Stablecoins Como Valores Mobiliários: Modalidade de Derivativos e Contratos de Investimento Coletivo?
Stablecoins Como Valores Mobiliários: Modalidade de Derivativos e Contratos de Investimento Coletivo?
Egmon Henrique de Oliveira Costa1 Luiz Matheus Tavares Pompeu2
Resumo
Considerando as mais recentes atualizações na regulação dos criptoativos e, mais especificamente, das stablecoins, o trabalho tem como objetivo examinar se as stablecoins podem ser classificadas como valores mobiliários à luz do direito brasileiro. De modo mais específico, é feita a análise da possibilidade de classificação das stablecoins como derivativos ou como contratos de investimento coletivo.
Palavras-chave: stablecoins; regulação; valores mobiliários; derivativos; contratos de investimento coletivo.
Abstract
Considering the most recent updates in the regulation of crypto assets and, more specifically, stablecoins, this work aims to examine whether stablecoins can be classified as securities under Brazilian Law. More specifically, an analysis is made of the possibility of classifying stablecoins as derivatives or as collective investment contracts.
Keywords: stablecoins; regulation; securities; derivatives; collective investment agreements.
1 Advogado em Saback Dau & Bokel Advogados. Graduado em Direito pela Fundação Xxxxxxx Xxxxxx (FGV) Direito Rio.
2 Advogado em Bocater, Camargo, Costa e Silva, Rodrigues Advogados. Graduado em Direito pela Fundação Xxxxxxx Xxxxxx (FGV) Direito Rio.
1 Introdução
O tema “criptoativos e valores mobiliários” frequentemente volta à tona, seja pelo desenvolvimento das novas tecnologias, seja pelo avanço da regulamentação e da atuação das agências reguladoras, nacionais e estrangeiras. Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) publicou, no dia 11 de outubro de 2022, o Parecer de Orientação nº 40 (Parecer de Orientação CVM nº 40), no qual é consolidado o entendimento da autarquia sobre as normas aplicáveis aos criptoativos que são valores mobiliários. Dentre as diversas contribuições do Parecer de Orientação CVM 40, destaca-se o entendimento de que os tokens referenciados a ativos – aqueles que representam um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis – podem ou não ser considerados valores mobiliários, a depender das suas características.1
Tendo em vista (i) que stablecoins são tokens referenciados a ativos; (ii) a popularidade das stablecoins evidenciada pela sua relevante capitalização de mercado;2 (iii) a ausência de classificação legal das stablecoins no Brasil; e (iv) as recentes atualizações sobre o tema, o presente trabalho tem como objetivo examinar se as stablecoins podem ser classificadas como valores mobiliários à luz do direito brasileiro. A hipótese inicial é de que, na linha do disposto no Parecer de Orientação CVM 40, a resposta será contingente, ou seja, a stablecoin poderá ou não ser considerada valor mobiliário, a depender das especificidades do projeto a que está vinculada.
Para alcançar o objetivo proposto, primeiro, buscar-se-á uma definição de stablecoin e será dado um panorama geral sobre a situação atual da sua regulação em outros países. Depois, será apresentado brevemente o rol de valores mobiliários constante na Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976 (Lei nº 6.385/1976), bem como serão feitas algumas explicações sobre alguns precedentes da CVM envolvendo a caracterização de criptoativos como valores mobiliários. Na sequência, verificar-se-á se as stablecoins são passíveis de classificação como derivativos ou como contratos de investimento coletivo. Por fim, será feita a síntese das ideias principais deste artigo.
2 Conceito de stablecoins e sua incipiente regulação ao redor do mundo
Os criptoativos são ativos representados digitalmente e protegidos por criptografia, usualmente representados por tokens (títulos digitais intangíveis), que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies, ou DLTs).3 Dentre as diferentes espécies de criptoativos, há os já mencionados tokens referenciados a ativos, grupo no qual se enquadram as stablecoins.
Como o nome sugere, as stablecoins são criptoativos que buscam fornecer um valor estável ao investidor, ao atrelar o seu valor a um ou mais ativos do “mundo real,” chamado de
1 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, p. 5. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/ pareceres-orientacao/pare040.html. Acesso em: 21 mar. 2023.
2 Segundo o site Defi Llama, o valor de mercado de todas as stablecoins no dia 22 de março de 2023 era de, aproximadamente, 113 bilhões de dólares. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxxxxx. Acesso em: 22 mar. 2023.
3 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. p. 1
ativo de referência, como é o caso do dólar americano4 e do euro. Para fins deste artigo, restringiremos a expressão “stablecoins” aos criptoativos que têm moedas fiduciárias ou commodities como ativos de referência, tendo em vista que essa definição ainda está em construção e que ela representa as stablecoins com maior capitalização de mercado.5
As stablecoins surgiram como uma alternativa à alta volatilidade associada a outros criptoativos tradicionais, como o Bitcoin e o Ethereum, e são comumente utilizadas como meios de pagamento, liquidação de transações, reservas de valor e em casos de uso de finanças descentralizadas.6 Para atingir o objetivo visado, as stablecoins adotam um dos seguintes mecanismos de estabilização para manter seu valor atrelado ao dos ativos de referência:
i. fiat reserve backed, no qual o emissor armazena um ativo de igual valor ao que está emitindo7 (por exemplo, para emitir um token representativo de um dólar, o emissor mantém em depósito um dólar físico, criando lastro);
i. crypto reserve backed, no qual é depositado determinado valor de criptoativos, normalmente superior ao valor emitido para a proteção das perdas contra a volatilidade do mercado8 (por exemplo, para emitir um token representativo de um dólar, o emissor mantém em depósito o valor de 1,1 dólares em Bitcoin, criando, assim, lastro); e
i. algorithmic, em que o fluxo e os preços são gerenciados automaticamente, a partir dos efeitos da oferta e da demanda, operando a venda ou compra dos tokens emitidos conforme necessário para manter a estabilidade da stablecoin.9
Cabe destacar que a estabilidade das stablecoins é apenas uma premissa, o que não implica, necessariamente, uma estabilidade “na prática”.10 Há, nesse sentido, uma série de estudos indicando uma volatilidade do valor das stablecoins.11 Após o colapso da Terra USD em maio de 2022, stablecoin que era pareada com o dólar americano e que havia sofrido uma aparente falha no seu mecanismo de estabilização,12 diversas jurisdições iniciaram o processo de regulamentação das stablecoins.
No Japão, em junho de 2022 o parlamento aprovou um projeto de lei que introduziu uma estrutura regulatória em torno das stablecoins, definindo-as, essencialmente, como
4 XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxx. The stable in stablecoins. Federal Reserve System Notes. 16 dez. 2022. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxx/xxxx-xxxxx/xxx-xxxxxx- in-stablecoins-20221216.html. Acesso em: 22 mar. 2023.
5 A título de exemplo, as dez stablecoins que apresentam maior capitalização de mercado são todas lastreadas no dólar, conforme dados do site CoinMarketCap, disponível em: xxxxx://xxxxxxxxxxxxx.xxx. Acesso em: 22 mar. 2023.
6 JPMORGAN CHASE & CO. Deposit Tokens: A foundation for stable digital money. 2022. p. 12. Disponível em: https:// xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxx-xxxxxx.xxx. Acesso em: 22 mar. 2023.
7 Ibid.
8 Ibid.
9 XXXXXXXX, Xxxxxx. Panorama: Stablecoins. In: XXXXXX, Xxxxx (coord.) Fintechs, Bancos Digitais e Meios de Pagamento: aspectos regulatórios das novas tecnologias financeiras. São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000. v. 2. p. 197.
10 Ibid., p. 193
11 Vide, por todos, XXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxx; XXXXXX, Xxxxx X.; XXXXXXX, Xxxxxxxx. On the stability of stablecoins, Journal of Empirical Finance, Elsevier, v. 64(C), 2021, p. 207-223. Neste trabalho, os autores chegam à conclusão de que a volatilidade das stablecoins está diretamente associada à volatilidade do Bitcoin.
12 XXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxx; XXXXXX, Xxxxx. Stablecoins: Market Developments, Risks and Regulation. Reserve Bank of Australia, 2022, p. 45. Disponível em: xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxx/ bulletin/2022/dec/pdf/stablecoins-market-developments-risks-and-regulation.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023
“dinheiro digital”, e determinando que os detentores de stablecoins tenham o direito de resgatá-las pelo ativo de referência a qualquer momento.13 A nova lei autoriza licensed banks, registered money transfer agents e trust companies a emitir as stablecoins, por meio de um sistema de registro que permitirá a sua circulação e o monitoramento das operações, com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro.14
Em Singapura, a Monetary Authority of Singapore (MAS) publicou uma consulta pública em outubro de 2022, com uma proposta de abordagem regulatória para as stablecoins. Entendeu-se que, se bem regulamentadas, elas têm o potencial de serem meios de troca para facilitar as transações no ecossistema de criptoativos.15 Em dezembro de 2022, foi a vez do Reserve Bank of Australia (RBA) publicar um relatório sobre as stablecoins, afirmando que o Treasury australiano, em conjunto com o Council of Financial Regulators, está priorizando a regulação das stablecoins no curto prazo.16
Na União Europeia, firmou-se, em junho de 2022, um acordo provisório para regulação dos criptoativos, em especial das stablecoins. Semelhantemente ao modelo japonês, o arcabouço regulatório visa proteger os consumidores ao determinar que os emissores das stablecoins mantenham uma reserva com liquidez suficiente para que os detentores de stablecoins possam requisitar, a qualquer momento e sem custos adicionais, o resgate do ativo de referência.17 No Reino Unido, o HM Treasury publicou, em fevereiro de 2023, uma consulta pública a respeito de um novo marco regulatório para os criptoativos, com enfoque para as stablecoins.18
Por fim, nos Estados Unidos, atualmente não há uma estrutura regulatória desenvolvida em nível nacional para as stablecoins. O que existe é uma incerteza sobre a delimitação das atribuições das agências federais Securities and Exchange Commision (SEC) e Commodity Futures Trading Comission (CFTC),19 que disputam entre si a competência para regulamentar os criptoativos.
00 XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxx. Japan Passes Stablecoin Bill That Enshrines Investor Protection. Bloomberg,
2 jun. 2022. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxxxxx/0000- 00-00/xxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxx-xxxx- xxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxxxxx#xx0x0xxxx. Acesso em: 23 mar. 2023.
14 XXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXX, Keita. Japan adopts law to regulate stablecoins for investor protection. Nikkei Asia, 3 jun. 2022. Disponível em: xxxxx://xxxx.xxxxxx.xxx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxxxxxxxxxx/Xxxxx-xxxxxx-xxx-xx-xxxxxxxx-xxxxxxxxxxx- for-investor-protection. Acesso em: 23 mar. 2023.
15 MONETARY AUTHORITY OF SINGAPORE – MAS. Proposes measures to reduce risks to consumers from cryptocurrency trading and enhance standards of stablecoin-related activities. 26 out. 2022. Disponível em: xxxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxx/xxxxx-xxxxxxxx/0000/xxx-xxxxxxxx-xxxxxxxx-xx-xxxxxx-xxxxx-xx-xxxxxxxxx-xxxx- cryptocurrency-trading-and-enhance-standards-of-stablecoin-related-activities. Acesso em: 23 mar. 2023
16 DARK, op. cit., p. 50.
17 EUROPEAN COUNCIL. Digital finance: agreement reached on European crypto-assets regulation (MiCA). 30 jun. 2022. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxxxxx.xx/xx/xxxxx/xxxxx-xxxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxxxx- reached-on-european-crypto-assets-regulation-mica/. Acesso em: 23 mar. 2023.
18 HM Treasury. Future financial services regulatory regime for cryptoassets. Publicado em 01 fev. 2023. Disponível em: xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxxx/xxxxxx-xxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxx-xxx-xxxxxxxxxxxx. Acesso em: 23 mar. 2023.
19 XXXXX, Xxxxxxx; XXXX, Xxxxx; XXXXX-XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Ben. The regulation of stablecoins in the United States. Global Legal Insights: Blockchain & Cryptocurrency Regulation, 2023. Disponível em: xxxxx://xxx. xxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx-xxxxx/xxxxxxxxxx-xxxx-xxx-xxxxxxxxxxx/00-xxx-xxxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxx-xx-xxx- united-states. Acesso em: 23 mar. 2023. Capítulo 4.
3 Regulação dos valores mobiliários e os criptoativos na jurisprudência da CVM
A Lei nº 6.385/1976, que criou a CVM e estabeleceu suas competências, em sua redação original, enumerava, nos incisos de seu art. 2º, os títulos considerados valores mobiliários. Anos depois, a Lei nº 10.303, de 31 de outubro de 2001 (Lei nº 10.303/2001), implementou mudanças no dispositivo que resultaram na redação atualmente em vigor, transcrita a seguir:
Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:
I. as ações, debêntures e bônus de subscrição;
II. os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;
III. os certificados de depósito de valores mobiliários; IV - as cédulas de
debêntures;
IV. as cédulas de debêntures;
V. as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;
VI. as notas comerciais;
VII. os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;
VIII. outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e
IX. quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.
As alterações da Lei nº 10.303/2001 consistiram em incluir novos ativos classificados como valores mobiliários. Dentre elas, houve a inserção da modalidade de contratos de investimento coletivo no inciso IX, uma categoria mais ampla em comparação às dos outros incisos, cujo objetivo é abranger “quaisquer outros títulos, desde que haja esforço de captação da poupança popular, com o objetivo de investimento por parte dos doadores de recursos, mas com rendimentos advindos do esforço do empreendedor ou de terceiros.”20
A noção de valor mobiliário tem caráter basicamente instrumental, já que sua finalidade
é delimitar o âmbito de aplicação da Lei nº 6.385/1976 e, desse modo, determinar quais
20 XXXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXX, Xxxxxx. In: XXXXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx (coord.).
Comentários à Lei do Mercado de Capitais – Lei n° 6.385/1976. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 52.
ativos estarão sujeitos à competência da CVM, responsável pela regulação do mercado de capitais,21 conforme o art. 1º, incisos I e II, da Lei n° 6.385/1976.22
Nesse sentido, o Colegiado da CVM já se deparou com diversas situações de possível enquadramento de empreendimentos, como contratos de investimento coletivo (e, Administrativo CVM nº 19957.010938/2017-13 (Caso Niobium Coin) e o Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019-91 (Caso Iconic).No Caso Niobium Coin, a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) abriu um processo para analisar a caracterização do token denominado Niobium Coin como valor mobiliário e a consequente atração da competência da CVM em relação ao seu Initial Coin Offering (ICO). Em sua análise, endossada por manifestação da Procuradoria Federal Especializada da CVM, a SRE concluiu que a Niobium Coin não poderia ser caracterizada como valor mobiliário nos termos do art. 2°, IX, da Lei n° 6.385/1976 (contrato de investimento coletivo), em razão de não haver remuneração, participação ou parceria oferecidas aos investidores.23 O processo foi submetido à apreciação do Colegiado, que acompanhou a manifestação da área técnica, no sentido de que o criptoativo Niobium Coin não se caracterizava como valor mobiliário, de modo que a CVM não teria competência em relação à sua pretendida oferta inicial de distribuição.24 Já no Caso Iconic, a SRE instaurou um processo administrativo sancionador para apurar a responsabilidade de uma empresa e seu administrador pela realização de oferta pública de valores mobiliários sem a obtenção de registro na CVM ou sem a sua dispensa, devido à oferta de criptoativos caracterizados como contratos de investimento coletivo. Como esse caso (i) é o mais recente no qual a CVM enfrentou a caracterização de um criptoativo como valor mobiliário; (ii) teve decisão unânime do Colegiado da CVM pela classificação da Iconic como valor mobiliário;25 e (iii) teve a decisão mantida pelo Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional,26 ele será o principal precedente a ser utilizado como base para o exame da qualificação das stablecoins como contratos de investimento coletivo neste trabalho.
Antes da análise relativa a contratos de investimento coletivo, cabe primeiro avaliar a possibilidade de classificar as stablecoins como derivativos. Considerando que elas são tokens que visam representar o valor de um ativo de referência, é possível cogitar que exista uma relação entre elas e os derivativos – os quais, segundo a própria Lei nº 6.385/1976, estão atrelados a ativos subjacentes. Dessa forma, o tópico a seguir terá o objetivo de investigar essa possível relação.
21 XXXXXXX, Xxxxxx; XXXX, Xxxxxxx X.; PARENTE, Xxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxxx. Mercado de Capitais: Regime
Jurídico. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 61
22 “Art. 1º Serão disciplinadas e fiscalizadas de acordo com esta lei as seguintes atividades:
I - a emissão e distribuição de valores mobiliários no mercado;
II - a negociação e intermediação no mercado de valores mobiliários; (...)”
23 Memorando nº 19/2017-CVM/SRE, de 27 de dezembro de 2017, no Processo Administrativo CVM nº 19957.010938/2017- 13.
24 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo CVM nº 19957.010938/2017-13, julgado em 30 jan. 2018.
25 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91 (RJ2019/2333), julgado em 27 out. 2020.
26 CONSELHO DE RECURSOS DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. Recurso CVM nº 0372.100089/2021-71,
Relatora Conselheira Ilene Patrícia de Xxxxxxx Xxxxxxxxx, julgado em 7 fev. 2023.
4 Classificação das stablecoins como derivativos
Conforme os incisos VII e VIII do supratranscrito art. 2º da Lei nº 6.385/1976, são valores mobiliários os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários, bem como outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes. A redação legal desses incisos foi alvo de crítica pela doutrina, dada a sua redundância, uma vez que seria suficiente dizer “todos os contratos derivativos”.27
O conceito de derivativo (ou contrato derivado) é complexo e, a partir da Lei n° 10.303/2001, a qual estabeleceu que são derivativos aqueles com qualquer valor subjacente (inclusão do inciso VIII no art. 2º da Lei nº 6.385/1976), optou-se por não trazer um conceito legal do que seria um contrato derivado28 – definição importante para determinar em que momento surge a competência da CVM.29 Esse conceito tradicional de derivativo é tão amplo que, de certa maneira, permite classificar quase qualquer instrumento, financeiro ou não.30
Segundo a definição comumente aceita, o derivativo é um contrato reflexo, representativo de um segundo bem antecedente (ou subjacente) dotado de valor econômico, de modo que tudo o que ocorre com o valor do primeiro ativo se reflete automaticamente no contrato derivado. Em outras palavras, o valor do derivativo sempre irá retratar a conjuntura econômica do ativo subjacente.31
Por serem instrumentos financeiros com seu valor determinado pelo valor do ativo subjacente, em sua origem os derivativos eram utilizados para “limitar o risco de flutuações inesperadas de preço do ativo em questão”.32 Essa função econômica e histórica de proteção de riscos, contudo, não está presente todos os derivativos e em todas as negociações que envolvem derivativos. Em diversas operações, o fundamento de investimento não estará pautado na cobertura de riscos, mas, sim, essencialmente na especulação do preço de um ativo.33
Por conta disso, a caracterização econômica dos derivativos não decorre da mera existência de um ativo subjacente a outro originário, mas sim “na expectativa de descasamento de preços de um mesmo ativo, quando considerados dois tempos distintos, a saber, o da contratação e o da conclusão do contrato”.34 Como os contratos derivados nascem em oposição aos contratos à vista, sua razão de ser se situa no lapso temporal
27 EIZIRIK, op. cit., p. 164.
28 Embora o direito brasileiro não defina os derivativos, no âmbito da contabilidade societária o Pronunciamento Técnico CPC 38 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, aprovado pela Resolução CVM nº 119, de 3 de junho de 2022, define os derivativos da seguinte maneira: “Derivativo é um instrumento financeiro ou outro contrato dentro do alcance deste Pronunciamento Técnico (ver itens 2 a 7) com todas as três características seguintes: (a) o seu valor altera-se em resposta à alteração na taxa de juros especificada, preço de instrumento financeiro, preço de mercadoria, taxa de câmbio, índice de preços ou de taxas, avaliação ou índice de crédito, ou outra variável, desde que, no caso de variável não financeira, a variável não seja específica de uma parte do contrato (às vezes denominada “subjacente”); (b) não é necessário qualquer investimento líquido inicial ou investimento líquido inicial que seja inferior ao que seria exigido para outros tipos de contratos que se esperaria que tivessem resposta semelhante às alterações nos fatores de mercado; e (c) é liquidado em data futura.”
29 XXXXXX XXXXX, Xxx Xxxxxxx. Direito dos Valores Mobiliários. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. v. 1. t. 2. p. 222. 30 Voto do relator riretor Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx no Processo Administrativo CVM nº RJ2003/0499, julgado em
28 ago. 2003. p. 7.
31 XXXXXX XXXXX, op. cit., p. 213.
32 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; LION, Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Mercado de derivativos no Brasil: conceitos, operações e estratégias. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 20.
33 Voto do relator diretor Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx no Processo Administrativo CVM nº RJ2003/0499, julgado em 28 ago. 2003. p. 7.
34 XXXXXX XXXXX, op. cit., p. 213.
entre seus termos inicial e final, que é o fato gerador da necessidade de criação econômica
e legal do derivativo.35
Em relação ao campo de atuação da CVM, sua competência se restringe às colocações objeto de oferta pública e às negociações junto ao público investidor,36 estando, portanto, descartados os derivativos ofertados e negociados privadamente ou no exterior.37 Esse parece ser, justamente, o entendimento adotado pela CVM. Por exemplo, o parágrafo único do art. 87 da Resolução CVM nº 135/202238 determina que a admissão da negociação de derivativos em mercado organizado depende da prévia aprovação, pela autarquia, do modelo do respectivo contrato. Consequentemente, os contratos negociados de forma bilateral ou em mercado de balcão não organizado não dependem de aprovação da CVM.39
Feitas essas breves considerações sobre os derivativos, e já com o domínio sobre a definição de stablecoin, cabe averiguar se há uma correspondência entre os dois conceitos que justifique a categorização das stablecoins como valor mobiliário. A principal e mais evidente semelhança entre stablecoins e derivativos (e, não por outra razão, a que suscitou a dúvida inicial de se stablecoins poderiam ser classificadas como derivativos) é que ambos têm um ativo base (subjacente ou de referência). Tanto as stablecoins quanto os derivativos são contratos40 com sua razão de existir em um ativo originário que irá determinar o seu preço.41
Outro ponto de tangência entre os dois contratos é a possibilidade de entrega do ativo de referência. Os derivativos podem ser liquidados financeira (apenas com o pagamento das diferenças de taxas) ou fisicamente (efetiva entrega do bem negociado na data de vencimento do título).42 De forma semelhante, o titular de uma stablecoin que adote um mecanismo de resgate poderá requisitar do emissor desse token a entrega do ativo de referência. Entretanto, vale frisar que nem todas as stablecoins admitem essa possibilidade
35 Ibid., p. 214.
36 “Isso confirma, segundo penso, o fato de que a definição do art. 2º tem conteúdo meramente instrumental, para fins de, conjugado com os demais artigos da Lei nº 6.385, e principalmente o seu art. 1º, conferir competência à CVM para regular a negociação dos títulos e instrumentos ali mencionados quando realizada no mercado ou quando se inserir em oferta pública.” Voto do relator diretor Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx no Processo Administrativo CVM nº RJ2003/0499, julgado em 28 ago. 2003. p. 5
37 XXXXXX XXXXX, op. cit., p. 222
38 Resolução CVM nº 135, de 10 de junho de 2022 com as alterações introduzidas pela Resolução CVM nº 170/2022. “Dispõe sobre o funcionamento dos mercados regulamentados de valores mobiliários; a constituição, organização, funcionamento e extinção das entidades administradoras de mercado organizado; a prestação dos serviços referidos no § 4º do art. 2º da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e no art. 28 da Lei nº 12.810, de 15 de maio de 2013; e revoga a Instrução CVM nº 168, 23 de dezembro de 1991, a Instrução CVM nº 283, de 10 de julho de 1998, a Instrução CVM nº 312, de 13 de agosto de 1999, a Instrução CVM nº 330, de 17 de março de 2000, a Instrução CVM nº 461, de 23 de outubro de 2007, a Instrução CVM nº 467, de 10 de abril de 2008, a Instrução CVM nº 468, de 18 de abril de 2008, a Instrução CVM nº 499, de 13 de julho de 2011, a Instrução CVM nº 508, de 19 de outubro de 2011, a Instrução CVM nº 544, de 20 de dezembro de 2013, e a Nota Explicativa CVM nº 24, de 27 de novembro de 1981.”
39 COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Mercado de Derivativos no Brasil: conceitos, produtos e operações. Rio de Janeiro: BM&FBOVESPA – CVM, 2015. p. 17.
40 Vide, adiante, a existência de formalização de contrato para as stablecoins, enquanto característica do contrato de investimento coletivo.
41 É importante esclarecer que as stablecoins possuem preço variável, já que a sua estabilidade, como visto, é em relação ao ativo de referência. Assim, por exemplo, caso o dólar esteja no valor de R$ 5,00, uma stablecoin pareada ao dólar também estará no valor de R$ 5,00 (considerando que a premissa da estabilidade esteja atendida). Consequentemente, caso o dólar alcance o patamar de R$ 5,20, então a stablecoin pareada ao dólar também estará no valor de R$ 5,20 (novamente, considerando que a premissa da estabilidade esteja atendida). Logo, a estabilidade em relação ao ativo de referência é mantida, mas o preço da stablecoin é alterado.
42 PARENTE, Xxxxx Xxxxxxx. Mercado de Capitais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. Coleção tratado de direito empresarial, v. 6. p. 207
de resgate, como é o caso das que não mantêm reservas compostas pelos seus próprios ativos de referência.43
Apesar das semelhanças entre os dois ativos, contudo, entendemos não ser possível classificar as stablecoins como derivativos no direito brasileiro. Isso se deve ao fato de que a característica econômica essencial dos derivativos não está presente nas stablecoins: o descasamento de preços no tempo.
É possível dizer que stablecoins são contratos e são derivadas, mas não é possível dizer que são contratos derivados ou derivativos. Esses instrumentos apresentam uma validade, um valor predeterminado para a data de conclusão do contrato, que não existe no caso das stablecoins, que são negociados no mercado à vista.
Quando se adquire uma stablecoin, recebe-se o direito de resgatar o ativo de referência. Pode haver uma dilação no tempo entre a data de obtenção da stablecoin e o resgate do ativo de referência, porém esse fato não pode ser apontado como da essência do negócio à vista, mas sim uma “mera impossibilidade técnica da realização do pagamento e transferência do bem no mesmo momento”.44 Por outro lado, é da essência da natureza dos derivativos a dilação do tempo entre a contratação e a execução e conclusão do contrato.45
Nota-se, portanto, que não é possível classificar as stablecoins como derivativos, tendo em vista que ausente uma característica essencial dos contratos derivados: uma data futura predeterminada de liquidação. Cabe, na sequência, analisar se as stablecoins podem ser consideradas valores mobiliários ao serem classificadas na categoria de contrato de investimento coletivo.
5 Classificação das stablecoins como contratos de investimento coletivo
Nos oito primeiros incisos do art. 2º da Lei nº 6.385/1976, o legislador estabeleceu um rol de ativos que são classificados como valores mobiliários. Entretanto, por ser uma lista insuficiente para abarcar todos os produtos de investimento – já existentes e que ainda poderão ser criados pelo mercado – que deveriam estar sob a supervisão e regulamentação da CVM, o inciso IX formulou a figura dos contratos de investimento coletivo, conhecidos pela sigla CIC.46
Assim, se determinado ativo não se enquadrar nas oito hipóteses, ele ainda poderá ser um valor mobiliário se apresentar, cumulativamente, as seguintes características: (i) estar associado a um investimento; (ii) ser um título ou contrato; (iii) ter caráter de investimento coletivo; (iv) ser ofertado publicamente; (v) haver expectativa de benefício econômico ao
43 INTERNATIONAL ORGANIZATION OF SECURITIES COMMISSIONS – IOSCO. Global Stablecoin Initiatives.
Madrid. 2020, p. 3. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxx.xxx/xxxxxxx/xxxxxxx/xxx/XXXXXXX000.xxx. Acesso em: 31 maio 2023.
44 XXXXXX XXXXX, op. cit., p. 214.
45 Ibid.
46 XXXXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx. Bitcoins: os lados desta moeda. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 28.
adquirir o ativo; e (vi) existir esforço de empreendedor ou de terceiros associado a essa expectativa.47
Da mesma forma, a depender dos atributos de uma stablecoin, tais como os direitos assegurados aos adquirentes e o funcionamento do mecanismo de estabilização, ela poderá apresentar as qualidades de um CIC e, consequentemente, ser um valor mobiliário. Para compreendermos melhor como as características de um CIC podem se materializar em uma stablecoin, cada uma delas será analisada nos tópicos a seguir.
5.1 Investimento
O primeiro elemento a ser analisado é a realização de um investimento para adquirir o ativo. O termo “investimento” deve ser entendido de forma bastante ampla, abrangendo não apenas o aporte em moeda fiduciária, mas também a integralização em quaisquer bens suscetíveis de avaliação econômica.48 Em relação ao alcance dessa expressão, a CVM já reconheceu que aportes com tokens são uma modalidade de investimento, tendo em vista que esses ativos se enquadram no conceito de bens suscetíveis à avaliação econômica.49
Aliás, a possibilidade de realizar essa avaliação é uma característica intuitiva dos criptoativos, já que eles podem ser listados em plataformas de negociação (as exchanges) e terem suas cotações definidas pelo mercado – embora essa não seja a única forma de realizar a avaliação de um ativo. Consequentemente, a aquisição de stablecoins com outros criptoativos, como Bitcoin e Ethereum, seria suficiente para preencher o primeiro elemento de um CIC.
Além disso, a compra de stablecoins com outros criptoativos é uma possibilidade que está presente tanto nas ofertas realizadas no mercado primário – por meio das quais o emissor distribui novos tokens – quanto em ofertas no mercado secundário – operações em que o ofertante busca alienar tokens já existentes, sem a emissão de novos. No caso das ofertas primárias, o emissor especificará, no whitepaper (documento em que as principais informações da oferta e do projeto são disponibilizadas) ou em sites, quais recursos são aceitos para integralizar os criptoativos subscritos, disponibilizando o endereço da carteira digital – a wallet – para a qual as quantias deverão ser direcionadas. Já no mercado secundário, se um investidor desejar se desfazer de alguma stablecoin (ou de outros tipos de criptoativos), ele poderá efetuar a operação por meio de uma exchange na qual a stablecoin esteja listada, cujo sistema de negociação é bastante semelhante ao de uma bolsa de valores. Dentro do aplicativo da exchange, o ofertante verifica quais são os mercados disponíveis para realizar a venda, que são definidos com base nos meios de troca negociados. Por exemplo, caso o ofertante queira alienar tokens da Theter (stablecoin referenciada ao dólar) e receber pagamento equivalente em Bitcoin, ele poderá escolher o mercado Bitcoin/Theter, no qual compradores e vendedores efetuam transações apenas entre tokens de Bitcoin e de Theter. Contudo, se o interesse for receber reais brasileiros em troca, o ofertante poderá realizar a operação no mercado BRL/Theter – e assim por diante.
47 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, p. 8.
48 Ibid.
49 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.007994/2018- 51, julgado em 9 de jun. de 2020.
Nota-se que as possibilidades de adquirir stablecoins com outros criptoativos são bastante amplas, mitigando a necessidade de realização de investimentos em dinheiro. Entretanto, como os criptoativos podem ser avaliados economicamente, especialmente se estiverem sendo negociados em exchanges, o requisito do investimento será preenchido, na prática, por qualquer stablecoin que seja ofertada a potenciais adquirentes.
5.2 Título ou contrato
O segundo elemento é a formalização do investimento por meio de um título ou contrato decorrente da relação entre o ofertante e o investidor. Em linha com a redação do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/1976, que emprega a expressão “quaisquer outros títulos ou contratos”, a CVM entende que a natureza jurídica e os instrumentos específicos adotados não influenciam na configuração desse elemento. A preocupação da análise da classificação como CIC se restringe à essência econômica do investimento.50
Partindo dessas considerações, a Superintendência de Supervisão de Securitização (SSE) destacou, no Ofício Circular nº 4/2023/CVM/SSE, de 4 de abril de 2023, que a utilização de DLT ou de outras tecnologias na emissão de criptoativos não inviabiliza a sua classificação como valor mobiliário. De acordo com a referida área técnica, o “conceito da tokenização sugere que a titularidade do token será representada por meio do registro efetivo em rede DLT, ou outra tecnologia, em nome de cada investidor, correspondendo a um título ou contrato”.51 Desse modo, pelo fato de serem tokens, as stablecoins correspondem a títulos ou contratos.
Por sua vez, há algumas características que já foram consideradas pelo Colegiado da CVM como irrelevantes para determinar se um criptoativo é ou não um CIC, como o fato de o ativo (i) ser representado digitalmente em meio criptográfico; e (ii) poder ser classificado como utility token ou payment token.52 Essas duas categorias são formas de classificar um criptoativo de acordo com suas funções: os utility tokens representam direitos de acesso ou aquisição de certos produtos ou serviços, enquanto os payment tokens têm a finalidade de simular as funções de uma moeda, como a de meio de troca e reserva de valor. Adicionalmente a essas categorias, há os security tokens, criptoativos representativos de valores mobiliários e que, consequentemente, estão submetidos à supervisão e regulamentação da CVM.53
O que a autarquia destacou em suas manifestações é que o fato de um criptoativo (o que inclui as stablecoins) ser classificado como utility ou payment token não impede que ele receba outras classificações, especialmente que seja reconhecido como um security token e, portanto, seja um valor mobiliário.54 A título de exemplo, pode-se pensar em um token que, por estar referenciado no dólar, apresenta as funções de uma moeda e recebe a classificação de payment token. A estrutura na qual ele se reveste, contudo, não é um
50 Decisões do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador nº 19957.009925/2017-00, julgado em 9 mar. 2021; no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.007994/2018-51, julgado em 9 jun. 2020; e no Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2007/11.593, julgado em 21 ago. 2008.
51 Ofício Circular nº 4/2023/CVM/SSE, de 4 de abril de 2023, p. 2-4. Disponível em: xxxxx://xxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/
oficios-circulares/sse1/oc-sse-0423.html. Acesso em: 31 maio 2023
52 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91, julgado em 27 out. 2020; e Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, p. 5.
53 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, p. 4-5.
54 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. p. 5; Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019-91, julgado em 27 out. 2020
obstáculo para que seja enquadrado no conceito de CIC – os argumentos para justificar
que ele não é um CIC deverão ser outros.
Seguindo o raciocínio da essência econômica, é possível também concluir que a modalidade do mecanismo de estabilização adotado pela stablecoin (fiat reserve backed, crypto reserve backed ou algorithmic) não é, por si só, suficiente para afastar a classificação de CIC. É necessário verificar se o mecanismo impacta em outros elementos relevantes para a análise, como a expectativa de remuneração e os esforços do empreendedor e de terceiros.
5.3 Caráter coletivo de investimento
O terceiro elemento do CIC é a existência de um empreendimento comum para o qual os recursos financeiros são direcionados, conferindo o caráter coletivo do investimento. O alcance do termo “empreendimento” é bastante amplo, de forma que o setor de atuação, o objeto das atividades e o local em que elas serão desenvolvidas são fatores pouco relevantes para a análise. Esse entendimento foi refletido em um trecho do voto do ex- diretor Xxxxxxx Xxxxxxxx, no PAS CVM nº 19957.007994/2018-51, de sua relatoria:
O conceito de contrato de investimento coletivo pode abarcar negócios com diversos formatos nos mais variados setores. Com efeito, a diversidade de ativos e projetos nos quais os recursos captados mediante ofertas de contratos de investimento coletivo foram investidos no passado é prova eloquente de que a destinação dos recursos, isoladamente considerada, é fator de pouca ou nenhuma relevância para a análise acerca da existência de um CIC. Laranjas certamente não são valores mobiliários, assim como não o são quartos de hotel, vagas de garagem, bois e avestruzes, para ficar apenas em alguns dos exemplos mais famosos no Brasil.55
Já a qualidade de “comum” atribuída ao empreendimento está associada à ideia de que diversos investidores destinarão recursos ao desenvolvimento das atividades e, assim, passarão a compartilhar os mesmos ativos e os resultados econômicos advindos dos esforços do empreendedor ou de terceiros.56 É necessário que haja uma comunhão horizontal de interesses de múltiplos investidores em relação ao sucesso do
55 Voto do Dir. Rel. no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.007994/2018-51, julgado em 9 jun. 2020.
56 Decisões do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91, julgado em 27 out. 2020; e no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.000457/2020-03, julgado em 20 dez. 2019.
empreendimento,57 o que pode ser verificado a partir de, por exemplo, uma uniformidade das remunerações individuais dos investidores.58 De certa forma, o caráter coletivo do investimento é um elemento que remete às demais características de um CIC, especialmente a de oferta pública.
Passando para a análise das stablecoins, embora o emprego da expressão “empreendimento” possa causar alguma estranheza, se interpretado de forma abrangente, é plausível dizer que as stablecoins apresentam sim essa característica. O empreendimento inerente a toda stablecoin é a estabilização da cotação do token em relação ao seu ativo de referência. No caso das stablecoins que contam com os mecanismos de fiat e crypto reserve backed, as atividades passam a estar mais ligadas à manutenção e à preservação dos ativos que conferem o lastro e, especificamente quanto ao segundo mecanismo, com a proteção de perdas contra a volatilidade da cotação dos criptoativos em depósito. Por sua vez, se o mecanismo for de algorithmic, as atividades estão relacionadas ao desenvolvimento e à implementação de ferramentas capazes de gerenciar a cotação das stablecoins.
Caso haja outras funcionalidades associadas à stablecoin, mas que não estejam ligadas à estabilização (a exemplo do seu uso como utility token para exercer direitos dentro de um ecossistema próprio), elas também deverão ser consideradas como parte do empreendimento. De fato, as atividades ligadas à estabilização demonstram, por si só, a existência de um empreendimento. Contudo, para verificar se os demais elementos de um CIC estão presentes, é necessário compreender como um todo o projeto no qual a stablecoin se insere, que pode envolver outras atividades.
Quanto ao caráter do investimento, a tendência é que os empreendimentos associados às stablecoins sejam de caráter comum, especialmente em razão de as operações envolvendo criptoativos ocorrerem no âmbito de tecnologias DLT, que são sistemas descentralizados.59 Apesar disso, uma análise de como a DLT está distribuída e sobre quais são as funções e direitos dos usuários da rede não deixa de ser importante para verificar qual a extensão desse atributo.
5.4 Oferta pública
O quarto elemento do CIC é a existência de uma oferta pública de distribuição, que se traduz no esforço de captação de recursos junto ao público, buscando alcançar potenciais investidores indeterminados.60 Ressalvadas algumas hipóteses expressamente previstas na regulação, o conceito de oferta pública é dado pelo art. 3º da Resolução CVM nº 160, que o define como ato de comunicação ou distribuição “disseminado por qualquer meio ou forma que permita o alcance de diversos destinatários, e cujo conteúdo e contexto
57 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo CVM nº 19957.009524/2017-41, julgado em 22 abr. 2019.
58 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.000457/2020- 03, julgado em 20 dez. 2019.
59 XXXXX, Xxxx. Plunct, plact, zum: Tokens, valores mobiliários e a CVM. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxxx; EROLES, Xxxxx. Criptoativos: estudos jurídicos, regulatórios e tributários. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 13.
60 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. p. 8.
representem tentativa de despertar o interesse ou prospectar investidores para a realização de investimento em determinados valores mobiliários”.61
Para verificar se um ativo está sendo ofertado ao público, os pontos analisados no âmbito da oferta são os instrumentos adotados para promovê-la e a identificação de um grupo indeterminado de potenciais investidores.62 Alguns indícios que apontam para isso são o uso de meios de comunicação de massa para divulgação da oferta,63 a ausência de restrições de acesso à oferta64 e o emprego de uma linguagem direcionada a um público indeterminado.
Esses indícios não deixam de ser aplicáveis às emissões de stablecoins e de criptoativos em geral. Ofertas com esses ativos serão consideradas públicas se, por exemplo, forem amplamente divulgadas em sites ou redes sociais da internet, de modo indiscriminado ao público investidor. Por outro lado, elas se aproximarão de ofertas privadas se os emissores tomarem medidas para restringi-las a um público determinado, como impor uma restrição de acesso aos meios de divulgação e de efetuação do investimento a pessoas específicas. Portanto, os aspectos envolvidos nessa análise dependerão do modo que a oferta de stablecoins for estruturada.
5.5 Expectativa de remuneração e esforços do empreendedor ou de terceiros
5.5.1 Definição
O quinto elemento do CIC consiste na expectativa do investidor de receber lucros advindos de um “direito de participação, de parceria ou de remuneração”. Inicialmente, deve-se destacar que a expressão “lucros” não se limita às hipóteses em que o investidor aufere uma quantia monetária. Seguindo linha de entendimento similar à da SEC, a CVM compreende que os lucros abrangem benefícios econômicos em geral, como a distribuição de resultados (mediante pagamento em dinheiro ou em outros bens)65 e a valorização do investimento inicial realizado no ativo.
A distribuição dos resultados consiste na forma “clássica” de direito de remuneração que grande parte dos CIC tem adotado ao longo do tempo. É importante notar que o direito a essa distribuição pode se revestir de diferentes estruturas. Ele pode ser, por exemplo, semelhante a um direito de receber dividendos ou se apresentar como uma possibilidade
61 “Art. 3º. Configura oferta pública de distribuição o ato de comunicação oriundo do ofertante, do emissor, quando este não for o ofertante, ou ainda de quaisquer pessoas naturais ou jurídicas, integrantes ou não do sistema de distribuição de valores mobiliários, atuando em nome do emissor, do ofertante ou das instituições intermediárias, disseminado por qualquer meio ou forma que permita o alcance de diversos destinatários, e cujo conteúdo e contexto representem tentativa de despertar o interesse ou prospectar investidores para a realização de investimento em determinados valores mobiliários, ressalvado o disposto no art. 8º”.
62 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003642/2020- 41, julgado em 3 maio 2022.
63 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador nº 19957.009925/2017-00, julgado em 30 abr.
2020.
64 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91, julgado em 27 out. 2020.
65
de o investidor efetuar resgates.66 Entretanto, em resposta a uma consulta, o Colegiado da CVM afirmou que a expectativa à remuneração estaria bastante mitigada se a distribuição estivesse sujeita a “incertezas relevantes”.67
Quanto à valorização do investimento aportado no ativo, o próprio Parecer de Orientação CVM nº 40 salienta, em uma nota de rodapé, que ainda se discute em que proporção a expectativa de valorização do ativo ou o aumento da sua liquidez são importantes para a caracterização de um CIC.68 O entendimento mais recente do Colegiado da CVM é que a valorização poderá consistir em uma forma de direito de remuneração, desde que haja um participante ativo (como o ofertante ou terceiros) que se comprometa a empregar esforços para promover a apreciação do ativo. Logo, a mera possibilidade de ocorrer a sua valorização devido a fatores alheios ao controle do empreendedor não tem o condão de satisfazer a definição de CIC. Segundo manifestação do ex-Diretor Xxxxxxx Xxxxxxxx:
[...] é importante ressalvar que, para a caracterização do contrato de investimento coletivo, o lucro esperado pode estar associado tanto aos resultados do empreendimento a ser desenvolvido, quanto à valorização do título ou contrato que representa o investimento. Nessa segunda hipótese, não se pode falar em contrato de investimento coletivo quando a expectativa de valorização é associada a fatores externos, que fogem do controle do empreendedor, mas apenas quando o promotor do empreendimento ou um terceiro indicam que envidarão esforços com o objetivo de – ou tendentes a – valorizar o investimento inicialmente realizado.69
O trecho transcrito revela que a expectativa de remuneração está fortemente associada ao último elemento do CIC: os esforços empregados para promover o sucesso do empreendimento. Os resultados decorrentes do investimento devem ser fruto exclusivo ou predominante da atuação do empreendedor ou de terceiros, sendo necessário realizar uma análise de sua natureza e extensão. Esses esforços podem ser notados nos casos em que alguma das etapas do empreendimento dependam de atos desses agentes, como a criação, aprimoramento, operação ou promoção do empreendimento.70
Deve-se chamar atenção ao emprego do termo “predominante”. Mesmo que os investidores façam alguma contribuição ao sucesso das atividades – para além, é claro, do investimento financeiro – a atuação do empreendedor ou de terceiros ainda estará presente, desde que a contribuição dos investidores seja pouco expressiva. Por outro lado, se a atuação do investidor ou a ocorrência de fatores externos forem os principais propulsores da remuneração, então o ativo adquirido não é considerado um CIC.71
É possível entender esses dois elementos como um único só: a expectativa dos investidores de receber qualquer forma de remuneração (seja por distribuição de resultados, seja por valorização do ativo) decorrente dos esforços do empreendedor ou de outros terceiros. Para verificar como a presença dessa característica pode ser materializada em stablecoins,
66 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91, julgado em 27 out. 2020.
67 COSTA, op. cit., p. 18; Decisão da CVM no Processo Administrativo CVM nº 19957.004654/2020-93; e Ofício nº 15/2020/ CVM/SRE, de 1 de outubro de 2020.
68 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022, p. 8, nota 18.
69 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo CVM nº 19957.009524/2017-41, julgado em 22 abr. 2019. 70 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. p. 9.
71 Decisão do Colegiado da CVM no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019- 91, julgado em 27 out. 2020.
cabe examinar, de forma breve, o julgamento do Caso Iconic, no qual a CVM reconheceu que os tokens NIC, emitidos pela Iconic, eram CIC.
5.5.2 Caso Iconic72
A oferta pública de NIC tinha o objetivo de destinar recursos ao projeto Iconic Ecosystem, que consistia no desenvolvimento de um ecossistema voltado à intermediação do lançamento de tokens de outras empresas e projetos. Dentro desse ambiente, os investidores poderiam utilizar os NIC para adquirirem os referidos tokens e serviços.
Uma das características essenciais do projeto era a criação de um fundo de lastro para assegurar a estabilidade e valorização da cotação dos NIC. A Iconic destinaria, inicialmente, um percentual de seu lucro líquido para o fundo, que seria aplicado em “criptomoedas” consolidadas (como Bitcoin e Ethereum) e em tokens de projetos listados no ecossistema. Consequentemente, se houvesse uma valorização dos criptoativos que compunham o fundo, os NIC valorizariam também, o que levou o relator do processo a afirmar que a existência do fundo de lastro conferia uma “feição de stablecoin” aos NIC.73 O patrimônio do fundo de lastro seria gerido pelos próprios titulares dos NIC, que poderiam deliberar pela realização de operações com os tokens listados – decisões que seriam tomadas mediante votação, de acordo com a proporção de tokens NIC de cada titular. Os resultados das operações deliberadas coletivamente iriam compor o patrimônio do fundo, que passaria a ser formado pelos aportes iniciais da Iconic e pela valorização dos tokens listados. Por sua vez, essa valorização decorreria dos esforços dos terceiros responsáveis pela implementação dos projetos financiados. Após certo período, os titulares de NIC teriam a possibilidade de negociá-los em mercado secundário e de resgatá-los em criptoativos do fundo de lastro.
A partir desses fatos, a CVM entendeu que três fatores apontaram para a expectativa de remuneração dos investidores: (i) o fato de que cada NIC representava uma fração ideal do patrimônio do fundo de lastro; (ii) a existência do direito de resgatá-los; e (iii) a estabilidade das cotações dos NICs, devido à existência de um fundo de lastro formado por outros criptoativos. Em relação a esse terceiro aspecto, pode-se citar o seguinte trecho do voto do relator, que associa a característica de stablecoin dos NIC à configuração de uma oportunidade de investimento:
Um terceiro aspecto relevante para o exame é a existência do fundo de lastro e o modo pelo qual esse foi descrito no whitepaper. Sobre esse ponto, noto em primeiro lugar que a existência do referido fundo de lastro dá ao token NIC a feição de stablecoin, por permitir razoável expectativa de estabilidade de suas cotações. Segundo o whitepaper, ‘[o]s NICs acabarão por se transformar, com isso, em alguma medida, em um ativo também indicador da saúde do mercado de criptomoedas em geral’ (fls. 46). Trata-se, na minha avaliação, de mais um elemento que corrobora que os NICs eram ofertados como oportunidades de investimento.
72 Informações extraídas do relatório e do voto do Dir. Rel. Xxxxxxx Xxxxxxxx no Processo Administrativo Sancionador CVM nº 19957.003406/2019-91, julgado em 27 out. 2020.
73 É importante destacar que o termo “stablecoin” empregado pelo relator apresenta um sentido mais amplo do que o conceito utilizado neste trabalho, aparentemente abrangendo criptoativos referenciados a outros criptoativos.
Em relação aos esforços do empreendedor, a CVM entendeu que, apesar da evolução do patrimônio do fundo de lastro depender de decisões tomadas pelos próprios investidores, a Iconic assumiu funções essenciais na implementação desse fundo, especialmente porque parte do lucro líquido da Iconic serviria como propulsor para o desenvolvimento inicial das operações. Além disso, no whitepaper do projeto, a Iconic se comprometeu a assegurar a negociação dos NIC em mercado secundário, a divulgar as exchanges nas quais eles seriam listados e a promover a estabilidade e valorização dos NIC. O marketing relacionado à divulgação da plataforma e do ecossistema também indicariam os esforços do empreendedor. Com isso, estariam caracterizados os esforços da Iconic voltados ao “desenvolvimento, aprimoramento, operação e promoção do seu Iconic Ecosystem”.
5.6 A expectativa e os esforços associados às stablecoins
Primeiramente, é importante mencionar que o conceito de stablecoin empregado no Caso Iconic é diferente do que é utilizado neste artigo, que exclui o uso de criptoativos como ativos de referência.74 Apesar disso, o fato de os NIC também serem criptoativos com um ativo de referência permite trazermos uma questão relevante para a análise das stablecoins: a possibilidade de o criptoativo valorizar seria suficiente para configurar a expectativa de lucros decorrentes de esforços de empreendedor ou de terceiros?
A importância dessa pergunta se justifica pelo fato de que não parece que a possível expectativa de lucro associada a uma stablecoin decorra da atuação de algum agente. De fato, o emissor empregará esforços para divulgar, distribuir, assegurar a estabilidade das cotações e promover a listagem de sua stablecoin em exchanges, para viabilizar que ela seja trocada por outros criptoativos no mercado secundário. O emissor também poderá conferir aos investidores o direito de resgatar o ativo de referência, de modo a permitir uma segunda alternativa para que os titulares se desfaçam dos tokens. Todos esses esforços indicam que o emissor almeja que o seu projeto tenha sucesso. Entretanto, entendemos que, nesse caso, os esforços destinados à obtenção de sucesso são diferentes dos esforços destinados à valorização da cotação da stablecoin.
Justamente pelo preço da stablecoin depender exclusivamente do preço do seu ativo referência, ela somente irá se valorizar se o ativo subjacente se valorizar. Considerando que o objetivo do emissor é manter o adequado funcionamento dessa relação, percebe-se que os seus esforços se restringem à equiparação do preço da stablecoin ao preço do ativo de referência, o que, inclusive, poderá levar tanto a uma apreciação da stablecoin quanto a uma desvalorização. Portanto, devido a essa postura neutra em relação ao preço da stablecoin, é possível afirmar, em um primeiro momento, que a expectativa de valorização das stablecoins não está associada à atuação do empreendedor ou de terceiros.
Contudo, uma investigação mais detalhada indica que não seria adequado aplicar essa conclusão a todas as stablecoins. Como visto no início deste tópico, o entendimento firmado pelo Colegiado no PAS CVM nº 19957.009524/2017-41 foi o de que, se a valorização do ativo depender exclusiva ou preponderantemente de fatores externos, a figura do CIC não estará presente. Logo, se o emissor envidar esforços para a valorização do ativo de referência, então haverá CIC.
74 Ressalte-se que considerar um ou mais criptoativos como ativos de referência é diferente de utilizar o mecanismo de crypto reserve backed, já que nesta modalidade de estabilização os criptoativos depositados são utilizados como lastro para a stablecoin, não necessariamente sendo idênticos ao ativo subjacente.
Aplicando esse entendimento da CVM às stablecoins, entendemos que poderão existir situações em que os esforços se voltarão a promover a valorização delas. Trata-se da hipótese de o empreendedor ou terceiros atuarem de forma a buscar a valorização do ativo referência, pois, com a ocorrência desse evento, o preço da stablecoin também se valorizará. Por exemplo, se um criptoativo pareado unicamente no dólar sofre uma valorização devido ao aumento da cotação de seu ativo referência, há inúmeros fatores que podem ter provocado isso, como uma alteração na política monetária pelo Federal Reserve System ou um aumento na demanda dos investidores. Entretanto, nenhum deles está sob controle do emissor do criptoativo, por mais que ele tenha sido responsável pela estruturação, promoção e divulgação da stablecoin.
Por outro lado, se o empreendedor ou terceiros adotam uma postura ativa para valorizar o ativo de referência, indiretamente serão realizados esforços para valorizar a stablecoin. Assim, se, após a sua valorização, o titular desse criptoativo realizar o seu resgate ou venda em mercado secundário, a diferença obtida terá decorrido de fatores que estavam sob o controle do empreendedor. Portanto, para verificar se uma stablecoin é um valor mobiliário, um possível critério é analisar se o emissor (ou um terceiro) adotou uma postura ativa ou neutra em relação ao bem de referência. Naturalmente, antes de se realizar essa análise, será necessário compreender se o emissor detém controle sobre fatores que possam influenciar o valor do ativo de referência.
Em alguma medida, há uma tensão entre as conclusões aqui expostas e o entendimento estabelecido pela CVM no Caso Iconic, mas não uma total oposição. Apesar de os esforços para a estabilização terem sido considerados pela CVM como um indicativo que reforçou que os NIC eram valores mobiliários, a realização de aportes iniciais destinados pela emissora ao fundo de lastro era essencial para o desenvolvimento do Iconic Ecosystem, sendo eles o “combustível” para as operações e o financiamento de outros tokens. Esse fator evidenciava os esforços do emissor de valorizar os ativos que compunham o fundo e, consequentemente, os NIC – possibilitando concluir que esses criptoativos configuravam CIC. Logo, embora os NIC não sejam stablecoins segundo a definição deste artigo, essa breve análise do Caso Iconic indica que a aplicação do entendimento aqui sugerido tem uma certa compatibilidade com a jurisprudência em construção sobre criptoativos.
6 Conclusão
O presente trabalho buscou analisar a possibilidade das stablecoins serem caracterizadas como valores mobiliários no direito brasileiro. Para tanto, primeiro apresentou-se um conceito de stablecoin apto a subsidiar as discussões desenvolvidas, em linha com o Parecer de Orientação CVM nº 40. No mesmo capítulo, aproveitou-se para trazer um panorama geral da incipiente regulação das stablecoins ao redor do mundo.
Na sequência, foi apresentado o rol de ativos categorizados como valores mobiliários, previsto na Lei nº 6.385/1976, bem como alguns precedentes da CVM no qual se avaliou a classificação de determinados criptoativos como valores mobiliários. Dadas as características das stablecoins, que se assemelham às de derivativos, analisou-se se tais tokens poderiam ser enquadrados como contratos derivativos, o que os tornaria valores mobiliários. Como visto, apesar das semelhanças, foi entendido que as stablecoins não podem ser consideradas derivativos, pois lhes falta uma característica essencial desse tipo de contrato: a liquidação do título em data futura predeterminada e a preço pre determinado.
Por fim, foi analisada a possibilidade de classificação das stablecoins como contratos de investimento coletivo, uma categoria mais ampla do conceito de valor mobiliário. Como resultado, observou-se que as stablecoins podem ser classificadas como valores mobiliários, em linha com o Parecer de Orientação CVM nº 40, se atenderem aos requisitos de estarem associadas a um investimento, serem títulos ou contratos formalizados, terem caráter de investimento coletivo, serem ofertadas publicamente e haver expectativa de benefício econômico decorrente de esforço do empreendedor ou de terceiros.
Dentre esses elementos, verificou-se que a existência dessa expectativa e da sua relação com a atuação de um empreendedor ou terceiros são os mais difíceis de se analisar. O critério sugerido neste artigo para identificar a existência dessas características consiste em verificar se há esforços desses agentes em buscar a valorização do ativo no qual a stablecoin está referenciada, e não considerar que o mecanismo de estabilização, por si só, representa um esforço voltado a essa valorização. Embora esse seja um entendimento que tenha alguma tensão em relação ao julgamento do Caso Iconic, ele se apoia na jurisprudência que a CVM está construindo sobre criptoativos.
Paralelamente, apesar de este trabalho se voltar à qualificação das stablecoins como valores mobiliários, deve-se destacar a importância do aprofundamento de estudos sobre esses tokens por parte do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central do Brasil (BCB). Como a maior parte das stablecoins está atrelada a moedas fiduciárias, as operações com esses tokens, se realizadas tendo por troca outra moeda fiduciária, assemelham- se a operações no mercado de câmbio, o que poderia atrair a competência dessas duas instituições. Além disso, a experiência internacional da regulação sobre as stablecoins é uma forte evidência da competência do CMN e do BCB sobre a matéria, já que, nas jurisdições analisadas (com exceção dos Estados Unidos), as autoridades que avançaram na regulação das stablecoins foram entidades equiparáveis, no Brasil, ao CMN ou ao BCB.
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