Pluralidade de seguros: Conceito, extensão e
Pluralidade de seguros: Conceito, extensão e
valência
*
Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxxxx Xxxxxx
Lista de abreviaturas
LCS – Lei do Contrato de Seguro
CC – Código Civil
X.Xxx. – Código Comercial
I.e. – Isto é
p. - página
RL – Tribunal da Relação de Lisboa
ROA - Revista da Ordem dos Advogados
STJ – Supremo Tribunal de Justiça
Introdução
Parte I – O Conceito de pluralidade de seguros:
1. Princípios gerais convocados pelo instituto
1.1. Princípio indemnizatório
1.2. Desoneração da seguradora em caso de contratação plural fraudulenta
1.3. Autonomia privada no regime de pluralidade de seguros
1.4. Imperatividade relativa no regime de pluralidade
2. Delimitação positiva do conceito de pluralidade de seguros
2.1. Identidade temporal
2.2. Identidade de risco
2.3. Identidade de interesse
2.3.1. Interesse no seguro de pessoas
2.4. Requisitos subjetivos
2.4.1. Identidade pessoal
2.4.2. Não identidade de seguradoras
3. Delimitação negativa do instituto
3.1. Sobresseguro
3.2. Cosseguro
3.3. Resseguro
3.4. O seguro subsidiário e o seguro complementar
3.5. As situações de pluralidade aparente de seguros
3.5.1. Repartição de responsabilidade por sinistros
3.5.2. Sinistros com classificação plural
3.5.3. Proteção múltipla de interesses
3.5.4. Ficções de unidade de objeto seguro em dois contratos autónomos
3.6. Pluralidade de seguros em sentido próprio meramente parcial
3.7. Regras aplicáveis a situações de pluralidade aparente e pluralidade verdadeira parcial
Parte II - O regime da pluralidade de seguros
1. A validade dos diversos contratos
1.1. Pluralidade de seguros no Código Comercial
1.1.1. Exceções expressas à ilicitude do segundo contrato
1.1.2. O seguro complementar no X.Xxx.
1.1.3. As soluções interpretativas do art. 434º X.Xxx.
1.2. Sistemas comparados
2. Dever de informação
2.1. Forma e conteúdo da comunicação
2.2. Sujeitos do dever de informar
2.3. Prazo da informação
3. As situações de omissão do dever de comunicação
3.1. Simples omissão
3.1.1. Licitude de cláusulas limitativas em caso de mera pluralidade
3.1.2. Dever de informação e dever de declaração inicial de
risco
3.1.3. Eliminação da pluralidade em caso de desconhecimento
3.2. Omissão fraudulenta
3.2.1. Consequências da omissão fraudulenta
3.2.2 Inoponibilidade ao lesado da omissão fraudulenta
4. Relações segurado – segurador com produção do evento lesivo
5. Relações entre seguradoras com produção do evento lesivo
6. As regras de common law referentes a pluralidade de seguros
7. Pluralidade no seguro de pessoas
7.1. Contratos com prestações de valor predeterminado
8. Aplicação das regras da pluralidade a outras situações.
Introdução
Apresentar um estudo sobre o regime de pluralidade de seguros poderá apresentar relevo dogmático a dois níveis.
Numa análise mais imediata, a questão tem interesse próprio, não só a nível teórico e de aplicação prática mas também por ser daquelas matérias em que a reforma legal do regime de contrato de seguro introduzida pelo DL n.º 72/2008 é inovadora, trazendo ao regime português uma disciplina, como se verá, equiparável à dos ordenamentos mais avançados nesta área do direito.
Num segundo nível, mais mediato, não já do interesse dogmático estrito da matéria que se analisará, o tema da pluralidade de seguros afigura-se também como especialmente denunciador dos princípios que enformam todo o direito de seguros e, nessa medida, afigura-se como uma boa janela de observação das traves-mestras que enformam esta área do direito civil.
O desenvolvimento que se apresenta procura, numa primeira parte, descobrir e delimitar o conceito de pluralidade de seguros. Tal far-se-á de forma positiva e negativa. Do lado positivo, apresentando os princípios que enformam o conceito e as regras legais que lhe são aplicáveis.
Do lado negativo, delimitando o instituto de figuras que lhe são próximas e que permitem melhor definir os seus contornos.
Estabelecido o conceito, procurar-se-á, numa segunda parte deste estudo, entender o alcance do regime instituído no nosso ordenamento, procurando estabelecer o conteúdo das normas introduzidas na reforma de 2008, em si consideradas, por referência às soluções que o nosso ordenamento pregresso apresentava e por referência às soluções que ordens jurídicas próximas apresentam.
Em síntese, procurando identificar as inovações introduzidas pelo legislador de 2008 e a matriz das regras aplicáveis ao regime português de pluralidade de seguros, naquilo que seja singular e naquilo que seja comum a outros ordenamentos.
Concluir-se-á procurando averiguar e estabelecer se o instituto da pluralidade de seguros pode desempenhar outra função na ordem jurídica que exceda o estrito âmbito de aplicação para que foi pensado.
Parte I – O Conceito de pluralidade de seguros:
1. Princípios gerais convocados pelo instituto
Ao começar a identificação do conceito de pluralidade de seguros e do seu conteúdo, devem chamar-se à colação os princípios que definem, ainda em traço grosso, os respetivos contornos.
Em geral, pode dizer-se que não são princípios exclusivos desta área do direito mas verdadeiros princípios genéricos de direito privado que, todavia, neste ramo, pelas características do mesmo, ganham matizes próprias, que de seguida se procurarão apresentar.
A ordem por que serão apresentados respeita a relevância que aos mesmos se atribui para a disciplina do tema tratado.
1.1. Princípio indemnizatório
Trata-se de um princípio comum a todos os regimes de contrato de seguro, que está expressamente consagrado na secção III da LCS, no capítulo relativo a seguro de danos, art. 128º e seguintes.
Em síntese, estabelece uma limitação das prestações do segurador ao montante dos danos sofridos pelo lesado e ao valor do capital seguro.
É um princípio estruturante de todo o direito de seguros, decorrendo diretamente da sua função no sistema jurídico e que traduz, sobretudo, a recíproca transferência e assunção de riscos diversos da vida social, do comum dos sujeitos de direito, particulares ou empresas, para entidades especialmente vocacionadas para tal fim, as sociedades seguradoras1.
1 Cfr., a propósito, ENGRÁCIA ANTUNES, O contrato de seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, jul. Set. e out. Dez. 2009, p. 816 a 818.
Neste prisma, repescando o que se disse antes, o princípio indemnizatório, elemento estruturante das regras de responsabilidade civil, tem na área de direito dos seguros uma conformação própria2.
Sabe-se que a responsabilidade civil no nosso ordenamento jurídico tem função meramente ressarcitória, não havendo uma função sancionatória natural nos mecanismos de ressarcimento de danos3.
A particularidade do princípio indemnizatório em direito de seguros é a que decorre precisamente da função primacial desta área de direito no conjunto do ordenamento jurídico.
O direito de seguros, se reduzido à expressão mínima e excluindo aquilo que se possa qualificar de regulação de seguros financeiros de capitalização, traduz a regulação dos mecanismos de transferência onerosa de riscos da vida em sociedade para entidades especializadas, que garantem concretização de indemnização aos beneficiários, desonerando, ou não, consoante os casos, os responsáveis diretos pelos eventos lesivos, se os houver.
Isto é, em síntese, podemos afirmar que a primeira e básica função do direito de seguros, no conjunto do ordenamento jurídico e, mais vastamente, da própria organização social, é de garantir a beneficiários, tomadores ou não nos contratos, que, caso sofram prejuízos contratualmente previstos, serão efetivamente ressarcidos, verificada a ocorrência de determinado evento lesivo.
Este princípio indemnizatório constitui, assim, o que se pode qualificar de verdadeiro tronco central do direito de seguros. A transferência de riscos na ordem jurídica para entidades especializadas é onerosa, sendo a garantia de ressarcimento de danos a correspetiva prestação da empresa seguradora.
2 Sobre fundamento geral da responsabilidade civil, em geral, cfr. Xxxxxx Xxxxxxx xx XXXX XXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., Coimbra ed., 1996, p. 114-117, Xxxxx XXXX XX XXXXXXXXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 17-20.
3 Sobre responsabilidade civil no ordenamento nacional, seus fundamentos e estruturação, cfr. Xxxxxxx XXXXXXX XXXXXXXX, Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina 2014, p. 429 a 589 (responsabilidade delitual) e 591 a 747 (responsabilidade pelo risco); Xxxx XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina 2000, p. 518 a 715, Xxxxxxxxx XXXXXX XXXXXX, Direito das Obrigações, 7ª ed., Coimbra ed., 2014, p. 208 a 218 e Xxxx XXXXXXX XXXXXXXX, Responsabilidade Civil, Quid Juris, Lisboa, 2013.
O princípio indemnizatório nesta área implica uma imputação de segundo grau da obrigação de indemnizar um dano (da esfera de quem o sofreu para a esfera do responsável e da esfera deste para a esfera da seguradora)4.
A disciplina da pluralidade de seguros será um dos diversos corolários desse princípio indemnizatório, como será também, por exemplo, a disciplina do sobresseguro.
Partindo desta base, pode chamar-se à colação, a este propósito, uma primeira definição, ainda muito imprecisa, do que deve entender-se por pluralidade de seguros.
Pluralidade de seguros referir-se-á a situações em que o mesmo evento danoso esteja previsto, seja regulado e o seu ressarcimento seja estabelecido em mais que um contrato de seguro.
O princípio indemnizatório, aplicado a esta área dogmática do estudo do contrato de seguro, imporá que a indemnização adveniente das regras dos diversos contratos de seguro nunca possa exceder, em conjunto, o valor global dos danos sofridos pelo lesado e também, claro, o valor dos capitais seguros.
Quer isto dizer, por outro lado, que pelas regras do nosso ordenamento, não é admissível enriquecimento do património de lesados ou beneficiários por via de contrato de seguro, seja este um único, seja em situação, como a que se estuda, de dois ou mais contratos preverem ocorrência de um mesmo evento lesivo.
1.2. Desoneração da seguradora em caso de contratação plural fraudulenta
Pode fazer-se uma autonomização conceptual deste princípio, que não é uma mera decorrência do princípio indemnizatório antes referido.
4 A propósito, sobre responsabilidade civil, diz MENEZES CORDEIRO que esta é a ocorrência jurídica na qual um dano registado numa esfera é imputado a outra, através da obrigação de indemnizar – Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, T. I, Almedina 2009, p. 421.
O corolário lógico do princípio indemnizatório em situação de pluralidade de seguros, no caso de ocorrer evento lesivo em que o valor das indemnizações contratadas exceda o valor dos danos, será a desoneração proporcional da obrigação das seguradoras.
Nos casos, porém, em que seja possível estabelecer que o tomador dos contratos de seguros, ao segurar, procurou enriquecer o seu património por via de execução fraudulenta de contratos de seguro plurais, a sanção legalmente imposta não se atém à desoneração proporcional da responsabilidade das diversas seguradoras mas a desoneração total da responsabilidade de todas.
Quer isto dizer, o legislador não se limita, nesta matéria, a consagrar o princípio indemnizatório. O regime da pluralidade de seguros, ao estabelecer verdadeira sanção de desoneração da responsabilidade dos seguradores, em caso de contratação e tentativa de perceção de prestações de forma fraudulenta por tomador ou segurado, permite identificar um princípio sancionatório autónomo5.
Bem se percebe, aliás, que assim seja.
De entre as fraudes relativas a seguros configuráveis, a que decorra de contratação plural de seguros, máxime com falsas declarações quanto a tal circunstância, será uma situação facilmente prefigurável e merecedora de tutela.
Sabendo-se, a priori, que existe uma especial propensão a fraude nesta área de ordenamento civil, atenta a circunstância de um dos contratantes ser entidade economicamente forte e, por outro lado, sendo a possibilidade de fraude por contratação plural especialmente patente, não bastaria, para uma adequada regulação, na perspetival, que se reputa correta, do legislador, meramente consagrar o princípio indemnizatório.
Se assim fosse, i.e., se se tratasse de mera consagração de princípio indemnizatório, a dissuasão da fraude, que é claramente pretendida pelo legislador, não seria conseguida. O beneficiário que tentasse fraude por
5 Cfr., a propósito, Xxxxxxx XX XXXXX, (coord.), Le Assicurazione, Giuffré Editore, Milão, 2007, p. 186.
contratação plural, na pior das hipóteses, veria o seu crédito indemnizatório ser reduzido aos danos.
Com a consagração deste princípio de desoneração em casos de contratação plural fraudulenta, existe instituição de um verdadeiro critério dissuasor da fraude que merece autonomização.
Isto é, a posição do tomador de seguro, beneficiário ou não, apenas é merecedora de tutela, na perspetiva do legislador, quando a contratação plural de seguros que concretize tenha por estrita finalidade garantir, ou reforçar a garantia, de ressarcimento integral de danos ou, pelo menos, quando não se concretize de má-fé.
1.3. Autonomia privada no regime de pluralidade de seguros
A autonomia privada, em geral, entendida como permissão genérica de produção de todos os efeitos jurídicos não proibidos6 decorre, antes de mais, da ampla capacidade jurídica de todos os sujeitos (art. 67º do CC) e, mais especificamente, a liberdade contratual, como estatuída pelo art. 405º do CC, é um dos pilares do direito civil e, por consequência, encontra-se genericamente garantida na área de direito dos seguros, pelo art. 11º da LCS7.
É um princípio operante e dominante no que concerne à contratação plural de seguros, garantindo, desde logo, validade e eficácia a dois ou mais contratos com idêntico objeto.
Sabendo-se que a conformação do princípio da autonomia privada é, em larga medida, obra do legislador e não se podendo dizer que constituísse entorse inadmissível ao mesmo a consagração da regra oposta, i.e., a proibição de
6 Xxxx Xxxxxx XXXXXXX XXXXXXX, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos. Xxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000, p. 439.
7 Sobre autonomia privada, por todos, cfr. XXXXXXXX XXXXX HÖRSTER A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1992, p. 52 a 57, cfr. também p. 60 e seguintes sobre limitações à liberdade e XXXXX XXXX XX XXXXXXXXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª ed., Almedina, 2008, p. 15 e 16.
contratação plural de contratos para um mesmo evento, não deixa de merecer referência esta opção legal de alargar a área de liberdade de cidadãos e empresas nesta matéria.
É, assim, válida a celebração de mais que um seguro com o mesmo objeto contratual.
Por outro lado, este princípio de relevância da autonomia privada, nesta área da pluralidade de seguros, também encontra consagração clara na supletividade das regras de repartição das prestações entre os diversos seguradores (art. 133º n.º4 da LCS).
Quer isto dizer que o legislador não só permite validamente celebrar mais que um contrato para cobrir o mesmo evento, como permite que a repartição de responsabilidade das seguradoras entre contratos seja livremente estipulada. Supletivamente disciplina as regras de repartição no caso de as partes o não fazerem, mas não retira às partes de cada contrato o direito de, querendo, o estabelecerem.
Importa atentar que esta eventual convenção em contrário na repartição de ressarcimento de danos entre seguradores, na proporção que cada um teria que pagar se existisse um contrato único, constitui uma verdadeira desqualificação dogmático-conceptual da pluralidade de seguros em sentido próprio.
Essa convenção, na prática, converte o seguro plural em seguro complementar ou seguro subsidiário, consoante o acordo assente no funcionamento cumulativo ou alternativo de dois contratos de seguro, ante a verificação de danos com a extensão que as partes previrem em cada contrato.
É evidente, assim, que esta convenção em contrário é a convenção entre tomador e segurador em cada um dos contratos e não, portanto, convenção entre seguradoras, caso em que a situação se converteria em cosseguro. Nesse caso deveria tal acordo ser taxado de inválido, por dever entender-se que as normas do art. 62º e 63º impõem, no regime nacional, que o cosseguro seja operado com um único contrato.
1.4. Imperatividade relativa no regime de pluralidade
A despeito do que se disse antes sobre autonomia privada, deve relevar-se, também a este propósito, o princípio estatuído no art. 13º n.º1 da LCS.
Estabelece este preceito, ao nível da regulação geral do contrato de seguro, que as regras deste regime são imperativas para a seguradora mas não para o segurado, i.e. não admitem qualquer derrogação mais favorável ao segurador, admitindo-a, por outro lado, a favor do tomador.
Isto é, procurando sintetizar, vigora a autonomia privada mas, na medida em que o regime consagra direitos ou vantagens aos segurados, não podem as regras deste regime ser derrogadas a favor da seguradora.
Tal impossibilidade de derrogação contratual manifesta-se, desde logo, na impossibilidade de, por via contratual, impedir a mera possibilidade de contratação de outros seguros com o mesmo objeto.
Salvaguardas as supra referidas situações de fraude do segurado, é ilícita limitação desse tipo, se introduzida em cláusula contratual, por contender com a referência expressa ao regime de pluralidade de seguros (art. 133º da LCS) feita pelo art. 13º.
Em qualquer caso, mesmo sem essa referência expressa, sempre deveria entender-se que uma cláusula contratual de impossibilidade de contratação de idêntico seguro sempre contenderia com o princípio de imperatividade relativa, por ter cariz vantajoso para tomador e segurado esta previsão.
De facto, tal natureza vantajosa da permissão de contratação plural parece impor-se como conclusão, por constituir, na perspetiva do tomador, um reforço da garantia de ressarcimento.
É questão a que se voltará mais detidamente à frente a propósito de cláusulas limitativas de responsabilidade em situação de pluralidade8.
8 Infra Parte II, 3.1.1.
2. Delimitação positiva do conceito de pluralidade de seguros
A definição do conceito de pluralidade de seguros deve ser buscada no regime de seguro de danos, não só por ser o basilar, como por ser aquele para que o legislador expressamente remete no que respeita a pluralidade de seguros de pessoas (art. 180º n.º2 da LCS).
O conceito deve ser encontrado, assim, nas regras do art. 133º n.º1 da LCS.
Diz este preceito, na sua estrutura de previsão, ainda que a estatuição da norma se reporte meramente a deveres de informação, que haverá pluralidade de seguros quando um mesmo risco relativo ao mesmo interesse e por idêntico período esteja seguro por vários seguradores.
O regime português é o único dos estudados que tem previsão específica para situações de pluralidade de seguros de pessoas mas, como referido, o conceito deve extrair-se, também na nossa ordem jurídica, da matéria do seguro de danos.
A definição dogmática deve ser encontrada, assim, na reunião de quatro requisitos de identidade entre contratos de seguro: período temporal; risco, interesse e determinada identidade pessoal9.
O mesmo dispõem os vários ordenamentos estudados. Em Espanha, dispõe o art. 32º &1 da Ley de Contrato de Seguro – Cuando en dos o más contratos estipulados por el mismo tomador com distintos asseguradores (…); em Itália, o 1910º do Codice Civile estabelece - Se per il medesimo rischio sono contratte separatamente più assicurazione presso diversi assicuratori (…); em França, o art. L121-4 o Code des Assurances - Celui qui est assuré auprès de plusieurs assuré auprès de plusieurs assureurs par plusieurs polices, pour un même intérêt, contre un même risque (…) e, na alemanha, o insurance contract act –
9 Sobre requisitos de l`assicurazione plurima o presso diversi assicuratori, cfr. Antigono DONATI, , Tratatto Del Diritto Delle Assicurazioni Privati, vol secondo, III -Il Diritto Del Contratto di Assicurazione, Giuffrè Editore, 1954, p. 264 a 267.
Anyone who insures the same interest against the same risk with several insurers
(…)10.
Pode, assim, dizer-se que o conceito de pluralidade de seguros é comum aos ordenamentos civilistas estudados, incluindo alguns dos mais avançados.
2.1. Identidade temporal
O primeiro dos requisitos não apresenta dificuldade de maior, devendo meramente referir-se que a identidade de período temporal não tem que ser absoluta e, aliás, frequentemente não o será.
É que, evidentemente, só numa minoria de situações é que a coincidência de períodos de vigência de contratos de seguro será absoluta.
Tal talvez possa suceder em seguros de cobertura de eventos sociais de duração limitada e previamente conhecida: uma viagem de transporte de pessoas e/ou bens, um dado evento cultural ou desportivo ou outras situações equivalentes.
Na generalidade dos contratos de seguro, com períodos de vigência não tão determinados, a coincidência temporal não será total.
Nesses casos, como é evidente, o regime de pluralidade será o aplicável, se e quando, o sinistro ocorra na vigência dos dois ou mais contratos.
O momento relevante para avaliação de situação de pluralidade será, pois, o de ocorrência do evento danoso, ainda que os deveres legais impostos pelo regime, desde logo o de informação à seguradora, se imponham logo que concluída a outorga do segundo contrato.
2.2. Identidade de risco
É evidente que o risco constitui tema da dogmática de direito dos seguros merecedor de tratamento autónomo, como, aliás, o conceito de interesse, a seguir referido.
10 Tradução oficial para inglês do Bundesministerium der Justiz und für Verbraucherschutz em xxxx://xxx.xxxxxxx-xx-xxxxxxxx.xx/xxxxxxxx_xxx/xxxxxxxx_xxx.xxxx
Por não ser esse o centro desta análise, a alusão aqui feita é-o por referência estrita às questões de pluralidade, sem aprofundamento exaustivo do tema.
Em termos simples, define-se risco como a possibilidade de ocorrência de um evento danoso sobre determinado bem ou pessoa11.
Só haverá seguro plural quando tal possibilidade esteja prevista em dois ou mais contratos.
Este é um elemento cardeal em todos os ordenamentos estudados, que o estabelecem como requisito definidor de pluralidade de seguro.
À semelhança do que se referiu para coincidência temporal, mutatis mutandis, também, só com a produção do sinistro, em muitos casos, se aferirá efetivamente da identidade de risco e, por isso, só nesse momento, nesses casos, será possível estabelecer identidade.
Imagine-se, para perceber o que antes se disse, que uma empresa segura as suas instalações contra incêndios, independentemente da sua origem, de forma concorrente e com o mesmo capital seguro, em dois contratos de seguro.
Neste caso é fácil dizer que existe identidade de risco.
Agora imagine-se que a mesma empresa contrata dois seguros contra danos, um especificamente atinente ao risco de incêndio e outro atinente a pluralidade de riscos. Neste caso, ocorrendo danos decorrentes, por exemplo, de uma inundação na sequência de uma tempestade especialmente severa, não haverá pluralidade de seguros. Por outro lado, se ocorrer um incêndio, existirá identidade de riscos passível de fundamentar situação de pluralidade de seguros.
11 Sobre risco, seu sentido material e formal, cfr. Xxxx XXXXX, Estudos de Direito dos Seguros, Xxxxxxx & Xxxxxx Xxx., 2008, p. 79 a 81 e O Dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina, 2013, p. 86 a 96.
Cfr. também XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX, Direito dos Seguros, Almedina, 2013, p. 481 a 490 Antigono DONATI, , Tratatto Del Diritto Delle Assicurazioni Privati, vol secondo, III -Il Diritto Del Contratto di Assicurazione, Giuffrè Editore, 1954, p. 105 a 187 e ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, Almedina 2009, p. 704 a 707 e O contrato de seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, p. 840 a 843.
Quer isto dizer, em síntese, que a verificação da identidade de risco que fundamente situação de pluralidade far-se-á ex ante, na análise do teor dos dois ou mais contratos, mas a sua confirmação estará dependente de análise casuística, ex post, no momento do sinistro, naqueles casos em que não exista identidade completa.
Esta circunstância justifica a opção legal, que à frente se analisará mais detidamente, de impor dever de informação da situação de pluralidade em dois momentos: em prazo razoável sobre o momento da contratação do segundo seguro e no momento de produção do sinistro.
A primeira comunicação poderá, nos casos de identidade total de riscos, ser esclarecedora. Noutras situações em que a identidade de riscos não seja total, a primeira informação traduzirá comunicação de uma mera possibilidade de operar pluralidade de seguros, possibilidade que se confirmará, ou não, com a produção do sinistro.
2.3. Identidade de interesse
O legislador nacional estatui expressamente, como requisito de validade de qualquer contrato de seguro, a existência de interesse em segurar (art. 43º n.º1 da LCS).
O conceito de interesse será um dos mais fluídos e dogmaticamente variados do direito civil12.
Pode apontar-se como definição sintética para o conceito a de relação de carácter económico entre um sujeito e um bem13.
12 MENEZES CORDEIRO, Direito dos Seguros, 2013, encontra 75 referências no CC a interesse e faz uma abordagem extensa sobre a questão, p. 497 a 502. Sobre interesse cfr. Antigono DONATI, Tratatto Del Diritto Delle Assicurazioni Privati, vol secondo, III - Il Diritto Del Contratto di Assicurazione, Giuffrè Editore, 1954, p. 187 a 240, ENGRÁCIA ANTUNES, Direito dos contratos comerciais, Almedina 2009, p. 707 a 711 e O contrato de seguro na LCS de 2008, ROA, Ano 69, p. 844 a 846.
13 Neste sentido, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX; Xxxxxxxxx XXXXXX XXXXXX; Xxxx Xxxxxx XXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx XXXXXXX XXXXXXX , Ley de Contrato de Seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones, Ed. Arazandi, 3ª ed. 2005, p. 472.
É este interesse que nos parece ser o conceito operável ainda que possa identificar-se, como faz XXXXXXX CORDEIRO, um interesse geral e um interesse específico14.
No art. 43º n.º2 da LCS, a propósito de seguro de danos, tal relação de carácter económico é referida como respeitante à conservação ou integridade de coisa, direito ou património seguros.
Isto é, para o legislador, apenas haverá celebração válida de contrato de seguro se o contratante, beneficiário ou não, demonstrar determinada relação económica com a coisa, direito ou património a segurar.
Se o contratante não tiver relação relevante com tal bem, direito ou universalidade de bens e direitos, não deve ser admitido a celebrar contrato de seguro a estes respeitante e, se contratar, tal ato jurídico será nulo porque o contrato traduziria uma mera aposta15.
O que se disse quanto à possibilidade de identidade meramente parcial, a propósito de identidade temporal e de risco, também terá aqui a sua aplicação.
Pode um contrato, por exemplo, respeitar à conservação de um dado bem do segurado e outro respeitar à conservação de um conjunto de bens que inclua o primeiramente referido.
Nesse caso a coincidência de interesse é meramente parcial e existirá situação de pluralidade se e quando o sinistro atinja o bem seguro em ambos os contratos.
Quer dizer que, também aqui, a aferição da situação de pluralidade, nos casos de não coincidência total de interesse, far-se-á indicativamente ex ante sinistro e confirmar-se-á, ou não, ex post.
2.3.1. Interesse no seguro de pessoas
14 Direito dos Seguros, p. 513. Interesse geral permite determinar a pessoa do segurado e cuja presença justifica, em termos significativo-ideológicos, a existência do seguro, com todo o investimento privado e público que ele implica. Interesse específico será o que se identifica com o valor do capital seguro.
15 Assim, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, loc. cit..
A existência de interesse no seguro de pessoas é questão que foi amplamente debatida, podendo dizer-se que a generalidade das correntes doutrinais dos anos 60 e 70 do século passado, em Itália e Espanha, não a admitiam, entendendo basicamente que esse conceito não pode ser associado a contratos de seguro com este objeto16.
Atualmente as correntes doutrinais admitem comummente o interesse como requisito da validade de seguros de pessoas, sendo este interesse comum a todos os seguros, sob pena de o seguro, como antes se disse, se converter numa aposta17.
A lei portuguesa, no art. 43º n.º3, contorna a questão doutrinal, impondo a aceitação de pessoa segura que não seja beneficiária como requisito de validade de seguro relativo a pessoas, excetuando os casos de contratação em cumprimento de obrigação legal ou instrumento coletivo de trabalho.
Dir-se-á que o legislador entende que a declaração de aceitação da pessoa segura que não seja o beneficiário estabelece uma relação jurídica relevante entre a posição do tomador de seguro e o seu interesse em contratar. Essa autorização retira, precisamente, o caracter de aposta que poderia ter sem ela.
Será essa relação, traduzida na autorização, que confere validade ao contrato, ainda que não seja um interesse propriu sensu.
Por outro lado, tal requisito previne eventuais riscos de enriquecimento por via de contratos de seguro meramente especulativos com a vida ou integridade física alheias ou, no limite, será até fator impeditivo de práticas atentatórias da integridade de pessoas não contratantes18.
16 Assim, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, Ley de Contrato de Seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones, Ed. Xxxxxxxx, 2005, p. 471.
17 Ob. e loc. cit. nota anterior.
18 Sobre a possibilidade de o contratante atentar contra a própria vida, i.e., suicídio da pessoa segura, cfr. X.X. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contrato de Seguro, Coimbra editora, 2009, p. 29 e 30 e 256 a 258. De salientar que alguns ordenamentos excluem expressamente da cobertura dos seguros de vida crimes com participação da pessoa segura (ob. e loc. Cit. nesta nota).
É precisamente por ter o legislador contornado a questão dogmática de relevância do requisito interesse no seguro de pessoas que, no preceito relativo a seguro plural de pessoas (art. 180º n.º2) se refira apenas a risco e não a interesse.
Quer isto dizer, como é lógico, que será lícita a celebração de mais que um contrato de seguro de pessoas desde que a pessoa segura não beneficiária manifeste a sua aceitação em todos os contratos.
Face à imposição de consentimento dos segurados em todos os contratos, a relevância deste requisito na pluralidade de seguros de pessoas fica diluída, havendo apenas que apurar da validade e eficácia das declarações de consentimento proferidas por tal pessoa nos diversos contratos, sendo certo que, nos casos em que tomador e pessoa segura coincidem, a própria tutela pessoal que o seguro documenta atesta o interesse existente (em sentido amplo).
2.4. Requisitos subjetivos
2.4.1. Identidade pessoal
A propósito de identidade pessoal a primeira ressalva que se impõe fazer é que não deve confundir-se a identidade relevante para estes efeitos com a incidência do dever de informação, que à frente se referirá.
Uma coisa é saber qual a identidade que deve ser repetida para que se verifique uma situação de pluralidade outra a de saber quem está obrigado a informar os seguradores dessa mesma situação.
Em muitos casos a pessoa será a mesma, sendo esta o segurado e tomador de seguro. Noutros não será, quando segurado e tomador não sejam a mesma pessoa.
A identidade que se pode considerar relevante é a de segurado, por ser em relação a este que os riscos relevantes são aferidos.
Tal não deixa de colocar dúvidas, no caso de o beneficiário ser pessoa diferente do segurado, enquanto titular do direito à perceção das prestações
devidas e, portanto, relativamente a quem a lógica do princípio indemnizatório operará, ante a verificação de um sinistro que afete o mesmo risco19.
A identidade de risco impõe, todavia, que a conexão subjetiva relevante deva ser a de segurado que, em regra, será também o beneficiário e, portanto, na generalidade dos casos o problema não se põe (art. 133º n.º3).
Em situações de dúvida, se ocorrerem, permanecerá a dúvida de saber se não deverá o art. 133º n.ºs 1 e 2 ser aqui alvo de interpretação extensiva, fazendo relevar a identidade de beneficiário, sob pena da coluna vertebral em que assenta
– o princípio indemnizatório – poder ser posta em causa.
No direito inglês este também um dos pontos de controvérsia, embora seja entendido que existe second insurance independentemente de identidade de segurados, havendo simples identificação de riscos20. É esta identidade, também no ordenamento nacional, a relevante.
Saliente-se que nenhum dos ordenamentos comparados de base legal que se estudam (alemão, italiano, espanhol e francês) estabelece expressamente qual o requisito de identidade subjetiva relevante para qualificar a situação de pluralidade.
A resposta entende-se será convergente com a dada para o ordenamento nacional, apurada com referência ao fator risco e pessoa segura, admitindo-se casuisticamente a extensão a situações de identidade de beneficiários que não sejam pessoa segura.
2.4.2. Não identidade de seguradoras
A lei apenas admite pluralidade de seguros com vários seguradores (art.
133º n.º1 da LCS). O mesmo se verifica em todos os ordenamentos estudados.
19 No sentido de a identidade relevante ser de beneficiário, não sendo conhecida jurisprudência nacional sobre a matéria, se tem pronunciado a Cassazione, cit. por XXXXXXX XX XXXXX (coord.), Le Assicurazione, Giuffré Editore, Milão, 2007, p. 186.
20 Assim, XXXX XXXXX, Modern Insurance Law, Sweet and Maxwell, Londres, 1988, p. 261 e 262.
O legislador parece que partirá do princípio, correto, de que, querendo aumentar a cobertura numa mesma seguradora, o que o tomador deve fazer será alterar o contrato pré-existente.
Mas e se, por qualquer razão, vier a ser efetivamente celebrado outro contrato na mesma seguradora com o mesmo objeto?
A situação será de pluralidade imprópria, não se aplicando o regime legal previsto, não se vendo razão para considerar que a autonomia privada não deva aqui vigorar. Assim sendo, o segundo contrato será válido mas nenhum dos deveres impostos pelo regime de pluralidade se imporá.
3. Delimitação negativa do instituto
Como acima referido, a melhor definição dos contornos do conceito de pluralidade de seguros deve ser encontrada delimitando-a de institutos jurídicos próximos ou vizinhos, não sendo a mera indicação dos elementos que integram a previsão legal de pluralidade esclarecedora, sobretudo quanto a situações contratuais e/ou factuais de fronteira.
Cumpre, pois, avançando no estudo, apresentar os conceitos que delimitam negativamente o de pluralidade de seguros em sentido próprio.
3.1. Sobresseguro
Atualmente, i.e., desde a reforma de 2008, é clara a diferença entre sobresseguro e pluralidade de seguros, conceitos normativamente autonomizados.
A pluralidade reporta-se a situações em que mais que um contrato foi celebrado na ordem jurídica com as supra referidas quatro identidades (pessoa segura, tempo, risco e interesse). Sobresseguro, por outro lado, na terminologia do art. 132º n.º1, reporta-se a situações em que o valor do seguro ultrapassa do valor do interesse em segurar, i.e., em que o valor do capital seguro ultrapassa o valor económico da coisa, direito ou património objeto do contrato.
Trata-se de um contrato único, com a referida dessincronia entre capital e valor do objeto seguro.
A solução instituída pelo nosso ordenamento estabelece licitude deste contrato, com possibilidade de redução e, estando tomador ou segurado de boa- fé, a restituição dos sobre-prémios pagos nos últimos dois anos (art. 132º n.ºs 1 e 2 da LCS).
Se atualmente os conceitos não são confundíveis, antes da reforma a cisão não era tão manifesta. O X.Xxx. aproximava os conceitos e a doutrina não os distinguia21.
Em sentido impróprio o regime da pluralidade de seguros e do sobresseguro traduzem uma regulação equivalente de situações em que o valor de indemnizações excede o valor dos interesses seguros.
A LCS alterou os conceitos mas, materialmente, as respostas legais entre o regime da pluralidade e o de sobresseguro (atualmente em sentido próprio) são aproximadas, fazendo funcionar o princípio indemnizatório e, portanto, reduzindo aos danos os limites indemnizatórios (art. 128º ex vi art. 132º n.º1).
Pode, assim, dogmaticamente, continuar a fazer-se uma aproximação entre ambos os conceitos22.
3.2. Cosseguro
Em Portugal as situações de cosseguro estão reguladas no art. 62º LCS, que prevê sempre um contrato de seguro único, com uma apólice singular emitida pelo líder e, portanto, as maiores dúvidas na definição dos limites entre cosseguro e pluralidade esbatem-se. Não há cosseguro plural.
As doutrinas espanhola e italiana admitem possibilidade de cosseguro operacionalizado com vários contratos de seguro23 e a doutrina francesa, de forma possivelmente a criar maiores dificuldades interpretativas que as que pretende resolver, entende mesmo que o cosseguro integra o conceito de
21 XXXXX XXXXXX XXXXXXXX, Direito dos Seguros, Principia 2006, p. 93, antes da classificação legal, qualificava a multiplicidade de contratos como uma modalidade de sobresseguro.
22 Assim, XXXXXXX XXXXXXXX, Direito dos Seguros, Almedina, 2013, p. 752 a 754 continua a agrupar o estudo de sobresseguro e pluralidade de seguros.
23 Neste sentido, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, Ley de Contrato de Seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones, p. 549.
pluralidade de seguros lato sensu (ficando a pluralidade em sentido estrito para situações do tipo da previsão do art. 133º)24.
Pode, em qualquer caso e a despeito da imperatividade de contrato único no nosso ordenamento, traçar-se o grande elemento distintivo conceptual na existência de um acordo prévio entre seguradores para segurar um mesmo interesse e risco, acordo que será inexistente nas situações de pluralidade.
3.3. Resseguro
Seja no caso de pluralidade de seguros ou no caso de resseguro, a execução dos contratos e o pagamento das prestações previstas são acionadas pelo mesmo evento ocorrido no mundo físico.
Um mesmo sinistro põe em execução dois contratos. Todavia, no caso de resseguro, os riscos seguros são diversos.
Na pluralidade de seguros são reguladas contratualmente as consequências de um mesmo sinistro, relativo aos mesmos risco e interesse.
Já o resseguro cobre os riscos assumidos num contrato por um segurador ou por anterior ressegurador (art. 72º da LCS). O risco e interesse são, assim, nos casos de resseguro, os atinentes à própria atividade seguradora, decorrentes da mera possibilidade de suportar indemnizações contratualmente previstas, após produção de um evento danoso segurado ou ressegurado anteriormente.
3.4. O seguro subsidiário e o seguro complementar
Outras figuras jurídicas próximas da pluralidade de seguros são as de seguro subsidiário e de seguro complementar.
No seguro subsidiário o primeiro segurador não chega a estar obrigado ao pagamento de indemnização, ganhando eficácia o seguro subsidiário quando
24 Cfr. XXXXXXX XXXXXXXX e XXXX-XXXXXX XX XXXXX XXXXX, (coordenação), Code des Assurances Commenté, p. 165 e, Xxxxxx X. XXXX e, Xxxxxx XXXXXXX, Code des Assurances, 9ª ed., Éditions Dalloz, 2003, p. 69
ocorra circunstância contratualmente prevista que ativa a eficácia do seguro subsidiário e desativa a do seguro principal.
Tal ocorrerá, tipicamente, em determinadas circunstâncias prefiguradas. Serão situações como a insolvência do 1º segurador, a ineficácia do 1º contrato por ocorrência de qualquer circunstância prevista ou situações em que o 2º contrato seja eficaz caso os danos ultrapassem certos xxxxxxx00.
No seguro complementar um dado contrato torna-se eficaz não ao 1º evento mas ao 2º ou 3º, como, em termos paradigmáticos, ocorrerá em certos seguros de incêndio, ou quando o segundo contrato funcione como forma de reforçar o capital seguro pelo primeiro, complementado o valor das prestações até ao limite dos danos.
De comum entre ambas as situações deve assinalar-se a possibilidade de acionamento de dois ou mais contratos por força de dado evento com relevo jurídico mas, em qualquer dos casos, sem identidade de riscos.
Os contratos têm campos de aplicação diversos, sendo eficaz um quando não seja ou deixe de ser outro (no caso de seguro subsidiário) ou ativando-se o segundo contrato quando os danos atinjam certo limite ou quando ocorra repetição de evento idêntico ao que determinou execução do primeiro contrato (no seguro complementar).
3.5. As situações de pluralidade aparente de seguros
Pretende-se agrupar sobre este tópico de análise um conjunto de situações suscetíveis de fazer operar mais de um contrato de seguro, não tipificadas pelo legislador mas que, para uma correta definição da figura jurídica da pluralidade de seguros, são de referência necessária.
3.5.1. Repartição de responsabilidade por sinistros
25 Assim, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, Ley de Contrato de Seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones, p. 547.
Neste grupo de situações, a primeira a merecer análise é a de concurso de responsabilidades.
São infinitas as situações que podem ser chamadas à colação para ilustrar este tipo de situação. Talvez a mais corrente seja a de concurso de responsabilidades em caso de sinistro rodoviário26.
Como é evidente, irreleva para o exemplo o facto fundamentador da responsabilidade concorrente, i.e., se decorre de culpa ou de repartição de risco.
O que cumpre salientar, tomando para análise, como exemplo mais concreto, sinistro rodoviário em que a responsabilidade se reparta por dois condutores, é que serão aplicadas as regras, maxime indemnizatórias, prevista em dois contratos de seguro.
Mais uma vez teremos um evento do mundo físico que origina execução de dois contratos de seguro.
Cada contrato opera no seu âmbito de risco, que é absolutamente autónomo, na medida em que se reporta ao que emerge da circulação rodoviária de cada um dos intervenientes no acidente de viação.
3.5.2. Sinistros com classificação plural
Deve atentar-se que um mesmo sinistro pode fazer operar mais que um contrato de seguro com classificações diversas.
É um tipo de situação a merecer uma análise cuidada, sendo muito clara a autonomização face à pluralidade de seguros em certos casos mas, noutros, de fronteira, a distinção será muito difícil e, noutros ainda, poderemos estar mesmo perante verdadeiras situações de pluralidade em sentido próprio, ainda que relativas a contratos nominalmente diversos.
Seguindo no exemplo do acidente de viação com dois intervenientes, se a situação for de dois condutores de veículos de mercadorias ao serviço de
26 Sobre a matéria de responsabilidade civil emergente da circulação automóvel, numa análise compreensiva recente, cfr. XXXXXXX XXXXX XXXXXX, Acidentes de Viação. A regularização dos danos pelo seguro, Coimbra editora, 2013, p. 42 a 49.
sociedades comerciais que sofram lesões corporais como consequência do sinistro, teremos a muito frequente situação de acidente de viação e trabalho.
O exemplo é replicável, evidentemente, para todas as situações em que um dado sinistro mereça uma classificação plural, fazendo ativar mais que um contrato de seguro.
A situação será de pluralidade de seguros? Responder frontalmente que não será precipitado.
A sociedade terá celebrado seguro obrigatório de responsabilidade civil para cobrir os riscos decorrentes da circulação do veículo acidentado e terá celebrado também um seguro de acidentes de trabalho para cobertura dos riscos de lesões dos trabalhadores ao seu serviço.
Perante a ocorrência de um acidente das caraterísticas do exemplo operarão as indemnizações que resultem das regras contratuais de ambos os contratos.
Como se fará a repartição de responsabilidade entre as seguradoras e entre os contratos de seguro com diferente objeto, viação e trabalho, é questão que nada tem que ver com a questão em apreço.
Vigorará também o princípio indemnizatório e, portanto, certamente que as indemnizações não excederão o valor dos danos.
Não existe pluralidade de seguros porque existe mera identidade pessoal e temporal entre contratos.
Os riscos cobertos são diversos – no exemplo, num dos contratos serão os atinentes à circulação de veículo da sociedade e, no outro, os atinentes à produção de acidente que vitime trabalhador da mesma.
Em situações como a do exemplo é claro que a situação não é de pluralidade de seguros em sentido próprio mas de mera concorrência de contratos a atuar no respetivo âmbito.
Importa atentar, todavia, que o que deve relevar na avaliação de existência ou não de pluralidade de seguros em sentido próprio é o conteúdo dos dois
ou mais contratos, com referência ao momento do sinistro, e não a classificação nominal que as partes lhes atribuam.
Importa atentar, por outro lado, como antes se referiu, que só em concreto e após produção do sinistro se aferirá, com exatidão, se a situação é ou não de pluralidade.
Assim, haverá pluralidade de seguros em sentido próprio, determinando aplicação das regras previstas no art. 133º da LCS, quando estejam reunidos os requisitos de identidade entre o conteúdo de contratos que acima se assinalaram. A qualificação que as partes entendam atribuir ao contrato de seguro que celebrem terá, a esta luz, mero interesse interpretativo do sentido a atribuir às
cláusulas que o compõem.
O que se disse antes serve para assinalar que é possível existir verdadeira pluralidade de seguros (e não, portanto, pluralidade meramente aparente) em caso de contratos de seguro que as partes classifiquem de forma diversa.
Voltando ao exemplo. É claro que um seguro de responsabilidade civil por acidente de viação e um seguro de acidentes de trabalho cobrirão, em princípio, riscos diferentes. Agora imagine-se uma situação de dois contratos de seguro celebrados por uma mesma entidade patronal, que cubram os riscos de circulação de veículo pesado e inclua a proteção por acidentes de trabalho de todos os funcionários motoristas de tal veículo, um a que as partes entendam chamar seguro de acidentes de trabalho e outro de responsabilidade civil emergente de circulação de veículo.
Não dando relevo, para efeitos de análise, ao facto de se tratar de seguros obrigatórios (tornando pouco plausível a verificação prática deste exemplo), estaríamos perante situação de verdadeira pluralidade.
Deve distinguir-se, portanto, da pluralidade de seguros em sentido próprio situações de pluralidade aparente que decorram de classificação plural de sinistros, sobre que incidam dois ou mais contratos de seguro cobrindo riscos materialmente diversos.
Por outro lado, deve atentar-se que, se se verificar que, a despeito da classificação atribuída ao contrato pelas partes, que os riscos cobertos são os mesmos e se verificam os demais requisitos de identidade, existirá verdadeira pluralidade de contratos de seguro mesmo que, num, as partes lhe chamem seguro de danos “A” e, no outro, seguro de danos “B”.
3.5.3. Proteção múltipla de interesses
A situação paradigmática e legalmente prevista é a de seguros plurais a cobrir riscos de circulação terrestre ao abrigo do que dispõe o art. 23º de regime de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – DL n.º 291/2007 de 21/8.
Xxxx, aliás, começar-se por apontar o que se pode qualificar de verdadeira desconformidade sistemática de qualificações legais entre o art. 23º referido e o regime de pluralidade previsto no art. 133º do LCS.
O citado art. 23º tem como epígrafe pluralidade de seguros mas é manifesto que a situação que regula, analisada à luz da LCS, não traduz uma verdadeira pluralidade.
O que o art. 23º regula, remetendo para os critérios do art. 6º desse diploma, relativo aos sujeitos da obrigação de segurar, será a forma de operar a responsabilidade decorrente da circulação de veículo, no caso de mais que um obrigado a segurar tenha efetivamente celebrado contratos de seguro.
Assim, estabelece o legislador, que tratando-se de prova desportiva de veículos terrestres, será o seguro celebrado pelo organizador o primeiro a responder. Não sendo esse o caso, responde o seguro celebrado por garagista ou entidade equiparada, se o acidente lhes for imputável. A terceiro nível responderá, se existir, o seguro celebrado por automobilista. Após, operará o seguro celebrado por qualquer pessoa e, por fim, o que celebre o proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade ou locatário em contrato de locação financeira.
Isto é, o que o legislador pretende regular, tendo imposto obrigação de celebrar contrato de seguro a diversas pessoas, é a forma de operacionalizar os diversos contratos, estabelecendo uma ordem legal de chamamento do seguro “responsável”.
Estas situações não são de pluralidade de seguros em sentido próprio, sendo claro que inexiste identidade entre os interesses a segurar.
Ainda que o risco possa ser o mesmo, se reportado à circulação terrestre de um dado veículo, a ligação de carater económico é diversa, referindo-se à proteção do património de cada um dos sujeitos da obrigação de segurar face à possibilidade de suportar indemnização decorrente de acidente.
Esta pluralidade legalmente declarada será, se não um seguro subsidiário em sentido próprio, pelo menos muito próxima disso e, em qualquer caso, não uma pluralidade de seguros em sentido próprio por falta de identidade de interesse.
3.5.4. Ficções de unidade de objeto seguro em dois contratos autónomos
O caso paradigmático será o do seguro de responsabilidade civil automóvel que seja celebrado por referência à circulação de trator e de semirreboque.
Para circulação de cada um dos veículos existe obrigação de segurar, que impende sobre diversos sujeitos, titulares de interesse relevante sobre o bem, em termos equivalentes aos que se assinalaram no ponto anterior.
A diferença relevante, neste caso, é que existem obrigações de segurar autónomas para circulação do trator e do semirreboque mas estes dois veículos podem circular, e em regra circularão, como unidade.
É claro que no caso de não circularem como unidade, verificando-se danos, serão suportados pelas regras do seguro celebrado para a circulação de cada um.
Dir-se-á que, normalmente, a situação será aplicável apenas à circulação autónoma do trator. Não pode, todavia, excluir-se em absoluto a possibilidade de um semirreboque desacoplado poder causar danos. Basta pensar-se numa falta de travamento que dê origem a uma deslocação desgovernada ou mesmo a um mero estacionamento em local proibido e propiciador da produção de acidentes que causalmente lhe venham a ser imputados.
As dúvidas que se pretende salientar neste ponto são as que se verificam, evidentemente, quando se produz acidente circulando os veículos acoplados.
A primeira questão é a de saber se o risco previsto em ambos os contratos é o mesmo.
A resposta a esta questão não é tão simples como se poderá apresentar. Xxxxxx, todavia, poder sustentar-se que sim, ainda que a resposta concreta dependa do conteúdo dos contratos.
Não existe identidade de risco total mas existirá coincidência parcial de risco, na medida em que os contratos de seguro também cobrirão os riscos de responsabilidade civil causada por acidente causado por trator e semirreboque desacoplados.
Se os dois contratos expressamente se limitarem a cobrir o risco de circulação no caso de aqueles veículos circularem em conjunto, situação em abstrato prefigurável mas certamente, se não inaudita, pelo menos muito rara, existirá coincidência total de risco.
Na medida, que será a situação mais natural, que os contratos não prevejam tal restrição e, portanto, também cubram os riscos decorrentes de acidentes de viação sem estarem os veículos acoplados, existirá uma diferença parcial nos riscos cobertos.
Estando acoplados os veículos, tudo se processa como se de veículo único se trate, e será a responsabilidade emergente da circulação desse veículo que os dois contratos de seguro tutelam.
Querer ficcionar uma cisão entre o risco de circulação do trator e do semirreboque quando circulem em conjunto parece claramente artificioso, sabendo-se que a circulação em conjunto é a forma normal de circulação dos veículos em causa.
Quanto ao interesse contratual, será ou não distinto consoante trator e semirreboque sejam ou não propriedade de pessoas diferentes. Sendo o interesse neste tipo de seguro o relativo à conservação do património do obrigado civil, se for o mesmo titular do direito relevante existirá também unicidade de interesse.
Quer isto dizer, em conclusão, que pode a situação configurar verdadeira pluralidade de seguros, sendo diretamente aplicável o regime previsto no art. 133º da LCS.
Nos casos em que não exista identidade de interesse e, portanto, não exista pluralidade de seguros em sentido próprio, poderá, por outro lado, analisar-se se o regime da pluralidade não poderá oferecer respostas jurídicas mais adequadas que aquelas que a nossa ordem tem encontrado para estes casos.
A proximidade face a situações de pluralidade em sentido próprio é manifesta.
Estabelecer-se casuisticamente pelo aplicador uma responsabilidade solidária das seguradoras, cujo suporte jurídico não é claro, será um enquadramento mais frágil por comparação com uma solução de aplicação analógica do regime legal de pluralidade de seguros.
Tal enquadramento permitiria facilmente estabelecer a possibilidade do lesado solicitar indemnização a qualquer das seguradoras, via art. 133º n.º6, aplicado analogicamente.
Estas, entre si, suportariam as prestações na medida dos capitais seguros, sem entrar em grandes considerandos sobre o risco próprio do trator e do semirreboque e das respectivas prevalências na produção do acidente, o que parece redundante face à aludida normalidade de circulação conjunta, assim
dispensando construções jurídicas mais elaboradas e díspares e, crê-se, diminuindo sensivelmente dificuldades decisórias.
É questão a que se voltará à frente.
3.6. Pluralidade de seguros em sentido próprio meramente parcial
Neste caso teremos uma verdadeira situação de pluralidade, existindo coincidência de todos os elementos caracterizadores da pluralidade e, meramente, não se verificando identidade completa entre os contratos.
Esta será até uma das situações práticas de ocorrência mais frequente, devendo atentar-se no que antes se disse sobre coincidência parcial de risco e de interesse27.
Pense-se, a título de exemplo, num seguro de saúde em que o tomador se segura a si e ao seu agregado e que apresenta um determinado conjunto de proteções e de entidades de saúde associadas. Outorgando o tomador novo seguro de saúde, com a pretensão de reforçar uma determinada cobertura ou, simplesmente, beneficiar de uma cobertura não prevista no primeiro contrato, haverá, em regra, uma coincidência parcial de objetos contratuais que permite identificar uma verdadeira situação de pluralidade, ainda que parcial. A pluralidade, como antes referido, confirmar-se-á no momento de produção do evento lesivo.
As regras da pluralidade, maxime o dever de informação, são aplicáveis nestes casos de coincidência parcial de contratos, impondo ao tomador a sua comunicação após celebração do segundo contrato, comunicação a repetir ou não, após produção do evento danoso, caso confirmada a pluralidade.
Seguindo o ponto delimitador referente às diversas qualificações dos contratos dadas pelas partes, ou, melhor dito, dadas pela seguradora, que é a entidade detentora do poder estipulativo no contrato de adesão, a possibilidade
27 Supra Parte I, 2.2. e 2.3.
de se tratar de verdadeira pluralidade, no caso de contratos com diferentes denominações, manifesta-se em caso de coincidência total ou parcial de objeto.
Existirá pluralidade se o regime dos contratos dever atuar simultaneamente e tal pode suceder apenas em relação a alguns riscos cobertos em dois contratos. Esta coincidência parcial é, assim, também independente da classificação atribuída ao contrato pelas partes.
Voltando e aprofundando o exemplo do acidente de trabalho e viação, celebrado por uma mesma entidade empregadora, que celebrou dois contrato de seguro, em seguradoras diferentes, um de viação e outro de trabalho.
Imagine-se também que o trabalhador condutor foi integralmente responsável pelo acidente, que lhe causou danos pessoais que implicaram custos com tratamentos médicos e que o seguro relativo a circulação rodoviária inclui cobertura de danos pessoais próprios do condutor responsável. Por fim pense-se que nenhum dos seguros tem limite de capital seguro para tratamentos.
Se se centrar atenção nos danos patrimoniais emergentes de tratamentos médicos à pessoa segura, que é trabalhador e foi responsável pelo acidente, terá que se estabelecer, antes de mais, que as prestações das seguradoras estarão necessariamente limitados pelo princípio indemnizatório e, portanto, o trabalhador e pessoa segura terá apenas direito a perceber o que tiver despendido.
A situação é de pluralidade?
Em regra não, havendo um ordenamento subsidiário de ressarcimento entre os dois contratos. Em princípio estará estipulado que o contrato “B” cobre os danos não cobertos pelo “A”.
Se, por hipótese, as regras impuserem funcionamento não escalonado dos dois contratos existirá verdadeira situação de pluralidade.
Quer isto dizer que a situação de pluralidade poderá ser apenas parcial, nos casos em que o perímetro de identidade de riscos também não seja
integralmente coincidente e os contratos operem de forma simultânea e cumulativa.
Também aqui a conclusão que se extrai é independente da qualificação que as partes atribuam aos contratos, que pode ser a mesma ou ser diversa.
3.7. Regras aplicáveis a situações de pluralidade aparente e pluralidade verdadeira parcial
Face ao que antes se disse, impõe-se concluir que o regime da pluralidade de seguros, em sentido próprio, será aplicável relativamente a contratos com diferentes designações, como pode aplicar-se a situações de mera coincidência parcial de coberturas.
No caso de mera diferença de designação, as regras legais são diretamente aplicáveis sem nenhuma atividade aplicativa (que não a que decorra da interpretação das regras dos contratos para estabelecer a identidade).
Nos casos de pluralidade meramente parcial, deve entender-se que as regras do regime são aplicáveis na decorrência de um mero princípio de maioria de razão.
E quanto ao concurso aparente, i.e., aquelas situações em que não seja regulado pelas partes ou pela lei o funcionamento dos dois contratos e em que não exista coincidência de riscos? Poderá o regime de pluralidade ser chamado a intervir a título analógico conferindo coerência ao sistema e, assim, colmatando uma eventual lacuna?
É uma questão a que se voltará à frente, devendo desde já salientar-se a relevância potencial que a disciplina da pluralidade de seguros poderá assumir no conjunto do ordenamento fora da sua área estrita de previsão.
Sabendo-se que as respostas que têm sido dadas no nosso ordenamento jurídico a situações em que dois contratos operam em simultâneo têm assentado sobretudo em soluções construídas pelo intérprete/aplicador, poderá agora, face à reforma de 2008, perguntar-se se as regras e princípios decisórios previstos no
art. 133º da LCS não poderão fornecer uma resposta mais adequada e uniforme a um conjunto de situações geradoras de dificuldades de articulação de regras de dois ou mais contratos de seguro. Remete-se, a propósito, para o que antes ficou dito a propósito de ficções de unidade de objeto seguro e para o que se dirá à frente28.
28 Supra Parte I, 3.7. e infra Parte II, 8.
Parte II - O regime legal da pluralidade de seguros
1. A validade dos diversos contratos
Estabelecido o conceito de pluralidade impõe-se analisar o conteúdo do regime instituído.
O primeiro ponto a relevar no estudo do regime consagrado pela LCS quanto a pluralidade de seguros é a supra referida relevância da autonomia privada. Daí decorre a licitude de celebração plural de contratos de seguro com idêntico conteúdo.
Esta consagração poderá parecer evidente: - se alguém quer proteger um dado interesse de um dado risco ou conjunto de riscos, não se veria razão para que não o faça da forma que entenda como mais abrangente possível, prevenindo a possibilidade de o capital seguro ficar aquém dos danos e da medida do seu interesse ou de ocorrer qualquer circunstância, designadamente ao nível do contrato ou da instituição seguradora, que impedisse a satisfação do seu interesse.
Se esta afirmação se impôs com a reforma de 2008, não traduzia o entendimento dominante no ordenamento nacional pregresso.
1.1. Pluralidade de seguros no Código Comercial
No regime revogado, sob a epígrafe segundo seguro, disciplinava o legislador no art. 434º do X.Xxx. a matéria de pluralidade de seguros.
A identidade conceptual não se pode considerar absoluta, na medida em que o preceito se referia, no corpo do artigo, a segundo seguro celebrado pelo segurado, pelo mesmo tempo e risco, objeto já seguro pelo seu inteiro valor.
Quer isto dizer que o legislador não aludia expressamente ao interesse em segurar. Todavia, na medida em que se referia ao inteiro valor, pode dizer-se que estabelecia como critério qualificativo a relevância económica para o segurado do evento lesivo. Nessa medida, poderá também dizer-se que até o requisito
interesse está implicitamente consagrado, sendo a divergência nominal e de redação atribuível sobretudo à diferença de momento histórico das previsões legais.
A grande diferença de regime entre o X.Xxx e a LCS é a que decorre da estatuição normativa.
De forma perentória, estabelecia o legislador no corpo do art. 434º nulidade do segundo contrato de seguro29.
Dir-se-á, numa primeira análise, que o legislador de 2008 inverteu totalmente o sentido da sua orientação quanto a seguro plural, passando de um sistema de interdição para um sistema de permissão.
Tentar-se-á demonstrar de seguida que a alteração legal não se pode considerar tão revolucionária quanto eventualmente poderá parecer.
Para tanto, há que avançar na análise do conteúdo do regime legal do X.Xxx. e, principalmente, da aplicação do mesmo na ordem jurídica.
1.1.1. Exceções expressas à ilicitude do segundo contrato
Sendo a regra a nulidade do segundo contrato de seguro, admitia o legislador expressamente um conjunto de exceções a tal regra.
Mais que verdadeiras exceções, nos parágrafos do art. 434º, o que legislador fazia era delimitar negativamente o conceito de pluralidade.
No §1 excluía expressamente a sanção de invalidade aos seguros subsidiários. Tal subsidiariedade expressa refere-se a situações de nulidade do primeiro contrato ou de insolvência do segurador.
Como se disse a propósito de tal matéria, não se pode considerar que esta previsão configure verdadeira exceção à ilicitude de seguro plural pela simples razão de o seguro subsidiário não ser enquadrável como tal: - apenas um contrato é eficaz em cada momento e, por consequência, no momento de produção do evento lesivo.
29 No sentido de se tratar de nulidade em sentido próprio: X.X. Xxxxxxxx xx XXXXXXX, O Contrato de seguro no regime português e comparado, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1971.
No §2 o legislador excluía também expressamente a invalidade do segundo contrato em situações que, claramente, não são de pluralidade de seguros e cujas regras, aliás, já decorreriam da mera aplicação de regras gerais de direito civil.
São essas situações as de cessão dos direitos do primeiro seguro ao segundo segurador ou as de renúncia do primeiro segurador.
É evidente, seja no caso de cessão seja no de renúncia, que não se trata de verdadeira exceção à invalidade do segundo seguro. Simplesmente os direitos emergentes do primeiro contrato seriam cedidos a outro segurador ou meramente se extinguiriam por renúncia. Portanto, inexistia também aqui qualquer situação de eficácia simultânea de ambos os contratos.
Assim, pode dizer-se que as exceções expressas ao regime do segundo seguro no X.Xxx. não têm função que não a de delimitar negativamente o conceito legal, não operando qualquer exceção material à disciplina substantiva consagrada no corpo do preceito.
Bem mais relevante, a este propósito, será a disciplina do art. 433º do X.Xxx., sob a epígrafe de seguro por valor inferior ao real.
1.1.2. O seguro complementar no X.Xxx.
Para a análise em causa interessa sobretudo o texto do §1 do regime do art. 433º do X.Xxx. que dispunha que se o seguro for inferior ao valor do objeto segurado, pode a diferença ser segurada, e o segurador dessa diferença só responderá pelo excedente, observando-se a ordem da data do contrato.
Poderia, numa primeira análise, cingir-se o objeto deste preceito à regulação do subseguro e do seguro complementar.
Isto é, poderá interpretar-se este preceito sustentando que este art. 433º §1 se atém a regular situações em que alguém contrate seguro para cobrir determinado risco e, prevendo a possibilidade de o evento lesivo exceder o capital seguro, contrate seguro para cobrir a diferença, sendo essa a expressa intenção das partes no segundo contrato.
É claro que esse é o objeto central de regulação do preceito. É claro, por consequência, face ao que se disse antes, que, nessa medida, não se trata de regular verdadeira situação de pluralidade de seguros, inexistindo identidade de riscos: - o segundo contrato opera se e quando se verificar insuficiência de capital do primeiro.
A ressalva final, analisada à luz da dogmática atual, ganha, porém, uma nova perspetiva.
É que o legislador estabelece um critério de ordem com base na data dos contratos.
Se se tratasse de mera regulação de seguro complementar não seria necessário estabelecer tal critério. A complementaridade teria que resultar de forma evidente das regras dos contratos, irrelevando até a data de celebração
O verdadeiro alcance deste preceito só poderá ser alcançado repescando o texto do corpo do artigo seguinte, o supra referido art. 434º.
Refere-se o art. 434º ao seguro pelo seu inteiro valor. Este art. 433º §1 reporta-se a seguro inferior ao valor do objeto.
A forma de compaginar estes preceitos será precisamente pondo o acento tónico no conteúdo dos dois contratos e no que previssem no que concerne aos danos indemnizáveis.
Ficando claro que a intenção das partes era segurar inteiro valor do objeto, será aplicável o art. 434º, mesmo que, ao ser executado o contrato e ante a produção de evento lesivo, se viesse a verificar que o capital seguro era insuficiente.
Se, pelo contrário, ficasse claro que o objeto tem valor superior ao do seguro ou, e este é o ponto fundamental que agora se pretende assinalar, não ficasse expressa no contrato uma relação clara entre o seguro e o valor do objeto, seria aplicável o disposto no art. 433º.
Isto é, concretizando, deve entender-se que o art. 433º do X.Xxx era aplicável também aos casos em que a integralidade da cobertura de riscos não
tivesse ficado estipulada, não sendo manifesto que o segundo seguro é meramente complementar e, perante a produção do sinistro, se verificasse que os danos excediam o capital seguro em ambos os contratos.
Nesses casos, a celebração de dois contratos de seguro era já lícita ao abrigo do X.Xxx. e esses são casos que hoje poderiam merecer verdadeira classificação de pluralidade de seguros.
A não ser assim, não faria sentido a ordem temporal estabelecida pelo §1 do art. 433º, como não faria sentido a regra, muito próxima da estabelecida atualmente pelo art. 133º LCS, do §2 do art. 433º estabelecendo que os contratos celebrados na mesma data – terão efeito até à concorrência do valor total em proporção da quantia segura em cada contrato30.
Quer isto dizer, numa primeira aproximação conclusiva, era já errado dizer que, à luz do X.Xxx., a pluralidade de seguros era ilícita, sem mais.
1.1.3. As soluções interpretativas do art. 434º X.Xxx.
Além do que antes se referiu, pretendendo-se que fique clara a conclusão, pela mera análise do texto legal, que a interdição de celebração de seguro plural não era absoluta no nosso regime pregresso, cumpre assinalar que também a aplicação prática que o regime anterior foi sofrendo muito restringiu a proibição de celebração de seguro plural.
Os intérpretes e aplicadores foram restringindo a declaração de nulidade estatuída pelo art. 434º. Xxxxxxx quem sustentasse que se trata de verdadeira nulidade31, havia também quem procedesse a verdadeira requalificação da nulidade em anulabilidade, à semelhança do que foi sendo feito em relação ao art. 429º, a propósito de declarações inexatas. Segundo tal interpretação, a invalidade que vicia o segundo seguro estaria sujeita a alegação e prova de, no
30 A propósito, já dizia XXXXX XXXXXXXXX, Commentário ao Código Comercial Português, vol. II, Editora Xxxx Xxxxxx, Lisboa, 1916, p. 561 que sendo todos os seguros da mesma data, todos terão que subsistir; mas o excesso de valor terá que ser deduzido em rateio por todos os seguradores, na proporção da quantia respectivamente segurada.
31 Cfr. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, O contrato de seguro no regime português e comparado, p. 61.
momento da sua celebração, o objeto já se encontrava seguro por seu inteiro valor32.
Pelo que antes se disse, a despeito da nulidade declarada pelo legislador, fica claro de uma análise mais detida que o regime revogado regime do X.Xxx. quanto a pluralidade de seguros na verdade permitia, e efetivamente permitiu, celebração plural de contratos de seguro.
Nessa medida, a inovação da LCS não será propriamente revolucionária.
É inovadora, desde logo, por acentuar os princípios de autonomia privada e de boa-fé contratual nesta área, por ter um propósito e uma função clarificadora do sistema e também por consagrar regras claras de repartição de responsabilidade entre seguradoras, na lógica dos regimes jurídicos comparáveis.
Dizer-se, todavia e sem mais, que passou a ser possível no nosso ordenamento celebrar mais que um contrato de seguro com o mesmo objeto a partir de 2008 afigura-se uma afirmação precipitada.
1.2. Sistemas comparados
Para avançar na análise do regime introduzido pela LCS, cumpre situar a solução nacional no contexto do avanço das ordens jurídicas, o que já foi feito a propósito dos limites do conceito e continuará a fazer-se quanto ao conteúdo das soluções estabelecidas.
Pela proximidade, importância e influência irão ser salientadas as soluções dos ordenamentos espanhol, italiano, alemão e francês. Far-se-á também referência às soluções do ordenamento inglês, que a despeito da diferença de matriz, apresenta soluções avançadas nesta matéria.
Esta análise jus comparativa não pode ser, como é evidente pelas limitações necessárias, mais abrangente, não só quanto a outras ordens jurídicas como quanto à extensão do conteúdo da matéria tratada.
32 Assim, sustentando que a invalidade do art. 434º do X.Xxx. é mera anulabilidade, cfr. Ac. STJ 9/12/92 (XXXXXXX xx XXXXX). Em sentido de se tratar de verdadeira nulidade, além de XXXXXXXX XX XXXXXXX, loc. cit. nota anterior, Ac. RL 16/4/91 (XXXXXXX XX XXXXX).
Fica claro da análise comparativa, a propósito deste tópico, que o regime português pós-2008 acompanha as soluções vigentes na generalidade dos ordenamentos quanto a admissibilidade ampla de celebração plural de contratos de seguro.
O art. 32º n.º1 da Ley 26/2006 de 17/7 em Espanha, o art. 1910º n.º1 do Codice Civile, o &1 art. L121-4 do Code des Assurances, em França e o art. 77º n.º1 da Lei do Contrato de Seguro alemã (de 23/11/2007) todos estabelecem licitude para as situações da pluralidade de seguros.
Em Inglaterra o regime é regulado integralmente pela jurisprudência, não havendo statute law aplicável, sendo tratado como second inssurance e também amplamente admitida a respetiva validade.
2. Dever de informação
Esta obrigação de comunicação é estruturada como elemento central da permissão de contratação plural de seguros com o mesmo objeto.
A lógica do sistema é bem clara e compreensível: estando-se numa área em que a possibilidade de fraude é especialmente patente, seguindo o legislador um caminho de permissão não poderia senão rodeá-lo de um enquadramento de proteção adequado.
Sempre poderia dizer-se que, para o tomador de seguro, este dever de informação, mesmo que não expressamente consagrado, sempre se imporia como decorrência do princípio da boa-fé, seja in contrahendo, na negociação do segundo contrato, seja já com o contrato em execução, para o primeiro, quando concretizasse novo seguro com idêntico objeto33.
De realçar, como se referiu na Parte I, que deve entender-se que este dever existe mesmo em caso de mera coincidência parcial de contratos de seguro e, portanto, sempre que alguém outorgue seguro com idêntico objeto, ainda que o seu interesse seja que os contratos funcionem meramente como complementares, tal dever de informação impor-se-á.
A disciplina do regime de pluralidade de seguros tem a sua coluna vertebral em todos os ordenamentos, como se verá também em Portugal, na estatuição de dever de informação de tal situação às seguradoras.
Para os diversos legisladores este é o elemento central para a coerência e a
saúde do sistema instituído.
É pela estatuição deste dever que no ordenamento jurídico se equilibra, na pluralidade de seguros, o princípio da autonomia privada e a consequente admissibilidade ampla de celebração de dois ou mais contratos com o mesmo objeto, com os riscos de abuso, fraude ou simples desbalanço contratual que tal liberdade potencia.
33 Sobre deveres de informação, em particular dever de comunicação de risco, cfr. XXXX XXXXX, Estudos de Direito dos Seguros, Xxxxxxx & Xxxxxx Xxx., 2008 e O Dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina, 2013.
Por outro lado, deve atentar-se que o dever de informação do tomador é uma das bases em que assenta toda a relação contratual de seguro e, portanto, dir-se-á, com XXXX POÇAS que estamos perante uma autonomização de um especial dever de informação34.
Este dever, continuando a seguir de perto este autor, traduz o reconhecimento pelo legislador da manifesta essencialidade da circunstância em causa – a pluralidade de seguros, suscetível de indiciar intuito especulativo ou fraudulento e, portanto, uma maior probabilidade de produção do sinistro35.
2.1. Forma e conteúdo da comunicação
Esta comunicação não reveste, no nosso ordenamento, formalidade especial.
Quer isto dizer que será válida qualquer forma de comunicação, incluindo, portanto, a meramente verbal, a presencial ou a efetuada à distância36.
Será evidentemente aconselhável, todavia, a forma escrita.
Sendo o contrato de seguro um contrato de adesão, caso conste no formulário dos contratos a opção de informação de outro contrato de seguro, esta será a forma mais natural de a comunicação pelo segurado se produzir. Ao solicitar adesão ao segundo contrato assinalará, no campo respetivo, a existência de contrato anterior, devendo tal campo, pelo menos, comportar espaço para indicação da seguradora contratante.
Após conclusão do segundo contrato deveria, de modo equivalente, solicitar alteração dos elementos do primeiro, preenchendo como alteração apenas o campo referente a possível existência de outros contratos.
34 O Dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro, Almedina, 2013, p. 633
35 Ob. e loc. cit.
36 No sentido de o dever de comunicação poder ser cumprido de forma oral ou escrita, para o ordenamento espanhol, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, Ley de Contrato de Xxxxxx. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones,cit., p. 549.
Sobre contratação de seguros à distância e por meios electrónicos cfr. XXXXXXXX XX XXXXXXX,
Contrato de Seguro, cit. p. 37 e segs..
Na falta desta via normalizada de comunicação, será evidentemente aconselhável a elaboração e entrega de documento escrito, com recibo, cujo relevo será meramente probatório.
Decorrendo de algum modo do que antes se disse, deve entender-se que o dever de comunicação se satisfaz com a mera comunicação de existência de outro contrato, com o mesmo objeto e celebrado com a seguradora “X”.
Deve entender-se, a esta luz, que não faz parte do dever do tomador ab initio comunicar todos os elementos do contrato.
Pode, portanto, perfeitamente ocorrer que a comunicação acabe por se verificar inútil ou ineficaz, sendo aquilo a que o tomador atribui a qualidade de seguro plural uma situação diversa, atuando as previsões dos dois contratos em âmbitos diversos.
Atente-se, todavia, antes de mais, no que antes se assinalou: - haverá certamente casos de pluralidade meramente parcial, i.e., em que a coincidência dos conteúdos contratuais não é total.
Pense-se no exemplo, já antes referido, de dois seguros de saúde, com coincidência temporal, coincidência de segurados mas mera correspondência parcial de coberturas. Neste caso, deve entender-se que existe pluralidade em sentido próprio e, portanto, o dever de comunicação é também plenamente existente.
Pense-se, a outro nível, na celebração de um segundo seguro de saúde sem qualquer coincidência de coberturas. Nesse caso, os riscos cobertos nos dois contratos são, evidentemente, diversos e, por consequência, a situação não é de pluralidade e o dever de comunicação não existe.
O que fica dito leva-nos à afirmação que, em última análise, a averiguação de se tratar de uma situação de pluralidade de contratos propriu sensu ou meramente dois contratos com diferente objeto, em área próxima, é das seguradoras e não dos tomadores.
Serão estas as entidades especializadas e cuja organização e conhecimentos técnicos lhes confere a capacidade de fazer a avaliação dos conteúdos contratuais para este efeito.
Ao tomador será exigível apenas que comunique a existência de outro contrato, a seguradora e a área de risco que, putativamente, indique como seu objeto.
Será à seguradora que competirá, feita a comunicação, aferir da existência de pluralidade.
O tomador terá, todavia, ainda no âmbito deste dever de informação, de prestar todos os esclarecimentos que lhe forem solicitados e juntar os elementos entendidos por pertinentes à avaliação da seguradora, de entre estes emergindo, evidentemente, cópia do(s) contrato(s) de seguro que tenha celebrado com outra(s) entidade(s) seguradora(s).
A propósito, em termos comparados, o art. 77º da Lei de Contrato de Seguro alemã estatui que a comunicação deve compreender a identificação dos outros seguradores e dos capitais seguros. Idêntica previsão contém o &2 do art. L121-4 do Code des Assurances.
Sem estabelecer requisito especial de conteúdo de comunicação, à semelhança do art. 133º da LCS, estão o art. 32º da Lei de Contrato seguro em Espanha e o art. 1910º do Codice Civile.
Face a esta regulação, mantém-se que o dever se restringe à indicação de outro contrato e indicação da entidade seguradora, com sujeição, como se verá à frente, de deveres acessórios de informação, se justificadamente solicitados.
2.2. Sujeitos do dever de informar
A legislação nacional coloca o cumprimento deste dever, alternativamente, nas mãos do tomador de seguro ou do segurado, no caso de não se tratar da mesma pessoa.
A solução seguida pelo legislador nacional não é unânime nas ordens comparadas.
A opção pela imposição de dever ao tomador será a natural, sendo este a parte contratante e, portanto, a que tem a capacidade natural de saber da existência da situação de pluralidade.
Já a colocação de tal dever na esfera do segurado poderá suscitar dúvidas, sobretudo ao nível de aplicação prática, naquelas situações em que um mesmo contrato seja aplicável a um conjunto alargado de segurados, como será o exemplo dos seguros de trabalho em instituições de dimensão relevante.
É claro que numa situação dessas, em caso de dúvida, deverá funcionar uma presunção natural a favor do segurado de desconhecimento da situação de pluralidade que poderá, no seu reverso, ter como consequência especial dificuldade de prova de má-fé, mesmo sendo reclamada mais que uma indemnização. Não será difícil prefigurar erros decorrentes de pura e simples ignorância.
Nos ordenamentos comparados as soluções são divergentes.
O referido art. 32º da Ley 26/2006 espanhola estatui obrigação de tomador e segurado.
O Código Civil italiano, no seu art. 1910º n.º1 impõe apenas obrigação ao segurado, solução idêntica à do ordenamento francês (art. L121-4 n.º1 do Code des Assurances).
O art. 77º n.º1 da Lei do Contrato de Seguro alemã estatui obrigação ao tomador.
2.3. Prazo da informação
A lei não estipula prazo para tal comunicação estatuindo que a mesma deve ser feita a todos os seguradores, logo que tome conhecimento da sua verificação, bem como aquando da participação do sinistro.
Tal prazo de comunicação é estabelecido em todos os ordenamentos comparados, com diferenças de formulação irrelevantes.
É uma disposição que, apesar da sua aparente simplicidade, não é também isenta de dificuldades.
Quanto ao primeiro dos momentos, o do conhecimento da situação de pluralidade, terá que entender-se que a norma impõe uma comunicação em prazo razoável, após conhecimento, segundo um critério de diligência do homem médio, é assim que o “logo” deve ser entendido, também por oposição a um eventual aguardar pelo momento de eventual produção de sinistro37.
E se assim é, sendo a comunicação feita a entidades especializadas e funcionalmente dirigidas ao negócio oneroso de seguros, pode suscitar-se a dúvida de saber a necessidade de reiterar a comunicação aquando da participação do sinistro.
Tendo as seguradoras já conhecimento da pluralidade deveria ser a estas que competiria a averiguação da atualidade da situação de pluralidade, com o consequente dever do tomador de prestar informações solicitadas, que sempre decorreria do princípio da boa-fé.
É que, como diz o n.º3 do art. 133º, o segurado pode livremente escolher a seguradora para satisfazer a indemnização a que tenha direito, o que não se pode entender senão como um (correto) propósito legal de facilitar a tarefa de perceção da indemnização devida por quem de direito.
Este propósito facilitador é de algum modo afetado pela necessidade de comunicar a atualidade da situação de pluralidade.
Importa atentar, por outro lado, como se referiu já, que nos casos de coincidência parcial de objetos contratuais, só com a produção do evento lesivo será possível confirmar a situação de pluralidade. Assim sendo, também porque o
37 No sentido de comunicação imediata dever referir-se a prazo razoável, em Espanha, XXXXXXXX XXXXXXX XXXXXX et al, Ley de Contrato de Seguro. Comentarios a la Ley 50/1980, de 8 de octubre y a sus modificaciones, cit., p. 549.
sinistro sempre terá que ser participado, pode dizer-se que a limitação é de relevo menor, sendo mais um incómodo que outra coisa.
3. As situações de omissão do dever de comunicação
Sendo omitido o cumprimento de tal dever de comunicação cumpre analisar as consequências estatuídas pelo legislador.
Esta análise deve fazer-se a dois níveis.
Por um lado distinguindo as situações de omissão fraudulenta das situações de mera omissão e, por outro, fazendo relevar o momento em que as seguradoras se apercebam da situação de pluralidade.
Para esta última análise deve especialmente levar-se em conta a possibilidade de existência de cláusulas limitativas de responsabilidade das seguradoras em situações de pluralidade.
3.1. Simples omissão
Serão qualificáveis de simples omissão, todas as situações que não sejam de omissão fraudulenta.
Ao usar, no nosso entender de forma correta e especialmente esclarecedora, a expressão fraudulenta, o legislador traçou um claro limite e preveniu dúvidas designadamente com situações conhecidas e não comunicadas, que uma expressão legal que meramente aludisse a dolo ou mesmo a boa-fé poderia induzir.
Ao falar em omissão fraudulenta o legislador está claramente a prever situações de comportamento intencionalmente enganador, com propósito de usar a pluralidade de seguros como forma de enriquecimento patrimonial, por intermédio de perceção de indemnizações previstas em mais que um contrato e excedendo o interesse seguro.
Quer isto dizer, assim, por oposição, que serão enquadráveis em situações de simples omissão:
a) Situações de simples desconhecimento da pluralidade: - Sabendo-se que o dever recai sobre tomadores e segurados, não é difícil imaginar situações de desconhecimento de segurados e é possível até prefigurar situações em que em
dois contratos, com dois segurados, os tomadores sejam diversos e, portanto, os próprios tomadores desconheçam a pluralidade;
b) Situações de, pura e simples, falta de comunicação, seja por esquecimento ou por desconhecimento da obrigação de informar;
c) Situações de intencional ou dolosa omissão de comunicação, sem que tal intenção esteja associada a qualquer propósito de enriquecimento ilegítimo, i.e., de perceber indemnização superior aos danos, por qualquer razão de cariz subjetivo que se possa configurar.
E quais as consequências para estas simples omissões?
No nosso entender, nenhuma, seja em termos legais, seja contratuais.
Poderá da omissão advir um mero risco moral de ver a omissão qualificada como fraudulenta, mesmo não o sendo, risco especialmente patente se se tomar como verdadeiro um vício de comportamento muitas vezes apontado às seguradoras de, perante solicitação de pagamento de prestações, antes de as satisfazerem, procurarem indagar todos os fundamentos possíveis para a sua desoneração…
Pode até, indo um pouco mais longe, dizer-se que a omissão de comunicação é suscetível de fazer nascer uma presunção natural de fraude, que nos parece clara naqueles casos em que seja solicitada indemnização aos dois seguradores, onerando o tomador com a responsabilidade de demonstrar a sua boa-fé e, portanto, não tendo a seguradora que demonstrar que tal constituiu uma mera distração ou um mero desconhecimento.
Assim sendo, a simples omissão não deixa de ser uma falta de cumprimento de uma obrigação que especialmente fragiliza a posição do tomador e/ou do segurado no âmbito de contratos de seguro plurais, colocando-o à mercê da sujeição à sanção correspondente às situações de omissão fraudulenta, mas nada mais que isso.
Sem prejuízo da questão probatória, em termos substantivos, deve entender-se, assim, que as simples omissões não implicam consequências.
Quer com isto dizer-se que deve entender-se que as seguradoras, ante este tipo de omissão, ficam igualmente obrigadas ao pagamento das prestações. Da omissão não emerge qualquer direito autónomo, assente que esteja, em termos factuais, que a omissão é simples.
Quanto à manutenção da obrigação de pagamento de prestações, crê-se que decorre linear e cristalinamente do que dispõe o art. 133º n.º2, que apenas exonera as seguradoras de tal obrigação ante omissões fraudulentas.
Quanto à inexistência de qualquer outro direito das seguradoras emergente da omissão, este entendimento, que será menos evidente, decorre sobretudo da supra citada natureza relativamente imperativa do regime da pluralidade de seguros, que de seguida se analisará e para onde se remete.
3.1.1. Licitude de cláusulas limitativas em caso de mera pluralidade
A questão que se deixou no ponto anterior refere-se, em síntese, a saber se serão lícitas cláusulas limitativas de responsabilidade da seguradora nos casos de mera omissão de comunicação, como antes definida, i.e., englobando todas as ausências de comunicação não fraudulentas. Isto é, não estatuindo o legislador sanção para a simples omissão podem as partes estatui-la?
Entende-se que esta questão, no ordenamento nacional, está abrangida pelo princípio de imperatividade relativa estabelecido pelo art. 13º da LCS.
Como foi referido, o legislador é expresso no art. 13º estabelecendo a possibilidade de derrogação de um conjunto de dispositivos legais apenas de forma mais favorável ao tomador, segurado ou beneficiário, entre as quais se inscreve expressamente a norma do art. 133º.
Ainda que o art. 133º não estivesse expressamente referido no art. 13º, parece poder dizer-se com alguma segurança que a possibilidade de celebrar mais que um contrato de seguro relativo aos mesmos risco e interesse confere uma clara vantagem ao segurado. Tal vantagem será de duas ordens:
Em primeiro lugar, mesmo sabendo que existe cobertura de idêntico risco e interesse em ambos os contratos, não pode, desde logo, afastar-se a possibilidade de o seguro plural, em sentido próprio, funcionar como seguro complementar.
Deve atentar-se, a este propósito, que tal decorre da estruturação do princípio indemnizatório na área de direito dos seguros.
Diz o art. 128º LCS que a indemnização devida pelo segurador está limitada ao dano e ao capital seguro.
Quer dizer que o referente indemnizatório nesta área não é unicamente a extensão do dano verificado mas também aquilo que seja convencionado como capital seguro.
Quer isto dizer, mesmo que as partes de ambos os contratos convencionem segurar todo o interesse, não é de excluir que, produzido o evento lesivo, se verifique que o capital seguro não cobre a totalidade do interesse protegido. Nesse caso, deve entender-se que operarão as regras da pluralidade na repartição de responsabilidade entre as seguradoras mas, para o segurado ou beneficiário, os contratos de seguro operarão de forma complementar, assim assegurando cobertura integral do interesse afetado.
Para além desta situação, mesmo estando todo o interesse completamente protegido nos dois contratos, a possibilidade dada de celebração de mais que um seguro, constitui um acréscimo na certeza dada ao titular do interesse da sua efetiva proteção, protegendo-o ou, pelo menos, muito reforçando, a proteção quanto a vicissitudes que possam atingir a primeira seguradora ou o primeiro contrato.
Assim, entende-se que são ilícitas cláusulas limitativas da responsabilidade das seguradoras no caso de pluralidade ou nos casos de omissão de comunicação não fraudulenta.
No ordenamento italiano, a doutrina e a jurisprudência italiana admitem validade de cláusulas limitativas de responsabilidade das seguradoras em caso de
pluralidade de seguros, sejam estas cláusulas que estatuam pura e simples perda de indemnização em casos de omissão de comunicação negligente ou cláusulas que prevejam reduções proporcionais das indemnizações, “convertendo” contratualmente a pluralidade de seguros em cosseguro38.
Face à inexistência de qualquer sanção legal para a omissão não fraudulenta na lei nacional e o expresso elenco do art. 133º nas normas relativamente imperativas da LCS, concluímos que estas cláusulas estão interditas no nosso ordenamento39.
A não ser assim, perante a validade de tais cláusulas, seria possível sustentar a desoneração contratual da obrigação da seguradora no caso de fazer incluir no clausulado de adesão uma regra limitativa de responsabilidade perante contratação de seguro de idêntico conteúdo.
Seria, em tal caso, igualmente possível sustentar que, caso viesse a suportar a prestação, por apenas tomar conhecimento da pluralidade em momento superveniente ao do pagamento ou qualquer outra razão, demandar o segurado ou o tomador por perdas decorrentes da indemnização suportada.
Sendo tal possibilidade afastada, na prática, qualquer omissão de comunicação não fraudulenta não terá qualquer consequência para segurado ou tomador, seja a nível do direito à perceção de prestações, seja de possibilidade de incorrer em responsabilidade civil por violação do dever de comunicação da pluralidade, existindo só o risco moral referido no ponto anterior.
3.1.2. Dever de informação e dever de declaração inicial de risco
O que antes se disse não infirma o relevo da comunicação de existência de um contrato prévio com o mesmo objeto, em termos de avaliação inicial de risco (art. 24º a 26º da LCS).
38 A propósito, cfr. Xxxxxxx XX XXXXX, Le assicurazione, cit., p. 189.
39 Também no sentido de que, em França, a divisão se faz meramente pela boa-fé ou má-fé na contratação plural, cfr. BEIGNER e DO XXXXX XXXXX, ob. cit., p. 169 e 170.
Esta informação apenas releva no processo de formação do segundo contrato, devendo considerar-se que a existência de um contrato prévio com o mesmo objeto pode, fundadamente, ser fator significativo na apreciação do risco pelo segurador (cfr. art. 24º n.º1) - na medida em que a avaliação ex ante de situações de possível fraude também deve ser feita por referência ao aumento de probabilidade de produção do sinistro decorrente de operarem dois seguros.
Assim sendo, será de considerar que a afirmação antes feita, que a simples omissão do dever de comunicação da pluralidade não tem consequências, deve ser entendida cum granum salis.
Não tem consequências o não cumprimento do dever autónomo de comunicação do regime de pluralidade de seguros. Todavia, na medida em que a informação de outorga de contrato prévio com o mesmo objeto tem relevo na aferição do risco, a falta de comunicação tem consequências, colocando a situação jurídica emergente do segundo contrato sujeita ao regime legal de violação dos deveres de informação inicial do tomador (art. 25º e 26º).
É, portanto, não uma consequência própria deste específico dever de informação mas uma consequência decorrente do regime genérico do contrato de seguro, com relevo no processo de conclusão do segundo contrato.
3.1.3. Eliminação da pluralidade em caso de desconhecimento
Situação próxima da antes referida mas não coincidente será a situação de sobresseguro, em sentido lato, por celebração de seguro plural, com desconhecimento de tal circunstância.
Querendo o tomador corrigi-la, terá direito a fazê-lo?
O legislador alemão é o único dos estudados a prever especificamente esta situação, dispondo pelo art. 79º da Lei do Contrato de Seguro: If the policyholder has made the contract on account of which the multiple insurance arose without knowing that the multiple insurance arose thereby, he may demand that the
contract made at a later date be rescinded or the sum insured be reduced, also reducing the insurance premium proportionally…
Quer isto dizer que é estatuído, a par do direito à resolução, direito à redução do segundo contrato.
Na falta de norma equivalente em Portugal terá que considerar-se que o tomador do segundo contrato terá meramente direito a resolvê-lo por erro ou, de forma mais simples, fazer cessar os seus efeitos, comunicando a intenção de cessação e deixando de pagar os prémios devidos.
3.2. Omissão fraudulenta
A par do dever de informação, este pode considerar-se o segundo pilar do regime de pluralidade de seguros.
É com base na previsão de fraude por omissão de comunicação da situação de pluralidade que o legislador estrutura o que se definiu como um verdadeiro princípio sancionatório, equivalente a desoneração das prestações de todas as seguradoras.
Este será o contrapeso que equilibra o alargamento da autonomia privada que o legislador consagrou na reforma de 2008, evitando que a ordem jurídica, nesta área, possa sofrer desbalanços sensíveis.
A regra, verificada uma situação de omissão fraudulenta, será, como referido, a desoneração das prestações de todas as seguradoras (art. 133º n.º2).
Chamando a atenção para o que se disse no ponto anterior, o conceito de omissão fraudulenta deve entender-se que é explicável como uma não comunicação acompanhada de uma especial intenção de perceção de prestações que excedam o interesse, i.e., uma intenção de enriquecimento patrimonial pela execução dos mecanismos previstos em dois, ou mais, contratos de seguros.
O conceito de omissão fraudulenta encerra, assim, elementos objetivos e subjetivos que especialmente qualificam este ilícito civil.
Em termos objetivos exige-se apenas a verificação da omissão.
Em termos subjetivos, que essa omissão seja intencional e acompanhada de elemento subjetivo especial – intenção fraudulenta.
Esta intenção fraudulenta é um elemento puramente subjetivo, cujo apuramento decorrerá certamente de elementos objetivos casuísticos, de entre estes podendo salientando-se a solicitação de mais que uma indemnização após produção do sinistro, mas que não é confundível com esta.
Quer com isto dizer-se que a intenção fraudulenta deve sempre ser estabelecida autonomamente. Podem verificar-se elementos objetivos indiciadores de fraude sem que esta exista e pode também existir intenção fraudulenta com diversas manifestações objetivas. Pode até, no limite, existir mera intenção fraudulenta subjetiva mas, na medida em que não se objetive, não terá relevo jurídico.
No contexto das ordens mais próximas que vêm sendo referidas, pode dizer-se que as soluções são muito equivalentes, embora se deva salientar que o legislador nacional, nesta parte, foi especialmente feliz, traduzindo uma solução que se destaca pela sua clareza.
Assim, em Espanha, na parte final do &1 do art. 32 da Ley 26/2006, o legislador prevê apenas dolo na omissão.
O sentido a dar a omissão dolosa deve ser análogo à do legislador nacional. Todavia, poderão suscitar dúvidas os casos de omissões de comunicação conscientes mas sem qualquer intenção de enriquecimento, que, como referido atrás, em Portugal nos parece claramente que não desoneram as seguradoras e, nesta redação, permite dúvidas de interpretação e aplicação.
De forma idêntica dispõe o art. 1910º do Codice Civile se reporta a omissão dolosa.
Este dolo tem sido, todavia, interpretado de forma equivalente ao de
omissão fraudulenta e não de mera intenção de não comunicação. Assim, diz LA
XXXXX que consistirá num comportamento preordenado com o fim de conseguir uma indemnização maior que o dano efetivamente sofrido40
O art. L121-4 &3 do Code des Assurances dispõe, por seu lado, Quand plusieurs assurances contre un même risque sont contractées de manières dolosive ou frauduleuse, les sanctions prévues (…) sont applicables (remete para o art. L. 121-3: en demander la nullité et réclamer, en outre, les dommages et intérêts).
Esta previsão de algum modo adensa ainda mais a dúvida sobre se as expressões são coincidentes, sendo uma mera redundância legal, ou existe uma diferença substantiva41.
Tão claro como o preceito nacional será apenas o art. 78º n.º3 da Lei do Contrato de Seguro alemã que estabelece o conceito de intenção de obter benefício pecuniário ilícito, estabelecendo a nulidade de cada contrato celebrado com tal propósito.
Pode dizer-se, assim, que a despeito das diferenças nominais, podem considerar-se equivalentes as diversas expressões comparadas, quando referidas a este regime (dolo/fraude/má-fé/intenção de obter um benefício pecuniário ilícito).
É claro que a fraude tem que ser alegada e provada. Tal prova, em muitos casos, decorrerá diretamente da omissão de informação acompanhada, ocorrido o sinistro, da solicitação de pagamento de mais que uma indemnização.
Já nos casos em que as seguradoras se apercebam da omissão antes da ocorrência de qualquer sinistro ou, após produção deste, sem que sejam reclamadas indemnizações que ultrapassem o interesse, a situação reconduzir-se- á a mera pluralidade ou a não cumprimento dos deveres de informação, assim devendo ser analisada pelas seguradoras ou, se for o caso, pelo intérprete.
3.2.1. Consequências da omissão fraudulenta
40 Le Assicurazione, cit., p. 188.
41 BEIGNER e DO XXXXX XXXXX, ob. cit., p. 163 associam-na simplesmente a intenção fraudulenta.
Quanto à estatuição legal decorrente das situações de omissão fraudulenta pode dizer-se que todos os regimes estabelecem um regime de cariz sancionatório para tais situações.
No ordenamento nacional a sanção é a prevista no art. 133º n.º3 LCS e corresponde à exoneração do segurador das suas prestações, que quer dizer exoneração total de todas as seguradoras do pagamento de qualquer prestação.
Em Itália e Espanha as soluções são equivalentes.
No ordenamento alemão é estatuída nulidade do contrato e expressamente consagrado o direito do segurador a fazer seus os prémios vencidos até conhecimento dos factos que fundamentam a nulidade.
Assinale-se que nos ordenamentos português, italiano e espanhol, a falta de preceito análogo ao do direito alemão quanto à invalidade do seguro plural fraudulento conduz a que o resultado seja idêntico, i.e., o contrato manter-se-á eficaz até verificação da fraude e, portanto, será lícito à seguradora fazer seus todos os prémios percebidos.
Em França é estatuída nulidade do contrato e a possibilidade da seguradora demandar o tomador por perdas e danos emergentes.
Quer isto dizer que, por princípio, funcionarão as regras gerais da nulidade, com devolução de tudo o prestado mas com a possibilidade de autonomamente a seguradora instaurar demanda, com alegação e prova de danos emergentes que eventualmente possa ter sofrido42.
No direito inglês é prevista simplesmente a nulidade do contrato por violação de deveres de informação.
3.2.2. Inoponibilidade ao lesado da omissão fraudulenta
O n.º 6 do art. 133º estabelece uma regra sem paralelo nos ordenamentos tratados que é a expressa inoponibilidade ao lesado que reclame indemnização da invocação de omissão fraudulenta de tomador ou segurado.
42 A propósito, cfr. Xxxxxxx XXXXXXXX e Xxxx-Xxxxxx xx XXXXX XXXXX, (coordenação), Code des Assurances Commenté, Lexis-Nexis-Litec, Paris, 2008, p. 167.
Quer isto dizer que desoneração de prestações estatuída sofre aqui uma forte limitação, tendo, portanto, as seguradoras a obrigação de pagar as prestações que lhes forem solicitadas por lesados.
Deve entender-se que, suportando a indemnização ao lesado, o segurador terá direito a reaver do segurado ou do tomador o que tiver prestado.
Não se trata, neste caso, de sub-rogação, como a prevista no art. 136º (esta será sub-rogação do segurador pelo segurado ou tomador contra o terceiro responsável), devendo entender-se que se trata de pura e simples responsabilidade civil decorrente da situação fraudulenta.
É uma limitação relevante desde logo por pressupor que o património do tomador e/ou do segurado garantem o cumprimento da obrigação respetiva, o que poderá nem sempre suceder.
4. Relações segurado – segurador com produção do evento lesivo
Dispõe o n.º3 que o sinistro será indemnizado por qualquer dos seguradores, à escolha do segurado, dentro dos limites da respectiva obrigação.
A regra é semelhante nos diversos ordenamentos, todos permitindo que quem tem direito a reclamar as prestações se dirija a uma única seguradora.
A diferença entre regimes assenta na pessoa com legitimidade para proceder à indicação da seguradora que assumirá, em primeira mão, o pagamento da prestação.
Na Alemanha será competência do tomador, em Espanha e Itália a regra é semelhante à nacional, conferindo tal direito ao segurado e no ordenamento francês, pelo &4 do art. L121-4 o direito de indicação é atribuído ao beneficiário – (…) le bénéficiare du contrat peut obtenir l`indemnisation de ses dommages en s`adressant à l`assureur de son choix.
Em Portugal a indicação relevante é feita, como referido, pelo assegurado.
Parece-nos que este preceito deve merecer uma interpretação literal, nada havendo em termos racionais ou sistemáticos que, em nosso entender, permita sustentar que o legislador disse menos que aquilo que queria dizer.
Assim sendo, cumpre referir, que esta regra é desconexa de qualquer disposição contratual que estabeleça critérios sobre a legitimidade para reclamar indemnizações.
Dito de modo simples: Não sendo o segurado o tomador de seguro, mesmo que este tenha direito de participar o sinistro e solicitar as prestações contratuais, havendo pluralidade, será ao segurado que caberá, em exclusivo, a indicação da seguradora responsável pela prestação. O mesmo se dirá quando tal legitimidade seja conferida ao lesado. A escolha da seguradora será feita pelo segurado.
E se este a não fizer?
Deve entender-se que, em tal caso, a participação de sinistro por quem tenha legitimidade deverá ser sempre comunicada ao segurado, seja pela seguradora seja pelo participante legítimo, lesado ou tomador, valendo o silêncio
do segurado em prazo razoável como não oposição à indicação feita pela própria participação.
O mesmo se dirá caso o sinistro seja participado a todas as seguradoras. Nesse caso, ante o silêncio do segurado, impor-se-á solicitar nova indicação do participante, neste caso da seguradora individual que deve suportar a prestação.
Por outro lado, estabelecendo o legislador que a indemnização é satisfeita por qualquer das seguradoras dentro dos limites da respectiva obrigação, quer claramente estabelecer que o limite de capital seguro em cada contrato será sempre o limite da prestação.
Tal poderá permitir, a contrario, que o seguro plural em sentido próprio funcione como seguro complementar, nos casos em que o capital seguro não cubra todo o interesse seguro.
Nesse caso deverá entender-se que o segurado tem direito a solicitar prestação complementar à outra seguradora, o que poderá fazer concomitantemente ou não, consoante seja ou não evidente ab initio a não correspondência entre os valores de capital seguro e de interesse atingido pelo sinistro.
Quer isto dizer também, portanto, que o legislador ao regular o seguro plural em sentido próprio está também, necessariamente, a regular o regime do seguro complementar.
Na verdade, não poderia ser de outro modo. Ainda que em muitas situações da vida e, portanto, em muitos factos jurídicos, seja possível prever antecipadamente toda a extensão dos danos causados por um sinistro numa determinada realidade económica, noutros, tal avaliação será meramente indicativa.
Acresce que os contratos de seguro estabelecem limites de capital seguro e, portanto, implicitamente, pressupõem a possibilidade de os danos excederem o interesse seguro, caso contrário todos os seguros seriam de capital ilimitado. Consequentemente, a simples limitação indemnizatória feita pelo referente
capital induz a possibilidade de o seguro plural assumir natureza de seguro complementar.
Neste ponto o regime nacional segue uma solução próxima dos regimes que se vêm referindo, todos permitindo que quem tenha legitimidade para solicitar o pagamento de prestação, a solicite na íntegra a uma das seguradoras, que estão obrigadas a cumprir integralmente a prestação (sempre nos limites dos danos e do capital seguro). Ficará para estas entidades o cômputo do apuramento final de responsabilidade entre si.
Alguma diferença de regime pode encontrar-se na repartição final de responsabilidade entre seguradoras, como a seguir explicado.
5. Relações entre seguradoras com produção do evento lesivo
Nas relações entre seguradoras estatui o legislador repartição de responsabilidade ficcionando a existência de um contrato único - na proporção da quantia que cada um teria de pagar se existisse um único contrato de seguro.
A forma de interpretar esta regra será a de considerar que o legislador ficciona, para efeitos estritos de repartição de responsabilidade entre seguradoras no caso de pluralidade e após concretização da prestação por uma, uma situação de cosseguro.
Essa ficção é evidentemente, limitada, não havendo total identificação com o regime material do cosseguro. Não só não existe acordo prévio sobre a repartição de responsabilidade, como tal forma de repartição será apenas a que decorra dos limites de capital seguro (e, não, portanto, de proporção de risco assumido, possibilidade que o legislador também consagra para o regime do cosseguro).
Quer isto dizer, em síntese, que no ordenamento nacional, o cosseguro ficcionado radica nos capitais seguros, sendo a responsabilidade final rateada em proporção equivalente à correspondente relação entre os capitais seguros nos dois ou mais contratos. Em dois contratos plurais, com limites de capital idênticos, a responsabilidade final das seguradoras será também idêntica. Quer isto dizer que a seguradora que satisfizer a prestação terá direito a reaver da outra o equivalente a metade do que tiver prestado a segurado ou lesado.
A solução nacional, neste ponto, aproxima-se da solução francesa que, pelo &5 do art. L121-4 dispõe que Dans les rapports entre assureurs, la contribution de chacun d`eux est détérminée en appliquant au montant du dommage le rapport existant entre l`indemnité qu`il aurait versée s`il avait été seul et le montant cumulé des indemnités qui auraient été a la charge de chaque assureur s`il avait été seul.
Materialmente próxima, mas com técnica diversa, é a solução do &4 do art. 1910º do Código Civil italiano dispondo que L`assicuratore che ha pagato ha
diritto de regresso contro gli altri per la repartizione proporzionale in ragione delle indemnità dovute secondo i rispettivi contratti.
Quer isto dizer que é instituído um autónomo direito de regresso mas, na medida em que esta assenta na repartição proporcional em razão da indemnização devida nos termos de cada contrato, o cômputo de tal direito será equivalente.
Também em Espanha a solução é diversa, na decorrência da diferente configuração dos mecanismos de reclamação da prestação: Los asseguradores contribuirán al abono de la indemnización en proporción de la própria suma assegurada, sin que pueda superarse la cuantia del daño. Dentro de este limite el asegurado puede pedir a cada asegurador la indemnización debida, según el respectivo contrato. El asegurador que há pagado una cantidad superior a la que proporcionalmente le corresponda podrá repetir contra el resto de los asseguradores (art. 32 &3 da Ley de Contrato de Seguro).
Quer dizer que apenas está previsto acerto de prestações assente em simples pedido de repetição, assente que esteja que tenha pago mais que o proporcionalmente devido.
Na Alemanha a solução também é próxima, ainda que não seja qualificada a forma de repartição final de prestações. É estabelecido adicionalmente um critério de reciprocidade de direito internacional privado. Dispõe o art. 78º &3 da Lei de Contrato de Seguro que as regards the insurers, they shall be liable to pay in proportion to the amounts for which they are liable in accordance with each respective contract. If foreign law is applicable to one of the insurances, the insurer to whom foreign law applies may only assert a claim for compensation against the other insurer if he himself is liable to pay compensations under the relevant law.
6. As regras de common law referentes a pluralidade de seguros
Sem prejuízo do que antes se disse pontualmente a propósito de alguns dos tópicos analisados, tendo o direito inglês matriz diversa do continental, não existe correspondência direta entre os assuntos tratados e as soluções que acolhe. Por outro lado, tendo tal ordenamento, na área de direito dos seguros, especial riqueza, entende-se apresentar de forma autónoma, ainda que sintética, as principais soluções deste ordenamento quanto à matéria de second insurance,
que, no essencial, corresponde à matéria de pluralidade de seguros43.
Pode dizer-se que este ordenamento apresenta maior amplitude no que concerne à consagração da autonomia privada.
Tal é denotado, como já antes referido, pela permissão ampla de contratação plural de seguros com idêntico objeto.
Também aqui o tronco central de regulamentação e de equilíbrio do sistema radica no dever de informação do segurado, às diversas seguradoras, sobre a situação de pluralidade. A omissão de tal dever conduz, neste ordenamento, a invalidade do contrato em que o dever seja omitido.
Por outro lado, ainda em sede de autonomia privada, é amplamente admitida a validade de (quase) todo o tipo de cláusulas limitativas em caso de pluralidade de seguros.
Assim, designadamente, a doutrina inglesa, partindo de soluções jurisprudenciais, elenca como válidas cláusulas de rateio de responsabilidade entre seguradoras, cláusulas de limitação da indemnização a danos não cobertos por contrato já em vigor, cláusulas de exclusão total de indemnização se já cobertos por contrato em vigor.
Todo este tipo de limitações de responsabilidade em situação de pluralidade é admitido, sendo tais limitações meramente desconsideradas (disregarded: diríamos em termos civilistas, consideradas ineficazes) se forem
43 A propósito de admissão ampla de second insurance, cfr. Malcom A. XXXXXX, The Law of Insurance Contrats, LLP (Lloyd`s of London Press Ltd.) Ed., 1989, p. 586 e John BIRDS, Modern Insurance Law, Sweet and Maxwell, Londres, 1988, p. 259 a 261.
ininteligíveis, i.e., se do seu teor não for percetível a que situação factual se referem44.
Assim, são admitidas as chamadas cláusulas rateable proportion, em síntese equivalentes às que acima se referiram como admissíveis no ordenamento italiano e proscritas no nacional, i.e., de rateio de responsabilidade ex vi contrato e as cláusulas excess of loss insurance que desoneram a seguradora da prestação exceto quanto a danos não suportados por outro contrato45
Muito comuns nos contratos ingleses e, por isso, especialmente merecedoras de tratamento jurisprudencial, são as chamadas escape clauses (cláusulas de fuga), cláusulas inseridas nos contratos, seja no primeiro ou no segundo, que isentam a seguradora da obrigação de satisfazer a prestação no caso de existir outro seguro válido com idêntico objeto.
O tratamento dado a estas cláusulas é especialmente revelador da amplitude dada à autonomia privada e, por outro, ao intrincado das soluções do ordenamento inglês.
Diríamos nós, no espírito racionalista continental, que melhor seria considerar abusivas algumas destas cláusulas e a questão estaria resolvida à nascença. Para a ordem inglesa, todavia, deve, sobrelevar a autonomia privada e, portanto, a validade de tais escape clauses é geralmente admitida, sejam insertas, como referido, no primeiro, no segundo, ou em ambos os contratos.
Tal concorrência de escape clauses obrigou à formulação de construções jurisprudenciais para conferir proteção à posição do segurado, desconsiderando uma ou as duas cláusulas em confronto. São apontados quatro tipos de decisões:
- Responsabilidade do 1º segurador, com desconsideração de eficácia da cláusula inserta no primeiro contrato (prevalência temporal do contrato);
- Responsabilidade do segurador que mais especificamente cobre o risco em causa no sinistro ocorrido (prevalência material do contrato);
44 Neste sentido, ob. e loc. Cit. nota anterior.
45 Sobre estas cláusulas, cfr. Malcom A. XXXXXX, ob. cit., p. 587 e 588.
- Responsabilidade rateada desconsiderando as cláusulas de desresponsabilização (aproximação da solução inglesa às soluções continentais);
- Desconsideração das cláusulas e responsabilização da seguradora mais relacionada com o risco em causa (prevalência do conteúdo funcional da instituição seguradora).
Complexa no ordenamento inglês será a aferição da ratio of contribution
entre seguradoras.
Face à amplitude da autonomia privada e inexistência de regra geral, só casuisticamente é possível estabelecer uma conclusão. Parece, todavia, ainda que dubitativamente, se tem vindo a estabelecer como critério decisório o da proporção do capital seguro nos danos, solução próxima à dos ordenamentos continentais46.
46 Assim, Xxxx Xxxxx, ob cit., p. 263
7 – Pluralidade no seguro de pessoas
Como antes se referiu, a disciplina da pluralidade de seguros de pessoas tem a sua base no regime de seguro de danos.
Será pelas regras do art. 133º que o seguro plural de pessoas será regulado, por expressa remissão do art. 180º n.º2. Vale, assim, tudo o que antes se disse.
De referir, como se salientou já, que o art. 180º n.º2 alude apenas a identidade de xxxxx, deixando de fora o interesse, o que terá de interpretar-se, como se referiu, por referência à exigência legal de declaração de autorização da pessoa segura não contratante47.
O que há então de assinalar como particularidade da pluralidade de seguros de pessoas?
Em primeiro lugar a circunstância de o ordenamento nacional ser o único que contempla regulação expressa desta matéria.
Será que o ordenamento nacional é, assim, o único que a admite?
Deve entender-se que não. A doutrina francesa é a única que considera que a autorização de pluralidade é inaplicável a seguro de pessoas, não havendo razão para fundamentar qualquer interdição nos restantes ordenamentos48.
Questão mais complexa é a de saber se os seguros de vida podem ter uma função puramente indemnizatória, como seguro de danos.
Não se trata aqui de avaliar qual o sentido dogmático a atribuir ao contrato de seguro de vida, matéria conexa e alvo de amplo debate49. O que se trata é de saber, estabelecendo o legislador uma divisão clara entre seguros de capitalização e de indemnização, no contexto do seguro de pessoas, se será lícito contratar seguro de vida estritamente indemnizatório, i.e., sem prestações predeterminadas.
47 Cfr. supra, Parte I, 2.3.1.
48 Cfr., a propósito do ordenamento francês, XXXXXXX XXXXXXXX e XXXX-XXXXXX XX XXXXX XXXXX, (coordenação), Code des Assurances Commenté, p. 165 e, Xxxxxx X. XXXX e, Xxxxxx XXXXXXX, Code des Assurances, 9ª ed., Éditions Dalloz, 2003, p. 69.
49 A propósito das diversas teses sobre a natureza jurídica do seguro de vida, cfr. Xxxx XXXXX,
Estudos de Direito dos Seguros, Xxxxxxx & Xxxxxx Xxx., 2008, p. 61 a 75.
Esta é, inequivocamente, lícita nos demais seguros de pessoas, designadamente de acidentes e doença, ficando a seguradora que prestar sub- rogada nos direitos do tomador ou beneficiário contra o terceiro que dê causa ao sinistro (art. 181º).
Quanto à vida, o seu cômputo patrimonial há muito é feito na ordem jurídica. A despeito do relevo dos argumentos apresentados por XXXXXXXX XX XXXXXXX, não parece que possa excluir-se no nosso ordenamento a possibilidade de celebração de seguro de vida de com prestação exclusivamente indemnizatória e variável – ubi lex non distinguit…50
7.1. Contratos com prestações de valor predeterminado
O que antes se disse a propósito de identificação quase completa de regimes de pluralidade entre seguro de danos e de pessoas sofre a única particularidade sensível no que concerne aos contratos que o legislador qualifica como tendo prestações de valor predeterminado.
O seguro de pessoas pode ter uma função diversa da ressarcitória, aproximada de produto financeiro de capitalização, como mecanismo de poupança e investimento.
Nestes casos estamos totalmente fora do âmbito do princípio indemnizatório.
Para estes casos estatui o legislador uma ampla permissão de cumulação de contratos, sem limitação de valores de prestações a pagar, admitindo que sejam celebrados dois ou mais contratos com prestações predeterminadas por referência à produção do mesmo evento, ou que se cumulem contratos dessa natureza com contratos envolvendo prestações de natureza indemnizatória (art. 180º n.º1).
Dir-se-á que esta regra do art. 180º n.º1 não deixa de ser algo redundante, não se vendo que estabeleça regra diversa da que cristalinamente decorreria da
50 Cfr. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Contrato de Seguro. Estudos, Coimbra 2009, p. 31.
mera consideração da autonomia privada. Trata-se, todavia, talvez de uma mera função clarificadora que, nesse contexto, se pode saudar.
8. Aplicação das regras da pluralidade a outras situações
A concluir este trabalho, após exposição do sentido do regime de pluralidade de seguros e entendendo-se que fica clara a importância do regime em si considerado, cumpre salientar a importância que o regime poderá ter fora da sua área de aplicação.
Como já salientado, toda a norma pode desempenhar na ordem jurídica função aplicativa diversa daquela para que foi especificamente prevista. O mecanismo da aplicação analógica é de grande operacionalidade51.
Como já salientado igualmente, o regime da pluralidade de seguros é daqueles em que os princípios centrais de direito dos seguros mais claramente são evidentes. Quer isto dizer que a aplicação analógica das regras de direito dos seguros a situações próximas será também, necessariamente, aplicação dos próprios princípios desta área.
Cumpre salientar agora, remetendo-se para o que se disse quanto à delimitação negativa do conceito, designadamente para situações que se qualificaram de pluralidade aparente, que o ordenamento jurídico tem desde 2008 possibilidade de encontrar resposta uniforme e adequada, que equilibra os direitos e interesses em jogo.
Sabe-se que as soluções do aplicador, neste tipo de casos, muitas vezes chegam a resultados práticos equivalentes, designadamente permitindo a beneficiário ou lesado demandar qualquer das seguradoras, que depois entre si repartirão os encargos com as prestações. Ressalvando os casos de concurso de responsabilidades diversas, em que a repartição final das prestações deverá ser correspondente, entende-se que as regras da pluralidade de seguros aplicadas a estes casos far-se-á de forma quase automática, sem necessidade de adaptação (que não, evidentemente, a decorrente do alargamento da previsão feita pelo recurso à analogia).
51 Sobre analogia, cfr. OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspectiva Luso-Brasileira, 7ª ed., Almedina, 1993, p. 419 e segs.. e XXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX, Introdução ao Direito, Almedina 2012 p. 397 e segs..
Quer deixar-se esta referência final para salientar o relevo que este instituto jurídico pode assumir na ordem jurídica, sendo já relevante como pensado pelo legislador, poderá excedê-lo, caso o intérprete o acolha para responder a um conjunto de situações de concurso de contratos de seguros, que têm merecido respostas variadas e por vezes inconsistentes por parte de intérpretes e aplicadores, com a consequente incongruência que tal pode criar ao sistema jurídico.
Assim, por exemplo, no caso já acima referido que se qualificou de ficção de unidade de objeto seguro, como tipicamente ocorre na produção de acidente causado por trator e semirreboque acoplados, a convocação do regime de pluralidade de seguros poderá apresentar-se como uma solução adequada52.
Também noutras situações de pluralidade meramente aparente em que funcionem simultânea e cumulativamente dois contratos de seguro, a convocação a título analógico das regras da pluralidade de seguros poderá apresentar-se como uma solução linear e uniformizadora, permitindo que lesado, beneficiário ou segurado, nos limites de cada contrato, solicite a prestação devida a qualquer das seguradoras, que repartirão posteriormente a responsabilidade entre si, nos termos deste regime, i.e., com referência aos capitais seguros.
52 A propósito AC. STJ 15/12/2011 (XXXX XXXXXX); 18/1/2000 (ARAGÃO SEIA) e RL 29/11/2011 (XXXXXX XXXXXXX), todos disponíveis em xxx.xxxx.xx.
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