Alexandre Mattos Machado e Maria Alice de Oliveira Santa Inês
A EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS E A POSSIBILIDADE JURÍDICA DA CLÁUSULA SOLVE ET REPETE
Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxx Santa Inês
1 INTRODUÇÃO
No início das relações humanas a apropriação dos bens da vida se dava mediante o exercício da força, de forma que obtinha o bem apto a atender sua necessidade aquele que fosse mais astuto ou fisicamente mais forte.
Com o surgimento da figura do contrato, os bens da vida passaram a circular mediante a harmonização das vontades que se exteriorizavam no meio social. A partir daí, observa-se o incremento das relações negociais e um forte desenvolvimento econômico que jamais teria sido observado sem a figura do contrato.
Diante de tamanha importância social bem como para o tráfego econômico é que o contrato passou a ser tutelado pelo Direito.
Os romanos faziam distinção entre contrato, convenção e pacto, de forma que a convenção era considerada gênero do qual eram espécies o pacto e o contrato.
O Code Civile des Français, de 1804, considerado como a maior codificação moderna, manteve a distinção romana. O referido código, gestado na Revolução Francesa, disciplinava o contrato em seu livro terceiro, que cuidava “dos diversos modos de aquisição da propriedade”. Portanto, no direito francês, o contrato era tido como mero instrumento através do qual se adquiria a propriedade. Nas palavras de Sílvio de Salvo Venosa, “O contrato é calcado como meio de circulação de riquezas, antes à mão apenas de uma classe privilegiada. [...] A transferência dos bens passava a ser dependente exclusivamente da vontade ”1.
Já o BGB, promulgado em 1900, enxerga o contrato de forma diferente. Para os alemães, o contrato compõe o universo dos negócios jurídicos, sendo uma de suas espécies. Como negócio jurídico que é, portanto, o contrato, de per si, é inábil a transferir a propriedade. E essa é a principal distinção verificada entre o sistema alemão e o francês.
1 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. V. 2.
11. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 372.
De notada influencia alemã, o Código Civil de 2002, em muitos aspectos semelhante ao seu antecessor, se ocupa dos contratos em seu Título V. Centrando-se no Capítulo II, ao tratar da extinção dos contratos, mais especificamente nos artigos 476 e 477, o Código Reale traz o instituto da exceção do contrato não cumprido, do qual se fará, doravante, uma análise um pouco mais acurada.
2 A EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS
A exceptio non adimpleti contractus ou exceção do contrato não cumprido, disciplinada pelos arts. 476 e 477 do Código Civil de 2002, se refere à possibilidade de o devedor escusar-se da prestação da obrigação contratual, por não ter o outro contratante cumprido com aquilo que lhe competia.
Para compreender fundamentadamente o instituto, cumpre analisar a sua origem, primeiramente, para, então, passar à análise dos aspectos gerais e específicos que o caracterizam.
2.1 ORIGEM
Não há consenso doutrinário quanto à origem histórica da exceção do contrato não cumprido. Isso pode ser verificado a partir da análise do raciocínio xx XXXXX:
Uma corrente é partidária de sua origem romana, de um modo nítido, enquanto outra, posto não desconheça que certas manifestações de reação defensiva por meio de uma especial forma de retentio fossem já conhecida dos romanos, todavia são de parecer que a sua estrutura jurídica, tal qual aparece no Direito moderno, é uma conseqüência da noção canônica a respeito da idéia de contrato, e que, no Direito Romano, as circunstancias que presidiam àquele direito não podiam favorecer a idéia de fides que se encontra como um elemento fundamental e intrínseco na exceptio n. ad. contractus. Tais são as divergências que dividem os juristas em torno desse ponto delicado e histórico2.
Sustentando Roma como nascedouro do instituto, Xxxxxxxx Xxxxxx é citado por Xxxx Xxxxx0.
De outro lado, Cassin4 sustenta que a exceptio non adimpleti contractus tem origem no direito canônico, sendo nesse ponto seguido pelo próprio Xxxx Xxxxx0 e por Xxxxx Xxxxx0.
2 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx apud GAGLIANO, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo Curso de Direito Civil – Contratos: Teoria Geral. X. 0, Xxxx X, 0. xx. Xxx Xxxxx: Saraiva, 2002, p. 265-266.
3 XXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx da. Instituições de Direito Civil. V. III. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 96.
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx0 que os partidários da origem canônica do instituto defendem que no Direito Romano não estava presente nos contratos bilaterais a noção de interdependência das prestações, a idéia de sinalagma. Assim, sendo as obrigações autônomas umas em relação às outras, não poderia a parte invocar o descumprimento contratual da contraparte para eximir-se de sua obrigação.
Conforme o referido autor, foi o direito canônico que precisou que em determinados contratos bilaterais, os sinalagmáticos, as prestações restavam vinculadas não apenas na gênese do contrato, mas também no quando de seu cumprimento. Portanto, percebe-se que é a partir do direito canônico, com a concepção de que a interdependência das prestações também é observada no momento da execução do contrato, que surge a idéia, amparada no princípio da boa-fé objetiva, de que aquele que descumpriu determinada obrigação não pode exigir da contraparte o cumprimento de outra obrigação que à primeira seja correlata.
2.2 ASPECTOS GERAIS
Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro, conforme o art. 476 do Código Civil de 2002. Tal dispositivo disciplina a exceção de contrato não cumprido ou exceptio non adimpleti contractus.
Em se tratando, portanto, de contratos bilaterais, que estabeleçam prestações recíprocas, que devam ser adimplidas simultaneamente, de acordo com cláusula contratual ou em casos de omissão do contrato quanto ao momento do cumprimento, é possível a alegação de exceção de contrato não cumprido, quando houver demanda pelo cumprimento e ambos os contratantes ainda não tenham adimplido suas obrigações8.
O contratante que tenha cumprido, até então, com todos os seus deveres, pode comportar-se de três maneiras distintas, quando verificar o inadimplemento por parte do outro. Ele pode,
4 XXXXXX, Xxxx xxxx XXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx da, loc. cit.
5 XXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx da, op. cit., p. 96-97.
6 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxx apud COSTA, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx, et al, Exceção de Contrato Não Cumprido. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/0000/xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxx-xxxxxxxx>. Acesso em 09 de dezembro de 2011.
7 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx, et al, op, cit.
8 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais de Vontade. V. 3. 30. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 85.
primeiramente, pleitear a resolução do contrato, em conjunto com indenização por perdas e danos. Caso não seja esta a postura adotada, este contratante pode pleitear a adimplência da obrigação estabelecida pelo contrato, também em conjunto com a indenização por perdas e danos. Em terceiro lugar, pode não acionar o contratante inadimplente e, quando acionado para cumprir a obrigação que lhe incumbe, utilizar-se da exceção do contrato não cumprido.
A alegação da exceptio non adimpleti contractus depende da instauração de processo xxxxxxxx0. Isto quer dizer que, para que o instituto seja invocado, em sede de contestação, deve haver a exigência de cumprimento do contrato em juízo por uma das partes. Nas palavras de Xxxxxxxx e Pamplona Filho, “consiste a exceção de contrato não cumprido em um meio de defesa, pelo qual a parte demandada pela execução de um contrato pode arguir que deixou de cumpri-lo pelo fato da outra também não ter satisfeito a prestação correspondente”10.
Assim, ao invocar a exceção de contrato não cumprido, o réu paralisa a ação do autor. Vale a ressalva de que o juízo a ser realizado, quando da apreciação da referida exceptio, não é de mérito, mas apenas quando à exigibilidade da prestação contratual, uma vez que a obrigação cabível ao demandante também não foi adimplida11.
Nos casos em que a prestação obrigacional deva ser realizada simultaneamente, a exceção sub examine pode ser aduzida quando da demanda judicial pelo cumprimento do contrato seja movida pelo contratante que ainda não tenha implementado a que lhe caiba. Assim, caso haja uma ordem estipulada por cláusula contratual, o contratante que esteja incumbido de, em primeiro lugar, cumprir a obrigação não poderá alegar a exceção do contrato não cumprido. Entretanto, em casos excepcionais, é possível que, mesmo havendo ordem de implemento estabelecida, o contraente que esteja obrigado a cumprir em primeiro lugar o contrato se recuse a cumprir sua obrigação nesta ordem, em consonância com a dicção do art. 477 do Código Civil de 200212:
Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la.
Nas hipóteses de cumprimento parcial do contrato por uma das partes, fala-se em exceptio non rite adimpleti contractus ou exceção do contrato parcialmente cumprido13, situação que em
9 KRUCHEWSKY, Eugênio. Teoria Geral dos Contratos Civis. Salvador: JusPodivm, 2006, p. 53.
10 GAGLIANO, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 261.
11 XXXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 86.
12 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. V. 3. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 137-138.
13 GAGLIANO, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 262.
nada difere da anteriormente aventada, tendo em vista que quem cumpre parcial, defeituosa ou inexatamente não deixa de estar descumprindo14.
2.3 REQUISITOS
Dentre os pressupostos para aplicação da exceptio non adimpleti contractus, é imprescindível compreender, a priori, a distinção entre contratos unilaterais e bilaterais, uma vez que os contratos unilaterais não comportam a referida exceção.
Os contratos unilaterais caracterizam-se por determinarem obrigação para apenas uma das partes pactuantes. Cumpre frisar que o fato de o contrato ser unilateral não está relacionado com o estabelecimento de uma única obrigação, mas, sim, com a imputação de uma ou mais obrigações a somente um dos contratantes15.
Por outro lado, no contrato bilateral, há uma reciprocidade de prestações. A bilateralidade, portanto, significa o estabelecimento de obrigações para ambos os contraentes16. Os contratos bilaterais também são chamados sinalagmáticos, levando em consideração a existência de uma “dependência recíproca das obrigações (sendo uma a causa de ser da outra), o que é chamado de sinalagma17.
Entretanto, há algumas hipóteses em que se verifica a existência de mais de dois contratantes. Nestes casos, é possível verificar uma pluralidade de obrigações, quando se atribui dever de prestação a três ou mais contratantes, caracterizando o contrato plurilateral18.
A exceção do contrato não cumprido depende, primeiramente, dessa reciprocidade de prestações, típica dos contratos bilaterais (ou, também, dos plurilaterais). Ocorre que não basta a reciprocidade, sendo necessária também a simultaneidade das prestações. Por se tratar a exceptio non adimpleti contractus de instrumento de defesa processual, a ser suscitado em contestação, caso o momento de cumprimento da obrigação seja estabelecida pelo contrato em momento diferente para cada pessoa, não há compatibilidade entre a exceção levantada e o pactuado entre os contratantes19. Ora, não seria lógico que o contrato determinasse uma ordem
14 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 138.
15 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 63.
16 XXXXXX, Sílvio de Salvo, op. cit., p. 404.
17 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 119.
18 Ibid., p. 118.
19 XXXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 85-86.
para o adimplemento obrigacional e tal ordem pudesse ser questionada com supedâneo na exceção em apreço pelo contraente cuja obrigação deva ser cumprida antes das demais.
Logicamente, é fundamental, para que seja suscitada a exceptio non adimpleti contractus, que haja a demanda de uma das partes do cumprimento, pela outra, da obrigação estabelecida pelo contrato20. Ou seja, uma das partes deve, primeiramente, exigir o cumprimento para, somente então, a outra parte contratante poder alegar a exceção sub examine.
Trata-se, esta exceção, de meio de defesa processual. Destarte, a pretensão do demandante deve ser ajuizada. Vislumbrada tal situação, o demandado, ora réu processual, poderá alegar a referida exceção em sede de contestação21.
Além disto, a alegação de exceção de contrato não cumprido pressupõe que a parte que esteja demandando o cumprimento não tenha adimplido a prestação conforme o instrumento contratual. Não há falar-se em exceptio non adimpleti contractus quando a parte demandante houver cumprido as determinações contratuais, uma vez que, neste caso, surge o direito potestativo de exigir a prestação da obrigação pactuada para o contratante que já tenha adimplido o contrato22.
3 CLÁUSULA SOLVE ET REPETE
Após a análise do instituto da exceptio non adimpleti contractus, deve preceder à questão da possibilidade jurídica da cláusula solve et repete, que tange à hipótese de restrição da exceção de contrato não cumprido por acordo de vontade das partes, faz-se mister examinar o princípio da autonomia da vontade, que lhe serve de fundamento, bem como o seu alcance.
3.1 AUTONOMIA DA VONTADE
Para verificar a viabilidade da cláusula solve et repete, como visto, é crucial a análise prévia da autonomia da vontade, uma vez que os limites dados por tal princípio fundamental da teoria geral dos contratos serão determinantes para a posição adotada quanto a esta questão.
20 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 264.
21 XXXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 85.
22 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 265.
O princípio da autonomia da vontade centra-se na idéia de que os contraentes têm liberdade para contratar e estabelecer os contornos das regras constantes do instrumento contratual, desde que estas estejam em conformidade com o ordenamento jurídico nacional e com as questões atinentes à moralidade23. Isso quer dizer que os indivíduos podem, livremente, através de manifestações de vontade, celebrar negócios jurídicos, cujos termos sejam acolhidos pelo direito.
É com base no aspecto da manifestação da vontade, inerente ao contrato, que também se denomina o princípio da autonomia da vontade de princípio do consensualismo. De acordo com XXXXXXXX, “o encontro das vontades livres e contrapostas faz surgir o consentimento, pedra fundamental do negócio jurídico contratual”24.
A autonomia da vontade pode ser vista sob duas perspectivas. Primeiramente, a liberdade de contratar confere ao particular a prerrogativa de celebrar ou não determinado contrato, o que envolve a escolha das pessoas com as quais este particular pretende ou não contratar25. Por outro lado, o que se chama de liberdade contratual refere-se à possibilidade de delinear as normas jurídicas às quais estarão sujeitos os contraentes, permitindo “que as partes se valham dos modelos contratuais constantes do ordenamento jurídico (contratos típicos), ou criem uma modalidade de contrato de acordo com suas necessidades (contratos atípicos)”26.
Como decorrência disto, é possível afirmar que o princípio da autonomia privada confere aos indivíduos a liberdade de contratar ou não, a liberdade de escolher a pessoa com quem vai contratar, a liberdade de optar pela forma contratual mais adequada à satisfação dos seus interesses ou pela criação de uma modalidade que não esteja prevista na lei e a liberdade de fixação das cláusulas contratuais às quais se submeterão as partes27.
De acordo com o art. 421 do Código Civil de 2002, “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. Sendo assim, exame da autonomia da vontade não pode estar dissociado da função social do contrato. Faz-se necessário compatibilizar os interesses que conduzem a relação contratual com os interesses de toda a coletividade, de modo a equilibrar os princípios da liberdade e da igualdade. A função social do contrato, em outras palavras, representa a “prevalência do interesse público sobre o
23 XXXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 15.
24 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 34.
25 Ibid., p. 34
26 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 383.
27 XXXXX, X. Xxxxxx Xxxxxx. Autonomia Privada e Liberdade Contratual. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/00000/xxxxxxxxx-xxxxxxx-x-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxx/>. Acesso em: 9 de dezembro de 2011.
privado, bem como a magnitude do proveito coletivo em detrimento do meramente individual”28.
Observa-se, então, que o princípio sub examine encontra limitação pela supremacia da ordem pública. É o que se vê do raciocínio de XXXXXXXXX, in verbis:
O princípio da autonomia da vontade, como vimos, não é absoluto. É limitado pelo princípio da supremacia da ordem pública, que resultou da constatação, feita no início do século passado e em face da crescente industrialização, de que a ampla liberdade de contratar provocava desequilíbrios e a exploração do economicamente mais fraco. Compreendeu-se que, se a ordem jurídica prometia a igualdade política, não estava assegurando a igualdade econômica. Em alguns setores, fazia-se mister a intervenção do Estado, para restabelecer e assegurar a igualdade dos contratantes29.
Essa limitação dada pelo poder público decorre do interesse social, devendo o teor do contrato estar adstrito à moral, à própria ordem pública e aos bons costumes, de forma que não se dê prevalência aos interesses particulares em detrimento dos interesses da coletividade30.
Apesar de viger no Brasil a autonomia privada, há algumas situações em que tal princípio é limitado, como visto, em razão do interesse público. A própria opção dada aos contratantes de contratar ou não, em alguns momentos, é relativizada, por conta de situações decorrentes da própria vida do ser humano em coletividade, tal como o uso de serviços fornecidos pelo poder público (água, energia elétrica, coleta de lixo, etc.) e determinação da própria administração, como a realização de seguros obrigatórios ou o fornecimento de produtos a consumidores, considerando que o Código de Defesa do Consumidor não permite a distinção entre consumidores, no que diz respeito à celebração de negócios jurídicos, nestes casos31.
De forma semelhante, a liberdade de escolha do outro contratante é ressalvada, quando verificadas hipóteses de aplicação do Código de Defesa de Consumidor, que veda, como mencionado anteriormente, a distinção, pelo fornecedor, entre consumidores, bem como quando há monopólio na prestação de serviços. Por fim, o própria liberdade de determinar o conteúdo das cláusulas contratuais é limitada pela supremacia da ordem pública32.
28 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxxx00/xxxxxx00.xxx>. Acesso em 9 de dezembro de 2011.
29 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro.: Contratos e Atos Unilaterais. V. 3. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 23.
30 XXXXXXXX, Xxxxxxx, op. cit., p. 21.
31 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 22.
32 Ibid. p. 22-23.
3.2 POSSIBILIDADE JURÍDICA DA CLÁUSULA SOLVE ET REPETE
A possibilidade de inserção da cláusula solve et repete nos contratos bilaterais está diretamente ligada ao exame da autonomia da vontade. Indaga-se, com base em tal princípio, se seria juridicamente admissível o afastamento da exceptio non adimpleti contractus por estipulação contratual.
A cláusula solve et repete impõe a seguinte situação: “pague e depois reclame”33. Isso quer dizer que, independentemente de o outro ter adimplido a obrigação estabelecida pelo contrato, o contratante pode abrir mão do direito de alegar a exceção do contrato não cumprido, vinculando-se, mesmo em tais condições, ao cumprimento de sua obrigação. Desta forma, caso haja demanda pelo cumprimento do contrato, a parte que abriu mão da exceptio estará obrigada à prestação, mesmo que o demandante não tenha cumprido o que lhe seja cabível. Apenas em uma nova ação é que o demandado poderá exigir perdas e danos pelo inadimplemento contratual34. A respeito da aludida cláusula, é relevante o entendimento de XXXXXXXXX:
[...] a cláusula solve et repete ou exceptio solutionis limita a oposição das exceções de resolução por incumprimento, como a non adimpleti contractus e non rite adimpleti contractus, o direito de retenção e análogas, mas não de algumas outras, como as de nulidade, anulabilidade ou rescisão do contrato. É um caso de renúncia contratual por parte do devedor ao direito de opor determinadas exceções35.
Há argumentos, vale dizer, em sentido contrário à admissão da cláusula solve et repete. Diz-se que se trata de cláusula leonina, uma vez que outorga a uma das partes o direito de demandar a prestação obrigacional, inviabilizando a escusa do demandado em razão do não cumprimento do demandante. Assim, admitir a validade da cláusula solve et repete causaria um desequilíbrio no contrato bilateral36. Isso daria azo ao descumprimento voluntário de uma das partes, que, ainda assim, teria o condão de exigir o cumprimento da obrigação do outro contratante através de processo judicial.
Outras razões, entretanto, afastam tais argumentos, justificando a validade da cláusula solve et repete no ordenamento jurídico brasileiro.
33 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Paulo Marcelo de Aquino; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx, et al, op, cit.
34 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 410.
35 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 167.
36 VENOSA. Xxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 410.
O Código Civil de 2002 não impõe nenhum óbice à inserção da cláusula que restringe a exceção do contrato não cumprido37. De fato, os arts. 476 e 477, do Código Civil, que disciplinam a exceptio, são omissos em relação à hipótese de restrição do instituto. Valendo- se da máxima “o que não é proibido, está permitido”, nas relações regidas por este diploma legal, portanto, seria válida, juridicamente, diante da inexistência de vedação, a cláusula solve et repete.
Ademais, a questão central da sustentação da restrição à exceptio non adimpleti contractus repousa no princípio da autonomia da vontade38. Conforme análise desenvolvida no item anterior, este princípio possibilita a disposição dos contratantes a respeito da forma contratual e das cláusulas responsáveis pela disciplina da relação jurídica entre elas. Assim, desde que em harmonia com as questões de ordem pública, moralidade e bons costumes, as partes contraentes têm liberdade para fixar os direitos e obrigações que melhor atendam aos seus interesses.
A restrição à exceção do contrato não cumprido não constitui violação a questão de ordem pública ou interesse social, uma vez que diz respeito apenas ao interesse das partes, que pactuam, através da própria manifestação de vontade, uma ordem diferenciada para o cumprimento do contrato. Não se vislumbra, também, aspectos imorais nesta cláusula, tendo em vista que a sua validade baseia-se no consensualismo entre os contratantes.
Cumpre registrar, em favor da cláusula solve et repete, que esta não importa a renúncia ao direito de ação, mas apenas ao direito de opor a exceptio non adimpleti contractus. Desta maneira, ainda que haja uma vinculação no cumprimento da obrigação independentemente da prestação do outro contratante, o contratante demandado não sofrerá prejuízo d mover nova ação para exigir o cumprimento do contrato ou até mesmo exigir as perdas e danos.
Desde que a cláusula solve et repete seja pactuada por escrito, a fim de conferir segurança jurídica, e esteja pautada na livre manifestação de vontade das partes, considerando não haver vícios de consentimento, com fulcro no princípio da autonomia da vontade, não há impedimento jurídico que obste sua validade nas relações regidas pelo direito civil.
A cláusula solve et repete também pode ser utilizada nas relações dos particulares com a administração pública. A este respeito, é elucidativa a lição de VENOSA:
No campo do contrato administrativo, a inserção dessa cláusula deve ser levada à conta das chamadas cláusulas exorbitantes. São aquelas em que o Estado mune-se de
37 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx, op. cit., p. 266.
38 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx, op. cit., p. 166.
direitos não conferidos ao particular contratante, atribuindo-se vantagens unilaterais no contrato. Essas cláusulas são exorbitantes justamente porque contrariam (exorbitam) as regras de direito comum.
Desta maneira, a exceção do contrato não cumprido resta mitigada na seara dos contratos administrativos, uma vez que a interrupção do serviço público (prestado pelo particular) é prejudicial ao interesse coletivo. Assim, admite-se, nestas relações, a cláusula solve et repete.
Em relações consumeristas, entretanto, disciplinadas pelo Código de Defesa do Consumidor, não há como conceber a validade de cláusula que restrinja a exceção de contrato não cumprido. Isso se justifica, primeiramente, por conta do princípio da vulnerabilidade, que diz respeito ao fato de o consumidor não possuir conhecimentos técnicos específicos, bem como ao fato de não possuir conhecimentos jurídicos específicos39.
Ademais, o art. 51 do Código de Defesa de Consumidor estabelece que:
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
[…]
IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
Sendo assim, a admissão de cláusula solve et repete nesta seara do direito seria hipótese de desvantagem exagerada, constituindo cláusula abusiva, para o consumidor, que se veria obrigado a adimplir um contrato sem ver o cumprimento recíproco do que incumbe ao fornecedor. Ratificando este entendimento pela nulidade da cláusula solve et repete no âmbito consumerista, o inciso IX do art. 51 determina que são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que “deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor”40.
4 CONCLUSÃO
O Código Civil de 2002 confere aos contraentes, nos casos em que se trate de contrato bilateral, a possiblidade de alegar a exceção de contrato não cumprido, como forma de
39 BRITO, Xxxxxx Xxxxxx Xxxx de; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxx. O Princípio da Vulnerabilidade e a Defesa do Consumidor Brasileiro. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/ texto/8648/o-principio-da-vulnerabilidade-e-a-defesa-do-consumidor-no-direito-brasileiro>. Acesso em: 10 de dezembro de 2011.
40 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 411.
escusar-se do cumprimento da obrigação naquele momento, quando verificado o inadimplemento do outro contratante.
Do teor dos arts. 476 e 477 do referido diploma legal, é possível extrair algumas circunstâncias fundamentais para que o contratante possa utilizar a exceptio non adimpleti contractus. Deve, portanto, tratar-se de contrato bilateral, haver demanda judicial de um dos contratantes visando à prestação da obrigação pelo outro e, ainda, ter havido um descumprimento do pactuado pelo demandante.
Entretanto, em alguns casos, é possível afastar a exceptio em apreço. O princípio da autonomia da vontade, norteador das relações contratuais disciplinadas pelo Código Civil, confere aos particulares o poder de contratar livremente, com qualquer pessoa, bem como de determinar os dispositivos do contrato responsáveis pela regência desta relação. Assim, desde que não haja ofensa à ordem pública, à moralidade e aos bons costumes, as partes têm o condão de afastar determinadas normas jurídicas, para melhor atender aos seus interesses, quando em acordo de vontades.
À luz deste princípio, é possível conceber o afastamento, também, da possibilidade de alegação de exceptio non adimpleti contractus em sede de contestação. Verifica-se não haver ofensa ao interesse coletivo, dizendo respeito apenas, a restrição ao instituto, ao interesse dos contratantes.
O que há, com a retirada da exceptio non adimpleti contractus por cláusula contratual, é apenas o compromisso de, independentemente do cumprimento do contrato pela parte contrária, cumprir com o pactuado. Não se está retirando do contratante que abriu mão da exceção de contrato não cumprido, por óbvio, o direito de pleitear, posteriormente, o adimplemento contratual, cumulado com perdas e danos, ou, ainda, a resolução do contrato, também cumulada com indenização por perdas e danos.
Deve-se fazer ressalva da possibilidade de restrição da exceção de contrato não cumprido, entretanto, no âmbito do direito do consumidor, uma vez que tais relações são regidas por princípios peculiares, que têm o escopo de proteger o consumidor, considerado parte vulnerável na relação.
REFERÊNCIAS
XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx Xxxx de; XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxxx. O Princípio da Vulnerabilidade e a Defesa do Consumidor Brasileiro. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/ texto/8648/o-principio-da-vulnerabilidade-e-a-defesa-do-consumidor-no-direito-brasileiro>. Acesso em: 10 de dezembro de 2011.
XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx, et al, Exceção de Contrato Não Cumprido. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/0000/xxxxxxx-xx- contrato-nao-cumprido>. Acesso em 09 de dezembro de 2011.
XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. V. 3. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo Curso de Direito Civil – Contratos: Teoria Geral. V. 4, Tomo I, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
XXXXX, X. Xxxxxx Xxxxxx. Autonomia Privada e Liberdade Contratual. Disponível em:
<xxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx/00000/xxxxxxxxx-xxxxxxx-x-xxxxxxxxx-xxxxxxxxxx/>. Acesso em: 9 de dezembro de 2011.
XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro.: Contratos e Atos Unilaterais. V. 3. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. Teoria Geral dos Contratos Civis. Salvador: JusPodivm, 2006. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
XXXXXXXXX, Xxxxxx. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais de Vontade. V.
3. 30. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
XXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxx da. Instituições de Direito Civil. V. III. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxxx00/xxxxxx00.xxx>. Acesso em 9 de dezembro de 2011.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. V. 2. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2011.