o consumidor poderia escolher entre reparação/substituição, redução do preço e resolução. Sobre os direitos do consumidor em caso de falta conformidade veja-se ainda, XXXXXXX XX XXXXXXXXXX, ‘Consumer’s Remedies for Defective Goods with Digital Elements’ JIPITEC [2021] pp. 143-155.
de manutenção do contrato, dando ao profissional uma segunda oportunidade. Só no caso em que o profissional não tenha substituído o bem ou não tenha reparado o bem no período máximo de 30 dias86 é que poderá ser exercido o direito à resolução (arts. 15.º/4 e 18.º/3).87
No âmbito deste regime opera uma presunção da responsabilidade do vendedor. O consumidor não tem o ónus de verificar as qualidades do bem no momento da sua entrega. É o vendedor quem tem de garantir a inexistência de desconformidades, uma vez que se presume que as faltas de conformidade já existiam quando o bem foi entregue e que o vendedor é responsável pelas mesmas (arts. 5.º, 11.º, 12.º, 13.º e 14.º do DL 84/2021).88
Por outro lado, coloca-se o problema dos prazos para denúncia de eventuais defeitos. No caso da computação em nuvem, em que a entrega do software é contínua e é frequente que este seja alvo de atualizações, não me parece que o prazo de denúncia de defeitos faça sentido, a não ser que esteja expressamente previsto em contrato.89 Já no caso de software ou projeto efetivamente entregue (on-prem) valerá o prazo estipulado ou, na sua ausência, os prazos legais.90
No contexto do Direito do Consumo o momento da entrega do bem é o momento relevante para avaliar a conformidade (art. 11.º DL 84/2021), sujeita a um prazo de garantia de 3 anos (art. 12.º DL 84/2021). No entanto, o fornecimento contínuo de bens digitais leva à possível extensão do prazo de garantia de modo que coincida com a duração do contrato.91 Está igualmente previsto o dever de assegurar que as atualizações de bens com elementos digitais são disponibilizadas pelo período razoavelmente esperado pelo consumidor (art. 8.º/1)92 ou, no caso de fornecimento contínuo de conteúdo ou serviço digital, pelo menos durante dois anos (art. 8.º/2) e, caso esse contrato tenha uma duração superior, durante a
86 Art. 18.º/3 do DL 84/2021: “O prazo para a reparação ou substituição não deve exceder os 30 dias, salvo nas situações em que a natureza e complexidade dos bens, a gravidade da falta de conformidade e o esforço necessário para a conclusão da reparação ou substituição justifiquem um prazo superior.”.
87 Não está claro o que é que acontece se um bem é reparado pelo profissional nos referidos trinta dias, mas continua a funcionar mal ou volta a apresentar falhas de funcionamento passado pouco tempo. O consumidor não deveria poder resolver o contrato em vez de suportar sucessivas atividades de reparação do bem por parte do profissional? Não nos parece razoável que falhas reiteradas ou tentativas continuadas por parte do profissional em repor a conformidade do bem, ainda que cumpridos os trinta dias para o efeito, não gerem um legítimo direito à resolução do contrato. Diga- se ainda que não parece lógico que o legislador tenha estabelecido, no art. 18.º do DL 84/2021, um limite de garantias adicionais a conceder ao consumidor por cada reparação ( “Em caso de reparação, o bem reparado beneficia de um prazo de garantia adicional de seis meses por cada reparação até ao limite de quatro reparações, devendo o profissional, aquando da entrega do bem reparado, transmitir ao consumidor essa informação.”) e não tenha optado pela mesma lógica estabelecendo um limite de número de reparações, no fim das quais possa ser exercido o direito à resolução.
88 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, ‘Decreto-Lei 84/2021, de 18 de Outubro – Apresentação Geral’ in AAVV,
Diretivas 2019/770 e 2019/771 e Decreto-Lei n.º 84/2021 (Almedina 2022) pp. 53-54.
89 Nesse caso poderá ser enquadrado como uma estipulação convencional sobre caducidade (admissível nos termos do art. 330.º do CC).
90 Sobre o tema do cumprimento defeituoso mantem atualidade a obra de XXXXXX XX XXXXX, Xxxxxx e Venda de Coisas Defeituosas (Almedina 2008). Cfr. também XXXX XXXXX XX XXXXXXXX, Princípios...cit., pp. 406 e ss. e XXXXX XXXX XXXXXXXXXXX, ‘Da conformidade no contrato de compra e venda’ in AAVV, Colóquio de Direito Civil de Santo Tirso (Almedina 2017) pp.423-453.
91 Arts. 12.º/2/b), para bens com componente digital, e 32.º/2/b) para bens ou serviços digitais, ambos do DL 84/2021.
92 Aqui as disposições contratuais ou os avisos, desde que se alinhem com o padrão, poderão desempenhar um papel na modulação das expectativas razoáveis do consumidor. No entanto, a ideia é que mesmo que o consumidor médio contrate “de olhos fechados” não deve ser surpreendido com a ausência de atualizações.
duração do contrato (art. 8.º/3). Na verdade, os erros, falhas ou defeitos tanto podem surgir como ser resolvidos por atualizações da sua componente digital.93 Também por isso, o profissional pode eximir-se de responsabilidade caso o utilizador não proceda à instalação das atualizações (art. 8.º/4 DL 84/2021).94
Estas regras também não impedem que o produtor lance uma nova versão do software ou serviço digital e que a comercialize separadamente. Nos termos da lei, o utilizador terá apenas direito à correção de defeitos (incluindo falhas de segurança); o acesso a novas funcionalidades está dependente do que for contratualmente estipulado.95
Por outro lado, o fornecedor de conteúdos ou serviços digitais pode alterá-los muito para além do necessário à correção de falhas e defeitos dentro de algumas condicionantes (art. 39.º/1 DL 84/2021).96 No entanto, se essa alteração tiver um impacto negativo no acesso ou utilização dos conteúdos ou serviços, o consumidor poderá resolver o contrato.97 Esse direito de resolução não estará disponível se o fornecedor não obrigar o utilizador à atualização, permitindo ao consumidor sem custos adicionais e em conformidade (sem falhas de segurança ou perdas de funcionalidade) manter a versão anterior (art. 39.º/6 DL 84/2021).
Outro problema, assinalado por XXXX XXXXX,98 é o impacto sistemático de uma atualização: quando a atualização do software ou conteúdo digital afeta o funcionamento de outros sistemas, aplicações ou componentes que não aquele que é fornecido. Entende- se que estas situações não estão diretamente abrangidas pelo DL 84/2021, devendo ser analisadas no quadro geral da responsabilidade civil (em especial na perspetiva dos deveres acessórios).
Além disso, também não é claro como enquadrar as situações em que o fornecedor de conteúdo ou serviços digitais pode tornar um bem inutilizável deixando de fornecer esse conteúdo ou serviços (o chamado digital brick). XXXXX XXXX sustenta que não é possível
93 XXXX XXXXXXXX, ‘Goods with Digital Elements and the Seller’s Updating Obligation’ JIPITEC [2021] p. 131: “The aim of the provisions regarding updating is to keep smart goods in conformity for a certain period of time and not just at the moment of the delivery of the goods.”.
94 Não se prevê que o prazo de garantia recomece a contar a partir de cada atualização, mas estabelece-se que no caso do fornecimento contínuo de conteúdos ou serviços digitais o profissional é responsável por tais falhas ou defeitos que se manifestem no prazo de três anos a contar da data do início do seu fornecimento, salvo quando o profissional se comprometa com período de garantia superior (art. 12.º/2/ a) e b) ex vi art. 14.º DL 84/2021).
95 Sendo que em serviços cloud (especialmente SaaS e PaaS), habitualmente vendidos em modelo de subscrição, o utilizador tende a ter direito a receber sempre a última versão.
96 XXXX XXXXX, ‘Digital Content Directive and Rules for Contracts on Continuous Supply’ JIPITEC [2021]
p. 102 sugere que a junção de novas funcionalidades (desnecessárias para garantir a conformidade) com a correção de falhas ou erros sem dar ao consumidor a possibilidade de optar apenas pela correção poderá constituir uma prática comercial desleal. Cremos que essa interpretação é porventura demasiado radical. Uma única atualização (ao invés de um “menu” de atualizações a ser configurado pelo utilizador) garante maior conforto aos utilizadores.
97 Esse conceito tem que ser habilmente interpretado – não basta um incómodo como a alteração da interface gráfica para um design de que o utilizador gosta menos. Nesse sentido XXXX XXXXX, ob. cit.,
p. 102 fala em “more than a minor negative impact”. O legislador português define este limite de outra forma dizendo que o direito de resolver está disponível “exceto quando tal se revele desproporcionado” (art. 39.º/2 in fine) e no art. 39.º/4 aponta critérios para a determinação da medida e extensão do impacto negativo. Esta interpretação alinha-se com o disposto no art. 15.º/6 DL 84/2021 que exclui o direito de resolução do consumidor quando a falta de conformidade seja mínima e com os princípios gerais de direito dos contratos, em especial a boa fé.
98 Ob. cit., p. 104.
prever contratualmente esse tipo de atuação do fornecedor.99 Em contrapartida, não parece que a exceção de não cumprimento (traduzida na suspensão do fornecimento de bens ou serviços digitais) seja sempre abusiva ou desproporcional. E também parece admissível que a inutilização do aparelho por falta de conteúdo ou serviços digitais seja um resultado decorrente do fim do contrato, desde que tal tenha sido prévia e claramente comunicado ao comprador.
No contexto da contratação comercial não existem regras detalhadas, mas creio que grande parte das soluções apontada pelo DL 84/2021 serão passíveis de extensão teleológica. No entanto, as normas de caráter mais protetor, como aquelas que impedem a inutilização do bem não deverão ser entendidas como normas imperativas.
Outro ponto frequentemente objeto de discussão é a consagração de um direito de desvinculação unilateral ad nutum (dita termination for convenience ou at will).100 Em Portugal admite-se a existência de causas convencionais de resolução, mas estas não podem corresponder a uma causa de menor gravidade, contender com o disposto no art. 809.º CC, nem violar os limites da boa fé.101 A desvinculação unilateral imotivada tende a ser reservada para os contratos duradouros, mas parece legalmente admissível.102 No entanto, a generalidade dos produtores de tecnologia não estão dispostos a aceitar este tipo de cláusulas à luz do seu impacto contabilístico, em especial a dificuldade que gera no reconhecimento de receita.103
Uma parte significativa dos litígios ocorre no contexto de serviços profissionais, em que a dificuldade de execução do projeto, as necessidades de cooperação, os atrasos e o seu elevado custo aumentam a frustração das partes. O problema intensifica-se porque, atendendo à complexidade do processo, as especificações e requisitos funcionais são continuamente alterados.104 Também por isso, a produção de prova é particularmente desafiante e é muito frequente que se esteja no domínio do incumprimento bilateral (ou seja, imputável a ambos os contraentes).105 Sabendo disto, em projetos mais complexos as partes costumam estabelecer mecanismos complexos de resolução extrajudicial de litígios,
99 XXXXX XXXX, ‘The Digitalisation of Cars and the New Digital Consumer Contracts Law’ JIPITEC [2021] p.163: “A digital brick allows the seller to switch a digital device off remotely, for example, to enforce an (alleged) claim against the consumer.”.
100 Na verdade, as regras do mandato, aplicáveis à prestação de serviços preveem, em determinados casos, a livre revogação do mandato (arts. 1170.º e 1173.º Código Civil). No entanto, a maior parte dos contratos de fornecimento de tecnologia não se enquadrarão nessa hipótese, nomeadamente por serem onerosos.
101 XXXX XXXXX XX XXXXXXXX, Princípios…cit., pp. 918-920. Sobre o tema veja-se XXX XXXXXXXXXX XXXXXXXX, Desvinculação Programada do Contrato (Almedina 2021); XXXXXX XXXXXXXX, Da Cessação do Contrato (Almedina 2017) e BRANDÃO PROENÇA, A resolução do Contrato no Direito Civil (Coimbra Ed. 2006).
102 XXX XXXXXXXXXX XXXXXXXX, ob. cit., pp. 223-234. Sobre o tema mais amplamente vide XXXXX VIDEIRA XXXXXXXXX, A Desvinculação Unilateral Ad Nutum nos Contratos Civis de Sociedade e de Mandato (Coimbra Ed. 2001).
103 No contexto da contratação comercial, as regras contabilísticas revelam-se frequentemente essenciais. É importante perceber as diferenças entre Annual/Monthly Recurring Revenue (A/MRR), receita (revenue) e dinheiro em caixa (cash), tal como é importante ter em conta o tratamento de despesas de capital (capex) e despesas operacionais (opex). A configuração contratual, nomeadamente os direitos de livre desistência, a existência de aceitação, períodos de garantia e/ou obrigações de reembolso podem ter impactos contabilísticos determinantes. Nesse sentido cfr. XXXXXXX XXXXXX, Tecnology...cit., p. 85.
104 XXXXX X XXXXXX, ob. cit., p. pp. 65-69.
105 Sobre o tema cfr. BRANDÃO PROENÇA, Lições...cit., pp.389 e ss.
com vista à preservação da relação.106 Em todo o caso, deve entender-se que a obrigação assumida na generalidade destes contratos é uma obrigação de resultados, presumindo-se (indiscutivelmente) a culpa do contraente que não entregue uma sistema tecnológico funcional e operante.107
Além destas preocupações, tendo em conta que determinadas tecnologias se revelam centrais para a operação das empresas, em cenários mais complexos é habitual que se estabeleçam regras com vista a garantir a continuidade de serviços e acesso à tecnologia. Pode prever-se desde logo a existência de um plano de continuidade de operações (business continuity plan), que permita, dentro do possível, manter o fornecimento da tecnologia perante uma calamidade e a recuperação da sua disponibilidade (disaster recovery) dentro de determinados parâmetros (normalmente fixando um tempo de recuperação (RTO – recovery time objective) e um intervalo de perda de dados (RPO – recovery point objective).108 Além disso consagra-se o direito de, sob determinadas condições, tomar o controlo da operação, manutenção ou desenvolvimento do sistema (os chamados step-in rights). Se o cliente não tiver acesso ao código fonte poderá ficar muito limitado quanto à manutenção que pode fazer do sistema informático. Por isso é habitual exigir-se a celebração de um acordo (tipicamente tripartido) de depósito (escrow) em que se prevê que, na eventualidade de certos incumprimentos ou insolvência (release conditions), o depositário dará acesso ao código fonte, que deve ser periodicamente depositado pelo produtor.109
Perante a violação dos termos da licença, ou seja, um uso não autorizado do software teremos um concurso triplo de regras aplicáveis: responsabilidade civil contratual (por violação dos termos contratuais), responsabilidade civil extracontratual (na medida em que se faça uma utilização não autorizada de bens imateriais protegidos por direitos de propriedade intelectual) e responsabilidade criminal (art. 8.º da Lei do Cibercrime). Estes tipos de responsabilidade podem ser cumulados entre si, com o limite do enriquecimento sem causa.110 A jurisprudência portuguesa é clara na equiparação da violação dos termos da licença (uso excessivo) por um licenciado à utilização sem licença.111 No entanto, creio que para efeitos de culpa há uma diferença relevante entre o licenciado que usa “a mais” e aquele utilizador que nunca celebrou qualquer contrato com o titular dos direitos.
Do ponto de vista de responsabilidade civil o critério de cálculo da indemnização deverá ser em primeira linha o valor de venda ao público da tecnologia ilicitamente
106 Vide Xxxxxxxx Xxxx/Xxxxxx Xxxxx/Xxxxxx Xxxxx, ob. cit.
107 Veja-se o Ac. TRL de 9.III.2021 (p. 1778/15.2T8CSC.L1-7) em que o tribunal discute, i.a., a validade de certas cláusulas habituais de exclusão e limitação de responsabilidade.
108 Por outras palavras, o RPO é o intervalo de tempo de perda de dados (por não existir cópia de segurança) aceitável e o RTO é o tempo máximo que deve decorrer de indisponibilidade.
109 Sobre este tipo contratual vide XXXX XXXXX XXXXXX XXXXXXX, Do Contrato de Depósito Escrow (Almedina 2007) passim, esp. pp. 207 e ss. e XXXXXX XXXXXXX, ‘O contrato de depósito escrow’ RDS IX (2017) pp. 801-828.
110 C-666/18, IT development (EU:C:2019:1099).
000 Xxx xxxxxxx Xx. TRC 12.VII.2006 (p. 1161/01), com o seguinte sumário: “ A instalação de um único programa informático licenciado em vários computadores de um empresa traduz-se numa reprodução de programa não autorizada. O tipo legal de crime de reprodução de um programa informático protegido não exige intenção de lucro. Para o preenchimento do tipo legal de crime é irrelevante que o programa não tenha sido reproduzido em suportes magnéticos móveis, mas apenas instalado noutros computadores.”.
utilizada,112 sem prejuízo de se atenderem aos critérios especiais da propriedade intelectual previstos no art. 211.º CDADC para determinação do quantum indemnizatório.113
Um meio de tutela particularmente relevante em termos práticos é a exceção de não cumprimento.114 À partida, perante o incumprimento de certas obrigações, em especial a obrigação de pagamento ou as restrições de uso, será lícito ao fornecedor suspender ou limitar o funcionamento da tecnologia, nomeadamente por meios remotos. Esta atuação está sujeita ao controlo de proporcionalidade que decorre do princípio da boa-fé e proibição do abuso de direito.
6. Free/Open Source
Uma forma de distribuição própria do software, a que corresponde um esquema contratual específico, é o chamado código de fonte aberta (open source).
O desenvolvimento de software é cada vez mais uma tarefa complexa.115 Nenhum programador escreve código “do zero”, recorrendo antes a um conjunto extenso de componentes, bibliotecas e pedaços de código pré-existentes. Muitos desses elementos são disponibilizados de forma aberta, dita em open source, mas sujeita a determinadas regras e condições. Este tipo de código é atualmente omnipresente, integrando grande parte dos programas, aparelhos e sistemas que consumidores e empresas utilizam no quotidiano.116
O movimento open source remonta aos anos 80.117 Com a progressiva separação do software face ao hardware, o modelo de comercialização dominante passou a ser a simples disponibilização dos programas de computador (executáveis) sem que fosse facultado acesso ao código fonte (i.e. em linguagem de programação, legível para programadores) aos utilizadores. Assim, estes não podiam estudar, alterar o software ou corrigir erros.
Insatisfeito com este estado de coisas, em 1983 o norte-americano Xxxxxxx Xxxxxxxx anunciou a criação de um projeto de software, denominado GNU, em que o código seria disponibilizado de forma aberta e livre (mas não necessariamente
112 Se o software é habitualmente vendido a preço de desconto poder-se-á questionar qual a base de cálculo: o preço habitual (com desconto) ou o preço de base (sem desconto). Por outro lado, em determinados casos a recusa de fornecimento pode constituir um abuso de posição dominante.
113 Veja-se neste sentido Ac. TRE 13.II.2014 (p. 1451/10.8TBSTR.E1) (aliás corrigindo uma decisão inusitada de primeira instância) e Ac. TRC 10.IX.2013 (p. 1362/11.0TBPBL.C1). Sobre o cálculo da indemnização na Propriedade Intelectual cfr. XXXXX XXXXX X XXXXX/XXXX XXXXX X XXXXX, ‘A Responsabilidade Civil no Direito Intelectual’ in AAVV, Propriedade Intelectual, Contratação e Sociedade da Informação: Estudos Jurídicos em Homenagem a Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx (Almedina, 2022) pp. 49-96.
114 Sobre o tema em sentido mais amplo vide XXX XXXXXXX XX XXXXXXX, Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito (Almedina 2019).
115 Com uma descrição do processo de desenvolvimento e das várias metodologias cfr. XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXX, ob cit., pp. 34 e ss.
116 XXXXXXX XXXXXX, Tecnology...cit., p. 47; XXXXXXXX XXXXXX, ‘How To Overcome Three Typical Dilemmas With Open Source License Obligations: Practical guidelines of the impractical obligations to make available the license text, a warranty disclaimer and the source code’ CRi [2018] p. 148.
117 Sendo certo que existem muitos antecedentes de inovação aberta (por exemplo, a adoção de licenças cruzadas (e gratuitas) de patentes pela indústria automóvel norte-americana no início do século XX).
gratuita).118 Este projeto foi um sucesso e, em 1985, Xxxxxxxx estabeleceu-se a Free Software Foundation, que, em 1986, enunciou as seguintes quatro liberdades essenciais para que o software seja considerado livre: i) liberdade de correr o programa para qualquer propósito (liberdade 0);119 ii) liberdade de estudar o funcionamento do programa e de o alterar para que realize as funções pretendidas (liberdade 1); iii) liberdade de redistribuição de cópias (liberdade 2) e liberdade de distribuição da versão modificada (liberdade 3).120
Como se depreende, a primeira e a terceira liberdade implicam que seja facultado acesso ao código fonte. Por outro lado, estes atos, quando praticados sem autorização, constituíram violação de direito de autor. Por isso, todo este sistema assenta em licenças de direito de autor. Apesar de ser perfeitamente admissível que o titular do direito de autor sobre o programa de computador configure a licença que entender, a prática levou a que surgissem um conjunto vasto de licenças padrão que são geralmente utilizadas.121 Estas licenças padrão são normalmente redigidas com o direito norte-americano como quadro de referência, o que levanta alguns problemas de interpretação quando aplicáveis noutros ordenamentos.122 A profusão de licenças coloca desafios de compatibilidade, isto é, saber em que moldes é que componentes sujeitos a diferentes termos contratuais podem ser combinados num único produto ou serviço e explorados comercialmente.123
As licenças de código aberto levantam um conjunto amplo de questões jurídicas.124 Desde logo discute-se a sua natureza. Há quem as qualifique como
118 O software livre deve ser distinguido do chamado freeware. Este último designa software distribuído de forma gratuita, ou seja, sem qualquer contrapartida monetária. A generalidade do freeware é distribuído apenas em código objeto, ou seja, os utilizadores não têm acesso ao código fonte.
119 Esta liberdade impede que se inclua na definição de software livre/open source aquelas licenças que apenas permitam utilização para fins não comerciais ou apenas dentro de determinados limites (p. ex. de volume de utilização e/ou faturação). Essas limitações são legalmente admissíveis, mas, conceptualmente, não podem ser consideradas open source/free software.
120 Em 1991 um estudante finlandês chamado Xxxxx Xxxxxxx lançou um importante sistema operativo open source - Linux. Isto é particularmente importante pois o sistema operativo é o software mais próximo do hardware e que controla os componentes básicos de um computador, gerindo tarefas centrais tais como a alocação de memória e tempo de processamento. O Linux é a base do sistema operativo Android atualmente utilizado em grande parte dos telemóveis e tablets.
121 É certo que mesmo dentro das licenças tipificadas existem algumas com notas humorísticas como a Bantown license (que permite a utilização livre do código desde que alguém tenha cometido pelo menos três de uma lista de crimes) ou a The Don't Ask Me About It License, que tem o seguinte texto: “Copying and distribution of this file, with or without modification, are permitted in any medium provided you do not contact the author about the file or any problems you are having with the file”.
122 Sublinhando este aspecto e assinalando que estas licenças não contêm disposições sobre direito aplicável cfr. XXXXXXX XXXXXX, Open Source for Business: A Practical Guide to Open Source Software Licensing (Createspace 2017) p. 71.
123 X XXXXX XXXXX, ‘Copyright, Contract, and Licensing in Open Source’ in XXXXXX XXXXX (ed), Open Source Law, Policy and Practice (OUP 2022) pp. 98 e ss.
124 Sobre o tema em profundidade veja-se XXXXXX XXXXX (ed), Open Source Law, Policy and Practice (OUP 2022); XXXXXX / METZGER, Open Source Software (X. X. Xxxx 2020); XXXX XXXXXXX (ed), Free and Open Source Software (FOSS) and other Alternative License Models: A Comparative Analysis (Springer 2016); XXXX XXXXXXX/XXX XXXXXX (eds), Free and Open Source Software: Policy, Law, and Practice (OUP 2013). Entre nós cfr. XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX, ‘Licenças de Software Livre: Aspetos Contratuais e Autorais’ in A. XXXX XXXXXXX, Direito da Propriedade Intelectual & Novas Tecnologias: Estudos, vol. I (Gestlegal 2019) pp.249-271.
contratos125 e quem as prefira enquadrar como atos unilaterais de autorização (bare license).126 Depois de algumas decisões judiciais, é atualmente ponto relativamente pacífico que estas licenças são válidas e podem ser objeto de tutela, inclusive com a condenação no pagamento de uma indemnização.127 Em qualquer caso, a violação de uma licença implica simultaneamente a violação de direito de autor, dando ao seu titular mais do que um título de pretensão.128 Em contrapartida não é tão claro saber em que medida é que determinados termos contratuais, como a exclusão de responsabilidade, são válidos, e quais os princípios de contratos de direito de autor que devem ser aplicados a estas situações.129
A referida definição de software livre, assente nas quatro liberdades, não é incontroversa e, na verdade, neste contexto existem duas conceções filosóficas marcadamente distintas.130
Uma primeira, ideologicamente comprometida, prefere a designação de software livre (free software) e procura promover a partilha de código fonte como imperativo ético. Apesar não ser um requisito para que uma licença seja qualificada como software livre, a Free Software Foundation encoraja a utilização de condições contratuais designadas virais ou copyleft.131 As licenças que incluem esse termo, como as licenças GPL, EUPL e AGPL, impõem que todo o código que integre componentes licenciados ao abrigo de licenças copyleft seja partilhado nas mesmas
125 Na Alemanha sublinha-se habitualmente que são cláusulas contratuais gerais. Nesse sentido, XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX, ‘Licenças de Software Livre…cit., p. 257.
126 X XXXXX XXXXX, ‘Copyright, Contract, and Licensing in Open Source’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 102-107 (favorecendo a tese da simples autorização). Em Portugal parece-me que a qualificação deve ser no sentido do contrato, até porque, como explica XXXXX XXXXXX PAIS DE VASCONCELOS, A Autorização (Coimbra Ed. 2012) p. 153 tipicamente a autorização não produz outros efeitos nem tem outros conteúdos além da constituição de legitimidade. No sentido de estarem em causa contratos concluídos nos termos do art. 234.º do CC vide XXXXXXXXX XXXX XXXXXXX, ‘Licenças de Software Livre...cit., p. 257.
127 Nos EUA o leading case é Xxxxxxxx v. Katzer 545 F.3d 13773 (Fed. Cir. 2008). Neste caso o tribunal considerou válida a licença open source violada e atribui uma indemnização ao titular do direito de autor num programa para simulação de pistas de comboios. Em contrapartida, na Alemanha, o Tribunal de Bochum, LG Bochum (Az. I-8 O 293/09) em 10.II.2011, não admitiu uma indemnização por violação de uma licença GPL alegando que uma vez que não haveria remuneração também não deveria haver lugar a indemnização. Esta orientação parece agora ultrapassada (XXXXXXXX XXXXXX, ob. cit., p. 149). Por outro lado, o Tribunal de Munique, LG München I, (Az. 21 O 6123/04) em decisão de 19.V.2004 (Welte v. Sitecom) decretou uma providência cautelar com base na violação de uma licença GPL. Em França, o Tribunal de Recurso de Paris, em decisão de 22.IX.2009, AFPA v. Edu4 explicitou que não distribuir a totalidade do código do programa que incluiu componentes GPL constitui uma violação da licença GPL.
128 XXXXXX XXXXXXXXX, ‘Copyright Enforcement’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp.126-140.
129 Para uma síntese comparativa vide XXXX XXXXXXX / XXXXXX XXXXXXXX, ‘General Report’ in XXXX XXXXXXX (ed), Free and Open Source…cit., pp. 3-48. Colocam-se ainda questões de direito da concorrência, proteção do consumidor, Direito Administrativo, incluindo contratação pública, controlo de exportações e cibersegurança. Do ponto de vista da Propriedade Intelectual as licenças mais antigas não abrangem explicitamente o direito de patentes, o que levanta problemas complexos. De igual forma o direito de marcas não é habitualmente contemplado pelas licenças sendo utilizado pelos titulares de direitos sobre projetos open source para exercer algum controlo no mercado.
130 Sobre o tema cfr. XXX XXXXXX, ‘Open source as Philosophy, Methodology, and Commerce: Using Law with Attitude’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 1-33 e XXXX XXXXXXX/XXXXXXX XXXXX, ‘Evolving Perspective on Community and Governance’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 34-67.
131 xxxxx://xxx.xxx.xxx/xxxxxxxxxx/xxxx-xx.xxxx#xxxxxxxx
condições. Por outras palavras, se um programador incluir um pedaço de código licenciado ao abrigo de uma licença copyleft num programa complexo que escreveu, fica obrigado a disponibilizar todo o código nesses termos.132 Nesse sentido, diz-se frequentemente que o código fica “contaminado”.
A outra conceção, entendida como mais pragmática e flexível, tem sido promovida pela associação norte-americana “Open Source Initiative” fundada em 1998.133 De acordo com esta conceção não há superioridade moral das licenças copyleft sobre as licenças permissivas, como MIT, Apache ou BSD, as quais admitem que o código assim disponibilizado seja livremente reutilizado, distribuído e integrado em software “proprietário”, isto é, que será fornecido a terceiro apenas em código objeto, como parte de um produto ou serviço.
Podemos definir código aberto em sentido amplo como todo o código que é distribuído com acesso ao código fonte e permitindo a respetiva alteração e reutilização. Dentro do código aberto, distinguimos aquele que é distribuído com licenças copyleft (virais), daquele que é distribuído em condições permissivas.134
A generalidade das licenças de código aberto exigem que o utilizador faça atribuição (ou seja, que se dê nota da origem do código utilizado) e a reprodução do texto da licença, que normalmente inclui um disclaimer of warranties (dando nota que o(s) autor(es) do código disponibilizado livremente não se responsabilizam pelo que possa resultar da reutilização desse código).135 No caso das licenças copyleft será ainda necessário disponibilizar o código modificado nos mesmos termos.
Porém, dentro das licenças copyleft, existem diferenças com muita relevância prática. A generalidade das licenças não impõe qualquer conduta adicional a quem altere o código e se limite a corrê-lo para seu próprio uso.136 Tipicamente, a conduta que gera obrigações adicionais é a distribuição do software a terceiros.137 Ora, com a generalização da computação em nuvem (cloud), o software deixou de ser distribuído aos utilizadores finais, passando a correr no servidor do prestador do software como serviço (SaaS). Esta circunstância levou a que determinadas licenças, em especial as licenças GPL, pudessem passar a ser utilizadas em software
132 P XXXXX XXXXX, ob. cit., p. 87 “copyleft licenses put limitations on the recipient’s ability to use other licensing models (e.g. proprietary, or permissive, or even a different copyleft license) for their own downstream activities.”.
133 Esta adota uma definição mais ampla. Contrastando as definições e abordagens cfr. XXXX XXXXXXX/XXXXXXX XXXXX, ob. cit., pp. 45 e ss.
134 Existem outras dimensões de “abertura”. Nomeadamente, open content (do qual open access é um subtipo), que está mais vocacionada para a distribuição de conteúdo protegido por direito de autor. Este movimento inclui licenças do tipo Creative commons, mas habitualmente não diz respeito a código informático. Fala-se também em inovação aberta, open hardware, open standards (sobre o tema vide XXXXXX XXXX, ‘Everything Open’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 512-538).
135 É habitual a este propósito falar-se de uma bill of materials e gerir as políticas de open source de forma automatizada recorrendo a ferramentas informáticas. A implementação destes sistemas facilita bastante a auditoria de empresas tecnológicas, nomeadamente no contexto de uma oferta pública inicial (IPO) ou compra e venda de empresas (M&A).
136 P XXXXX XXXXX, ob. cit., p. 84.
137 Sendo que a definição de distribuição não é clara (cfr. XXXXXXX XXXXXX, Open Source…cit., pp. 71 a 83).
proprietário fornecido em cloud/SaaS sem despoletar obrigações adicionais para o utilizador desse código.138 Para fazer face a isso, a Free Software Foundation adotou uma nova tipologia de licença, a AGPL, que prevê que as condições adicionais se aplicarão caso haja interação com o código modificado através de uma rede. No entanto, não é claro qual o significado de interação e, sublinhe-se, a condição não será despoletada se o código não for alterado.139
Por outro lado, algumas licenças copyleft admitem exceções (fala-se a esse propósito de weak copyleft), como a classpath exception ou a licença GNU LGPL, que permitem a redistribuição do código coberto pela licença num modelo “proprietário”/closed source desde que a integração desse código na solução de código fechado seja feita de um determinado modo.140
O facto de, nestes modelos de distribuição em código aberto, o código ser disponibilizado livremente e poder ser livremente modificado não interfere com a titularidade de direito de autor sobre o projeto/programa. Este poderá continuar a pertencer a um individuo, conjunto de programadores ou pessoa coletiva (empresa, associação ou fundação). No entanto, para garantir a viabilidade e vitalidade do projeto, é habitual que este esteja aberto a contributos de terceiros, no pressuposto de que os contribuidores transmitem (normalmente de forma gratuita) a titularidade dos seus direitos ao “dono do projeto”. Isto é habitualmente assegurado através de um contrato designado Contributor Licensing Agreement.141 Apesar de estar em causa a transmissão de direito de autor, como vimos, no regime específico dos programas de computador vigora a liberdade de forma pelo que estes contratos, muitas vezes celebrados apenas com um conjunto de cliques, serão válidos. Por outro lado, o fato de o código ser livremente modificável, permite que ocorram cisões (normalmente por motivos técnicos), numa prática designada forking.142
Comercialmente existem vários modelos de negócio, nomeadamente a monetização da experiência através da prestação de serviços ou o dual licensing em que a par das licenças open source se oferecem licenças onerosas sobre o mesmo software e/ou sobre funcionalidades adicionais.143
A generalidade dos ordenamentos jurídicos não adotou regras específicas sobre este tipo de licenças.144 Em Portugal a Lei 36/2011, de 21 de junho determina a adoção de normas abertas nos sistemas informáticos do Estado, que estabelece no artigo 4.º que “todos os processos de implementação, licenciamento ou evolução de
138 Isto ficou conhecido como ASP (Application Service Provider) loophole.
139 XXXXXXX XXXXXX, Open Source…cit., p. 136.
140 Em geral exige-se que se mantenha o código coberto pela licença LGPL num ficheiro separado ou que as alterações sejam mínimas (cfr. P XXXXX XXXXX, ob. cit., pp. 91-92).
141 Sobre o tema cfr. XXXXXXX XXXXXXX, ‘Contributor Agreements’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 113-125.
142 Por exemplo existem atualmente mais de 22 mil forks de Linux.
143 Cfr. XXXXXX XXXXX, ‘Business and Revenue Models and Commercial Agreements’ in XXXXXX XXXXX (ed), ob. cit., pp. 329-368.
144 No entanto, Espanha tem várias normas sobre o tema (cfr. XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XXXXXX, ob cit., pp.409 e ss.).
sistemas informáticos na Administração Pública prevêem obrigatoriamente a utilização de normas abertas”, admitindo, no art. 6.º algumas exceções.
Entretanto a nível europeu a Comissão Europeia apresentou em setembro de 2022 uma proposta de regulamento designada “Cyber Resilience Act”.145 Esta proposta prevê um conjunto de deveres de prevenção de riscos de cibersegurança (vulnerabilidades) relativamente a produtos com conteúdo digital. Apesar de o considerando 10 da proposta excluir “software livre e de código fonte aberto desenvolvido ou fornecido à margem do exercício de uma atividade comercial”, esta proposta de regulamento tem sido caraterizada como uma ameaça existencial ao software livre/open source na União Europeia. Aponta-se que a ambiguidade desta exclusão e as consequências severas do incumprimento das regras deste regulamento (quando aplicáveis) gerará um receio justificado por parte dos programadores.146
Na sequência da proposta de Regulamento apresentada pela Comissão Europeia em Abril de 2021 (“AI Act”) o tratamento do software open source tem sido igualmente objeto de intensas discussões a propósito do enquadramento regulatório dos sistemas de Inteligência Artificial.147
145 Proposta de Regulamento relativo aos requisitos horizontais de cibersegurança dos produtos com elementos digitais e que altera o Regulamento (UE) 2019/1020 (COM (2022) 454 final). Para uma visão inicial vide XXXX XXXXXXX XXXXXX, ‘The Cyber Resilience Act: the EU Commission’s proposal for a horizontal regulation on cybersecurity for products with digital elements’ International Cybersecurity Law Review (2022) pp. 255–272.
146 xxxxx://xxxx.xxxxxxxxxx.xxx/xxxx-xx-xxx-xxxxx-xxxxxxxxxx-xxx-xxx-xxx-xxx-xxxxxxxxx-xxx-xxxx- source/
147 COM(2021)206 final.