RELATÓRIO TÉCNICO
RELATÓRIO TÉCNICO
Aspectos jurídicos da relação contratual entre empresas
e comunidades do Nordeste brasileiro para a geração de energia renovável:
o caso da energia eólica
RELATÓRIO TÉCNICO
Aspectos jurídicos da relação contratual entre empresas
e comunidades do Nordeste brasileiro para a geração de energia renovável:
o caso da energia eólica
PARCEIRO APOIO REALIZAÇÃO
“ clnbounção Kcsíc uclníóuio é nuoinKn uou Fnsícnnkíion c swiss “gcnc; fiou Dcvcloumcní nnK Cooucuníion (sDC) . O conícúKo Ko uclníóuio é Kc ucsuonsnbiliKnKc cxclusivn Kos nuíoucs.
EQUIPE DO INESC APOIO INSTITUCIONAL
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Assessoria Política Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx
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Auxiliar de Serviços Gerais
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FICHA TÉCNICA
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Coordenação técnica
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Redação
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Revisão técnica Xxxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx
Revisão ortográfica
Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxx
Capa e diagramação
Xxxxxxxx Xxxxx
*FcsцuisnKou. Consulíou socionmbicnínl. McsíunnKo cm Diuciío Econômico ucln UnivcusiKnKc FcKcunl Kn Fnuníbn (FFGCJ/UFFD). “KvognKo. Fuoficssou subsíiíuío Ko cuuso Kc Diuciío nn UnivcusiKnKc kcgionnl Ko Cnuiui (UkC“). Mcmbuo Kn Lníin “mcuicnn Climníc Lnw;cus Iniíiníivc fiou Mobilixing “cíion (L“CLIM“).
Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos Endereço: XXX Xxxxxx 00 - Xxxxx X, xx 00, 00x Xxxxx Cobertura – Xxxxxxxx Xxxxxx. CEP: 70.307-900 - Brasília/DF Telefone: + 00 00 0000-0000
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É ucumiíiKn n ucuuoKução íoínl ou unucinl Ko ícxío, Kc fioumn guníuiín, KcsKc цuc scjn ciínKn n fioníc c inclun n ucficuêncin no ícxío ouiginnl.
Apresentação
Na formação da sociedade brasileira, os povos indígenas e quilombolas, as comunidades tradicionais e a população negra sempre estiveram situados à margem dos espaços de decisão. O avanço da geração de energias renováveis de fonte eólica e solar no Nordeste brasileiro, com seus múltiplos e invisibilizados impactos sobre as comunidades, é mais uma faceta do que chamamos de racismo, que atravessa o Estado, que tem uma forte expressão territorial e que ganha novos contornos em tempos de mudança climática e transição energética.
Os números são impressionantes. No caso da fonte eólica, ela já é responsável por 13% de toda a geração de eletricidade no País, com tendência de crescimento continuado nos próximos anos. O Nordeste responde por 93,6% da capacidade total de geração eólica, com forte concentração nos Estados da Bahia, do Rio Grande do Norte, do Piauí e do Ceará.
Mas onde exatamente estão as usinas produtoras dessa energia renovável e que relações contratuais seus proprietários estabelecem com as famílias, os grupos e as comunidades que detêm esses territórios?
Para responder a tal pergunta, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) realizou o estudo técnico: ““succíos juuíKicos Kn uclnção coníuníunl cníuc cmuucsns c comuniKnKcs Ko NouKcsíc Dunsilciuo unun n gcunção Kc cncugin ucnovávcl: o cnso Kn cncugin cólicn”.
O estudo parte dos já diversos relatos e das mobilizações que denunciam injustiças na instalação de grandes empreendimentos de energia renovável, especialmente na geração eólica, os quais submetem a população a condições degradantes e acabam por transferir o ônus da transição energética para as pessoas vulnerabilizadas.
Como uma contribuição objetiva às estratégias de enfrentamento, mitigação e construção de salvaguardas associadas a tal forma de geração, o estudo realizou um mapeamento inédito de 50 contratos firmados entre empresas e comunidades para a geração de ener- gia eólica no Nordeste brasileiro.
O que o estudo demonstra é a existência de contratos-padrão marcados por cláusulas com longos prazos contratuais, remunerações irrisórias, contrapartidas sociais insu- ficientes, fixação de cláusulas desvantajosas, multas exorbitantes e outras pactuações controversas aos interesses das comunidades envolvidas. Eles se realizam à margem de qualquer intervenção de instituições públicas, o que garante que empresas disponham indiscriminadamente do território de populações sob a aparência da lei.
Em síntese, a atuação de empresas para a instalação de projetos de geração de energia eólica na região, com o apoio e a participação do poder público, reproduz a exclusão de populações diretamente afetadas pelos empreendimentos, suprimindo o seu direito de participação e distanciando-as dos processos de tomada de decisão.
É neste marco que emergem relações contratuais que reforçam a exploração de possei- ros e pequenos proprietários, submetendo-os a condições precárias, pela concessão do direito de uso de suas terras. Como reforça o autor do estudo, a promessa de um paga- mento mensal fixo e o temor de perder uma oportunidade de auferir renda permitem a ocorrência de chantagem locacional e a cessão de terras por baixo custo, amplificando o quadro histórico de vulnerabilidades de origem socioeconômica.
Os contratos tornam-se, assim, instrumentos jurídicos para a acentuação de desigualda- des e a concentração da renda da terra, o que evidencia uma faceta energética do velho racismo estrutural.
O estudo traz, entre suas conclusões e recomendações, os seguintes pontos: (I) a impor- tância de um processo de fiscalização e acompanhamento das negociações e dos contratos pela agência reguladora (ANEEL) e por instituições como o Ministério Público e as Defensorias, o que contribuiria para ampliar a proteção das comunidades mais vulneráveis na exploração da energia; (II) a necessidade da construção de salvaguardas contratuais com parâmetros bem definidos sobre os índices e percentuais a serem pagos a título de remuneração pelo uso da terra destinado à geração elétrica; e (III) a criação de mecanismos de arbitragem que facilitem a revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas em direitos e obrigações, compatibilizando os interesses dos empreendimentos com o das comunidades e balanceando a relação negocial.
O presente estudo foi realizado em parceria com o Nordeste Potência e objetiva ser, também, uma contribuição para iniciativas de diálogo com diversas instâncias do poder público no sentido de provocar mudanças nas relações contratuais injustas aqui evidenciadas.
Sumário
4. Cláusulas contratuais e condições de negociação 23
1. Introdução
A descarbonização da economia é uma realidade cada vez mais concreta no horizonte global. A alocação de políticas e investimentos climáticos tem buscado soluções voltadas para a redução de emissões de carbono e outros gases de efeito estufa (GEE). O setor de energia é um elemento estratégico da nova política climática, pois – ao mesmo tempo em que responde por uma parcela significativa das emissões globais – é também responsável por sustentar e conduzir direta e indiretamente a economia mundial.
O uso da energia está no centro de todas as atividades da sociedade, desde a satisfação de necessidades humanas básicas até a alimentação de grandes parques industriais e de todo o mercado, de uma maneira geral. A matriz energética global corresponde ao conjunto de todas as fontes utilizadas na geração de energia, predominantemente assentada em combustíveis fósseis e considerada uma das principais causas da atual crise climática.
Dados os altos índices de poluição provenientes das fontes fósseis, há uma preocupação global em reduzir o uso desses combustíveis, promover a migração para fontes menos poluentes e ampliar a participação de fontes renováveis na matriz de energia. Em conexão com tal necessidade, verifica-se uma forte tendência de eletrificação dos setores econô- micos para o aproveitamento da energia considerada “limpa”. Trata-se de um processo de mudança denominado de íunnsição cncugéíicn.
A geração elétrica por fontes renováveis cresceu acentuadamente nas últimas décadas e continua a crescer em ritmo acelerado, principalmente pela maior difusão das fontes eólica e solar fotovoltaica. A razão disso está na redução dos custos e no ganho de efici- ência tecnológica, bem como no aumento de rentabilidade para atividades de mercado nesses segmentos, especialmente pela fabricação de insumos e instalações de projetos de geração de eletricidade.
No cenário mundial, o Brasil dispõe de matriz elétrica diferenciada, com maior partici- pação de fontes renováveis, quando comparada às matrizes de outros países e regiões. Além disso, o território nacional possui elevada quantidade e diversidade de recursos energéticos renováveis, o que consiste em elementos estratégicos para o aproveitamento econômico, posicionando o País de maneira vantajosa na corrida pela construção de uma economia mais sustentável.
GRÁFICO 1 PARTICIPAÇÃO DO CARVÃO, DO GÁS E DAS FONTES RENOVÁVEIS (EXCETO A HIDRÁULICA) NA GERAÇÃO DE ELETRICIDADE GLOBAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS
30
25
20
15
10
5
0
2000 2005 2010 2015 2020 2021
Gás natural Xxxxxx Xxxxxxxxxx* Hidráulica
Fonte: elaboração própria.
A geração elétrica brasileira encontra uma nova fronteira de exploração a partir das fontes eólica e solar1, em franca expansão no território nacional. Atualmente, empreendimentos de energia eólica e usinas solares fotovoltaicas já são responsáveis, respectivamente, por cerca de 11,8% e 4,4%2 de toda a oferta de geração de eletricidade no País3, com tendência de crescimento continuado nos próximos anos.
Grande parte desse potencial está concentrada na Região Nordeste4, que responde por 93,6% da capacidade total de geração eólica e 51,8% de toda a geração solar fotovoltaica (centralizada e distribuída) do Brasil5, contempladas, em sua maioria, nos Estados da Bahia, do Rio Grande do Norte, do Piauí e do Ceará.
1 XXXXX, Xxxx X. (2021). Gobernanza de la expansión: infraestructuras transnacionales de energía en América Latina.
Perfiles Laíinoamericanos, v. 29, n. 58, México, p. 01-27.
2 Esses valores representam a energia proveniente de fontes centralizadas, não considerando a geração distribuída.
3 Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Balanço Energético Nacional 2023: ano base 2022. Disponível em: <https:// xxx.xxx.xxx.xx/xx/xxxxxxxxxxx-xxxxx-xxxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxx-xxxxxxxxxx-xxxxxxxx-0000>. Acesso em: 05 out. 2023
4 O recorte da região se refere à divisão de subsistemas, adotada pelo Operador Nacional do Sistema (ONS). O subsistema Nordeste compreende todos os estados da região, exceto o Maranhão. Na geração eólica, o compartilhamento se dá a partir dos Estados da Bahia, do Ceará, da Paraíba, de Pernambuco, do Piauí, do Rio Grande do Norte e de Sergipe.
5 Sistema de Informações de Geração da ANEEL – SIGA (2023). Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxxxx.xxx.xx/xxxx>. Acesso em: 30 mar. 2023.
GRÁFICO 2 EVOLUÇÃO DA GERAÇÃO EÓLICA NO BRASIL
35000
30000
25000
20000
15000
10000
5000
0
Eólica (MW) Solar (MW) SIN+GD
Fonte: elaboração própria a partir da base de dados da ANEEL (SIGA, 2023).
2
Nas duas últimas décadas, viu-se a consolidação do mercado de geração eólica onshouc6 (instalações em terra firme), bem como o crescimento acelerado do mercado de geração solar fotovoltaica, que foi impulsionado mediante os incentivos financeiros para o setor, além do novo Marco Regulatório da Geração Distribuída, trazido pela Lei nº 14.300/2022. A Região Nordeste vê, em seu horizonte, a abertura da exploração de outros potenciais econômicos associados às energias renováveis, tais como o segmento de energia eólica ofifishouc7 e a produção de Hidrogênio Verde (H V)8.
Contudo, lançar o olhar apenas para o proveito econômico e os benefícios ambientais associados à redução de emissões de gases poluentes consiste em visualizar uma única face da equação da formulação de políticas energéticas. É preciso ir além e considerar os contornos sociais que circundam esse processo de transição energética, com empenho para que esta seja justa, de fato. Vincula-se a isso a compreensão de desenvolvimento sustentável convencionada mundialmente no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), especificamente na Agenda 2030, que estabelece uma sinergia entre atividades econômicas, proteção ambiental e redução de desigualdades.
Atualmente, verifica-se uma sobreposição de interesses econômicos privados em detri- mento do bem-estar social de comunidades no âmbito da exploração de energias renováveis no Brasil, sobretudo na Região Nordeste. A atuação de empresas para a instalação de
6 Termo que se refere à instalação de turbinas eólicas no ambiente terrestre, em regiões do interior e do litoral. Em tradução direta da língua inglesa, significa “sobre a margem”.
7 Compreende a instalação de turbinas eólicas no leito marinho, em regiões mais afastadas da costa. Em tradução direta da língua inglesa, significa “fora da margem”.
8 Combustível produzido a partir do processo de eletrólise da água, com utilização de energia elétrica proveniente de fontes limpas em emissão de carbono e renováveis. O hidrogênio produzido a partir de fontes não renováveis recebe o nome de HiKuogênio “xul ou HiKuogênio Cinxn, a depender do grau de emissões decorrentes do seu processo de eletrólise (CLIMAINFO, 2021).
projetos de geração elétrica, com o apoio e a participação do poder público, alia-se à exclusão de populações diretamente afetadas pelos empreendimentos, suprimindo o seu direito de participação e distanciando-as dos processos de tomada de decisão.
Nos últimos anos, são diversos os relatos e as mobilizações que denunciam injustiças na instalação de grandes empreendimentos de energia renovável9, especialmente na geração eólica, os quais submetem a população a condições degradantes e acabam por transferir o ônus da transição energética para os mais vulneráveis.
O impacto territorial advindo da instalação de parques eólicos é frequentemente maior do que aquele associado às usinas de energia solar fotovoltaica. Isso ocorre porque a ocu- pação do solo por aerogeradores é fracionada ao longo de diversas propriedades, tendo em vista o necessário distanciamento que deve existir entre as torres eólicas e a rigidez locacional para o aproveitamento dos ventos. Já a energia solar pode ser aproveitada em uma porção de terra mais concentrada, reduzindo a amplitude dos impactos territoriais e, consequentemente, o número de conflitos associados ao uso da terra.
Dentre os relatos negativos acerca da exploração da energia no semiárido, citam-se a falta de participação nos processos decisórios, o desequilíbrio e a ausência de transparência nas relações contratuais, controvérsias acerca do uso e da renda da terra (de maneira mais presente e acentuada em contratos para a geração eólica), bem como a insuficiência ou a completa ausência de contrapartidas que compensem as externalidades negativas, entre outras situações que apontam para um contexto neoextrativista desses empreendimentos.
Os tipos de práticas relacionadas à exploração de energia no Nordeste brasileiro se caracte- rizam como injustiças energéticas, seja pela distribuição desigual de danos e benefícios associados à geração de energia, seja por falta de reconhecimento das necessidades locais e por desrespeito aos modos de vida das comunidades, bem como pela dimensão processual que advém de lacunas na participação da população afetada e na efetiva representação de seus interesses nos processos de tomada de decisão.
Naturalmente, todas estas questões perpassam a formalização jurídica das relações sobre o uso e a exploração do território. Das várias etapas necessárias para a instalação de um empreendimento de geração eólica ou solar, parte indispensável reside na captação de imóveis e do seu respectivo direito de uso. As incompletudes existentes no ordenamento jurídico brasileiro favorecem as condições nas quais pequenos agricultores e grandes corporações ocupam assimetricamente os mesmos espaços de negociação sem qualquer mecanismo ou contrapeso que balanceie essa relação, gerando um claro desequilíbrio.
Longos prazos contratuais, remunerações irrisórias, contrapartidas sociais insufi- cientes, fixação de cláusulas desvantajosas, multas exorbitantes e outras pactuações controversas aos interesses das comunidades envolvidas realizam-se à margem de
9 TRALDI (2014; 2019), HOFFSTAETTER (2016), PEREIRA (2020), CHAVES (2019), LIMA (2022), XXXXXX (2019), XXXXX
cí nl. (2020), COSTA cí nl. (2019), SAMPAIO; MAIA (2022), DAMASCENO (2023), XXXXXXXXXX et al. (2020), BEZERRA
(2021), dentre outros.
qualquer intervenção das instituições públicas, garantindo que empresas disponham indiscriminadamente do território de populações sob a aparência da lei. O livre formato de pactuação dos instrumentos favorece a exploração de vulnerabilidades socioeconô- micas de posseiros e pequenos proprietários, submetendo-os a condições precárias pela concessão do direito de uso de suas terras, as quais são, em muitos casos, os únicos bens à disposição do núcleo familiar.
As disputas territoriais e questões sobre a renda da terra emergem como um ponto focal da discussão sobre a expansão das energias renováveis no Nordeste brasileiro. Nesse for- mato, os contratos entre empresas e comunidades se tornam instrumentos jurídicos para a promoção de injustiças, a acentuação de desigualdades e a concentração da renda da terra oriunda da exploração de energia, razão pela qual é fundamental e de relevante interesse investigar as formas e condições das quais as empresas se valem para a captação de terras destinadas à instalação de futuros projetos.
Os caminhos para uma transição justa perpassam pela efetivação da justiça energética, em todas as suas dimensões, seja distributiva, de reconhecimento ou processual. Trata-se de pensar a política energética a partir da ampliação do acesso à energia, bem como da conversão direta de parte da renda dos empreendimentos em prol do bem-estar social. Além disso, os processos de transição para fontes alternativas devem respeitar a existên- cia, os anseios e as necessidades das comunidades que ocupam os territórios onde serão explorados os recursos energéticos.
O presente relatório técnico analisa as condições jurídicas de formalização de contratos entre empresas de energia renovável e comunidades do Nordeste brasileiro voltados para o aproveitamento do potencial energético em seus territórios, com ênfase na energia eólica. Apontam-se, dessa forma, os principais elementos que conformam a relação contratual e tenta-se verificar o atendimento aos interesses das partes mais vulneráveis da relação: os pequenos proprietários de terras em regiões do interior e do litoral nordestino.
2. Metodologia
O presente relatório utiliza a abordagem de pesquisa qualitativa, de cunho descritivo, para o exame das condições contratuais que conformam a relação entre as empresas de energia renovável e comunidades do Nordeste brasileiro, as quais se dão sobre o uso da terra para a geração de energia elétrica. Com isso, empregam-se procedimentos metodo- lógicos de análise documental e pesquisa bibliográfica, a fim de obter uma real dimensão do objeto de estudo e o seu respectivo enquadramento teórico.
Um primeiro recorte da pesquisa se refere ao tipo de fonte de energia em análise. Dá-se enfoque majoritário à fonte não convencional eólica. Essa delimitação se justifica pela maior incidência de questionamentos contratuais associados à maior difusão desses empreendimentos na matriz elétrica nacional, pela sua distribuição geográfica ao longo de todo o território da Região Nordeste, bem como pelo grau de impactos associados, todos estes já bem documentados pela literatura científica.
A dinâmica de ocupação do território por empresas de energias renováveis se dá em está- gio bastante preliminar à operação dos empreendimentos, de forma que os contratos são frequentemente pactuados quando ainda há uma mera expectativa de êxito na partici- pação dos leilões, na obtenção das outorgas e nas respectivas licenças para a instalação dos projetos. Em alguns casos, não há nem mesmo uma definição do tipo de energia a ser explorada, mantendo-se uma cláusula aberta para o aproveitamento da energia eólica ou solar fotovoltaica.
Analisa-se, aqui, a composição da relação contratual constituída desde o momento de captação de bens imóveis (terrenos) por parte das empresas até a etapa de plena operacio- nalização do empreendimento, na linha do que foi proposto por Xxxxxx (2019). A captação de territórios ocorre mediante a formalização de instrumentos particulares de contrato firmados entre as empresas de energia renovável e os membros das comunidades locais.
Tal relação, conforme o descrito na introdução, em muitos casos, ocorre de forma obs- cura, distante da fiscalização das instituições públicas, o que frequentemente acarreta desequilíbrios negociais. Portanto, o intuito deste relatório é investigar uma possível ocorrência de violações de direitos das populações mais vulneráveis (comunidades tra- dicionais e campesinas, como agricultores, pescadores artesanais, camponeses e outros), decorrente do desequilíbrio e do desbalanceamento da relação de poder na formulação, na pactuação e na adesão aos contratos.
O presente relatório se vale de contribuições da análise contratual elaborada por Xxxxxx (2019)10. Em complemento, também se refere às contribuições da análise desenvolvida em Maia, Xxxxxxx, Xxxxx e Copena (2022; 2023)11, aplicada a partir das categorias estudadas por Xxxxxx (2019). Tais análises, realizadas em sede do grupo de pesquisa Xxx Xxxxxxx (UFPB), são complementadas com a inclusão de novos contratos, revisitando análises de documentos anteriores e avançando com os apontamentos colocados em sua conclusão.
O estudo se concentrou no levantamento documental de instrumentos contratuais. Há, aqui, uma primeira limitação da análise, posto que grande parte dos contratos obtidos advém da manifestação ativa de comunidades e organizações, sob a condição de anoni- mato, o que denota uma situação de confronto ou oposição. Portanto, ainda que disponha de um amplo universo de análise, a pesquisa não objetiva generalizar as injustiças evi- denciadas para todos os demais contratos existentes.
Deve-se, ainda, atentar para a possível existência de outras pactuações fora do universo analisado e que apresentem relações positivas, cujas partes se sentem beneficiadas. Tendo em vista a fixação de cláusula de sigilo entre os contratantes, há uma certa dificuldade na obtenção desses documentos, dado o receio da população em assumir alguma penalidade contratual. Como solução, foram utilizados dois caminhos para a obtenção de contratos.
(I) Busca ativa no Sistema de Consultas Processuais da Agência Nacional de Energia Elétrica (SIC/ANEEL), no qual é possível examinar processos de outorga de empreendimentos de energia para a região delimitada. Compulsando-se a ampla documentação contida em processos administrativos de requerimento de outorga junto à ANEEL, é possível identificar alguns contratos apresentados pelas empresas, a fim de demonstrar o domínio das propriedades onde preten- dem implantar um empreendimento de geração de energia.
(II) Uso de networking com representantes de organizações e lideranças comuni- tárias que estão em contato direto com mobilizações sociais, as quais denunciam as práticas empresariais abusivas no entorno de projetos de energia renovável no Nordeste brasileiro. Diversos documentos foram cedidos voluntariamente sob a condição anonimato das pessoas envolvidas.
10 XXXXXX, Xxxxxxx. Acumulação por despossessão: a privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro. 2019. 378 p. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxxxxx.xx/xxxxxx/xxxxxxx/0000000>. Acesso em: 28 fev. 2024.
11 XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx ; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx; XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx (Orgs.). Energia eólica: contratos, renda da terra e regularização fundiária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx-xxxxxxx-x-xxxxxxxxx/xxxxxxx-xxxxxx-0000-0000/x>. Acesso em: 28 fev. 2024.
XXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx ; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx xx; XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxx (Orgs.). Problemas jurídicos, econômicos e socioambientais da energia eólica no Nordeste brasileiro. Recife: EDUFRPE, 2023. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxx.xxxxx.xx/xxxx/000>. Acesso em: 28 fev. 2024.
Com isso, foi possível levantar um total de 50 contratos, com diferentes modalidades, os quais abrangem cinco estados (BA, CE, PB, PE e RN). Observou-se que os instrumentos jurídicos predominantes nas relações entre empresas e comunidades são os contratos de arrendamento, razão pela qual priorizou-se este tipo de documento para a análise.
Ademais, como parte da problemática de investigação, nota-se que muitos contratos são idênticos em sua forma e conteúdo, diferindo unicamente na qualificação das partes e nas dimensões dos imóveis que são objeto de arrendamento. Tal semelhança com documentos de adesão (que, por si só, já revela a limitação negocial) permitiu reduzir significativamente o universo de análise, posto que a revisão de um determinado instrumento possibilita a projeção de seus termos para os demais contratos.
Para a fundamentação da análise, utilizou-se a literatura acadêmica presente em traba- lhos de pesquisa realizados nas diferentes localidades, os quais apuraram situações de injustiças e conflitos em torno da produção de energia renovável no Nordeste brasileiro. Conta-se com o auxílio de produções audiovisuais elaboradas por associações e organi- zações dedicadas à proteção dos direitos socioambientais das comunidades, a exemplo da Cáritas Regional NE2 (2022), que produziu uma wcbséuic, intitulada: “Para quem sopram os ventos?”12.
12 CÁRITAS REGIONAL NE2 (2022). Websérie: “Para quem sopram os ventos?”. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxx.xxx/ playlist?list=PLngE49Uwukc3blOJCzivgnaVf3s9rHJra>. Acesso em: 26 ago. 2023.
TABELA 1 LEVANTAMENTO DOS TIPOS DE CONTRATOS COM COMUNIDADES PARA A GERAÇÃO DE ENERGIA EÓLICA/SOLAR NO NORDESTE
UF | Fon- tes | Nomes dos projetos | Empresas | Municípios | Tipos de contrato | Quant. |
BA | Eol. | Não identificado | Renova Energia | Caetité | Arrendamento | 1 |
Eol. | Lagoa Seca | Energimp | Acaraú | Arrendamento | 1 | |
CE | Eol. | Canaã | Central Eólica Flecheiras | Trairí | Arrendamento | 2 |
Eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Pocinhos | Concessão/arrend. | 1 | |
Eol. | Lagoa I e II, Canoas | Força Eólica Brasil (Iberdrola) | Santa Luzia | Cessão de uso | 1 | |
PB | Eol. | Lagoa I e II, Canoas | Força Eólica Brasil (Iberdrola) | Santa Luzia | Servidão | 2 |
Sol. | Lagoa I | D2C Energias Renováveis | São José de Lagoa Tapada | Arrendamento | 1 | |
Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | Araripina | Arrendamento | 11 | |
Eol. | Não identificado | Ventos de Santo Estevão | Araripina | Cessão de uso | 1 | |
Eol. | Não identificado | Ventos de São Clemente | Caetés | Arrendamento | 2 | |
PE | Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | Pedra | Arrendamento | 2 |
Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | Santa Filomena | Arrendamento | 2 | |
Sol. ou eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Serra Talhada | Cessão de uso | 1 | |
Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | Venturosa | Compromisso arrend. | 1 | |
Eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Florânia | Locação/arrend. | 1 | |
Sol. ou eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Jardim dos Angicos | Cessão de uso | 1 | |
Eol. | Cabeço Preto | Braeol (Gestamp) | Xxxx Xxxxxx | Arrendamento | 1 | |
Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | João Câmara | Arrendamento | 1 | |
Eol. | Morro dos Ventos I | Wind Holding (CPFL) | Xxxx Xxxxxx | Arrendamento | 1 | |
Eol. | Não identificado | Cia. Valença Industrial – CVI (CPFL) | Xxxx Xxxxxx | Arrendamento | 5 | |
RN | Eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Lajes | Cessão-empresas | 1 |
Eol. | Não identificado | EDP Renováveis | Lajes | Concessão/arrend. | 1 | |
Eol. | Não identificado | Casa dos Ventos | Parazinho | Arrendamento | 1 | |
Eol. | Santa Clara II | Cia. Valença Industrial – CVI (CPFL) | Parazinho | Arrendamento | 3 | |
Eol. | Santa Clara II | Cia. Valença Industrial – CVI (CPFL) | Parazinho | Cessão de uso | 3 | |
Eol. | Não identificado | Vila Acre I | Serra do Mel | Cessão de uso | 1 | |
Eol. | Mangue Seco 2 | Mangue Seco | Guamaré | Arrendamento | 1 | |
Total de contratos coletados | 50 |
TABELA 2 DELIMITAÇÃO DOS CONTRATOS DE REFERÊNCIA PARA ANÁLISE
Con- tratos | Empresas | Municípios/UF | Modalidades | Fon- tes |
01 | Casa dos Ventos Energias Renováveis Ltda. | Araripina/PE | Arrendamento | Eólica |
14 | Casa dos Ventos Energias Renováveis Ltda. | Santa Filomena/PE | Arrendamento | Eólica |
17 | Casa dos Ventos Energias Renováveis Ltda. | Xxxx Xxxxxx/RN | Arrendamento | Eólica |
18 | Casa dos Ventos Energias Renováveis Ltda. | Parazinho/RN | Arrendamento | Eólica |
26 | EDP Renováveis Brasil S.A. | Florânia/RN | Locação/ arrendam. | Eólica |
30 | Renova Energia S.A. | Caetité/BA | Arrendamento | Eólica |
39 | Companhia Valença Industrial – CVI (CPFL) | Xxxx Xxxxxx/RN | Arrendamento | Eólica |
OBSERVAÇÕES:
• Dos 50 contratos analisados, 12 deles possuíam conteúdo idêntico ao contrato 1, diferindo apenas na qualificação das partes e no tamanho da área arrendada (todos inferiores a 50 hectares). Apenas o contrato 3 dispunha de área equivalente a 150 ha, mantendo as mesmas condições contratuais do contrato 1. Os demais contratos reproduziam em maior medida as mesmas disposições contidas nos contratos 14, 17, 18, 26, 30 e 39, razão pela qual optou-se por adotá-los como referenciais e com consequente critério de exclusão para a análise.
• O contrato 14 destaca-se dentre os demais por conferir o maior valor identificado para arrendamento pré-operacional (instalação de torre anemométrica), fixando o direito de preferência da empresa para arrendamento operacional, em caso de viabilidade do projeto.
• Apesar da discriminação de valores mensais na tabela 3, alguns contratos fixam pagamento anual, a exemplo do contrato 30.
• A fim de reduzir o universo de análise, adotou-se como segundo critério de exclu- são a análise de contratos em que necessariamente uma das partes é pessoa física ou pessoa jurídica de organizações da sociedade civil. Dessa forma, contratos de arrendamento entre empresas não foram considerados, bem como contratos de cessão de direitos ou subarrendamentos entre empresas.
TABELA 3 IDENTIFICAÇÃO DAS PRINCIPAIS CLÁUSULAS CONTRATUAIS DA RELAÇÃO ENTRE EMPRESAS E COMUNIDADES
Contratos de referência | ||||||||
Cláusulas | 01 | 14 | 17 | 18 | 26 | 30 | 39 | |
1 | Dimensão da área arrendada (ha) | 46,50 | 24,80 | 21,00 | 23,83 | 482,00 | 228,37 | 88,00 |
2 | Limitações de atividades no imóvel | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
3 | Inclui fase pré-operacional | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
4 | Valor de pagamento pré-operacional (R$) | 46,50 (mensais) | 1 salário mín. (mensais) | 63,00 (mensais) | 100,00 (mensais) | 0,00 | 500,00 (único) | 176,00 (mensais) |
Contratos de referência | ||||||||
Cláusulas | 01 | 14 | 17 | 18 | 26 | 30 | 39 | |
5 | Possibilidade de adiantamento igual ou superior a 12 mensalidades | Sim | Sim | Sim | Sim | X | X | Sim |
6 | Inclui fase operacional | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
7 | Valor de pagamento pela receita bruta da energia gerada na área (%) | 1,5 | X | 0,85 | 0,85 | 1,3 | X | X |
8 | Valor de pagamento por aerogerador instalado (R$/mês) | X | X | X | X | 70,00 | 458,33 | X |
9 | Valor do pagamento por quantidade de energia gerada (R$/Mw/mês) | X | X | X | X | X | X | 416,67 |
10 | Correção monetária anual | X | X | Sim | Sim | X | Sim | Sim |
11 | Juros de mora por mês de atraso do pagamento (%) | 1,0 | X | 1,0 | X | X | X | X |
12 | Multa moratória por mês de atraso do pagamento (%) | 2,0 | X | 2,0 | X | X | 2,0 | X |
13 | Prazo de vigência contratual (anos) | 49 | Indeter- minado | 37 | 37 | 35 | 35 | 27 |
14 | Prorrogação automática do contrato | Sim | Indeter- minado | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
15 | Créditos de carbono, MDL ou CER de exclusividade da empresa | Sim | X | Sim | Sim | X | X | X |
16 | Tributos da propriedade são pagos pelo arrendante | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
17 | Descontos nas mensalidades por eventual assistência jurídica prestada pela empresa | Sim | X | Sim | Sim | Sim | X | X |
18 | Vinculação de herdeiros/ sucessores | Sim | X | Xxx | Xxx | Xxx | Xxx | Xxx |
19 | Irrevogabilidade e irretratabilidade | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
20 | Cobertura de danos causados à propriedade pela empresa | Sim | X | Sim | Sim | X | X | Sim |
21 | Rescisão não onerosa por inviabilidade do projeto/ ausência/demora no licenciamento | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
22 | Multa por descumprimento do contrato (R$) | Perdas e danos | Perdas e danos | Perdas e danos | Perdas e danos | Perdas e danos | 5 milhões | Perdas e danos |
23 | Possibilidade de transferir o arrendamento sem anuência do proprietário | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
24 | Cláusula de sigilo | Sim | X | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
25 | Competência do foro local para discussão judicial dos termos | Sim | X | X | Sim | Sim | X | X |
3. Instrumentos jurídicos para a captação de terras e a geração de eletricidade na exploração da energia eólica
As lacunas existentes no ordenamento jurídico brasileiro não alcançam, ainda, a especifi- cidade das negociações sobre novos empreendimentos de energia. A execução de grandes projetos de infraestrutura frequentemente opõe grandes corporações e pequenos proprie- tários para o aproveitamento econômico das fontes energéticas. Com isso, pelas relações privadas ordinárias, tem-se a equiparação indevida destes agentes em igual posição de capacidade jurídica para expressar suas vontades.
Para a concretização dessas atividades, demanda-se a apropriação de vastas áreas de terra, pelas quais se dará o aproveitamento do potencial energético. Contudo, não há no direito brasileiro uma definição precisa dos instrumentos jurídicos que conformam as relações contratuais para o uso da terra destinado à exploração de energias reno- váveis, diferentemente do que ocorre em outros setores13.
Diante desta lacuna normativa, empresas que atuam na geração de energia têm adaptado a legislação vigente, sobretudo por institutos do direito agrário, de modo que o acesso à terra vem se dando, majoritariamente, a partir de contratos de arrendamento de terras e por contratos de cessão de uso da terra.
O uso desses instrumentos como via de relacionamento entre empresas e comunidades tem apresentado distorções, sobretudo no tipo de proteção que é dado aos polos da rela- ção contratual, uma vez que as empresas se beneficiam da posição de arrendatárias ou cessionárias e impõem cláusulas excessivamente onerosas e até mesmo abusivas.
A ausência de acompanhamento e fiscalização por parte do poder público subor- dina diversas famílias vulneráveis à especulação das terras e à apropriação por parte das empresas, tendo em vista o desequilíbrio e o desbalanceamento que há nas relações contratuais. A forma de negociação pode não levar em conta o grau de instru- ção das populações dos locais de instalação de projetos de energia renovável e, com isso, pode submetê-las a condições abusivas e que violam seus direitos de identidade e o uso do território.
13 A título de exemplo, contratos de arrendamento de terras destinados à produção de cana de açúcar são enquadrados e regulamentados na qualidade de arrendamento rural, não importando para qual fim se destinará o insumo cultivado (produção de açúcar, etanol ou eletricidade). Vide o Decreto nº 59.566/1966. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx. br/ccivil_03/decreto/antigos/d59566.htm>. Acesso em: 26 ago. 2023.
3.1 Modalidades contratuais utilizadas na captação de terras para a geração de eletricidade a partir de fontes renováveis
São várias as formas de instrumentos particulares destinados à pactuação de negócios jurídicos para o aproveitamento de fontes de energia renovável voltados à geração de energia elétrica. Não há uma forma legalmente instituída para conduzir as negociações, de forma que são aplicadas as disposições gerais do Código Civil, juntamente com normas do Direito Agrário.
Deve-se ter em vista que a maior parte dos empreendimentos ocorre em áreas da zona rural, dada a natureza do próprio empreendimento, que precisa de uma vasta área com o menor número possível de obstáculos aos ventos. O mesmo se aplica à energia solar, posto que as centrais geradoras de usinas usualmente ocupam uma vasta área territorial contínua ou agregada.
Considerando-se a maior liberdade de forma dos instrumentos jurídicos, os principais tipos de contratos identificados na exploração de fontes renováveis para geração elétrica são apresentados a seguir.
(I) Contrato de arrendamento
O contrato de arrendamento consiste em modalidade semelhante à locação, ou seja, um proprietário, de forma onerosa, atribui a posse parcial ou total de bem imóvel a terceiro, objetivando a exploração econômica de atividades específicas. É o instrumento jurídico mais utilizado por empresas de energia, posto que garante a posse direta do bem imóvel, quase sempre mediante preços irrisórios, sem necessariamente permitir a aquisição do domínio efetivo ou o vínculo à propriedade de fato.
São instrumentos jurídicos bilaterais, regidos pelo direito privado, que manifestam em seu conteúdo a expressão da autonomia de vontade das partes, sem qualquer interferência, a princípio, da ANEEL ou de qualquer ente federativo do Estado brasileiro14.
A opção pelo arrendamento se dá por diversas razões; dentre elas, o fato de que tais con- tratos são firmados antes mesmo da confirmação de realização dos empreendimentos. A comprovação de que se detém o território para a implantação das usinas é uma das obrigações dos empreendimentos para a concessão de outorga pela ANEEL, conforme dispõe a Resolução nº 921/2021. Há ainda a necessidade prévia de participação nos leilões de energia, os quais irão definir os limites da quota de geração por cada empresa.
Tem-se, então, que o interesse maior é a exploração dos recursos energéticos com o menor custo possível, o que implica a preferência pela posse em detrimento da propriedade. Ainda assim, outra condição que acompanha o arrendamento é a possibilidade de pactuação para
14 Ver TRALDI (2019). Acumulação por despossessão: a privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxxxxxx.xx/xxxxxx/XXXXXXX/000000>. Acesso em: 26 ago. 2023.
a aquisição da propriedade ao termo do contrato. Entretanto, tal condição nem sempre está presente nas negociações com empreendimentos de energia renovável, os quais se limitam a estipular cláusulas de preferência em caso de alienação futura do imóvel. Dessa forma, prezam pela renovação do contrato enquanto durarem as atividades.
Especificamente, o arrendamento rural é o instituto próprio do direito agrário, previsto no Decreto nº 59.566/1966, que regulamenta os contratos agrários. Contudo, há o enten- dimento de que ele não seria aplicável à exploração de energia, por não existir previsão legal que a classifique como atividade de natureza agrária, bem como pelos princípios que orientam tal instituto (sobretudo, a função social da propriedade e a justiça social). Entretanto, algumas visões se contrapõem a tal compreensão, com o entendimento de que as atividades rurais são mais abrangentes na atualidade e incluem uma vastidão de outros empreendimentos que não se limitam necessariamente à exploração agropecuária.
Os contratos de arrendamento rural são regidos especialmente pelo Estatuto da Terra15 e pelo Decreto nº 59.566/1966, que o regulamenta. Isso quer dizer que as cláusulas contra- tuais não podem dispor em contrário ao regramento instituído no ordenamento jurídico.
O artigo 3º do Decreto nº 59.566/66 caracteriza o arrendamento rural como
o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objcíivo Kc nclc scu cxcuciKn níiviKnKc Kc cxulounção nguícoln, uccuáuin, nguoinKusíuinl, cxíuníivn ou misín, mediante certa retribuição ou aluguel.
Verifica-se que há uma distorção do atual ordenamento jurídico quanto aos instrumentos regulatórios dos contratos para o uso da terra e a produtividade no campo. A construção do direito agrário empenhou-se em garantir maior proteção aos pequenos agricultores hipossuficientes que não dispunham de terras. Estes incluíam-se no polo arrendatário, a fim de equilibrar as relações de produção no campo. Ocorre que tal instituto vem sendo explorado por grandes empresas do setor de energia para auferir vantagens contratuais ante as comunidades, que agora invertem-se no papel de proprietárias (arrendantes).
Verificam-se, ainda, algumas aproximações entre o arrendamento e o direito de superfície. Apesar de compartilharem da mesma finalidade prática, os institutos não se confundem e possuem natureza jurídica diferente, com regramentos específicos. A distinção primor- dial se assenta no fato de que a superfície é um direito real, manifestando a relação da pessoa sobre uma coisa em face dos demais. Já o arrendamento gera apenas obrigações entre as partes, não se vinculando juridicamente à coisa.
15 Lei nº 4.504/1964. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/XXXX/X0000.xxx>. Acesso em: 26 ago. 2023.
(II) Contrato de cessão de uso
Destina-se à utilização da terra para fins de avaliação de viabilidade dos projetos, sem qualquer fruição. Geralmente, são contratos mais curtos, com o intuito de instalar torre anemométrica (item que afere a qualidade dos ventos no local). Os valores negociados são irregulares, com registros de contratos que fixam remuneração mensal de R$ 2.000,00 (dois mil reais) e outros em que não há qualquer contraprestação pelo uso da terra (cláusula não onerosa). Especula-se que tal discrepância seja determinada pelo grau de instrução/ assistência jurídica das partes.
(III)Contrato de servidão
O contrato de servidão consiste em instrumento jurídico que confere direito real sobre coisa alheia. Trata-se de destinação do uso de um bem para melhorar sua utilidade. Decorre de vontade das partes. No caso das empresas de energia renovável, tais contratos se destinam ao uso de propriedade para fins de passagem de estruturas e outros insumos necessários à operacionalização do projeto. Em muitos casos, decorre da obtenção de uma Declaração de Utilidade Pública (DUP) pela ANEEL.
4. Cláusulas contratuais e condições de negociação
Observados os instrumentos jurídicos e as formas que conformam a relação de uso da terra para a exploração das fontes de energia renovável na geração elétrica, verifica-se aqui o conteúdo desses instrumentos, a fim de identificar as cláusulas elencadas nos contratos e estimar o contexto de formalização da relação jurídica entre as empresas e as comunidades.
Inicialmente, pode-se observar uma clivagem advinda do poderio econômico das partes envolvidas nos contratos coletados, especificamente na modalidade de arrendamento. A relação contratual tende a ser mais equilibrada ou menos onerosa para grandes proprie- tários, a exemplo do que se nota em um contrato de cessão (contrato 35) de uso para a instalação de torre anemométrica em imóvel localizado na zona rural do município de Santa Luzia (PB), no qual se convencionou fixar um valor de R$ 2.000,00 (dois mil reais) mensais a ser pago pela empresa ao proprietário da terra. Em outros casos (contrato 26), a instalação do mesmo equipamento se deu mediante cessão gratuita, condicionando eventuais pagamentos à operacionalização efetiva do empreendimento.
É possível que fatores como disponibilidade de assessoria jurídica própria, grau de ins- trução ou conhecimento das condições de negociação possam influenciar o processo, constatação que dependeria de análise empírica em estudos de caso. Fato é que pequenos proprietários se veem diante de um maior desequilíbrio na relação contratual, dada a sua clara situação de hipossuficiência econômica, o que evidencia uma posição de fragilidade e submissão frente à vontade das empresas e de seus representantes jurídicos.
A falta de acesso à instrução e ao aconselhamento jurídico pode ser um fator preponde- rante para o desbalanceamento das relações, posto que, em muitos casos, não há qualquer acompanhamento das partes arrendantes. Ǫuando há, geralmente o serviço jurídico é prestado pelos próprios representantes das empresas, o que caracteriza manifesto con- flito de interesses.
A situação se agrava, ainda, nos casos em que a assessoria jurídica é ofertada mediante um intermediador contratual16. Em alguns contratos, é possível identificar cláusulas que obrigam o proprietário do terreno ao pagamento, pelo tempo de vigência do contrato, de serviços de assessoria jurídica, seja pela negociação ou mesmo para eventuais pendências que pairem sobre os terrenos, isentando a empresa de arcar com os custos de sua própria atividade. Tal condição foi verificada em quase todos os contratos analisados.
16 Ver Traldi (2019). Op. Cit.
Para a presente análise, elaboraram-se as tabelas que seguem, as quais contêm um indi- cativo do universo de investigação documental, bem como a discriminação da natureza desses contratos e de suas principais características. Observa-se um número elevado de contratos de arrendamento, consolidando-se como o modo principal de pactuação pelas empresas. Há outras questões importantes que serão abordadas de forma mais detalhada a partir do catálogo apresentado nas tabelas 1, 2 e 3.
Etapas operacionais da instalação de parques eó- licos em contratos com as comunidades
Os contratos de uso da terra para a geração elétrica pelas fontes eólica e solar foto- voltaica geralmente são discriminados em diferentes etapas operacionais, que têm por finalidade orientar as condições do negócio jurídico firmado entre as partes. Em quase a totalidade das vezes, determina o montante a ser pago a título de contrapres- tação para o uso da terra. Há, entretanto, contratos que sequer preveem o pagamento para as etapas iniciais de instalação dos projetos, condicionando qualquer prestação pecuniária ao pleno funcionamento dos empreendimentos, conforme analisado na tabela 3 (contrato 26).
A fase pré-operacional, também chamada de fase preliminar e de estudos, consiste no período em que a empresa procede à avaliação da viabilidade técnica do empre- endimento. Neste momento, não há qualquer garantia de implantação do parque, razão pela qual os contratos firmados nesta etapa frequentemente não incluem maiores informações técnicas sobre a capacidade de geração, a quantidade de torres etc. Tendo em vista a incerteza sobre a instalação do projeto em determinada pro- priedade, algumas empresas optam por realizar um contrato de arrendamento mais simples ou um contrato de cessão de uso, fixando condicionante para que, em caso de constatação da viabilidade do projeto, haja a preferência pelas mesmas empre- sas para a formalização de um contrato principal de arrendamento. Nesta fase, são feitas medições nos terrenos, especialmente pelo uso de instrumentos como a torre anemométrica. Tal fase é requisitada pela ANEEL como condicionante para a apro- vação futura do projeto (vide a Resolução nº 876/2020, que fixa um prazo mínimo de análise de três anos).
Uma segunda etapa consiste na fase de desenvolvimento e construção. Aqui já se sabe com exatidão o potencial de aproveitamento energético e a empresa busca consolidar sua posse sobre a propriedade. Durante este período, serão desenvolvi- dos os projetos do futuro parque eólico, delimitando a quantidade de torres, os locais exatos e o traçado da área a ser implementada. Durante essa fase, a empresa busca solucionar todos os passos burocráticos em processos de outorga junto à ANEEL e licenciamento perante os órgãos públicos competentes. Obtidas todas as licenças e autorizações necessárias, o empreendimento inicia sua construção. Em que pese o fato de que constituem etapas distintas, o projeto e a construção são comumente incluídos como uma única fase para fins contratuais de remuneração para com o proprietário da terra. Há, ainda, contratos que compilam toda a fase de construção na etapa operacional.
Por fim, tem-se a fase operacional, na qual o empreendimento efetivamente entra em funcionamento e inicia a geração e a comercialização de energia. Neste momento, a relação contratual se estabiliza em relação às condições de pagamento. Os valores são fixados de acordo com a modalidade estipulada em contrato, podendo ser: I) por um percentual sobre a receita bruta de toda a energia gerada na área arrendada; II) pela quantidade de aerogeradores instalados na área arrendada; III) por atribuição de valor a cada megawatt produzido na área arrendada. O prazo de vigência do contrato normalmente se orienta por esta fase, a contar da obtenção da outorga, estipulada pela ANEEL em 35 anos (Resolução nº 876/2020).
A inteligência dos instrumentos normativos sobre contratos agrários aponta que estes foram feitos para equilibrar uma relação entre pequenos agricultores e grandes proprie- tários de terra, mitigando os efeitos da concentração fundiária no Brasil. Todavia, na atualidade, as empresas de energia têm se valido dessa modalidade para a realização de seus negócios, o que acarreta a inversão dos polos contratuais e afasta a finalidade da proteção legal concedida. A atividade empresarial se reveste, assim, de proteções con- tratuais antes concedidas àqueles arrendatários mais vulneráveis.
Destacam-se, a seguir, alguns pontos de maior relevância observados nos contratos.
(I) Remuneração contratual e contrapartidas da empresa
Há estipulação de fases para a instalação do projeto, o que direcionará a implementação das cláusulas do contrato. Em geral, são descritas como “fase pré-operacional” e “fase operacional”. Os valores também são modulados de acordo com as fases do empreendi- mento, não se prevendo qualquer garantia ou contrapartida aos proprietários por eventual desistência do empreendimento.
O arrendamento é modalidade de contrato não solene, porquanto a lei não exige forma especial para a sua validade e eficácia. Com isso, os valores fixados são pactuados livremente entre as empresas e os indivíduos, o que favorece a ocorrência de chantagens locacionais e o proveito em face das vulnerabilidades socioeconômicas frequentemente presentes no polo arrendante. O que se observa é que as condições contratuais de pagamento variam entre três modalidades mais frequentes: (I) pagamento mensal ou anual de um percentual sobre a receita bruta de toda a energia gerada na área arrendada; (II) pagamento mensal ou anual de um valor fixo por cada aerogerador instalado na área arrendada; e (III) paga- mento mensal ou anual de um valor fixo por cada megawatt gerado na área arrendada.
Na análise, encontrou-se um caso de contrato que não apresentava contraprestação durante a fase pré-operacional (contrato 26), o que contraria a disposição legal do Decreto nº 59.566/66, que define o contrato de arrendamento rural como instrumento necessa- riamente oneroso. Em outros registros, notam-se contratos que instituíam pagamento em cota única pela fase pré-operacional.
Em todos os casos, não foi possível identificar os fatores que limitam o valor do arren- damento ou que justifiquem o pagamento de quantias irrisórias (R$ 1,00 ou R$ 2,00 por hectare), o que leva a crer que se trata de mera convenção discricionária de mercado. Tal dedução se dá em face da existência de contratos que preveem pagamentos mais elevados para uma mesma etapa (contrato 14), o que até aqui pode ser considerado uma exceção.
Ademais, nem todos os contratos apresentam cláusulas de atualização monetária ou a fixação de juros de mora e multa por atraso nos repasses de pagamento, o que revela que as empresas dispõem livremente sobre as quantias devidas a título de remuneração pelo arrendamento. Neste sentido, é relevante observar que os contratos assumem caráter de adesão, posto que o texto é idêntico e, em muitos deles, repetem-se até mesmo os erros ortográficos, o que denuncia a limitação ou a completa ausência de negociação real entre as partes.
(II) Prazo dos contratos e condições de renovação
O período de vigência normalmente é convencionado entre 35 e 49 anos, alinhando-se aos prazos de outorga concedidos pelo poder público (neste caso, pela ANEEL). Na maio- ria dos contratos observados, estipularam-se cláusulas de renovação automática, o que acaba limitando a possibilidade de revisão dos termos contratuais firmados.
CLÁUSULA OITAVA – O arrendamento ora firmado terá vigência por 49 (quarenta e nove) anos, a contar da data da assinatura do presente instrumento, e será renovado automaticamente por períodos sucessivos de 22 (vinte e dois) anos, na ausência de manifestação contrária das Partes, com 06 (seis) meses de antecedência ao termo final do presente instrumento.
Parágrafo 1º – Findo o prazo de vigência e não havendo consenso na con- tinuidade do mesmo, considera-se rescindido o presente Contrato, sem qualquer ônus para as Partes, reservando-se à ARRENDATÁRIA o direito de retirar do imóvel objeto deste Contrato todos os aerogeradores que ali estiverem efetivamente instalados em decorrência deste Contrato, bem como toda a rede elétrica interna instalada, permanecendo somente as obras de infraestrutura que não puderem ser removidas do imóvel, tais como fundações e vias de acesso, e as moradias/escritórios even- tualmente edificados, sem qualquer ônus para o ARRENDARÁRIO em relação aos mesmos [contrato 1].
Em diversos contratos, exige-se justa causa para a rescisão não onerosa, enquanto as empresas podem dispor livremente sobre a continuidade dos contratos. Este ponto merece atenção, posto que os valores de multa em face das comunidades ou as perdas e os danos associados à descontinuidade dos projetos superam excessivamente o poderio econômico das famílias, transformando-se em verdadeira coação.
As limitações para o período de manifestação, acerca da oposição fundamentada para a não renovação do contrato, na prática, beneficiam tão somente os interesses das empre- sas. Com isso, há uma situação de domínio da propriedade, que pode se prolongar por décadas, consistindo em uma alienação fictícia da terra.
(III)Rescisão contratual, compensações e multas
Aliadas aos prazos, estão previstas penalidades de multas para rescisões unilaterais. Apesar de garantirem maior segurança jurídica ao negócio, a falta de modulação nos valores das multas e a adequação à realidade das famílias constituem instrumentos de perpetuação do uso da propriedade, cujo poder de decisão se reserva às empresas.
Outro ponto que chama a atenção se refere ao caráter de irretratabilidade e irrevogabi- lidade dos contratos. Trata-se de impedimento expresso que os proprietários desistam do arrendamento antes do término da vigência. Tal condição explícita impõe uma multa extremamente onerosa, que, na prática, supera desproporcionalmente o patrimônio de toda a família da parte arrendante (contrato 30).
Além dos valores exorbitantes previstos para multas impostas aos arrendantes (pequenos proprietários), há casos em que as empresas poderiam, de acordo com os termos analisa- dos, rescindir o contrato sem qualquer ônus ou multa e a qualquer tempo, demandando apenas comunicação prévia de 30 dias.
Em todos os contratos, foram localizadas cláusulas que preveem a rescisão do contrato de forma não onerosa pelas empresas, ou seja, sem nenhuma contrapartida às famílias. As situações descritas em todos os documentos analisados consistem nas hipóteses de não realização do empreendimento, seja por inviabilidade técnica ou por entraves na obtenção das respectivas licenças. Na prática, os contratos poderiam ser interrompidos a qualquer tempo, sem importar em ônus para as empresas.
Não sendo a rescisão de comum acordo, ela será litigiosa e a parte que der causa terá que arcar com as perdas, os danos e os lucros cessantes. Além disso, alguns contratos apre- sentam cláusulas que impõem única e exclusivamente aos proprietários fundiários multa por descumprimento contratual.
Observa-se uma enorme desproporcionalidade entre as partes quanto às obrigações e aos ônus contratuais. Às empresas garantem-se o acesso e o controle integral sobre as propriedades, antes mesmo da outorga para a geração de energia, bem como a proteção frente a todo e qualquer risco do negócio, podendo desistir a qualquer tempo, em caso de inviabilidade econômica.
Caso a implantação do parque não ocorra, a empresa pode alegar inviabilidade técnica e/ ou econômica do projeto e isentar-se do pagamento de qualquer valor aos proprietários, não importando se estes deixaram de arrendar sua propriedade a outra empresa que
poderia ter viabilizado o projeto ou para empresa ou indivíduo que pudesse ter iniciado atividade produtiva que lhe gerasse renda ou, ainda, que eles mesmos tenham deixado de plantar ou criar animais na área designada para o projeto.
(IV)Vinculação de herdeiros e sucessores
A perda do controle efetivo da propriedade assume caráter intergeracional, posto que as condições dos contratos são impostas também aos herdeiros e sucessores, de forma irre- vogável e irretratável. Tal instituto acaba por limitar o uso da terra por terceiros legítimos (proprietários futuros), realidade que foi localizada em todos os contratos analisados.
O art. 23 do Decreto nº 59.566/66, ao tratar do arrendamento rural, estabelece que, se o imóvel for partilhado entre herdeiros por sucessão cnusn mouíis, qualquer deles poderá exercer o direito de retomada de sua parte. Em complemento, o art. 26, inciso II, do mesmo decreto prevê a retomada como uma das formas de extinção do arrendamento.
Entretanto, na análise do Recurso Especial (REsp) nº 1.764.873-PR, sobre a vinculação de herdeiros ao pactuado em contrato agrário, o Superior Tribunal de Justiça (STJ, 2019) entendeu que “o contrato permanece vigente até o final do prazo estipulado, podendo os herdeiros exercer o direito de retomada com a realização de notificação extrajudicial até seis meses antes do término do ajuste, indicando uma das hipóteses legais para o seu exercício”.
(V) Transparência das negociações e sigilo contratual
Ǫuase que a totalidade dos contratos inclui uma cláusula de sigilo ou confidencialidade, fator que prejudica até mesmo a análise por agências reguladoras como a ANEEL. A cláu- sula de confidencialidade proíbe a divulgação do contrato, a sua transmissão a terceiros ou a divulgação das condições financeiras ou dos pagamentos previstos, devendo o con- teúdo do contrato ser mantido apenas entre as partes.
Denota-se que há uma clara proteção à atividade negocial das empresas, que se bene- ficiam da incapacidade de mobilização entre os membros de uma mesma comunidade, que acabam desconhecendo os valores ofertados aos seus pares. É muito frequente que contratos de arrendamento variem apenas nas formas de cálculo dos valores e, assim, resultem no pagamento de quantias diferentes para a implantação de um mesmo parque ou conjunto eólico.
Os contratos preveem costumeiramente a existência de multa contratual para o descum- primento de qualquer de suas cláusulas, incluindo a de confidencialidade. Aqui é possível observar um grave fator de onerosidade, porquanto, para tais contratos, os valores das multas por descumprimento podem alcançar cifras exorbitantes para a realidade de pequenos agricultores. Com isso, muitos dos arrendantes acabam não buscando orien- tação jurídica ou mobilizando-se entre seus pares pelo temor de arcar com alguma multa decorrente de punição por descumprimento contratual.
Resta prejudicada, assim, uma das principais práticas de sustentabilidade empresarial: a transparência. Além de obscurecer as condições contratuais gerais, a cláusula de sigilo oculta as condições de negociação acerca da geração eólica, o que acaba impedindo que as famílias (que já assinaram ou que pretendem assinar contratos de arrendamento) possam discutir os termos dos contratos que lhes foram propostos, dificultando a organização coletiva, que poderia garantir melhores condições contratuais para todos.
A maior parte dos contratos não apresenta informações claras e detalhadas acerca do montante de energia a ser produzido nas propriedades. Isto ocorre, em parte, pelo cará- ter de negociação prévia que antecede a implantação dos empreendimentos. Há casos de judicialização por rescisão de contrato pelas empresas. Verifica-se um desequilíbrio nas cláusulas de rescisão, posto que recaem obrigações demasiadamente onerosas sobre os proprietários (frequentemente, pequenos agricultores), o que acarreta prolongamento permanente do contrato em favor da empresa.
Contudo, há de se observar que os empreendimentos dispõem de estudos próprios capa- zes de subsidiar uma estimativa do potencial de geração. Pesquisas semelhantes foram conduzidas no sentido de mapear as áreas de grande potencial de geração, a exemplo do Atlas do Potencial Eólico Brasileiro17 e de outras iniciativas em diversos Estados do Brasil18. A disposição destes dados pode melhor orientar os processos de negociação, a fim de garantir preços justos para os potenciais de geração em cada área dos territórios de comunidades.
17 Atlas do Potencial Eólico Brasileiro (2013). Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xx-xxxxxxx/ uploads/2020/01/Novo-Atlas-do-Potencial-Eolico-Brasileiro-SIM_2013.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2023.
18 Atlas Eólico da Paraíba (2016). Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxxxx-x-xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx- eolico-paraiba.html>. Acesso em: 26 ago. 2023.
Para onde vai a energia elétrica gerada por fontes renováveis no Nordeste brasileiro?
A comercialização da energia gerada por usinas participantes do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) está direcionada para dois ambientes de contratação: Ambiente de Contratação Regulada (ACR) e Ambiente de Contratação Livre (ACL)19.
Todos os contratos negociados no ACL têm suas condições de atendimento, preço e demais cláusulas de contratação livremente negociadas entre as partes, sem a interferência da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), sendo deno- minados Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente Livre (CCEAL), que devem respeitar a legislação/regulamentação vigente.
Contratos originados a partir de fontes incentivadas de energia são denominados de Contratos de Comercialização de Energia Incentivada (CCEI). Fontes incentivadas são empreendimentos de geração de energia renovável com potência instalada não superior a 30 megawatts (MW), como centrais eólicas, térmicas a biomassa e usinas com fonte solar, além de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) e centrais gera- doras hidrelétricas (CGH), que têm capacidade igual ou inferior a 1 megawatt (MW).
Os contratos do Proinfa representam os efeitos da energia comercializada pela Eletrobras na CCEE e da energia elétrica produzida por usinas participantes do referido programa com as concessionárias de distribuição e os consumidores livres, adqui- rentes das cotas de energia, conforme o disposto na Resolução Normativa ANEEL nº 127/2004. Tal ambiente de contratação não se confunde com os contratos realizados entre as empresas de energias renováveis e as comunidades. Contratos para uso da terra firmados com as famílias versam somente sobre a captação de territórios para a instalação de atividade econômica destinada à geração de energia.
Em sua grande maioria, não há nos instrumentos particulares de contrato qual- quer menção à modalidade de comercialização futura da energia produzida, pois, em muitos casos, a captação de imóveis se dá previamente à realização dos leilões de energia ou à concessão de outorga da agência reguladora. Para averiguação da destinação dada à energia, podem-se correlacionar os empreendimentos catalo- gados com as bases de dados públicas, como aquelas constantes nos domínios da ANEEL e da CCEE.
19 Ver CCEE (2023). Regras de Comercialização: Contratos. Disponível em: <xxxxx://xxx.xxxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxxx- de-comercializacao>. Acesso em: 26 ago. 2023.
5. Considerações finais
• Os contratos firmados entre empresas de energia renovável e comunidades do Nordeste brasileiro evidenciam um profundo desequilíbrio da relação jurídica ante a fragilidade e a hipossuficiência das populações locais.
• Os longos prazos contratuais seguem o interesse das empresas, quase sempre vinculados ao tempo de outorga concedida. Tal condição mantém o uso da terra sob o domínio do empreendimento e descaracteriza a ocupação familiar, de forma que o seu pleno aproveitamento estará restrito por gerações.
• A estipulação de remunerações irrisórias demonstra um abuso cometido frente à fragilidade dos núcleos familiares, oferecendo uma renda que não reflete o pro- veito econômico da atividade realizada na propriedade. Dessa maneira, as empresas conseguem explorar a energia a baixo custo e concentrar grande parte da renda da terra obtida por meio dos contratos de arrendamento.
• As contrapartidas sociais são insuficientes, considerando-se o alto impacto ter- ritorial e o perfil socioeconômico das pessoas que frequentemente figuram como parte da relação contratual. Pela natureza da atividade, é possível direcionar recur- sos e esforços para reduzir as assimetrias socais observadas nas regiões de maior difusão dos empreendimentos.
• Em diversos instrumentos contratuais, foi possível observar a fixação de cláu- sulas desvantajosas, tais como a previsão do custeio da assistência jurídica (que beneficiará indiretamente as empresas), a irretratabilidade dos contratos, os con- dicionantes de continuidade do projeto (a critério da empresa) e sua desoneração pela desistência do contrato.
• Por outro lado, são fixadas multas exorbitantes para o polo contratual mais vul- nerável economicamente, ora estipulando oneração em perdas e danos pela não continuidade dos projetos de energia, ora impondo valores milionários pelo des- cumprimento de cláusulas contratuais, incluindo a quebra de sigilo. São valores desproporcionais para a realidade de toda uma população.
• Fatores externos, como a baixa renda das famílias, podem condicionar a capacidade de reivindicação de suas vontades e necessidades, acarretando a sujeição de grupos mais vulneráveis às condições impostas pelas empresas.
• Nota-se que, quanto mais indefinidas são as fases operacionais das atividades da empresa, mais precários são os instrumentos contratuais. Contudo, dado o prazo de vigência, a não fixação de patamares mínimos com a previsão da operacionali- zação do projeto pode criar um ambiente favorável para que a empresa explore com baixo custo os recursos energéticos da propriedade, sem a possibilidade imediata de revisão dos termos.
• A falta de fiscalização e acompanhamento das negociações e dos contratos pela agência reguladora (ANEEL) e por instituições como o Ministério Público e as Defensorias é uma lacuna que reduz a proteção das comunidades mais vulneráveis na exploração da energia.
• É preciso olhar para as situações de vulnerabilidade sob a captação de terras e sua efetivação a partir da relação contratual. Uma maior assistência jurídica, por advo- gado não vinculado às empresas, pode garantir uma negociação mais equilibrada, evitando contratos desvantajosos e abusivos. Contudo, em muitos casos, tal repre- sentação depende do nível de instrução da população, bem como da disposição de maiores condições financeiras.
• A lógica da negociação contratual no Nordeste brasileiro tem se orientado mais por uma forma de adesão do que pela efetiva discussão das cláusulas. A semelhança de conteúdo entre os textos dos contratos, que apresentam até os mesmos erros ortográficos, leva a crer que seus termos são estipulados por imposição e não por mútua convenção.
• A promessa de um pagamento mensal fixo e o temor de perder uma oportunidade de auferir renda constituem causas paralisantes da expressão de vontade das famílias mais vulneráveis socioeconomicamente. É preciso criar mecanismos que evitem a chantagem locacional e a cessão de terras com baixo custo, condições que perpe- tuam a manutenção das desigualdades.
• Em sua grande maioria, os contratos para o uso da terra adotam o formato de arren- damento. Portanto, os longos prazos estipulados, somados às condições de sigilo e às multas exorbitantes, atuam para restringir o domínio da propriedade e exercer o controle total e irrestrito sobre ela.
• As condições de uso da propriedade acabam limitadas nos termos contratuais, de forma que a vedação à produtividade e os distanciamentos mínimos estipulados pelas empresas, muitas vezes em raios quilométricos, restringem ou inviabilizam a exploração da terra para outros fins.
• O modelo operacional de contratos no Nordeste brasileiro ainda parece distante da realidade local, uma vez que utiliza formatos e modelos de contextos fundamenta- dos em outras condições produtivas. A maioria das terras arrendadas é de pequeno porte, o que pode vir a caracterizar um novo processo de reconcentração fundiária no semiárido pela via contratual.
• Outro fator que condiciona os contratos se refere ao grau de acesso à justiça e à assistência jurídica disponíveis aos proprietários (arrendantes).
• Com exceção dos casos em que se verificam prejuízos à saúde ou aos bens mate- riais, a instalação de parques eólicos, quando são garantidos os meios equitativos de negociação, pode ser um instrumento de desenvolvimento para as comunidades.
• Por fim, o bom aproveitamento dos recursos energéticos, por meio da integração da vontade dos assentados, pode ser um elemento estratégico para o desenvolvi- mento sustentável no meio rural e para a garantia de segurança hídrica, alimentar e energética, reduzindo desigualdades e combatendo a pobreza em suas múltiplas dimensões.
6. Recomendações de salvaguardas para as comunidades na relação contratual com empresas de energias renováveis
(I) É necessária uma discriminação legal dos instrumentos contratuais aplicáveis
à exploração de fontes renováveis para a geração de energia elétrica no Brasil.
(II) Deve-se instituir um patamar mínimo de salvaguardas contratuais com parâmetros bem definidos sobre os índices e percentuais a serem pagos a título de remuneração pelo uso da terra destinado à geração de energia elétrica, de modo a evitar que as vulnerabilidades socioeconômicas sejam exploradas em evidente situação de chnníngcm locncionnl20.
(III) É preciso instituir meios de acompanhamento e fiscalização das negociações quando estiverem presentes partes consideradas hipossuficientes. Em analogia, a compreensão do Código de Defesa do Consumidor estabelece mecanismos que balizam a relação contratual de consumo, considerando as assimetrias do poderio econômico e estrutural de empresas em face do cidadão médio. Meios de prote- ção semelhantes podem ser instituídos para balizar as relações negociais entre as empresas e as comunidades na geração de energia.
(IV) Deve haver a criação de mecanismos de arbitragem que facilitem a revisão de cláusulas contratuais excessivamente onerosas em direitos e obrigações, de maneira a compatibilizar os interesses dos empreendimentos com o das comu- nidades, de forma a balancear a relação negocial.
(V) É necessário que haja maior fiscalização por parte do órgão regulador, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em relação à atuação das empresas
20 Xxxxx Xxxxxxxx (2010) utiliza o termo “chantagem locacional pelo capital” ao tratar das relações entre corporações e países ou grupos, em que aquelas se valem de fragilidades socioeconômicas presentes no território para impor a flexibilização de direitos e regulações econômicas, em troca da alocação de investimentos e recursos para determinado fim, setor ou atividade. Traçando-se um paralelo com a exploração de energia renovável no Nordeste brasileiro, assume-se que grande parcela dos arrendantes de terras é constituída por pequenos agricultores e famílias em situação de vulnerabilidade social. A abordagem utilizada pelas empresas frequentemente se vale dessa condição para impor uma quantia mínima de remuneração em troca do usufruto da terra e de seus rendimentos (a força dos ventos). Com isso, perpetua-se um ciclo vicioso, no qual as empresas se beneficiam das fragilidades sociais e econômicas no âmbito da relação negocial, limitando-se a oferecer o mínimo possível pela exploração pelo capital.
na construção das relações contratuais atinentes à geração de energia elétrica, sobretudo para a obtenção de propriedades que sejam objeto da exploração de energia. A ANEEL detém competência operacional para editar resoluções e ins- tituir critérios para a concessão de outorgas e a fiscalização das autorizações, a exemplo do que já ocorre com as Resoluções nº 876/2020 e nº 921/2021.
(VI) Por fim, é essencial reforçar a atuação do Ministério Público enquanto ins- tituição fiscalizadora e garantidora dos direitos e da justiça social, sobretudo no que se refere a populações mais vulneráveis. O acompanhamento da ins- talação dos empreendimentos, para além da licença ambiental, é um passo importante, com um diálogo mais próximo com as comunidades afetadas. Apurar a responsabilidade social das empresas é uma medida indispensável no atual quadro normativo sobre a ordem econômica e o desenvolvimento susten- tável. Iniciativas como a audiência pública21 promovida no Estado da Paraíba (PB), pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública do Estado (PB), abrem o caminho para que as demandas das comunidades alcancem a atuação do poder público.
21 Impacto socioambiental de usinas eólicas e solares na Paraíba é apurado pelo MPF, DPU e DPE. G1, 28 mar. 2023. Disponível em: <xxxxx://x0.xxxxx.xxx/xx/xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxx-xxxxxxxxxxxxxx-xx-xxxxxx-xxxxxxx-x- solares-na-paraiba-e-apurado-pelo-mpf-dpu-e-dpe.ghtml>. Acesso em 28 jun. 2023.
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