Contratação de obras de engenharia: inaplicabilidade dos regimes excepcionais e instrumentos possíveis de serem adotados
Contratação de obras de engenharia: inaplicabilidade dos regimes excepcionais e instrumentos possíveis de serem adotados
Contracting of engineering construction works: inapplicability of exceptional regimes and possible instruments to be adopted
Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx
Mestrando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também possui especialização em Direito Tributário. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Integrante do grupo de pesquisa Modelos de Gestão e Eficiência do Estado, liderado pela Prof.ª Dr.ª Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Advogado-Chefe do Departamento de Consultoria Jurídica em Licitações, Contratos e Ajustes Congêneres, da Advocacia Geral do Município de Cotia (AGM/SAJJ). Autor de artigos jurídicos na área de licitações e contratos e palestrante
RESUMO
este artigo tem por finalidade discutir, sobretudo a partir de conceitos jurídicos pré-existentes e de pontos importantes a serem refletidos, a impossibilidade de serem as obras de engenharia contratadas diretamente com fundamento na dispensa de licitação introduzida pelos regimes temporários e excepcionais, anteriormente versados pelo art. 4º, da Lei nº 13.979/2020 e atualmente pela Medida Provisória nº 1.047/2021. Serão analisados, ainda, os objetos passíveis de contratação direta, com base na hipótese de dispensa de licitação antes referidas, de acordo com
a posição expressada pelo legislador na norma em apreço. Outrossim, com a finalidade de auxiliar o gestor público na tomada de decisões, sempre com vistas ao atendimento do interesse público, serão abordados, de forma sucinta, os possíveis instrumentos passíveis de serem utilizados para a contratação de obras de engenharia no atual contexto da pandemia de Covid-19.
Palavras-chave: Licitação e contrato. Dispensa de licitação. Contratação de obras de engenharia.
ABSTRACT
considering pre-existing legal concepts and important matters to be reflected, this article aims to discuss the impossibility of directly contracting engineering construction works grounded
on bidding waivers introduced by temporary and exceptional regimes, previously provided for article 4 of Law No. 13,979/2020 and currently by the Provisional Measure No. 1,047/2021. The objects subject to direct contracting will also be analyzed, based on bidding waiver hypothesis, pursuant to the position expressed by the legislator in such rule. Furthermore, to assist the public official in the decision-making process, aiming at the public interest, we will briefly address the possible instruments that can be used for contracting engineering construction works in the current context of the Covid-19 pandemic
Keywords: Bidding and agreement. Bidding waiver. Contracting of engineering construction works
1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 13.979/2020 que, dentre diversas ações, introduziu, no cenário das contratações públicas, a hipótese de dispensa de licitação para as aquisições de bens e insumos e contratação de serviços, inclusive os de engenharia, destinados especificamente ao enfrentamento da emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19, gerou bons debates em torno de suas disposições, mesmo após o término de sua vigência, o que ocorreu em 31/12/2020.
Um dos debates que nos chamou atenção se refere à defesa da possibilidade, por meio de interpretação ampliativa e sistemática, de aplicação da dispensa de licitação trazida pela novel legislação para objetivar a contratação de obras de engenharia.
Esse parece ter sido o entendimento adotado por algumas consultorias jurídicas de entes da Federação, a exemplo da Procuradoria Geral do Estado, que, por meio da Nota Técnica
SURG nº 6/20201, concluiu em torno da possibilidade de obras serem contratadas por meio da dispensa de licitação instituída pelo art. 4º da Lei nº 13.979/2020.
No presente artigo, mostraremos o nosso posicionamento em relação à temática em voga, fundamentando-o à luz do que se tem denominado de “direito provisório” ou “direito
administrativo de crise”, sem desconsiderar os conceitos dos institutos jurídicos em discussão.
Por óbvio, não se pretende esgotar a temática, tampouco desprestigiar entendimentos em sentido divergentes, aos quais manifestamos nosso total respeito. Pretender-se-á, tão somente, enfrentar a problemática com objetivo de trazer a orientação mais segura ao gestor público, a quem incumbe a difícil tarefa de idealizar as políticas públicas em tal cenário de crise.
Ademais, o que defendemos neste artigo se aplica à atual Medida Provisória nº 1.047, de 3 de maio de 2021, baixada pelo Exmo. Sr. Presidente da República, a qual reedita o regime anterior previsto na Lei nº 13.979/2020, a qual deixou de estar vigente em 31/12/2020, já que estava vinculada ao Decreto Legislativo nº 06/2020.
1 Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo. Subprocuradoria Geral da Consultoria Geral. Nota Técnica nº 6/2020. Disponível em xxxxx://xxx.xxx.xx.xxx.xx/xxxxx/Xxxx/Xxxxxxx.xxxx?xxxxxx. Acesso em 06/05/2020.
2. DA DIFERENÇAS CONCEITUAIS ENTRE OBRA E SERVIÇO DE ENGENHARIA
Antes de qualquer coisa, é mister trazer à balha uma diferença conceitual, feita pela Lei nº 8.666/1993, entre obra e serviço.
O art. 6º da supramencionada norma geral conceitua obra como “toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta” (inciso I).
Já serviço é definido, pelo inciso II do dispositivo precitado, como:
(...) toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais.
Não se pode olvidar que os conceitos legais, não raramente, são marcados pela atecnicidade, cabendo, portanto, aos cientistas do direito a tarefa – árdua muitas das vezes – de esclarecer as definições prescritas pelo legislador, com o intuito de suprir a falta de rigor técnico de tais definições pela via legislativa.
Na seara técnica, e em sentido muito similar à conceituação trazida pela lei, a Orientação Técnica IBR 002/2009, emanada do Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas – IBRAOP2, trouxe a seguinte definição para obra:
Obra de engenharia é a ação de construir, reformar, fabricar, recuperar ou ampliar um bem, na qual seja necessária a utilização de conhecimentos técnicos específicos envolvendo a participação de profissionais habilitados conforme o disposto na Lei Federal nº 5.194/66. (g.n.)
Já serviço, seguindo a já citada Orientação Técnica, foi conceituado como:
(...) toda a atividade que necessite da participação e acompanhamento de profissional habilitado conforme o disposto na Lei Federal nº 5.194/66, tais como: consertar, instalar, montar, operar, conservar, reparar, adaptar, manter, transportar, ou ainda, demolir. Incluem-se nesta definição as atividades profissionais referentes aos serviços técnicos profissionais
especializados de projetos e planejamentos, estudos técnicos, pareceres, perícias, avaliações, assessorias, consultorias, auditorias, fiscalização, supervisão ou gerenciamento.
2 Instituto Brasileiro de Auditoria de Obras Públicas. Orientações Técnicas. OT – IBR 002/2019 – Obra e Serviço de Engenharia. Disponível em xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx.xx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/XX-XXX-00-0000- Ibraop-01-07-10.pdf. Acesso em 06/05/2020.
No campo doutrinário, identifica Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx (2016, p. 188) a problemática em se determinar, diante de certas atividades, se se está diante de uma obra ou serviço. Vejamos tal entendimento:
(...) Como diferenciar hipóteses configuradas como serviço (tais como conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção) de outras qualificadas como obra (tais como fabricação, recuperação ou ampliação)? A resposta consiste na dimensão da atividade. Haverá serviço quando a atividade não se traduzir em modificações significativas, autônomas e permanentes. Se a modificação for significativa, autônoma e permanente, haverá obra.
Em sua conclusão, reconhece o precitado autor que, conquanto possa até merecer crítica teórica a definição trazida pela norma, esta desempenha, na prática, uma solução satisfatória, já que torna inequívoca uma questão que poderia ser duvidosa.
O autor ainda cita, como exemplo, o caso de uma demolição, que, embora possa produzir alteração autônoma e permanente no ambiente físico, podendo, inclusive, gerar dificuldade análoga a uma construção, foi definida pelo legislador dentro do conceito de serviço, o que exclui a possibilidade de ser enquadrada como uma obra.
Em todo caso, e nos termos da já referida Orientação Técnica,
A análise de enquadramento de Obras e Serviços de Engenharia depende de conhecimento técnico específico em conformidade com a Lei Federal
nº 5.194/66” (vide subitem 7.2 do item 7).
Os conceitos trazidos pela lei geral de licitações, bem consolidados em normas técnicas que regem a questão, não sofrem alterações diante do cenário de anormalidade instalado. Isto é, o que é serviço, assim definido no inciso II do art. 6º, por exemplo, permanecerá tendo o conceito que sempre possuiu, mesmo diante das contratações a serem feitas para o enfrentamento da emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19.
3. O REGIME DE CONTRATAÇÃO EXCEPCIONAL E OS OBJETOS PASSÍVEIS DE DISPENSA DE LICITAÇÃO
Antes de enfrentar o busílis, é mister realizar uma breve digressão em torno da Lei
nº 13.979/2020, que trouxe uma nova hipótese de dispensa de licitação, que, embora não mais vige desde 31/12/2021, teve o seu regime reeditado pela Medida Provisória nº 1.047/2021.
De iniciativa do Poder Executivo Federal, o Projeto de Lei nº 23/2020 foi recepcionado pela Câmara dos Deputados em 04/02/2020, tendo sido votado em regime de urgência e devidamente aprovado na mesma data.
O mesmo procedimento de urgência foi adotado no âmbito do Senado Federal, de forma que, já no dia 05/02/2020, o precitado projeto foi aprovado e, em 06/02/2020, encaminhado à sanção presidencial, ocorrida na mesma data, dando origem à Lei nº 13.979/2020.
Em sua versão original, previu a novel legislação a seguinte disposição:
Art. 4º Fica dispensada a licitação para aquisição de bens, serviços e insumos de saúde destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei. (g.n.)
Veja-se, portanto, que a lei previu, inicialmente, a possibilidade de ser a licitação dispensada tão somente para objetos específicos e exclusivos da área da saúde (bens, serviços e insumos) destinados ao enfrentamento da emergência que se inaugurava.
Em 20 de março de 2020, no entanto, por meio da Medida Provisória nº 926, baixada com fulcro no art. 62 da Constituição Federal, os objetos passíveis da dispensa tratada pela Lei nº 13.979/2020 foram ampliados para todo e qualquer segmento, desde que vinculado ao enfrentamento da emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19.
Além disso, foi incluída, no texto da norma, a possibilidade de serem dispensadas as licitações inclusive para a contratação de serviços de engenharia.
Xxxxxxx a redação então dada pela MP 926/2020 ao art. 4º da Lei nº 13.979:
Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus de que trata esta Lei. (g.n.)
No processo legislativo, a precitada MP, convertida na Lei nº 14.035, de 11 de agosto de 2020, sofreu uma pequena adaptação de texto, mas que não muda a essência da disposição acima transcrita3.
Em suma, a dispensa de licitação acima tratada possuía uma finalidade específica, qual seja, permitir contratações e aquisições que visem ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Foram elencados, ainda, pela norma, os objetos passíveis de enquadramento na hipótese em voga, quais sejam, aquisição de bens e insumos e contratação de serviços, inclusive os de engenharia.
3 A redação trazida com a conversão foi a seguinte: “É dispensável a licitação para aquisição ou contratação de bens, serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei.”.
Não foi contemplada pela norma a contratação de obras de engenharia, necessidade esta que, caso exista, deverá ser suprida por outros meios, conforme se analisará mais adiante.
O mesmo regime, acima explanado de forma sintética, foi reeditado, no bojo da Medida Provisória nº 1.047, de 3 de maio de 2021, que dispõe sobre as medidas excepcionais para a aquisição de bens e a contratação de serviços, inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da pandemia da Covid-194.
No bojo da precitada Medida Provisória (MP), além da reedição do regime de contratação direta antes previsto na Lei nº 13.979/2020, constam as disposições inerentes à possibilidade de pagamento antecipado trazido pela Lei nº 14.065/2020.
4. IMPOSSIBILIDADE DE CONTRATAÇÃO DE OBRAS POR DISPENSA DE LICITAÇÃO FUNDAMENTADA NOS REGIMES EXCEPCIONAIS: PONTOS A SEREM CONSIDERADOS
Conforme se verificou no tópico anterior, a contratação de obras de engenharia não foi contemplada dentro da permissão contida no art. 4º da Lei nº 13.979/2020, assim como na Medida Provisória nº 1.047/2021, o que, em nosso sentir, impossibilita, por si só, a invocação do referido dispositivo para tal intento.
O primeiro ponto considerado em nossa conclusão, que, embora simples, assume um papel relevante no contexto ora estudado, é no sentido de que, na forma como tratamos em tópico específico deste breve arrazoado, o conceito de serviço, sobretudo no campo da engenharia, não abrange a execução de obra, que possui conceituação própria.
Não se pode ignorar, conforme já reconhecido neste breve estudo, que é difícil, na prática, a tarefa em ser realizada a devida distinção entre os objetos passíveis de enquadramento no conceito de obra ou serviço de engenharia.
Essa difícil tarefa, todavia, não se constitui atividade típica do operador do direito. Tal mister é restrito a profissionais tecnicamente habilitados, nos termos da Lei nº 5.194/1966, das Resoluções do sistema CONFEA/CREA e das normas técnicas aplicáveis.
O segundo ponto que nos leva à conclusão em torno da não possibilidade de ser dispensada a licitação, com fulcro no regime excepcional, para a contratação de obra reside numa distinção doutrinária que sempre é feita em relação às hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação.
4 De antemão, destaca-se que há impossibilidade de ser realizada obra de engenharia com fundamento nesta Medida Provisória. Nesse sentido, já tratamos da questão em artigo intitulado: “Contratação de obras de engenharia: inaplicabilidade da Lei nº 13.979/2020 e instrumentos possíveis de serem adotados” (in LIMA, XXXXXXXX XXXXX. Revista de Contratos Públicos – RCP, Belo Horizonte, ano 9, n. 17, p. 49-68, mar./ago. 2020).
Nos casos de dispensa de licitação, conquanto plenamente viável a deflagração do certame, o legislador possibilitou que a Administração Pública adotasse outro
procedimento, em que as formalidades são supridas ou substituídas por outras, por entender que da licitação não resultariam os benefícios pretendidos ou, até mesmo, poderia trazer prejuízos indesejáveis.
Já nos casos de inviabilidade de competição, determinou o legislador a inexigibilidade do procedimento licitatório, ante a ausência de pressupostos para que a proposta mais
vantajosa – um dos objetivos maiores da licitação (art. 3º da Lei nº 8.666/1993) – possa ser escolhida por meio de critérios objetivos.
O rol dos casos de dispensa de licitação é taxativo, já que o legislador tratou de enumerar, no art. 24 da Lei nº 8.666/1993, todas as hipóteses em torno das quais o gestor terá discricionariedade para optar por realizar a contratação direta. Já a inexigibilidade
de licitação caberá sempre que a competição for inviável, em especial nas hipóteses exemplificativas tratadas pelo art. 25, da referida norma geral.
Acerca da taxatividade do art. 24 da lei nacional, valiosas são as lições de Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx (2016, p. 240), verbis:
Para que a situação possa implicar dispensa de licitação, deve o fato concreto enquadrar-se no dispositivo legal, preenchendo todos os requisitos. Não é permitido qualquer exercício de criatividade ao administrador, encontrando-se as hipóteses de licitação dispensável previstas expressamente na Lei, numerus clausus, no jargão jurídico, querendo significar que são apenas aquelas hipóteses que o legislador expressamente indicou que comportam dispensa de licitação. (g.n.)
Desse modo, o objeto a ser contratado pela Administração Pública deve preencher todos os requisitos trazidos pela norma autorizadora da dispensa de licitação (subsunção do fato à norma), sob pena de nulidade da contratação e de o gestor incidir no crime capitulado no art. 89 da Lei nº 8.666/19935.
O terceiro ponto por nós considerados paira no sentido de que legislador, ao instituir,
por meio da Lei nº 13.979/2020 e, atualmente, na Medida Provisória nº 1.047/2021, a nova hipótese de dispensa de licitação com a finalidade própria de enfrentamento da emergência em saúde pública decorrente da Covid-19, o fez para objetos específicos e detalhados no próprio texto da norma, quais sejam: bens, insumos e serviços.
5 Art. 89. Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade:
Pena - detenção, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público.
Ademais, por meio da alteração promovida pela MP 926/2020, sobreveio a inclusão de serviços de engenharia dentre os objetos passíveis da comentada dispensa de licitação, que foi mantido durante o processo legislativo de sua conversão na Lei nº 14.035/2020.
A declaração expressa de objetos passíveis de dispensa de licitação, a nosso ver, já impediria, por si só, uma interpretação ampliativa a ser eventualmente adotada pelo aplicador da norma.
Isto porque, caso a intenção fosse a de autorizar a contratação de obras por meio da dispensa tratada pelo art. 4º, da Lei nº 13.979/2020, isso teria ocorrido pela alteração promovida pela MP 926/2020, posteriormente convertida na Lei nº 14.035/2020, que, dentre outras inovações, incluiu os serviços de engenharia como passíveis de dispensa.
A corroborar a nossa conclusão, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx (et al., 2020, p. 61), ao tratar da caracterização como serviço de engenharia, expressa que “(...) o texto da Lei nº 13.979/2020 não incluiu obras como objetos passíveis de adoção da dispensa prevista pelo seu artigo 4º”.
O já citado autor, inclusive, cita trecho do Parecer nº 00002/2020/CNML/CGU/AGU, emanado da Advocacia-Geral da União, que concluiu pela inaplicabilidade da Lei nº 13.979/2020 para a contratação de obras de engenharia. Vejamos excertos do precitado parecer:
22. A norma não abarcou expressamente a possibilidade de utilização da nova hipótese de dispensa no caso de necessidade de contratação e
execução de obras de engenharia, sendo possível afirmar que a aplicação da dispensa restringe-se a:
a) bens;
b) serviços, incluindo os de engenharia e
c) insumos de saúde.
23. O silêncio do disciplinamento em relação à utilização do novo procedimento no caso das obras de engenharia não pode ser interpretado como um mero descuido, uma vez que existe verdadeira interpretação autêntica no caso: a própria EMI 19/2020 refere-se somente às hipóteses detalhadas acima, sendo perfeitamente claro que sua exclusão não configura um esquecimento.
24. O escopo da Lei n. 13.979/2020 cinge-se, por conseguinte, a bens, insumos, serviços e serviços de engenharia. As obras de engenharia não foram contempladas e poderão, se for o caso, serem disciplinadas em futuras alterações normativas. (g.n.)
Em oportunidade mais recente, a Advocacia-Geral da União reiterou as premissas consignadas no precitado parecer, o que foi feito por meio do Parecer nº 00006/2020/CNMLC/CGU/AGU, cujas conclusões foram as seguintes:
27. Desse modo, cabe ao setor técnico de engenharia definir, segundo a sua expertise, se o objeto no respectivo caso concreto se trata de “obra
de engenharia” ou “serviço de engenharia”, conforme o teor da Orientação Normativa n. 54/2014 da Advocacia Geral da União.
28. Na hipótese de restar configurado que se trata o presente objeto de “obra de engenharia”, caberá o manejo das modalidades tradicionais dispostas na legislação de regência.
29. De qualquer sorte, considerando que a lei vem a trazer um tratamento excepcional, entende-se indevida a interpretação extensiva para inclusão de obras nesse regime jurídico, em especial porque a contratação de obras não é questão trivial e a possibilidade de sua dispensa (o que, nos termos do art. 37, XXI da Constituição Federal, depende de lei) não deve ocorrer sem as devidas cautelas. (g.n.)
Destarte, a ausência de presciência da contratação de obras de engenharia, dentro dos objetos declarados pelo art. 4º da Lei nº 13.979/2020, não há como ser interpretada como xxxxxxxx eloquente do legislador.
A falta de tal previsão, conforme já se posicionou a AGU, deu-se porque a contratação de obras “não é questão trivial e a possibilidade de sua dispensa (o que, nos termos do art. 37, XXI da Constituição Federal, depende de lei) não deve ocorrer sem as devidas cautelas”.
O quarto ponto a ser considerado, e que possui estrita relação com a precitada conclusão da AGU, é que, um dos objetivos traçados pela norma provisória e excepcional é, sem sombra de dúvidas, a simplificação de procedimentos para que, diante de uma emergência que a própria norma considera “presumível”, possa o gestor público agir imediatamente, sem a necessidade de observar algumas das burocracias previstas na Lei nº 8.666/1993.
Nesse sentido, cabe trazer à balha excerto do já citado Parecer nº 00002/2020/CNML/CGU/AGU:
5. A Lei n. 13.979/2020, com as alterações promovidas pela MP 926, de 2020, estabeleceu ferramentas de otimização da fase do planejamento da contratação no afã de otimizar e acelerar o procedimento para enfrentamento da situação decorrente do coronavírus.
6. A Exposição de Motivos constantes da MPV 926/20 é clara ao querer desburocratizar e agilizar os processos de contratação, seja por dispensa, seja por pregão. As concessões feitas no decorrer da Lei são explícitas no sentido de privilegiar o conteúdo da contratação em detrimento de sua economicidade formal. (g.n.)
Depreende-se da Lei nº 13.979/2020, assim como da Medida Provisória nº 1.047/2021, que vários foram os procedimentos simplificados para que a finalidade buscada pela norma, qual seja, de atendimento premente às necessidades da Administração Pública diante do enfrentamento da situação de emergência em saúde pública decorrente da Covid-19, fosse plenamente atingida.
Um dos pontos que interessa ao presente estudo é a admissibilidade de um “projeto básico simplificado”, introduzido pelo caput do art. 4º-E, o qual deverá conter, na forma de seu § 1º:
Art. 4º-E Omissis
§ 1º O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado referidos no caput deste artigo conterá:
I – declaração do objeto;
II – fundamentação simplificada da contratação; III – descrição resumida da solução apresentada; IV – requisitos da contratação;
V – critérios de medição e de pagamento;
VI – estimativa de preços obtida por meio de, no mínimo, 1 (um) dos seguintes parâmetros:
a) Portal de Compras do Governo Federal;
b) pesquisa publicada em mídia especializada;
c) sites especializados ou de domínio amplo;
d) contratações similares de outros entes públicos; ou
e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores; VII – adequação orçamentária.
A execução de uma obra de engenharia, em nossa análise e respeitando os posicionamentos divergentes, não comportaria a utilização de “projeto básico simplificado”, o qual está longe de atender ao escopo detalhado por normas técnicas, bem como pelo inciso IX do art. 6º da Lei nº 8.666/1993, senão vejamos:
IX – Projeto Básico - conjunto de elementos necessários e suficientes, com nível de precisão adequado, para caracterizar a obra ou serviço, ou complexo de obras ou serviços objeto da licitação, elaborado
com base nas indicações dos estudos técnicos preliminares, que assegurem a viabilidade técnica e o adequado tratamento do impacto ambiental do empreendimento, e que possibilite a avaliação do custo da obra e a definição dos métodos e do prazo de execução, devendo conter os seguintes elementos:
a) desenvolvimento da solução escolhida de forma a fornecer visão global da obra e identificar todos os seus elementos constitutivos com clareza;
b) soluções técnicas globais e localizadas, suficientemente detalhadas, de forma a minimizar a necessidade de reformulação ou de variantes durante as fases de elaboração do projeto executivo e de realização das obras e montagem;
c) identificação dos tipos de serviços a executar e de materiais e equipamentos a incorporar à obra, bem como suas especificações que assegurem os melhores resultados para o empreendimento, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
d) informações que possibilitem o estudo e a dedução de métodos construtivos, instalações provisórias e condições organizacionais para a obra, sem frustrar o caráter competitivo para a sua execução;
e) subsídios para montagem do plano de licitação e gestão da obra, compreendendo a sua programação, a estratégia de suprimentos, as normas de fiscalização e outros dados necessários em cada caso;
f) orçamento detalhado do custo global da obra, fundamentado em quantitativos de serviços e fornecimentos propriamente avaliados; (g.n.)
Ademais, é mister frisar que a Lei nº 13.979/2020, em seu art. 4º-C, assim como no art. 8º, inciso I, da Medida Provisória nº 1.047/2021, apenas dispensou a elaboração de estudos preliminares quando se estiver diante da aquisição de bens e contratação de serviços comuns.
E assim concluímos porque, em cenário de normalidade, o projeto básico deficiente é uma das maiores causas indutoras da irregularidade em uma licitação para execução de obra pública, segundo reconhece o Tribunal de Contas da União (2013, p. 53).
Então, se realizando uma licitação, em tese, com um projeto básico com a completude exigida pelo art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666/1993, já há risco de ele ser deficiente, quem dirá se fosse permitida a contratação de uma obra com a utilização de tal projeto em sua forma “simplificada”.
Devemos considerar, também, que é quase impossível que a execução de uma obra, a exemplo da construção de um hospital ou algo do gênero, possa ser concluída dentro de um prazo inicial de 6 (seis) meses ou, mais do que isso, a tempo de ser utilizada no combate à pandemia de Covid-19.
Tal façanha – conclusão de obra no prazo supracitado – não ocorre em período de normalidade, em que há facilidade de acesso à mão de obra, insumos e materiais a serem empregados na construção, imagine-se no atual cenário, cuja limitação atinge não apenas a mão de obra, mas também a aquisição de insumos e materiais.
Destarte, sob qualquer ângulo que se analise a questão, a conclusão não pode ser outra que não pela impossibilidade de a contratação de obras de engenharia ser dispensada com fulcro no regime excecional e temporário, antes previsto na Lei nº 13.979/2020 e agora na Medida Provisória nº 1.047/2021.
5. CONTRATAÇÃO DE OBRAS DE ENGENHARIA: POSSIBILIDADES E INSTRUMENTOS
Considerando as conclusões que expendemos, no sentido de ser impossível a invocação do regime de contratação extraordinário para ser fundamentada a contratação direta da execução de obra de engenharia, quais instrumentos disporá o administrador público na hipótese de
ser necessária a realização de uma obra para o enfrentamento da situação de emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19?
Primeiramente, deverá ser estudada e sopesada a urgência que o caso requer.
Há que ser analisada, sobretudo no atual cenário de calamidade, em que pode haver escassez de recursos humanos, materiais, equipamentos e de insumos no mercado, a necessidade em si de ser executada uma obra de engenharia, até porque a sua conclusão pode ocorrer após cessado o estado de emergência em saúde pública que ensejou a sua contratação, o que resultará em sua total inutilidade.
Uma obra de engenharia, consoante já se estudou anteriormente, demanda planejamentos antecedentes, estudos técnicos e, comprovada a viabilidade técnica e econômica,
a elaboração de projetos básico e executivos6 prévios no âmbito da fase interna do procedimento, seja licitatório ou não.
Desse modo, na atualidade, três podem ser os instrumentos utilizados pelo administrador público para a contratação de uma obra de engenharia, além, é claro, da possibilidade de ser realizada uma licitação por meio do uso das modalidades tradicionais (concorrência, tomada de preços e, eventualmente, convite).
O primeiro e o segundo instrumentos eram previstos na Lei nº 14.065, de 30 de setembro de 2020, que havia: (i) ampliado para até R$ 100.000,00 o limite de dispensa para a contratação de obras e serviços de engenharia, conforme hipótese prevista no art. 24, I, da Lei nº 8.666/93, além do limite para demais compras e serviços (inciso II do art. 24), até R$ 50.000,00; e (ii) autorizado a aplicação do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) de que trata a Lei nº 12.462/2011.
Anotamos que tais instrumentos poderiam ser invocados para toda e qualquer contratação e aquisição a ser feita pela Administração Pública, não estando, pois, restritos aos objetos necessários ao enfrentamento da situação de emergência em saúde pública decorrente da pandemia de Covid-19.
Embora a Lei nº 14.065/2020 não mais esteja vigente em nosso ordenamento, pois estava, igualmente, vinculada ao Decreto Legislativo nº 06/2020, algumas considerações se fazem necessárias, notadamente em relação ao uso do RDC.
Quanto às contratações de obras e serviços de engenharia a serem feitas com fundamento na dispensa de licitação de que trata o inciso I do art. 24 da Lei nº 8.666/1993, maiores digressões não se fazem necessárias, uma vez que apenas havia tido ampliação da base econômica que possibilita a sua adoção.
6 A lei permite que o projeto executivo, caso autorizado pela Administração, possa ser desenvolvido concomitantemente à execução da obra ou serviço (ex vi art. 7º, § 1º, da Lei nº 8.666/1993).
Portanto, deve o administrador público se ater, além do valor máximo para tal hipótese, às cautelas ordinárias, observando-se os procedimentos internos de cada ente e, ainda, a jurisprudência do TCU e da Corte de Contas do Estado a que estiver vinculado.
Deve-se, ainda, observar que a contratação enquadrada na hipótese do art. 24, inciso I, não pode decorrer de fracionamento indevido de seu objeto. Isto é, não podem se referir a
parcelas de uma mesma obra ou serviço, ou ainda obras e serviços da mesma natureza e no mesmo local, que possam ser realizadas conjunta e concomitantemente.
Já o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) continua sendo possível de utilização, cuja regulamentação se encontra exaustivamente disciplinada na Lei nº
12.462/2011, sendo que a sua adoção, além de obrigatoriamente constar do instrumento convocatório, afasta a incidência das normas contidas na Lei nº 8.666/93, exceto nos casos em que a própria norma previr expressamente o contrário.
Sem adentrar nas especificidades do RDC, o que não é objeto deste estudo, vale pontuar, apenas para conhecimento geral, algumas de suas principais características.
O RDC possui quatro objetivos bem definidos, que foram elencados no art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.462/2011, quais sejam: (i) ampliar a eficiência nas contratações públicas e a competitividade entre os licitantes; (ii) promover a troca de experiências e tecnologias em busca da melhor relação entre custos e benefícios para o setor público; (iii) incentivar a
inovação tecnológica; e (iv) assegurar tratamento isonômico entre os licitantes e a seleção da proposta mais vantajosa para a administração pública.
Em termos procedimentais, tal Regime possibilita o que se denomina de “multiadjudicação”, isto é, a Administração Pública poderá contratar mais de uma empresa para executar o mesmo objeto, desde que (art. 11): (i) haja expressa justificativa; (ii) não implique perda da economia de escala; (iii) quando for possível a execução do objeto de forma concorrente e simultânea; e (iv) a múltipla execução for mais conveniente aos anseios do ente licitante.
Em tal caso, caberá à Administração Pública manter um controle individualizado da execução do objeto em relação a cada uma das contratadas (art. 11, § 1º). Tal figura, é bom frisar, não equivale ou se assemelha ao instituto do consórcio e também não se aplica a serviços de engenharia.
Ademais, há possibilidade de serem invertidas as fases naturais da licitação, de forma a se proceder ao julgamento das propostas e, após, o de habilitação, o que resulta em ganhos significativos, sobretudo em termos de prazos procedimentais.
O RDC deve ser realizado, preferencialmente, em ambiente eletrônico, podendo a Administração Pública determinar, como condição de eficácia e de validade, que os licitantes pratiquem seus atos em formato eletrônico. O legislador permitiu, todavia, a sua realização em formato presencial.
No regime diferenciado foi previsto, para fins de oferecimento de propostas, o modo de disputa aberto, por meio do qual os licitantes fazem suas ofertas por meio de lances públicos e
sucessivos, crescentes ou decrescentes, conforme o critério de julgamento adotado, e no modo de disputa fechado, em que as propostas apresentadas pelos licitantes serão sigilosas até a data e a hora designadas para que sejam divulgadas7.
Há alguns aspectos do Regime Diferenciado de Contratações que até hoje são polêmicos. Dentre eles se destaca o sigilo dos orçamentos, a ser mantido até o fim do procedimento licitatório.
Um outro aspecto polêmico é o denominado “contrato de eficiência”, que se reveste de um ajuste acessório que terá por objeto a prestação de serviços, incluindo a realização de obras e o fornecimento de bens, com o objetivo de proporcionar economia à Administração Pública, na forma de redução de despesas correntes, sendo o contratado remunerado com base no percentual da economia gerada (art. 23, § 1º).
Outra novidade do RDC é a possibilidade de adoção, na execução indireta de obras e serviços de engenharia, do regime de contratação integrada, desde que técnica e
economicamente justificada e cujo objeto envolva, ao menos, uma das condições descritas nos incisos do art. 9º, a saber: (i) inovação tecnológica ou técnica; (ii) possibilidade de execução de diferentes metodologias; ou (iii) possibilidade de execução com tecnologias de domínio restrito no mercado.
Há que se considerar, também como fator preponderante à adoção do RDC, a questão do prazo a ser fixado entre a data de veiculação do instrumento convocatório e a de abertura da sessão pública da licitação. No caso de contratação de serviços e obras, foram previstos os seguintes prazos (art. 15, inciso II): (i) 15 (quinze) dias úteis, quando adotados os critérios de julgamento pelo menor preço ou pelo maior desconto; ou (ii) 30 (trinta) dias úteis, nas hipóteses não abrangidas pela alínea a do inciso II.
É válido, ainda, anotar que estão em julgamento, pelo plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, as Ações Diretas de Inconstitucionalidades nº 4.655 e 4.645, que foram propostas em face dos pontos polêmicos antes registrados, que se traduzem em inovações do RDC.
O eminente relator, Ministro Xxxx Xxx, em seu brilhantíssimo voto, prolatado em 22/05/2020, julgou improcedentes os pleitos formulados em ambas as ações, tendo, neste contexto, concluído pela constitucionalidade dos principais pontos do RDC, quais sejam, a contratação integrada, o orçamento sigiloso e contratos com remuneração por performance. Todavia, após o voto do relator, pediu vista o Ministro Xxxxx Xxxxxx, de forma que não foram concluídos os julgamentos das ADI’s.
7 Tais modos de disputa foram adotados no novel regulamento da modalidade Pregão, na forma eletrônica, aplicável no âmbito da Administração Pública Federal direta, conforme Decreto Federal nº 10.024, de 20 de setembro de 2019 (vide art. 31 e seguintes).
O terceiro instrumento à disposição do administrador público é a contratação direta, por dispensa de licitação, fundamentada no art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993, verbis:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos; (g.n).
Tal possibilidade é bem lembrada por Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx (et al., 2020, p. 63):
Convém lembrar, contudo, que também é possível a adoção das
demais hipóteses de contratação direta previstas na legislação ordinária.
Assim, embora não seja aplicável a dispensa do artigo 4º para
obras, diante de uma necessidade emergencial de atendimento desta pretensão administrativa, a contratação da obra poderá ter como fundamento o art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993. (g.n.)
O bem jurídico tutelado pela contratação direta por emergência ou calamidade pública é traduzido nas necessidades coletivas e metaindividuais, ou seja, pressupõe-se que a ausência da imediata contratação acarretaria lesão a bens públicos e, por conseguinte, às próprias finalidades perseguidas pela Administração Pública.
Assim, no caso de uma emergência ou calamidade, o tempo necessário para a deflagração e conclusão dos trâmites de um procedimento licitatório se revela um fator impeditivo à sua própria realização, posto que a sua demora é inconciliável com o interesse público caracterizado pelo objeto perseguido pela contratação.
Diante dessa situação, poderá o gestor, adotando todas as cautelas necessárias, sobretudo o dever de planejamento prévio ao procedimento, dispensar a licitação para a contração direta, inclusive de objetos enquadrados no conceito de obra de engenharia.
Todavia, há limites implícitos a serem observados, sobretudo em decorrência da restrição ao princípio de igualdade.
O primeiro deles diz respeito ao objeto da contratação, que, de acordo com o permissivo de que trata a hipótese ora estudada, deve se restringir ao estritamente necessário para afastar o risco de dano ao interesse público originado pela situação de urgência.
Para Renato Geraldo Mendes8, a contratação direta fulcrada no art. 24, IV, da Lei nº 8.666/1993:
(...) pode ter por objeto qualquer solução capaz de resolver o problema, ou seja, obras, serviços e compras. A solução dependerá sempre
do tipo de demanda que envolve a necessidade e caracteriza
a emergência ou calamidade pública. Portanto, a ação administrativa pode visar à contratação de um terceiro para executar uma obra ou um serviço típico de engenharia; a pretensão pode envolver o fornecimento de bens, tais como vacinas, alimentos, medicamentos, água, equipamentos, máquinas, geradores de energia, etc. O fundamental aqui é demonstrar que o objeto do contrato é meio eficaz de solução para evitar ou atenuar prejuízo aos bens, pessoas ou atividades, em razão da situação anormal que exigiu a ação estatal. (Destaquei)
Outro limite objetivado pela norma é o prazo máximo de duração para a vigência do contrato decorrente da contratação direta em voga.
Isto porque, considerando as peculiaridades que caracterizam a hipótese ora tratada, foi previsto o prazo máximo de 180 dias para a execução do objeto contratado, vedando-se, em regra, a sua prorrogação, ainda que o prazo inicial do contrato tenha sido fixado a menor.
Visou-se, com isso, evitar que uma situação marcada pela excepcionalidade pudesse se tornar ordinária/permanente, subterfugindo-se do dever de licitar.
Não obstante, destacamos que o TCU já admitiu, em análises específicas, a prorrogação de contrato firmado por dispensa de licitação por emergência ou calamidade pública, senão vejamos:
Relativamente a essa matéria, a jurisprudência consolidada do TCU é de que é vedada a prorrogação de contrato fundamentado na dispensa de licitação por emergência ou calamidade pública, exceto em hipóteses restritas, resultantes de fato superveniente, e desde que a duração do contrato se estenda por lapso de tempo razoável e suficiente para enfrentar a situação emergencial. Exemplos são os Acórdãos 1.667/2008-Plenário, 1.424/2007-1a Câmara, 788/2007-Plenário, 1.095/2007-Plenário bem como as Decisões 645/2002-Plenário e 820/1996-Plenário. (g.n.)
(TCU, Acórdão nº 1.022/2013, Plenário)
Portanto, em situações excepcionalíssimas, é possível admitir a prorrogação de contrato emergencial, desde que seja devidamente comprovada a manutenção das razões que ensejaram a contratação ou, ainda, o surgimento de novas circunstâncias que exijam a mesma solução extraordinária. Em tais situações, a prorrogação deve ser feita pelo prazo estritamente
8 Zênite Fácil. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx. Categoria Anotações, Lei nº 8.666/93, nota ao art. 24, Acesso em: 11 Nov. 2020.
necessário ao atendimento da urgência/emergência, sendo devidamente motivada e fundamentada pela autoridade competente.
Obviamente, na contratação direta em apreço, outros requisitos deverão instruir os autos do processo, quais sejam, caracterização da situação emergencial, calamitosa ou de grave e iminente risco à segurança pública que justifique a dispensa, razões de escolha do contratado/ executor e a justificativa de preço a ser pago para a execução do objeto, a fim de atender ao parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/19939.
6. CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, foi possível constatar que não há, ainda que diante do cenário de calamidade e de emergência em saúde pública decorrente da Covid-19, alterações conceituais dos institutos jurídicos, de forma que o conceito de obra ou de serviço continuam sendo os mesmos aplicáveis diante da normalidade.
Tais conceitos se amparam em normatizações técnicas, cabendo ao operador do direito, diante de dúvida quanto ao enquadramento, socorrer-se de auxílio de engenheiro habilitado, ao qual compete o domínio de tal conhecimento técnico.
Neste contexto, considerando que tanto a Lei nº 13.979/2020, como a MP 1.047/2021, elencaram, expressamente, os objetos passíveis de enquadramento na hipótese de dispensa de licitação nela tratada, não há como ser empregada interpretação extensiva para incluir, no campo de aplicação da norma, a contratação de obra.
A precitada conclusão decorreu dos vários fatores analisados neste arrazoado, os quais, em síntese, destacamos a seguir: (i) diferença conceitual entre obra e serviço de engenharia; (ii) as hipóteses de dispensa de licitação são expressas em lei (rol taxativo), não comportando ampliação, sob pena de incidência no crime capitulado no art. 89 da Lei nº 8.666/1993; (iii)
a hipótese de dispensa de licitação trazida pelo art. 4º da Lei nº 13.979/2020, com suas alterações, é para objetos específicos e expressamente nela declarados.
A omissão quanto à contratação de obra não pode ser interpretada como xxxxxxxx eloquente do legislador (vide Pareceres 00001 e 00006/2020, da AGU); e (iv) a contratação de obras não se coaduna com a adoção de projeto básico simplificado, tal como autorizado pelos regimes excepcionais de contratação.
Em que pese termos concluído pela inaplicabilidade de tais regimes para a contratação direta de obra de engenharia, apontamos, neste artigo, outros instrumentos à disposição do gestor, caso tal necessidade deva ser suprida pela Administração Pública.
9 Para uma análise mais aprofundada em torno da hipótese de contratação direta ora discutida, indica-se a leitura de nosso artigo intitulado “AQUISIÇÃO DE BENS E INSUMOS E CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS PARA O ENFRENTAMENTO DA EMERGÊNCIA GERADA PELA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS”, disponível na
plataforma Zênite Fácil e no blog da Zênite, assim como veiculado no SLC nº 25, de abril de 2020, editado pela SGP.
O primeiro instrumento brevemente analisado foi a dispensa de licitação fundamentada no art. 24, inciso I, da Lei nº 8.666/93, que continua sendo possível, desde que não se refiram a parcelas de um mesmo objeto e estejam estimados até o limite da hipótese, aplicando-se, no caso, todas as cautelas ordinariamente observadas em tal forma de contratação direta.
O outro instrumento colocado à disposição do administrador público, cuja utilização ainda se revela possível, é o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), regido pela Lei nº 12.462/2011, cujas particularidades, em síntese, foram tratadas em tópico específico deste artigo.
E, por último, mas não menos importante, diante da necessidade de contratação de obra de engenharia, e desde que demonstrada a subsunção dos fatos à norma autorizadora, poderá o gestor se valer da dispensa de licitação por emergência disciplinada pelo art. 24, inciso IV, da Lei nº 8.666/1993.
Na contratação direta com base no precitado dispositivo legal, além dos requisitos da hipótese em si, deverão ser devidamente comprovadas as razões de escolha da empresa a ser
contratada e as justificativas quanto ao preço a ser pago na contratação, previstos nos incisos II e III do parágrafo único do art. 26 da Lei nº 8.666/1993.
Quanto ao preço a ser pago, certamente não se está a exigir que a contratação ocorra pelo menor preço possível, mas sim que este seja compatível com a realidade do mercado próprio, a partir de bases referenciais adequadas e devidamente motivadas.
Veja-se, portanto, que há, além das modalidades tradicionais e possíveis para a contratação de uma obra de engenharia (concorrência, tomada de preços e convite), instrumentos que podem
– e devem – ser adotados pelo gestor para que, diante de uma necessidade, possa optar pela forma mais célere e satisfativa aos anseios da Administração Pública.
Diante deste contexto, não cabe ao gestor optar por não agir, pois a sua omissão poderá ser censurável à luz do direito pátrio, mas sim, a partir de um planejamento adequado – plenamente possível, ainda que diante das urgências e emergências que se apresentam -, optar pela forma mais racional e segura para o atendimento das necessidades da Administração Pública.
Por fim, é mister lembrar que o gestor deve ser aliado da motivação, legalidade e publicidade, princípios basilares e norteadores de sua atividade no âmbito da Administração Pública.
REFERÊNCIAS
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