Contratos de Energia no Ambiente Livre de Comercialização
Contratos de Energia no Ambiente Livre de Comercialização
PRESSUPOSTOS DE COMPREENSÃO
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Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx
INTRODUÇÃO
Como diz seu título, este estudo lança as premissas de compreensão dos contratos de compra-e-venda de energia, ou seja, os elementos que explicam e permitem entender a estrutura, o tipo e a dinâmica desssa espécie de negócios jurídicos. Em outra ocasião, apresentaremos as características básicas do referito contrato.
Na Seção I, a energia elétrica é apresentada na sua qualidade de objeto de direito, isto é, como a matéria em torno da qual são estabelecidas prestações contratuais. Acolhendo a tradição anterior, o Código Civil atual consagrou a qualificação (ou equiparação) da energia a uma coisa móvel. A esta qualidade jurídica inicial, outras podem ser-lhe acrescentadas, com algumas ressalvas, como a fungibi- lidade e a consumibilidade.
A Seção II traz algumas informações empíricas, físicas, acerca da energia. Essa “fuga do direito” é necessária porque nosso objeto de direito possui qualidades bastante peculiares que complicam o trato jurídico da energia. Tanto a coisa energia elétrica, quanto o específico ambiente em que ela vive, o sistema elétrico, exigem do direito adaptações e mesmo algumas ficções.
A Seção III, ainda no plano empírico, descritivo, procura explicar como se realizam a produção, o trans- porte e o consumo da energia, bem como a operação do sistema elétrico (em nosso caso, do Sistema Interligado Nacional – SIN). Essas atividades são estritamente condicionadas pelas peculiaridades físi- cas da coisa, de tal sorte que o funcionamento do sistema elétrico possui uma lógica própria (de enge- nharia, dir-se-ia), marcada por acentuada autonomia em relação ao que se passa no plano dos negó- cios jurídicos realizados pelos elementos integrantes desse sistema (geradores e consumidores). Como se diz no jargão, o “mundo físico”, da operação do sistema elétrico (onde se situam as atividades de produção e consumo da energia), é razoavelmente descolado do “mundo comercial”, dos contratos de energia. Compreender bem essa dissociação é de grande importância.
Dada a realidade fática subjacente e sui generis do funcionamento e da operação do sistema elétrico, a Seção IV lança outra premissa de compreensão dos contratos, agora já de tom jurídico: nada obstante a fenomenologia física que pende para a indiferenciação, as normas setoriais distinguem nitidamente, para fins de direito, entre, de um lado, a produção da energia elétrica pelas usinas geradoras e, de outro, seu transporte, realizado por meio das redes de transmissores e distribuidores. Por isso, a distinção entre “energia” e “fio” é o primeiro passo para que se possa falar de contratos de compra-e-venda de energia. Ela dá origem às duas grandes categorias de negócios setoriais, aqueles que se ocupam da coisa móvel (compra-e-venda, fornecimento, doação, permuta etc. de energia) e aqueles que
disciplinam o serviço de seu transporte: fala-se de contratos de energia e de contratos de rede, negócios radicalmente distintos, com identidades próprias (mas estreitamente relacionados1).
Essa separação entre “energia” e “fio”, porém, não basta; outros discrímines e outras noções devem a ela se juntar, especificamente relacionados às possibilidades comerciais e negociais da energia (e não do “fio”): a Seção V discorre sobre os conceitos e institutos jurídicos da comercialização de energia e sobre os limites e possibilidades da competição ou concorrência nessa comercialização.
Como se perceberá ao longo da leitura das páginas que seguem, as seções que apresentam esses dois mundos distintos (o físico, na Seção III; o comercial, na Seção V), foram desenvolvidas de modo bastante isolado uma da outra – inclusive apartadas por uma pausa, a Seção IV. Isso é necessário para fins de melhor rendimento expositivo e mesmo por razões normativas. Especialmente a Seção V, ao lançar os primeiros conceitos e institutos diretamente ligados aos contratos de energia, faz abstração das dificul- dades que o peculiar modo de funcionamento de um sistema elétrico complexo apresenta para a ideia de uma contratação realizada em bases livres e competitivas. A lógica de operação do sistema elétrico, no “mundo físico”, é cooperativa, centralizada e calcada das ideias de segurança elétrica e energia, resumidas na expressão “otimização sistêmica”. Já a lógica do “mundo comercial” dos contratos (sobre- tudo no chamado Ambiente de Contratação Livre - ACL) é competitiva, fragmentada e puramente co- mercial, fundada na diretriz de liberdade e maximização dos interesses individuais.
Diante dessa aparente incongruência entre os dois mundos, a Seção VI, final, procura mostrar como se compatibilizam as duas perspectivas ou os dois “mundos”. Dedica-se ela ao exame dos conceitos de lastro e de mercado de liquidação de sobras e diferenças.
1 Ainda que sejam distintos juridicamente, estes atos negociais devem ser apreciados em conjunto, pois fazem parte de uma rede de contratos. O tema será apreciado em outro momento. Sobre o tema dos contratos coligados, conexos e afins, veja-se SERRA, Xxxxxxx Xxxx xx Xxxxx Xxx, União de Contratos: Contratos Mistos, Boletim do Ministério da Justiça, v. 91, 1960; XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx, Contratos Coligados no Direito Brasileiro, São Paulo: Saraiva, 2012; XXXXXXX, Xxxxxxx, Operazioni Economiche e Collegamento Negoziale, Padova: Cedam, 1999; XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx, Contratos Complexos e Complexos Contratuais, Coimbra: Almedina, 2010. XXXXXXX, Xxxxxxx, Les Groupes de Contrats, Paris: LGDJ, 1975.
I. ENERGIA ELÉTRICA COMO OBJETO DE DIREITO2
Diante das inúmeras e complexas teorias físicas acerca da ontologia da energia e da incerteza que paira sobre sua natureza3, é reconfortante saber que o direito fez “metafísica por decreto”, ou melhor, por lei, e equiparou a energia em geral (e a elétrica, de consequência) a uma coisa móvel. Diz o Código Civil:
Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: I - as energias que tenham valor econômico; (...).4
Com semelhante estipulação, o direito positivo viabilizou o uso de inúmeros institutos jurídicos que pres- supõem bens desse tipo (móveis). Em particular, criou a possibilidade de se aplicarem à energia elétrica os negócios jurídicos que têm por objeto imediato prestações de dare (prestações essas que têm, a seu turno, por objeto, a energia): compras-e-vendas, doações, permutas etc5.
Essa “coisificação” da energia elétrica, feita pelo Código Civil na esteira de nossa tradição e de outros ordenamentos6, é dado fundamental, de partida, da disciplina dos contratos de energia. Mas também pode ser um sério obstáculo para a compreensão de aspectos importantes desses negócios jurídicos7. Se por um lado a simplificação é útil e importante, por outro lado não pode ser elemento de resistência para a apreensão da função econômica subjacente ao negócio8 que não é aquela normalmente associada a contratos tradicionais que envolvem a negociação de coisas (que veremos em outra oportunidade).
2 “Por tal conceito entende-se tudo aquilo que pode ser matéria de relação jurídica ou, mais precisamente, tudo aquilo que pode ser atingido pela eficácia do fato jurídico: nos direitos reais, é o substrato mesmo deles e diz-se coisa; nos direitos de crédito é a promessa; nos outros direitos é a vida, a liberdade, o nome, a honra, a própria pessoa de outro, ou outro direito.” XXXXXX XX XXXXXXX, X. X., Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx: Borsoi, 1958., vol. II, § 113.
3 “É importante perceber que hoje, na física, não temos o menor conhecimento do que a energia é. Não temos uma imagem de que a energia vem em pequenos blocos de quantidade definida. Não é dessa forma. Entretanto, existem fórmulas para se calcular a quantia numérica e quando somamos tudo, dá ‘28’ – sempre o mesmo número. É algo abstrato, pois não nos diz o mecanismo ou as razões para as diversas fórmulas.” Xxxxxxx, in xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxxxxxx.xxx/X_00.xxxx
4 Será desconsiderada a questão de saber se estamos diante de uma ficção jurídica ou de uma equivalência (esta última hipótese sugerida pela linguagem do Código).
Já muito antes desse dispositivo – inexistente no Código de 1916 – o direito brasileiro tratava a energia como coisa. Sobre as diversas formas de se conceber a energia e seu contrato, veja-se o Capítulo 1 da Parte III do vol. I das minhas Instituições de Direito da Energia Elétrica - Volume I, 2ª ed., Quartier Latin, São Paulo, 2021. Sobre o tema da natureza jurídica da energia, ver XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx, Relações Contratuais de Comercialização na Regulação Jurídica do Mercado Brasileiro de Energia Elétrica, Universidade Federal do Paraná, 2013.
5 No que segue, faremos referência apenas à compra-e-venda de energia, por ser o contrato mais praticado. Mas é sempre bom lembrar que não é o único.
6 Quanto à tradição, essa era a prática setorial e também o modo de consideração da energia no direito penal e tributário. Quanto ao direito comparado, veja-se o Código Civil italiano, art. 814; Código Civil argentino, art. 2.311.
7 “Energia é coisa, como o ar, a água, a terra; tem-se de tratar como coisa, de cuja especificidade resulta ser específico o contrato de energia.” Pontes de Miranda, Tratado de Direito Xxxxxxx, 0x xx., Xxx xx Xxxxxxx: Borsoi, 1954, p. 145 (§ 153).
8 Xxxxx, Xxxx, O Contrato, Coimbra: Almedina, 2009., p. 07 e segs. A tentação em falar de causa do contrato é grande, mas, por ora, evita-se a figura, dada a sua complexidade.
A essa qualidade jurídica básica, de coisa móvel, duas outras poderiam ser acrescentadas, ao menos de modo provisório e com cautelas: sob a perspectiva puramente física, a energia elétrica pode ser tida por fungível (art. 85, CCB9) e consumível (art. 8610).
Com relação à primeira nota, fisicamente não existem diferentes energias elétricas - como “energia pre- mium” e “energia standard”, “energia de má qualidade” e “energia de péssima qualidade”11: todos os geradores produzem, rigorosamente, a mesma coisa, sob pena de, simplesmente, não produzirem coisa alguma; e, como se isso não bastasse, a energia elétrica, uma vez lançada no sistema, mistura-se às demais que estão sendo produzidas por outros geradores - tal como a água lançada por diferentes caixas d’água numa mesma rede hidráulica que abastece diferentes torneiras mistura-se nos tubos condutores (com a diferença de que, nas fontes, seria possível diferenciar diferentes tipos de água, o que não ocorre com a energia elétrica que é, nas palavras de Xxxxx Xxxx “the most homogeneous product imaginable”12).
Quanto ao caráter de coisa consumível, ele está relacionado à circunstância de não estocabilidade da ener- gia elétrica enquanto tal (adiante) e também à perene transformabilidade das energias (em geral) – pro- priedade essa que, ao fim e ao cabo, é o que torna o fenômeno útil para nós. Com efeito, a energia elétrica nos serve na medida em que deixa de ser tal, para se transformar em energia radiante (luz), térmica (calor), cinética (movimento) etc. Em realidade, melhor seria falar de transformabilidade da energia do que em consumibilidade, mas o direito não possui esta categoria e podemos, por ora, simplificar as coisas13.
9 “Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.”
10 “Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação.”
11 No quotidiano e mesmo na regulação, fala-se em qualidade da energia. Em termos estritos, o que se quer dizer com isso é que se pode avaliar a adequação de seu fornecimento sob a perspectiva do número, duração e alcance de interrupções nas redes (não propriamente nas usinas) etc. Até pode-se falar de oscilações de tensão e frequência como defeitos de qualidade, mas esses fenômenos indesejáveis importam, ao fim e ao cabo, na insuficiência da energia para seu consumo enquanto tal – e não para um “consumo ruim” ou “insatisfatório”.
12 “You cannot buy different grades of power—it is not like gasoline, it is all the same, the most homogeneous product imaginable, because the system operator controls the frequency within strict limits. This means that the quality of electricity you get is in no way dependent on how good a generator, or what type of generator, serves you or your retailer. The alternate service offerings are differentiated by price, by the efficiency of the billing, and by other value-added services that may be available, but not by the grade of electricity.” XXXX, Xxxxx, Making competition work in electricity, New York: John Wiley & Sons, 2002., p. 35.
A qualidade da fungibilidade, que é inegável do ponto de vista físico, pode ser relativizada ou mesmo negada desde outras perspectivas, notadamente a econômica e mesmo contratual. Isso porque (i.) a energia elétrica tem custos de produção muito diferentes conforme a usina e o momento em que produzida. Daí falar-se em “energia de ponta”, vs. “fora de ponta”; (ii.) ela é produzida por diferentes fontes que possuem diferentes externalidades como, por exemplo, aquelas ambientais, o que enseja que se fale de “energia verde” vs. “energia suja” etc.
13 Aparentemente, algumas noções da física das energias iriam contra a ideia de consumibilidade nos moldes em que tradicionalmente a concebemos. Dizem os físicos que a quantidade total de energia no universo é a mesma desde a sua concepção, e que ela não pode ser criada ou extinta. Pode, porém, ser transformada por variados processos, alguns dos quais o homem aprendeu a controlar. É exatamente essa transformabilidade que está na base de seu aproveitamento, que nada mais faz do que transformar diferentes formas de energias, presentes em determinadas fontes, pelo controle e aplicação nelas de processos físico-químicos. A energia solar (luz) é transformada, pelo processo de fotossíntese, em energia química (glicose), que, por sua vez, é o alimento que faz aumentar a massa das plantas (e esta é a base de todo o ciclo da energia na Terra). A energia do vegetal, por sua vez, pode ser transformada (por vários procedimentos, dentre eles a combustão) em energia térmica ou calor. A energia térmica é conversível em energia mecânica; esta, em energia elétrica. A transformação não possui, porém, uma única direção: energia elétrica converte-se em energia térmica, em energia mecânica; energia mecânica pode transformar-se em energia térmica, e assim por diante. O que torna possível o trabalho – qualquer alteração no mundo – é essa infinita e incessante transformação. A energia especificamente elétrica é obtida por meio da transformação de fontes primárias (movimento da água nas hidrelétricas, do vapor nas térmicas, do vento nas eólicas etc.) de energia, e é, por sua vez, transformada novamente em trabalhos úteis ao homem, como luz (lâmpada), calor (aquecedor ou forno elétrico) ou movimento (motor de um equipamento). Rigorosamente, não se cria do nada a energia elétrica. E não se a destrói.
Como dito linhas antes, essas classificações são reconfortantes. Elas operam com noções básicas e tra- dicionais da dogmática jurídica e ainda permitem reconduzir as operações comerciais envolvendo a energia elétrica a figuras negociais também familiares e típicas como, justamente, a compra-e-venda que é o objeto de nosso estudo.
Ocorre, porém, que essa calmaria na superfície mal e mal esconde uma realidade turbulenta, dinâmica e complexa. A energia elétrica, essa coisa móvel prima facie fungível e consumível, é um objeto muitíssimo peculiar em seu comportamento, assim como é muitíssimo peculiar o funcionamento do único ambiente em que ela pode viver, o sistema elétrico. E essas excentricidades trazem enormes desafios ao direito, que é obrigado a sair de sua zona de conforto e a disciplinar fenômenos com os quais não está acos- tumado e para os quais seus institutos tradicionais não funcionam integral ou perfeitamente (e o “des- conforto” do direito traduz-se em ficções, aplicações analógicas de institutos e normas, e outras artima- nhas por meio das quais as normas traduzem, ou dobram, a realidade que regulam. Assim, para com- preender melhor a dinâmica dos contratos de energia precisamos ir além dessas categorias gerais e tomar contato com os aspectos empíricos da eletricidade e de seu sistema.
II. CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS DA ENERGIA ELÉTRICA E DE SEU AMBIENTE, O SISTEMA ELÉTRICO
Quando surgiu para o direito, nas últimas décadas do século XIX, a indústria da energia suscitou uma série de dúvidas e perplexidades. Nesses primeiros tempos sequer se sabia, exatamente, qual era o fenômeno físico com o qual deveriam lidar as normas – se energia, se corrente, se tensão, se potência etc. E, uma vez que se o isolou dos demais fenômenos elétricos a energia elétrica (adiante) como o objeto de direito a ser considerado nos contratos, e se a decidiu tratar como coisa móvel14, prosseguiram as dificuldades, vez que o comportamento dessa coisa recém isolada não era, de modo algum, seme- lhante àquele com o qual as normas estavam habituadas e que pressupunham. Efetivamente, a energia elétrica não era – e segue não sendo - algo simples para o direito.
II.1. Sistemas elétricos complexos e seus componentes (geradores, redes e cargas)
A energia elétrica não existe fora de uma específica infraestrutura, o sistema elétrico. Diferentemente do que ocorre com o gás natural, por exemplo, não é possível interceptá-la na saída da usina e distribuí- la por caminhões, antes que por dutos, para burlar o fisco. Se a energia elétrica sair de seu mundo especial, que conecta fisicamente os vários geradores com os inumeráveis aparelhos consumidores por
14 Em favor dessa concepção, entre outros, dois grandes juristas italianos do século XX, XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx, Studi sulle energie come oggetto di rapporti giuridici, Rivista di Diritto Commerciale e del Diritto in Generale delle Obbligazioni, v. 11, 1913., e BONFANTE, Pietro, Natura del contratto di somministrazione d’energia elettrica, in: Scritti Giuridici Varii (vol. III), Torino: Unione Tipografica Torinese - UTE, 1926.
meio das redes elétricas, deixará de existir como tal. Será dissipada na atmosfera, transformada em calor ou luz (lampos instantâneos).
Uma ideia muito simplificada de sistema elétrico complexo é dada pela figura abaixo:
Fonte: By MBizon, CC BY 3.0, xxxxx://xxxxxxx.xxxxxxxxx.xxx/x/xxxxx.xxx?xxxxxx0000000
Deixando sutilezas para trás15, um sistema elétrico é formado por (i.) múltiplos geradores (ii.) múltiplas redes elétricas (de alta, média e baixa tensão, normalmente classificadas como de transmissão e de distribuição) e (iii.) múltiplas cargas.
Os geradores, como o nome sugere, produzem a energia elétrica (na verdade, transformam energias de certas fontes, ditas primárias, em energia deste tipo específico). Eles fazem isso por meio de proces- sos eletromagnéticos que induzem uma corrente elétrica nos fios aos quais estão ligados, a qual passa a circular nas redes e, por fim, nos aparelhos consumidores que estiverem conectados ao sistema (e com a “tomada ligada”). E tudo isso de modo instantâneo (adiante). A geração, além de uma função elétrica específica (e por ser tal), constitui-se numa categoria jurídica específica, dotada de identidade e regu- lação próprias.
A rede, por sua vez, é o conjunto estruturas por onde a energia circula. Grosso modo, costuma-se distin- guir, nesse âmbito, entre redes de alta e de baixa tensão, o que está na base de duas funções distintas (de transporte de energia), cada qual com sua especificidade e identidade jurídicas: a transmissão e a
15 Para aprofundamentos, v. minhas Instituições de Direito da Energia Elétrica - Volume I, cit., especialmente Parte II, Capítulos 1 e 2.
distribuição. Simplificando-se ao extremo, as redes de transmissão operam em alta tensão enquanto que as de distribuição em médio-baixa tensão. Se no plano jurídico, transmissão e distribuição são figuras distintas - com regulação, contratos e condições de serviço próprias - podemos abstrair por ora dessa diferença no plano físico16; estamos interessados nessa figura genérica, a rede, e sua função, o trans- porte de energia, dos geradores às cargas.
Completam o circuito - fazem parte, fisicamente, dele - tais cargas. Elas nada mais são do que os consumidores de energia, com seus variados aparelhos, pelos quais corrente elétrica circula levando energia (adiante), para ser transformada em outra forma de energia ou trabalho útil (energia térmica
- calor; energia cinética - movimento etc.). Esses componentes do circuito costumam ser agregados e tratados em conjuntos, como bairros, cidades, regiões etc., a depender da perspectiva de análise que se quer privilegiar.
Quanto ao funcionamento de um sistema elétrico, devem ser notadas ou enfatizadas, logo de início, duas circunstâncias.
A primeira: todos os seus três componentes básicos – geradores, redes e cargas/consumidores – estão fisicamente interligados e são fisicamente interdependentes. O que acontece com um deles como, por exemplo, o acionamento do interruptor de uma unidade consumidora tem repercussão, necessária e instantânea, nos demais: com o acionamento, as usinas são fisicamente afetadas - ainda que isso possa ser imperceptível - e passam imediatamente a produzir mais energia que é instantaneamente levada às redes as quais passam a suportar, em frações de segundo, mais “volume de tráfego” (até o limite de suas capacidades). Atenção: não se trata, apenas, de uma interação econômica, tal como a que ocorre na indústrias “normais”, em que se fala da interdependência da oferta e da demana. Trata-se de uma interação física necessária que dispensa qualquer decisão, econômica ou jurídica, estratégica ou de con- veniência: basta ligar a tomada ou fazer a água passar pela turbinas de uma usina que algo acontece imediatamente em todo o sistema. Uma queda ou mesmo um aumento bruscos e imprevistos de consumo, se não forem imediatamente compensados pelo mesmo comportamento dos geradores, ou controlados pelo operador do sistema (adiante), podem produzir falhas no sistema. O mesmo ocorre no lado dos geradores e redes: a parada inesperada de uma usina ou a queda de uma linha de transmissão afetam imediatamente o conjunto (pode-se também pensar no oposto: a produção adicional e não programada de energia por parte de alguma usina, sem a demanda respectiva da carga, pode instabilizar o todo, queimar aparelhos, sobrecarregar linhas etc.).
Como se percebe, o consumidor, aqui, não é um sujeito passivo que contrata a compra de um produto e que espera tranquilo que a mercadoria lhe chegue em casa pelo correio alguns dias depois. Suas
16 A distinção entre transmissão e distribuição é fundamental para fins regulatórios, mas este não é o plano em que nos encontramos neste momento da exposição. Transmissores e distribuidores são dois agentes setoriais diferentes que prestam serviços de transporte de energia diferentes e têm papeis diferentes na operação do sistema elétrico, que usualmente preocupa-se apenas com as redes de transmissão (a missão do operador é “entregar” a energia aos consumidores ligados diretamente nas redes de transmissão e nas fronteiras dos sistemas de distribuição para que, a partir daí, a rede seja controlada por esses agentes). Para nossos fins, vamos desconsiderar a diferença na maior parte do tempo.
decisões alteram o comportamento da própria infraestrutura e de modo instantâneo; e também o com- portamento da infraestrutura tem consequências diretas no consumidor (aparelhos queimam ou funcio- nam de modo oscilante, conforme recebam “muita” ou “pouca” energia).
Em síntese: tudo deve funcionar em absoluta sincronia e sintonia. Quaisquer interações ocorrem ins- tantaneamente e podem ter um efeito em cascata, se não forem tomadas medidas corretivas e/ou protetivas pelo operador do sistema (adiante). O sistema elétrico é o paradigma da tão em voga noção de dinâmica de rede.
A segunda circunstância a ser desde logo salientada: para fins de dimensionamento e de operação de sistemas elétricos, considera-se que a carga – o comportamento físico do consumidor, de ligar e desligar a tomada, abrindo ou fechando seu circuito, integrando-se ao sistema ou dele se separando - é um fenômeno dado, “não operável17” ou controlável que deve balizar o funcionamento dos demais elemen- tos do sistema (estes sim, submetidos à operação, i.e., à coordenação e controle, cf. adiante).
Em razão dessa primazia da carga, projeções de consumo (segundo o tipo e localização das unidades; seus comportamentos ao longo das horas do dia etc.) devem ser o mais exatamente estimados algum tempo antes da operação em tempo real do sistema elétrico. E, sobretudo, devem balizar, em tempo real, o comportamento dos demais integrantes do sistema (geração e rede). Reitere-se: é a carga – na verdade, o conjunto de todas elas - que provocará o acionamento de usinas, o uso das redes e, afinal, a performance de todo o conjunto. No jargão, diz-se que o princípio básico de operação de um sistema elétrico é “seguir a carga” (load following). E deve ser assim não apenas porque o atendimento do consumidor é desejável sob a perspectiva econômica, mas porque é necessário, sob a perspectiva física: não custa repetir que, caso se produza mais ou menos energia do que está sendo demandada, o sistema pode, simplesmente, “cair” ou podem os equipamentos sofrer danos ou funcionar de modo inadequado; caso se produza menos, oscilações de tensão ocorrerão com prejuízo para os aparelhos consumidores de energia.
Esta diretriz de seguir a carga ocorre sob circunstâncias muito peculiares, em razão do comportamento extraordinário da coisa que a carga demanda e consome, a energia elétrica.
II.2. As características sui generis da energia elétrica que circula pelo sistema
Encarecer os traços singulares eletricidade é passagem obrigatória em estudos de direito, economia, desenhos de mercado, finanças setoriais etc. Se a tradução econômica das categorias jurídicas
17 Essa também é uma afirmação que atualmente pode ser disputável pois já existe gerenciamento da demanda de energia elétrica; mas ela é tomada nessa exposição como princípio de funcionamento e organização de um sistema elétrico.
apresentadas na seção anterior (mobilidade, fungibilidade e consumibilidade) consiste em dizer que a energia elétrica é uma commodity, há de se reconhecer que ela é uma espécie muito própria de com- modity18.
II.2.1. Um brevíssimo excursus na física de segundo grau: distinguindo entre energia, potência, corrente, tensão e frequência
Num circuito ou sistema elétrico produzem-se vários fenômenos físicos distintos e interdependentes - que vão identificados em conjunto pelo termo “eletricidade”. A falta de distinção entre eles dá origem a muitas confusões no trato jurídico da energia. Temos que diferenciar entre energia, potência, corrente, tensão e frequência.
Para nossos propósitos simples, a corrente elétrica que se propaga pela rede é a “portadora” da energia elétrica. Tal corrente circula na estrutura toda, como a água num sistema hidráulico19. Atenção, porém, porque não se confundem corrente e energia elétricas: a primeira pode ser pensada como um fluxo de elétrons20 enquanto que a segunda pode ser tomada como uma propriedade deste fluxo, abs- tratamente definida como a capacidade de realizar trabalho (emprego útil para homem). Definições abstratas à parte, importa saber que energia é medida em watt-hora (Wh, MWh, GWh e até TWh), enquanto que a intensidade da corrente elétrica (representada pela letra I) é medida em àmpere (A). Associadas à energia e à corrente estão ainda outras três grandezas comumente referidas nas normas setoriais, a potência (medida em Xxxx X, XX, XX, XX)00, a tensão (medida em Volts V) e a frequência (medida em Hertz Hz). Essas duas últimas não precisam nos ocupar, mas é absolutamente fundamental distinguir entre energia e potência.
Potência é indica, na física geral, a taxa de conversão ou velocidade com que a energia - esse “algo” que está na corrente - é transformada em outra, num instante qualquer. É a “velocidade” com que o trabalho é realizado. Fala-se de potência (mecânica) de um automóvel como uma das medidas do desempenho do seu motor; de potência (térmica) de uma caldeira para indicar a sua capacidade de aquecer a água etc. A potência não é uma uma medida de quantidade, mas de intensidade referida à energia, e aponta, grosso modo, a sua taxa de produção (na usina) ou consumo (num aparelho consu- midor) numa fração de tempo determinada. Em termos mais rigorosos, a potência é energia pelo tempo. É uma medida de capacidade. Já a energia é uma medida de quantidade. Se a potência é a energia pelo tempo (Pot. = E/t), o montante de energia produzida ou consumida é potência no tempo (E = Pot.t). Tal montante é obtido considerando-se o período em que um gerador ou carga de determinada
18 Sobre as especificidades da energia elétrica e de seu sistema, e sobre os reflexos dessas especificidades na organização da respectiva atividade empresarial, v. XXXX, Making competition work in electricity., p. 29-36, 123-126; XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxx.; XXXXXX, Xxxxx, Fundamentals of power System economics, New Jersey: John Wiley & Sons, 2004., p. 02 e segs.
19 A descrição não é fisicamente exata, mas é intuitiva. Seguimos, aqui, a sugestão pioneira de PFLEGHART, Die Elektrizität als Rechtsobjekt, cit.
20 Estamos pensando na corrente contínua e não na alternada que não é fluxo mas oscilação de elétrons.
21 É absolutamente crucial não confundir energia (Wh) com potência (W). Para mais detalhes, v. as minhas Instituições, cit., p. 78 e segs.
potência ficou funcionando. Por outras palavras, à potência associa-se a ideia de “jato” (valor instan- tâneo), ao passo que à energia, a ideia de “estoque” (acúmulo de potência ao longo do tempo). Para apreciar a diferença de modo mais concreto, podemos comparar dois aparelhos elétricos, um chuveiro e um pequeno ventilador. O primeiro com, digamos, 7.500 W de potência, o segundo com meros 65
W. Esse é um dado “de fábrica” e estático que significa que o chuveiro, em um instante qualquer, converte a energia elétrica, que está na corrente, em calor (na resistência), com uma intensidade muitas vezes superior à do ventilador. Qual dos dois aparelhos consomiu mais energia num determinado dia? A resposta não pode ser dada a priori, simplesmente baseada na potência de cada qual. Precisamos saber por quanto tempo cada aparelho ficou ligado ao sistema elétrico naquele dia. Se ambos passaram 24 em funcionamento, certamente o chuveiro terá consumido muito mais energia. Se, porém, tiver sido ligado por 1 apenas um minuto, enquanto que o ventilador passou todo o dia operando, este último terá sido o maior responsável pelo consumo da unidade em que estão.
Explicações físicas à parte, podemos nos fixar na energia (Wh). É ela que normalmente se compra, vende, troca, consome, produz22 etc.; é a nossa coisa móvel, fungível e consumível que é o objeto das prestações contratuais. Pode-se conceber, de modo um tanto canhestro, mas intuitivo, que “1 energia” é representada por “1Wh23”.
II.2.2. O comportamento da energia elétrica
Para apresentar alguns traços notáveis de nosso objeto de direito (o Wh), faremos apelo a algumas metá- foras e simplificações inspiradas nas four technical truths acerca da eletricidade de que fala Xxxxx Xxxx00.
• Primeiro: a energia elétrica não se estoca25 e viaja à velocidade da luz.
Isso significa que, para que a carga seja atendida de modo adequado, a energia deve ser produzida na exata medida e no exato momento em que demandada pelo consumidor (isto é,
22 “O que sob o nome de ‘eletricidade’ se entende em direito e o que é unicamente tomado em consideração como objeto das transações e do comércio é a energia cinética elétrica.” PFLEGHART, A, Die Elektrizität als Rechtsobjekt, Strassburg: Heitz, 1901., cit., p. 90. Na doutrina italiana, esse entendi- mento também logo se fez dominante, depois de se falar em aluguel de corrente elétrica, cessão de “fluído eletromagnético” etc.
Em alguns ordenamentos, há também contratos de potência, mas não vamos tratar deles aqui.
23 Não nos deve causar espanto a referência à hora acoplada ao Watt. 1 Wh simplesmente corresponde ao tanto de energia produzida por 1 W de potência durante 1 hora, ou seja, 3.600.000 Joules (unidade universal da energia). Mal comparando, é como se decidíssemos que, para tornar mais manejáveis as transações comerciais, passaríamos a tomar como unidades de mercadorias não os grãos de soja singulares, mas a quantidade deles que uma colheitadeira com certas especificações consegue arrancar do solo em 1 hora de trabalho e colocar em sacas. No lugar de “soja”, com- praríamos e venderíamos “sacas das soja” mas o que teríamos, no final das contas, seria o mesmo produto. Tendo isso presente, entende-se perfei- tamente – e não há nada de redundante – a presença, nos contratos de energia, de disposições que estipulam a obrigação de entregar “20MWh ao longo de um mês”, ou seja, “20MWh/mês”. Nossa prosaica fatura de energia elétrica é assim estruturada.
24 HUNT, Making competition work in electricity. cit., p. 30 e segs.
25 Essa afirmação, assim categórica, pode ser nuanceada, sobretudo em face das recentes inovações tecnológicas, e isso tanto no plano do sistema quanto no plano mais reduzido, de cargas e geradores isoladamente considerados. Para ambos, veja-se VON XXXXX, Xxxxxxxxx, Electric Power Systems: A Conceptual Introduction, Hoboken, New Jersey: John Wiley & Sons, 2006.p, 268 e segs. Especialmente no que a autora qualifica como “sub-utility level”, há de se ter presente o movimento tecnológico que está em curso no campo das baterias elétricas para diversos usos (carros, geração distribuída etc.). Em todo caso, a assertiva vale como uma generalização útil, em particular no plano macro do sistema elétrico.
quando a carga integra-se ao sistema e faz a corrente circular por seus equipamentos elétricos; de modo mais prosaico: quando “se liga a tomada”). Ela não é produzida “antes” ou “depois26” do consumo, nem “a mais” nem “a menos27”.
Do ponto de vista estritamente físico, não existe, portanto, sobra ou falta de energia. Essa constatação é muito importante pois, no plano comercial ou contratual – abstraindo-se do que acontece na operação do sistema – fala-se, sim, em “sobras” e “faltas”, como veremos. Já vai o leitor alertado que essa linguagem não retrata uma realidade física, mas comercial, contra- tual. Voltaremos ao tema no final deste estudo, quando tivermos que tratar do mercado de curto prazo de energia elétrica.
• Segundo: “elétron não tem cor e circula por onde quer.”
Essa forma estranha e inacurada de falar traduz a circunstância de que, uma vez produzida pelos geradores, a energia elétrica, via corrente, é (instantaneamente) injetada no sistema, sem que seja possível identificar sua proveniência e sem que seja possível guiá-la pelos percursos elétricos disponíveis (as redes) em base a considerações de ordem negocial (por exemplo, de um determinado gerador/vendedor para um consumidor/comprador). O percurso da energia é ditado por leis físicas, dentre elas a lei de menor resistência: assim como a água, ela circula onde encontrar menor atrito28. O operador do sistema (adiante) pode jogar com essa circuns- tância e “manobrar” o sistema por razões de segurança operacional (abertura/fechamento de circuitos ou acionamento/fechamento de usinas), mas, em qualquer caso, não o maneja por con- venções contratuais. É simplesmente um sem-sentido tentar identificar de onde veio a energia que uma determinada unidade consumidora está usando ou, pior, procurar direcionar fisica- mente a energia da “Usina A” ao “Consumidor A” porque celebraram eles uma compra-e- venda. O gerador produz energia “para o sistema” e o comprador recebe energia “do sis- tema”, em base às condições físicas existentes.
26 “A cada segundo, a produção tem que ser exatamente dimensionada para o consumo. Se isso não ocorrer, a frequência cai, relógios andam mais devagar, equipamentos sofisticados podem falhar e, se a situação é séria o suficiente, muitas cargas podem falhar e levar a uma cadeia de eventos que termina num blecaute. É muito importante que o sistema não fique instável dessa forma, de modo que o operador tem que poder convocar alguns geradores para aumentar ou reduzir a produção de energia conforme as mudanças da carga, em questão de segundos. (...). A consequência é que se fazem necessários planejamento antecipado e controle segundo a segundo pelo operador do sistema, para coordenar tudo isso.” HUNT, Making competition work in electricity, cit., p. 32.
27 “Toda a energia elétrica deve ser gerada quando necessária. A implicação disto é que quando a demanda varia ao longo de um dia, a produção tem que variar exatamente no mesmo momento.” Ibid., p. 30. Do ponto de vista econômico, isso significa que, sem possibilidade de manejar estoques, o custo de produção da energia elétrica varia imensamente ao longo do dia, de acordo com as diferentes usinas que devem ser colocadas em operação. Isso explica alguns elementos importantes do chamado Custo Marginal de Operação e do Preço de Liquidação de Diferenças – PLD – figuras que encontraremos mais à frente.
28 Essa “facilidade” de circulação é dada por uma série de fatores – como proximidade entre fonte e carga, capacidade de transporte da rede etc. - e está relacionada às chamadas perdas técnicas, tema importante que, porém, não nos ocupará aqui. Por força dessa lei da física (circulação da energia pelo caminho de menor resistência), pode-se dizer que, em termos físicos, as cargas tendem a ser atendidas pelos geradores mais próximos porque a energia por eles produzida enfrenta menos resistência para percorrer distâncias menores. Essa circunstância, porém, não tem (quase) significado comercial ou jurídico algum.
• Terceiro: “a energia e suas circunstâncias são construídas ao longo do caminho”.
As propriedades físicas que envolvem a energia elétrica ou que estão com ela relacionadas (tensão, frequência, potência etc.) não são estabelecidas de uma vez por todas e de modo autônomo pelos geradores (os produtores). Essas propriedades são fruto do funcionamento e estado de todos os elementos do sistema e, em particular, das condições das redes. Uma “boa” energia é o resultado da interação de todos os componentes do sistema. A suficiência de abas- tecimento, a segurança de funcionamento e a adequada performance de um sistema elétrico são, no sentido mais pleno, um esforço coletivo e concertado orientado pelo já mencionado objetivo de atendimento da carga (load following). Esse esforço concentrado exige uma figura especial que agora encontraremos.
II.3. A necessidade de coordenação e controle: o “operador do sistema”
A conjugação dessas circunstâncias todas não simplesmente sugere a conveniência, mas exige a pre- sença de uma instância centralizada de coordenação e controle de todos ou ao menos dos principais recursos de geração e rede (a carga, como dissemos, é estimada antecipadamente, assumida como dada e, em condições normais, atendida sempre que demandar energia). Não se pode deixar a ope- ração do sistema elétrico, complexo e frágil como é, às decisões individuais de cada gerador, despro- vido da visão do todo e sequer interessado nela. Lembre-se sempre: nesse ambiente em que tudo se mistura e tudo se integra, se energia demais for produzida, aparelhos queimarão, redes serão conges- tionadas e “cairão”; se for de menos, oscilações de tensão e frequência danificarão os componentes do sistema, consumidores incluídos.
Essa instância de coordenação e controle pode assumir diferentes formas e ter variadas competências, a depender das escolhas dos responsáveis pelo “desenho setorial”, devidamente positivadas em normas jurídicas. Mas, qualquer que seja o desenho escolhido, o operador do sistema deve:
(i.) Ter visão do todo, isto é possuir informações acerca:
a. da carga – previsões e estudos acuradas relativos ao seu tipo e necessidades de potên- cia, tensão etc., à sua localização, seus horários de consumo, montantes etc.;
b. das usinas - disponibilidade e característica dos recursos de geração segundo a natureza das instalações geradoras e suas fontes, localização, capacidade etc;
c. das redes - a disponibilidade e característica das redes de alta tensão (localização, capacidade, tensão de operação, falhas, limitações, manutenções programadas etc.).
(ii.) Ter condições de organizar previamente esses fatores de produção e transporte em função da carga prevista, em algum momento antes da operação em tempo real29.
(iii.) Ter condições de, em base a (i.) e (ii.) e conforme o que estiver acontecendo no momento da ação da produção e consumo, expedir ordens imediatas aos geradores e transmissores e, se for o caso, agir diretamente para operar o sistema em tempo real. Por mais que se sejam bem realizadas as atividades (i.) e (ii.) e que se planeje e programe precisamente a operação, desvios ou mesmo grandes imprevistos nas usinas, redes e cargas acontecem e precisam ser monitorados e devi- damente tratados no exato instante tiverem lugar.
Essa instância centralizada, no Brasil, é o Operador Nacional do Sistema – ONS, associação civil sem fins lucrativos, prevista pela Lei 9.648/1998. É ele o responsável por dar conta do funcionamento do nosso principal sistema elétrico, o Sistema Interligado Nacional – SIN. Dada a importância de sua prin- cipal atividade – a operação do SIN - para os contratos de energia, vamos ver as diretrizes que guiam o ONS, positivadas no direito brasileiro.
III. O “MUNDO FÍSICO” DA OPERAÇÃO DO SISTEMA ELÉTRICO E SEU DESCOLAMENTO DOS CONTRATOS
Como já mencionado na Introdução, esta Seção III e a Seção V apresentam duas faces diferentes da indústria elétrica: veremos agora a face operacional, situada no âmbito do nosso principal sistema elétrico o Sistema Interligado Nacional – SIN. Na Seção V, tomaremos contato com a face comercial, situada no plano do(s) mercado(s) elétrico(s). A primeira face tem acentuada racionalidade física, técnica e de engenharia, com características de cooperação, centralização e orientação sistêmica. A segunda, possui caráter comercial e é marcada pela competitividade, fragmentação e maximização de benefí- cios individuais. É certo que, fazendo parte do mais amplo fenômeno da indústria da eletricidade, essas duas perspectivas devem, de algum modo e em alguma medida, se tocar. Tal contato, porém, será mostrado depois. Nas Seções III e V, a apresentação dos mundos físico e comercial seguirá trilhas apar- tadas, a bem da clareza expositiva. O sentimento de “falta de encaixe” que o leitor atento experimen- tará será contemplado e remediado apenas na Seção VI.
29 Esse momento anterior e o critério de seleção dos geradores podem variar imensamente: em alguns ordenamentos o operador fica sabendo qual será a ordem de geração, que recebe pronta, minutos antes da operação em tempo real e deve adequar-se a ela, a menos que situações emer- genciais e de segurança lhe façam afastar-se dela; em outros, como no caso brasileiro que logo veremos, é ele quem decide, com bastante antece- dência quais unidades geradoras produzirão energia, sempre podendo afastar-se dessa ordem por razões de segurança de operação surgidas em tempo real).
III.1. O cenário de operações do ONS: o Sistema Interligado Nacional – SIN e seus ele- mentos
Venezueia
Boa Vista
SurinameFrancesa
Guiana
Guiana
horizonte 2024
2
Macapá
2
2
2
2
2 2
Xxxxx X.Xxxx
2
2
3
2 2
2
5
Manaus
2 2
Tucuruí 4
3 3
2
2
2
2
2
2
2
2 Fortaieza
3
3
2
Teresina
3
2 Natai
2
2 2 João
Rio Branco
2
Porto Veiho
2
2 2
3 Pessoa
2
2
2
3
3 2 3
4 2 Recife
2
3
2
2
2
2
2
2
2
2
2
3
2 3
3
2 2 Maceió
4
2
Paimas
2
Aracaju
2
2
2 2
2 2 2
2
Cuiabá 3 2
2
2
3 Saivador
2
3
2
4
2
Goiânia
2
2
2 3
Brasíiia
2
2 2 2
2
3
2
2
2
6 2
2
2
2
2
C.Grande
2
Vitória
2
2
8
2
Chiie
7
4
2
3
2
3
R.Janeiro
itaipu
4
3
2
2
3
3
2
São Pauio
2
2
Curitiba
2000 MW
Garabi
Legenda
Existente Futuro
2
Fiorianópoiis
2
2
Uruguaiana 2
50 MW
2
2
5
2 P.Aiegre
138 kV
230 kV
345 kV
440 kV
500 kV
750 kV
+- 600 kV cc
+- 800 kV cc
N Número de circuitos existentes
Coiômbia
Peru
O sistema elétrico brasileiro possui dimensões continentais. Deixando de lado alguns sistemas isolados localizados sobretudo na Região Norte30, o Sistema Interligado Nacional – SIN possui capacidade ins- talada de 164.620 MW, distribuída entre aproximadamente 632 usinas de diferentes fontes, dimen- sões e configurações, espalhadas ao longo do território nacional. Sua principal malha de transporte (a Rede Básica, adiante), tem 141.756 km, com tensões que variam entre 230 e 800 kV, os quais conectam mais de 60 empresas de distribuição espalhadas pelo território nacional31.
Boiivia
Rivera
Argentina
70 MW
Meio
500 MW
Uruguai
Paraguai
B.horizonte
SIN - fonte: xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx-x-xxx/xxxxx
O SIN é o nosso (principal) sistema elétrico complexo (supra). Aqui se encontram nossas grandes usinas, as malhas de transmissão, as redes de distribuição e, finalmente, as cargas (unidades consumidoras).
30 A disciplina jurídica desses sistemas é regida pela Lei 12.111/2009.
31 Dados de julho de 2020, disponíveis em xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx-x-xxx/x-xxxxxxx-xx-xxxxxxx.
III.2. O Operador Nacional do Sistema – ONS e suas funções
Nos termos do art. 13 da Lei 9.648/199832, “[a]s atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica integrantes do Sistema Interligado Nacional (SIN) (...) serão executadas, mediante autorização do poder concedente, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, fiscalizada e regulada pela Aneel e integrada por titulares de concessão, permissão ou autorização e consumidores que tenham exercido a opção prevista nos arts. 15 e 16 da Lei n. 9.074, de 7 de julho de 1995, e que sejam conectados à rede básica.” Dentre as inúmeras competências e incumbências do ONS estabelecidas pelo parágrafo único do art. 13, duas assumem especial relevo em nosso estudo:
1. Organização prévia dos (principais) recursos de geração e transmissão ou preparação da operação, em base às previsões de carga e às disponibilidades e custos de produção das usinas e situação das redes.
Essa tarefa de preparação da operação, que ocorre de modo permanente e contínuo, é rea- lizada por meio de sofisticados e complexos processos computacionais de coleta de informa- ções, projeções, simulações, verificações de condições hidrológicas e dos elementos do sistema, comunicações entre os agentes etc., consubstanciados em inúmeros planos e programas anteri- ores à operação.
2. Operação do sistema elétrico em tempo real, ou seja, monitoramento, segundo a segundo, do comportamento da carga, das usinas e das redes, para fazer coincidir, a todo o instante, geração-carga por meio das redes33 (e, preferencialmente, em atendimento aos planos e pro- gramas prévios).
32 “Art. 13. As atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica integrantes do Sistema Interligado Nacional (SIN) e as atividades de previsão de carga e planejamento da operação do Sistema Isolado (Sisol) serão executadas, mediante autorização do poder concedente, pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, fiscalizada e regulada pela Aneel e integrada por titulares de concessão, permissão ou autorização e consumidores que tenham exercido a opção prevista nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995, e que sejam conectados à rede básica. Parágrafo único. Sem prejuízo de outras funções que lhe forem atribuídas pelo Poder Concedente, constituirão atribuições do ONS: a) o planejamento e a programação da operação e o despacho centralizado da geração, com vistas a otimização dos sistemas eletroenergéticos interligados; b) a supervisão e coordenação dos centros de operação de sistemas elétricos; c) a supervisão e controle da operação dos sistemas eletroenergéticos nacionais interligados e das interligações internacionais;
d) a contratação e administração de serviços de transmissão de energia elétrica e respectivas condições de acesso, bem como dos serviços ancilares;
e) propor ao Poder Concedente as ampliações das instalações da rede básica, bem como os reforços dos sistemas existentes, a serem considerados no planejamento da expansão dos sistemas de transmissão; f) propor regras para a operação das instalações de transmissão da rede básica do SIN, a serem aprovadas pela ANEEL. g) a partir de 1º de maio de 2017, a previsão de carga e o planejamento da operação do Sisol.”
33 Como é óbvio, consome-se energia 24hs, 7 dias da semana, todas as semanas do mês e todos os meses do ano. Assim, essas duas ações acontecem a todo o instante. Não existe um “momento de programação” e, depois que ele cessa, um “momento de operação”. Programação e operação ocorrem o tempo todo e se retroalimentam todo o tempo. Apenas por abstração e para fins de análise é que são concebidas isolada e autonoma- mente essas duas fases ou atividades ligadas à operação.
Cada uma dessas duas tarefas é presidida por diferentes diretrizes, abrigadas sob a expressão “oti- mização eletroenergética” do parágrafo único do art. 13 da Lei 9.648/1998 e realizadas por normas muito técnicas e complexas, consubstanciadas nos Procedimentos de Rede34.
III.3. Primeira tarefa: planejamento e preparação da operação pelo ONS
Com relação à preparação da operação (planejamento e programação), tem-se o seguinte, de modo resumido: o ONS seleciona os recursos de geração - que irão atuar em algum momento à frente - em base ao binômio segurança energética (presente e futura) & economicidade sistêmica (presente e futura). O desafio do Operador, nessa etapa preparatória, é equilibrar esses dois ideais em tensão (garantia de abastecimento e menor custo) os quais, para complicar, se manifestam em um cenário probabilístico “a dois tempos” (presente e futuro35).
De posse das informações sobre a carga prevista num horizonte temporal determinado – referenciado a um momento específico, considerado como o da operação em tempo real - e conhecendo as condições prováveis do sistema elétrico para esse mesmo horizonte, o operador deve selecionar os geradores de um modo tal que (i.) garantam a suficiência de produção (segurança energética) para atendimento à carga prevista, tanto no momento tomado como o da operação em tempo real, como no horizonte temporal que a ele se segue36 (ii.) e isso deve ser obtido ao menor custo total possível, é dizer, ao menor custo tanto para o momento tomado como referência da operação quanto para o período seguinte (o hori- zonte futuro considerado).
Para equilibrar essas exigências, o ONS deve conhecer as capacidades, as disponibilidades físicas e os custos de produção (notar bem: custos e não preços contratuais) das usinas do SIN – térmicas e hidráulicas, para ficar nas fontes mais importantes. E também conhece (ou estima) a situação de dispo- nibilidade dos respectivos “combustíveis” no tempo, notadamente, a situação presente e futura37 dos inúmeros reservatórios das hidrelétricas espalhadas pelo território nacional (as usinas hidrelétricas são nossa principal fonte).
Esses dados lhe permitem identificar, em cada momento, qual é o melhor “mix” de usinas (em nosso modelo: mix de usinas térmicas e hídricas, ao lado de outras fontes) que proporciona o equilíbrio entre segurança energética e eficiência econômica, no presente e no futuro. Trata-se de uma verdadeira
34 Os Procedimentos de Rede são as regras propostas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico - ONS para as atividades de coordenação e controle da operação da geração e da transmissão de energia elétrica integrantes do Sistema Interligado Nacional - SIN. Para uma visão geral, v. xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxx-x-xxx/xxxxxxxxxxxxx-xx-xxxx/x-xxx-xxx
35 O “presente”, nessas formulações, é algum momento da operação em tempo real (a ocorrer), e tomado como referência.
36 Estipulado nos planos e programas de operação.
37 Essa disponibilidade do combustível no tempo implica em realizar projeções sobre o comportamento do clima, regime de chuvas ao longo de um período etc.
“ponderação” ou, como se diz no setor, trata-se de explorar o “dilema do operador38”. O resultado da ponderação ou a solução do dilema fornecem a “otimização eletroenergética” referida pela Lei 9.648/1998.
III.4. Os principais “produtos” do planejamento e programação do ONS
Os principais produtos dessa tarefa de preparação da operação são dois – muito importantes para que se compreenda a dinâmica de comercialização de energia e em especial, a dinâmica do chamado mercado de curto prazo de energia, cf. adiante:
• Primeiro resultado: o rol das usinas que foram arregimentadas para produzir energia (montan- tes), num determinado horizonte futuro (período de operação), segundo as premissas da otimi- zação. As usinas arroladas nesse rol são as que “resolvem o dilema” e são selecionadas a partir de seus diferentes custos de operação. Na linguagem setorial, esse elenco configura a Ordem de Mérito ou Ordem de Despacho ou seja, a relação das usinas que produzirão energia, desde as menos onerosas até aquela mais custosa arrolada para atender à previsão da última carga estimada, sob as premissas da otimização.
• Segundo resultado: o “custo ótimo” do sistema, definido pela Ordem de Mérito. Trata-se do
Custo Marginal de Operação – CMO.
Conceitualmente, o CMO é o custo de geração da última usina arrolada na Ordem de Mérito para atender à carga prevista (e para atender um hipotético “MWh adicional”), sempre sob a a premissa e diretriz de otimização energética. O CMO não é um preço comercial e muito menos um valor oriundo dos contratos de energia; é o custo ótimo do sistema, tal como programado pelo ONS (por certo que ele terá reflexos muito importantes no plano comercial, na medida em que é o principal parâmetro econômico para a formação do Preço de Liquidação de Diferenças
– PLD, mas isso não nos deve ocupar agora).
Em verdade, não existe um, mas vários CMO’s para cada momento da operação. Valendo-se de potentes recursos computacionais, o ONS calcula, com periodicidade diária (desde 01/01/2020), o custo (ótimo) da energia (isto é, observada a ordem de mérito), para cada
38 Esse dilema pode ser assim formulado, de modo muito simplificado e até simplista: se o operador, otimista, escolher usar toda a água hoje, certamente proporcionará, hoje, energia suficiente, a um custo sistêmico eficiente. Mas e o futuro? Duas são as possibilidades: a.) se a hidrologia futura for favorável, os reservatórios voltarão a se encher, e, neste caso, a decisão de uso da água no presente terá sido acertada, pois ela se encontrará novamente disponível no futuro; b.) se, por outro lado, ocorrer uma seca e os reservatórios das hidrelétricas não voltarem a encher, a energia ou será escassa ou terá um custo muito alto – devido à necessidade de acionar em grande escala usinas térmicas (com custos de operação mais altos). Moral da história: ao decidir usar a água hoje para garantir suficiência e economicidade, o operador, dado o caráter probabilístico (no jargão: “estocás- tico”) da gestão da água, coloca em risco esses mesmos objetivos no futuro. Quanto mais uso da água hoje, mais barata é hoje a energia, mas mais incerta no futuro (e potencialmente, mais cara). Se, ao revés, o operador, por cautela, preferir preservar os reservatórios hoje, entregará ao consu- midor do tempo presente uma energia certamente mais cara. E o futuro? Se a hidrologia for favorável, os reservatórios, já cheios, transbordarão (no jargão: haverá vertimento) e se terá perdido, no passado, energia a um custo ótimo. Se, por outro lado, a hidrologia for desfavorável, terá o operador acertado em sua decisão de ter ampliado, no passado, o uso das usinas térmicas, mais caras.
intervalo de 30 minutos, em cada subsistema do SIN. Assim, tomando-se um mês de 31 dias, teremos cerca de 1460 CMO’s para cada um dos 4 subsistemas do SIN (!). É certo que esses CMO’s não precisam ser todos diferentes (e não são) mas, conceitualmente, esse é o número de valores (custos da energia) obtidos, a partir da ordem de mérito. Lembre-se: a energia não se estoca e deve ser produzida no momento em que demandada. Isso faz com que seus custos de produção sejam bastante voláteis: a cada período, diferentes usinas, com dimensões, combustí- veis e custos diferentes são chamadas a produzir energia. Daí a necessidade de saber o quanto custa ter o insumo em curtos intervalos de tempo.
Em síntese: ao preparar os recursos do sistema para atender à carga prevista, o ONS equilibra os ideais da segurança energética com economicidade total, em duas dimensões temporais (o momento con- siderado da operação e certo período futuro adiante dela). E, ao fazer isso, ele fornece a Ordem de Mérito e o respectivo Custo Marginal de Operação para o momento tomado como o da operação em tempo real. Chegado este momento, as tarefas e preocupações do operador passam a ser outras.
III.5. Segunda tarefa do ONS: operação em tempo real
Se tudo correr como previsto, o ONS operará o sistema em base à programação por ele feita. Isso, porém, pode não acontecer pelas mais variadas circunstâncias: a carga pode ter um comportamento diferente do antecipado; usinas arroladas na Ordem de Mérito podem deixar de funcionar ou redes podem apresentar problemas. E é tarefa do ONS remediar esses eventos em frações de segundo, convocando novos produtores – não programados, mas certamente reservados de antemão – realizando manobras nas redes e, se necessário, em último recurso, cortando cargas e isolando regiões elétricas. Nesse momento é que as características esquisitas da energia que antes vimos adquirem caráter crítico. O ONS tem que garantir que o load following aconteça, segundo a segundo, sob pena das consequên- cias físicas indesejáveis que já vimos.
Diante desse cenário, a preocupação do operador já não é mais com a economicidade e suficiência energética no tempo. Atender à carga em tempo real é o que garante a estabilidade e o adequado funcionamento físico do sistema: no jargão fala-se em segurança elétrica (por contraste à segurança energética ou suficiência de abastecimento que caracteriza a fase anterior), para indicar o objetivo pri- mordial dessa etapa da operação. Se necessário, o operador, por razões de segurança elétrica, des- considerará, em maior ou menor medida, seus programas e tratará de evitar o caos39.
39 Esses desvios da programação, em princípio não afetam o CMO que terá restado fixado para fins comerciais no momento da programação da operação (eventuais afastamentos da Ordem de Mérito que importem em substituir usinas programadas por outras que na Ordem não se encontra- vam, terão reflexos econômicos qualificados como Encargos de Serviços do Sistema – ESS e não nos interessam aqui. Sobre isso, v. XX XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Encargo por segurança energética, in: XX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx (Org.), Temas relevantes no direito de energia elétrica (vol. VII), Rio de Janeiro: Synergia, 2018; XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxxxxx X. Belchior, Inconstitucionalidade da Resolução 3/2013 do CNPE e seus efeitos jurídico-regulatórios, in: XX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx (Org.), Temas relevantes no direito de energia elétrica (vol. II), Rio de Janeiro: Xxxxxxxx, 0000.
De modo bastante resumido, isso é o que ocorre na dimensão da operação do sistema, no chamado “mundo físico” ou “mundo da operação”. Vamos agora explicitar algumas circunstâncias que decorrem desse arranjo, de notável importância para a compreensão dos contratos de energia.
III.6. A operação do sistema e os contratos de energia
Na descrição acima falamos de custos, de elenco de usinas produzindo energia elétrica, de decisões de geração, de consumo de energia etc. mas não mencionamos, em momento algum, preços e volumes contratados, compromissos de entrega e de pagamentos entre vendedores e compradores.
Com efeito – e esse ponto é absolumente fundamental – em suas decisões de operação do sistema elétrico o ONS não se pauta minimamente pelos compromissos contratuais existentes entre geradores e carga. Ele sequer sabe quanto uma usina vendeu e o quanto um consumidor comprou. E não está mini- mamente preocupado com isso. Sua diretriz jurídica é “de engenharia” e não “contratual”: garantir o funcionamento ótimo do sistema – sua perfomance segura, eficiente e a custos (custos!) ótimos. Para ele, geradores e consumidores são equipamentos, componentes físicos de um sistema elétrico cujos compor- tamentos físicos devem ser harmonizados, instante a instante, segundo as diretrizes antes apresentadas.
Em segundo lugar, veja-se que não só o ONS não possui informações sobre os negócios jurídicos, como os produtores/vendedores sequer controlam sua própria produção. Gerar ou não gerar energia elétrica (ou gerar muito, ou gerar pouco) é uma decisão tomada por um terceiro (ONS) que se orienta por critérios supra-partes de otimização do sistema. Uma usina qualquer pode ter gerado muito (por razões sistêmicas) e vendido pouco (por estratégia comercial ou retração de mercado); ou o inverso. Nada disso importa para determinar a operação. Mesmo o consumidor, que em tese pode ter seu comporta- mento ditado por contratos (por decisão sua, de consumir ou deixar de consumir em base às suas com- pras de energia), é tomado pelo ONS independentemente de seus compromissos negociais. Para o operador, se alguém ligou a tomada, deve ser atendido - quaisquer que sejam os montantes de energia comprados - para manter o sistema funcionando.
Em terceiro lugar, lembre-se que a energia produzida e injetada instantaneamente no sistema passa a formar parte de um todo indistinto que se comporta em base a leis físicas (menor resistência) e não percursos ditados por vendas e compras.
Em síntese, existe um descolamento entre o mundo físico e o mundo dos contratos (ou “mundo comercial”). Ele é profundo, mas não total (cf. adiante).
A pergunta, a este ponto, é óbvia: como é possível conceber contratos de compra-e-venda nesse mundo? E ainda por cima contratos realizados em regime (parcial) de competição, em que vendedores (gera- dores, para nossos fins) lutam entre si para oferecer quantidades de energia aos melhores preços e consumidores com eles barganham acerca dos termos dos contratos. Como isso é possível?
À reconfortante paisagem oferecida pela consideração da energia como coisa móvel que pode ser comprada e vendida devem ser acrescentadas outras ficções e adaptações – que tornam a disciplina dos contratos de energia, em certos pontos, contra-intuitiva. Vejamos o primeiro requisito para que se possa falar de contratos nesse contexto.
IV. SEPARAÇÃO JURÍDICA ENTRE A COISA E O SEU TRANSPORTE (“ENERGIA” E “FIO”)
Fisicamente, já se sabe: a energia elétrica não vive fora das redes. Em termos estritamente naturais, o que existe é uma sucessão (instantânea) de fenômenos: os geradores suscitam corrente nas redes e essa corrente – que “carrega” a energia – se propaga imediatamente por todo o sistema, passando pelas instalações das unidades consumidoras que estiverem integradas no sistema. Esse estado de coisas, ali- ado ao fato de que as empresas de energia no passado eram integradas - isto é, realizavam conjun- tamente as atividades de geração, transmissão/distribuição - levavam a um trato contratual genérico dos “serviços de energia” no âmbito do consumo40. O usuário pagava uma tarifa e ali estavam cobertos os custos de todas as instalações e atividades necessárias para garantir o seu fornecimento de energia. No final do século passado, essa concepção de “totalidade econômica” - que se espelhava ou refletia a inescapável “totalidade física” - deixou de ser dominante.
IV.1. As bases conceituais da separação de energia e fio
A revolução regulatória que começou nos anos 80 do século passado e que reorganizou profundamente a indústria elétrica teve como pressuposto, exatamente, dissociar econômica, societária e contratual- mente, as fases de geração e de rede. A ideia guia dessas reformas era introduzir onde possível a competição nos serviços de eletricidade e para tanto fazia-se necessário conceber a energia elétrica (o Wh) como uma commodity, transacionável como qualquer outra mercadoria, submetida a um regime jurídico comum, distinto daquele que incidiria sobre a rede, tida por monopólio natural e por isso carente de uma disciplina mais estrita:
The big idea which underlies the new world of competition and choice in electricity is that it is possible and desirable to separate the transportation from the thing transported. That is, electric energy as a product can be separated commercially from transmission as a service. (...). This seemingly simple question is central to understanding what is going on in the electric industry today. For a hundred years, it
40 Havia, sim, contratos de compra-e-venda de energia separados de contratos de transporte, mas eles só existiam no âmbito interno da indústria, isto é, entre geradores e distribuidores. São os contratos de suprimento de energia, ainda existentes.
has been assumed that electricity and the delivery of it were inevitably interwined. (…) But if it is possible to define and separate the transport service, so that it can be provided separately from the electricity itself, electricity becomes a product that can be bought and sold and transported from place to place, much as any other product. (grifou-se).41
O direito brasileiro acolheu esse princípio estruturante da organização regulatória do setor elétrico.
IV.2. A separação das atividades no direito brasileiro
Essa dissociação42 foi introduzida como um dos pilares do Novo Modelo do Setor Elétrico, implantado entre nós a partir de 1995, pelo art. 9º da Lei 9.648. Este dispositivo, assumindo o caráter de monopólio da rede de transporte, determinou uma regulação mais intensa da ANEEL para essa atividade (serviço de transporte):
Art. 9º Para todos os efeitos legais, a compra e venda de energia elétrica entre concessionários ou autorizados, deve ser contratada separadamente do acesso e uso dos sistemas de transmissão e distribuição.
Parágrafo único. Cabe à ANEEL regular as tarifas e estabelecer as condições gerais de contratação do acesso e uso dos sistemas de transmissão e de distribuição de energia elétrica por concessionário, permissionário e autorizado, bem como pelos consumidores de que tratam os arts. 15 e 16 da Lei n. 9.074, de 1995.
Em complemento, o artigo seguinte estabeleceu o princípio que regeria os negócios jurídicos que enol- vessem apenas o Wh (energia elétrica):
Art. 10. Passa a ser de livre negociação a compra e venda de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizados, observados os seguintes prazos e de- mais condições de transição: (...).
41 XXXX, Xxxxx; XXXXXXXXXXXX, Xxxxxx, Competition and choice in electricity, New York: John Wiley & Sons, 1999, p. 01.
42 “Sob o ponto de vista comercial, a energia elétrica, entendida como coisa móvel, produzida nas usinas e consumida pelos usuarios, é o bem principal, enquanto que a transmissao e a distribuição são serviços acessorios. Esta e a ideia que orientava modelagem concebida entre 1995 e 1998 para o setor elétrico, segundo a qual a energia eletrica e vista como uma ‘commodity’, oferecida num mercado competitivo, enquanto a transmissao e a distribuição são serviços públicos com características de monopólio natural. Entretanto, isto deve ser visto com cautela, pois, em essência, a energia eletrica não pode ser separada, ou melhor, não existiria sem estes meios fisicos que lhe dão sustentação e que constituem um sistema integrado. Para que haja energia elétrica, deve haver circuitos e corrente elétrica. É situação diversa da produção de um bem material qualquer em relação a seu transporte pela rede rodoviária até os consumidores. Esta é a ideia, com fundamento físico, que leva a ver a produção, transmissão e distribuição de energia elétrica como uma verdadeira prestação de serviço integrada. A reformulação setorial do modelo setorial, com a Lei 10.848/2004, tende a ir nesse sentido.” CALDAS, Gerado Pereira, Concessões de serviços públicos de energia elétrica, 2a Edição. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p. 36.
Essa liberdade, assim ampla e irrestrita, acabou não se realizando e o sistema de contratos de energia do direito brasileiro passou a ter dois distintos ambientes contratuais, o Ambiente de Contratação Livre
– ACL e o Ambiente de Contratação Regulada – ACR (arts. 1º e 2º da Lei 10.848/2004, adiante).
Em todo o caso, o que importa de momento é compreender que a distinção entre a produção (e comer- cialização) da coisa e seu transporte assumiu uma importância ímpar no direito da energia. E ela se reflete em dois tipos básicos de contratos setoriais, os contratos de rede e os contratos de energia. Os primeiros envolvem, essencialmente, serviços de transporte a preços e condições regulados; os segundos envolvem a coisa e tomam ordinariamente o tipo de compras-e-vendas (algumas mais, outras menos reguladas, conforme ocorram no ACR ou ACL).
Fundamental como é, essa distinção está longe de tudo resolver. Mas ela esclarece como serão tratados, sob a perspectiva dos contratos, os dois principais elementos do sistema elétrico operados pelo ONS: geradores produzem coisas; transmissores transportam coisas. Vejamos a dimensão comercial dos con- tratos que envolvem a coisa.
V. O “MUNDO COMERCIAL” DA ENERGIA ELÉTRICA: COMERCIALIZAÇÃO, COMPETIÇÃO E MERCADOS
Já sabemos que temos que separar energia de fio. Já conhecemos a racionalidade que preside a operação do sistema elétrico, realizada pelo ONS sob a exigência de otimização eletroenergética. Tomamos contato com os “produtos” que resultam da preparação da operação: a Ordem de Mérito e o Custo Marginal de Operação. Apreciamos algumas características da operação: os geradores não controlam sua produção de energia, a qual é lançada no sistema e de lá tirada por consumidores em cujas instalações esteja circulando corrente elétrica. Ainda, e para completar: sob a perspectiva de funcionamento do sistema elétrico, a produção e o consumo são fenômenos puramente físicos, técnicos, determinados por circunstâncias igualmente físicas e técnicas que envolvem eficiência e segurança ope- racional e que são desvinculadas de considerações contratuais – isto é, de eventuais relações comerciais bilaterais estabelecidas entre produtores/consumidores. O reflexo mais importante de tudo isso é que os contratos bilaterais (atomizados) realizados pelos agentes não determinam a operação do sistema elétrico. E veremos agora que o inverso também vale, em grande medida: a operação do sistema elétrico (“mundo físico”) não determina as decisões de contratar tomadas pelos agentes (“mundo comercial”). A apresentação que se segue, por razões didáticas, deve abstrair temporariamente das peculiaridades do “mundo físico”. Vamos falar de comercialização e contratos como se estivéssemos num cenário normal. Depois juntaremos as duas coisas na Seção VI.
V.1. A comercialização de energia
Para começar a compreender o ambiente dos contratos de energia elétrica, temos que introduzir um conceito jurídico da maior importância que ainda não apareceu porque até o momento estávamos tra- tando da operação do sistema, para a qual ele é perfeitamente irrelevante: a comercialização de energia elétrica.
Num sentido muito amplo, “comercialização” designa uma genérica aptidão jurídica para ser parte em negócios cujas prestações tenham por objeto a energia elétrica. Nessa acepção ampla, possuem-na os geradores, os distribuidores, os consumidores de qualquer tipo (tanto cativos como livres), e os chamados comercializadores puros (cf. adiante, e aí incluídos os exportadores e/ou importadores). Os transmissores são os únicos sujeitos que não podem comprar e/ou vender energia elétrica; eles somente a transportam. Seu mundo é o dos já mencionados contratos de rede. Os distribuidores tanto vendem (fornecem) a energia que compram de terceiros, como prestam o serviço de transporte (“a granel”, se poderia dizer, forçando a metáfora).
Num sentido mais restrito, fala-se de “comercialização” como uma aptidão específica, titularizada pelos agentes da cadeia da indústria do setor elétrico que podem ofertar, vender (e mesmo comprar uns dos outros) energia elétrica. Esse sentido é assumido pelo art. 10 do Decreto 2.655/1998 (que regulamen- tou parte da Lei 9.648/1998). Dispõe ele:
Art 10. As concessões, permissões ou autorizações para geração, distribuição, im- portação e exportação de energia elétrica compreendem a comercialização cor- respondente.
Parágrafo único. A comercialização de energia elétrica será feita em bases livre- mente ajustadas entre as partes, ou, quando for o caso, mediante tarifas homologa- das pela ANEEL.
Por fim, numa acepção ainda mais limitada, alude-se à “comercialização” para designar a atividade específica desempenhada pelo agente comercializador (ou, mais simplesmente: comercializador). Trata- se de um sujeito provido de autorização federal que não realiza qualquer tarefa física ligada à indús- tria e não explora nem possui instalações do sistema elétrico. Sua função é única e exclusivamente celebrar negócios jurídicos de energia (sobretudo no Ambiente Livre), de modo que ele não apareceu na Seção III porque é um agente irrelevante (e desconhecido) para o operador do sistema. A figura está prevista no art. 9º do Decreto antes referido:
Art 9º Depende de autorização da ANEEL o exercício das atividades de comercia- lização, inclusive a importação e exportação de energia elétrica.
Em resumo, a comercialização consiste numa aptidão negocial e a atividade que a concretiza pode ser realizada em bases competitivas. Isso nos leva ao próximo ponto, à ideia de competição no setor elétrico.
V.2. Os limites e possibilidades da competição no setor elétrico, em geral
Até o final do século passado, tinha-se por dogma e convicção que a comercialização de energia – em qualquer dos sentidos apontados - era uma atividade assinalada pela marca da não competição e exclusividade: os distribuidores, via de regra43, possuíam suas unidades geradoras e delas obtinham a energia de que necessitavam; forneciam-na, em regime de exclusividade, aos consumidores localizados em sua área de atuação, juntamente com o serviço de transporte pelas redes. Esse arranjo era justifi- cado por várias limitações técnicas e convicções econômicas: a verticalização das empresas, a natureza de monopólio natural das atividades de rede, economias de escala das unidades geradoras, dificul- dade de realizar a operação de sistemas elétricos fragmentados entre vários agentes etc. Por isso, desde cedo vingou, inclusive nos Estados Unidos, a tese segundo a qual a indústria elétrica, por suas características especiais, não poderia se submeter ao princípio básico da organização das atividades econômicas: a competição no mercado. Nos EUA esse estado de coisas gerou o compromisso designado por Hirsch de utility consensus44. Em troca da ausência de competição, as utilities aceitariam uma especí- fica e especial forma de disciplina jurídica, a regulation45.
Por uma série de razões de ordem política, econômica e tecnológica, o utility consensus começou a ser colocado em questão na década de 80 do século passado46. O esgotamento das economias de escala na geração – esgotamento que proporcionou o surgimento de usinas independentes das utilities vertica- lizadas, os independent power producers, com preços de produção bastante reduzidos47; o desenvolvi- mento de potentes instrumentos de processamento de dados e de organização da operação do sistema e a sofisticação das reflexões econômicas orientadas à crítica do que se tinha por excesso e ineficácia da regulação estatal, todos esses fatores levaram a uma verdadeira revolução no modo de conceber as relações contratuais no setor elétrico. Paulatinamente, introduziu-se a ideia antes considerada irrea- lizável, de competição na oferta e demanda de energia elétrica. Para tanto, inúmeros arranjos foram feitos e diferentes desenhos de mercado foram concebidos. De elemento formalmente banido da indústria, a competição passou a ser seu princípio básico de organização e virou mantra nas exposições setoriais.
43 Sempre houve, marginalmente, transações de energia entre empresas e mesmo, em caráter muito excepcional, entre (grandes) consumidores e gera- dores. Mas nem essa era uma prática relevante, jurídica ou economicamente, nem era realizada em regime competitivo. Para todos os efeitos, esses fenômenos podem ser desconsiderados.
44 XXXXXX, X. X., Power Loss: The Origins of Deregulation and Restructuring in the American Electric Utility System, Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1999.
45 Sobre isso, ver estudos anteriores: KAERCHER-LOUREIRO, Xxxxxxx, A Indústria Elétrica e o Código de Águas – O Regime Jurídico das Empresas de Energia entre a Concession de Service Public e a Regulation of Public Utilities, Porto Alegre: Fabris, 2007; KAERCHER LOUREIRO, Xxxxxxx, As Origens e os Compromissos das Figuras do Equilíbrio Econômico-Financeiro na Concessão de Serviços Públicos e da Justa Remuneração do Capital Empregado nas Atividades de Utilidade Pública, Rio de Janeiro: [s.n.], 2020, disponível em xxxxx://xxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx.
46 Pioneira foi a obra de XXXXXX, Xxxx X.; XXXXXXXXXXX, Xxxxxxx, Markets for Power, Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1983.
47 O IPP está na origem direta do nosso Produtor Independente de Energia – PIE, previsto no art. 11 e segs. da Lei 9.074/1995.
Ocorre, porém, que este princípio possui limites intrínsecos de aplicação na indústria elétrica (se poderia dizer, pela “natureza das coisas”) e modulações e intensidades diferentes segundo as opções regulató- rias realizadas em cada ordenamento jurídico. É dizer: há áreas da indústria que lhe são (ao menos até o momento) inacessíveis por razões físicas ou econômicas, como os monopólios da operação em tempo real do sistema elétrico e os monopólios naturais da rede; e há espaços nos quais a competição seria viável mas que, por decisão política, restam temporária ou definitivamente fechados à ela. No direito brasileiro, por exemplo, não há (ainda), competição no âmbito do fornecimento de energia aos chama- dos “consumidores cativos” e mesmo a competição no suprimento de energia às distribuidoras é limitada. Nessa segunda dimensão – das restrições regulatórias à competição – há inúmeros e possíveis tipos de organização dos mercados e dos contratos48.
Vejamos no que segue, e de modo muito sumário, algumas alternativas teóricas de implementação da competição no setor elétrico para, logo depois, passarmos às escolhas que fez o direito brasileiro. Comecemos pelas áreas em que a competição não é possível, ao menos no estado atual da tecnologia.
Em primeiro lugar, parece evidente não ser possível uma organização competitiva da operação do sis- tema, mais precisamente, concorrência para operar, em tempo real, o sistema elétrico (ou operação tout court). Por razões físicas – não econômicas – a operação do sistema é um monopólio49. Este ponto precisa, porém, ser muito bem compreendido. Temos que ter bem clara qual é a extensão deste monopólio.
Vimos acima que o ONS realiza duas funções distintas que são presididas pela ideia de otimização eletroenergética: a preparação da operação (planejamento e programação) e a operação em tempo real. Rigorosamente, monopolista é apenas a segunda.
Com efeito, existem configurações regulatórias que introduzem competição na formação, ou programa- ção, da ordem de despacho das usinas. Ela se dá por meio de ofertas (“bids”) de geração. Nessas configurações, os geradores, em função de suas estratégias comerciais, seus contratos já firmados, ou em interação dinâmica com ofertas de consumo, declaram suas disponibilidades e intenções de produção para certo período futuro, a certo preço. Essas ofertas cessam, em algum momento antes da operação em tempo real (é o momento do “gate closure”, que pode variar entre dias ou minutos antes da opera- ção, conforme as capacidades de processamento de dados e as decisões regulatórias). O inventário de geradores resultante das interações comerciais é recebido pelo operador que, na operação do sistema, está vinculado às ofertas feitas. Delas pode se afastar por razões de segurança elétrica – queda imprevista de usinas ou redes; alteração do consumo originalmente previsto etc. En passant, convém notar que, mesmo neste modelo, em que os geradores decidem o quanto desejam produzir e se orga- nizam de conformidade, não é questão de pensar que, no momento da ação em tempo real, o gerador não tenha que obedecer ao operador ou que a energia produzida por ele chegará na casa do sujeito
48 Sobre grandes tipos de arranjos possíveis, v. HUNT, Making competition work in electricity, cit., especialmente o Capítulo 7, onde são apresentados os modelos Integrated Trading, Wheeling Trading e Decentralized Trading.
49 Xxxxx Xxxx, Ibid, p. 36-37.
com o qual contratou. O sistema elétrico, como vimos, simplesmente não funciona assim. Sempre haverá uma instância de controle e a energia é simplesmente “jogada” e “retirada” do sistema (em todo o caso, nessa hipótese em que os geradores podem decidir quanto e quando produzir, há tendencialmente uma maior aderência entre produção e contratos. Mas ela nunca é absoluta).
Diverso, porém, é o modus operandi da geração no Brasil. Como vimos, não adotamos a competição para decidir quanto cada gerador irá produzir50, uma vez que a seleção dos produtores é feita de modo centralizado pelo ONS, que planeja e programa de olho na suficiência energética presente e futura e o menor custo sistêmico da energia (supra)51. Trata-se de uma opção regulatória e de um outro modo de buscar o objetivo, ao fim e ao cabo comum, de segurança de abastecimento e eficiência econômica. No jargão, fala-se de modelo de tight pool, por oposição ao mecanismo competitivo, de loose pool (o anterior).
Em segundo lugar, também não há competição nas atividades desenvolvidas por meio das redes (de transmissão e distribuição) eis que essas funções são tidas como monopólios naturais. Neste caso, a razão para exclusividade no desempenho da tarefa é econômica, e não técnica ou de engenharia, e reside na ineficiência alocativa que adviria da duplicação de infraestruturas. De consequência, o serviço de transporte de energia é infenso à competição (e daí, no direito brasileiro, sua realização sob as vestes do serviço público concedido, com controle de tarifas, condições de serviço e contratação etc).
Em síntese, operação do sistema (em tempo real) e atividades de rede são áreas onde ou não é fisica- mente possível ou não é economicamente eficiente admitir-se pluralidade de agentes atuando em re- gime de liberdade e em disputa. Já a geração de energia elétrica pode ser realizada de modo com- petitivo, (apenas) para a formação da ordem de despacho (o que não ocorre no Brasil)52.
Diante desse cenário e do restante das atividades que compõem a indústria elétrica, restaram franque- ados à competição o ingresso de agentes nos seus respectivos mercados (disputa pelo título de geração, transmissão ou distribuição) e a atividade de contratar, comprar e vender, energia elétrica (atenção: não a atividade de a produzir). Ou seja: a comercialização. Esta é a dimensão que nos interessa aqui.
50 As razões aventadas para essa escolha – que vem sendo contestada – estão relacionadas com a específica configuração do parque gerador brasileiro, marcado pela presença relevante de geração de fonte hidráulica e pela interconexão das bacias hidrográficas onde se encontram as usinas. Isso tornaria necessária ou mais eficiente o planejamento e a programação centrais da geração.
51 Como se constata, nesse modelo o operador perde uma boa fatia de suas atribuições. Ele não realiza mais planos e programas de “otimização eletroenergética” que procuram a segurança energética e a eficiência econômica presente e futura. De consequência, não decide mais a ordem de mérito nem determina o custo sistêmico. Sua margem de manobra na etapa preparatória da operação é muito pequena. Mas ele segue sendo o único responsável pela operação em tempo real e pode se afastar dos resultados de mercado, se a segurança elétrica do sistema a tanto levar (maior/menor consumo do que o previsto; queda de usinas ou de redes etc). Na verdade, trata-se de “espremer” o mais possível o irrecusável monopólio de operação (em tempo real) do sistema elétrico.
52 Uma ótima síntese é oferecida por Xxxxx Xxxx: “Competition in the electric industry generally means competition only in the production (generation) of electricity and in the commercial functions of wholesaling and retailing. These are the functions that would be deregulated—their prices would be set in competitive markets and not by regulators. The transportation functions (transmission and distribution) cannot be competitive—they are natural monopolies. It doesn’t make economic (or environmental or esthetic) sense to build multiple sets of competing transmission systems; everyone has to use the same wires. They have to serve everyone, and they have to be regulated. System operations also has to be a monopoly, since the system operator has to control all the plants in a control area, or the system will not function.” XXXX, Making competition work in electricity., cit., p. 03.
V.3. Os limites e as possibilidades da competição na comercialização, no Brasil – Visão geral do Ambiente de Contratação Livre - ACL
Consoante entendimento já manifestado e desenvolvido detalhadamente em obra anterior53, entende- mos que, no Brasil, os “serviços e instalações de energia elétrica” são atividades reservadas, submetidas à titularidade estatal (federal) que as realiza direta ou indiretamente, neste último caso por meio de terceiros, habilitados por certos títulos (art. 21, XII, b da Constituição).
O caráter reservado da atividade atribui ao titular da competência (União) a possibilidade ampla de conformar como entender adequada a disciplina jurídica da atividade submetida à publicatio. Essa possibilidade inexiste em atividades que não foram atribuídas (juridicamente) ao Estado, em face das quais vige o princípio da livre concorrência e da preferencial organização competitiva da economia, por força de exigência manifestada em vários artigos da Carta (arts. 4º, 170, 173 etc.). Essa ampla latitude reconhecida à discricionariedade (legislativa, em primeiro lugar) no setor elétrico, foi de fato exercitada ao longo do tempo. Sob a égide da mesma Constituição, passamos de um modelo estatal, verticalizado e não competitivo (grosso modo, 1988-1995) para outro predominantemente privado (em que os particulares atuam como agentes econômicos delegados), desverticalizado e de maximização das possibilidades de competição (grosso modo, 1995-2004, com as Leis 9.074/1995, 9.427/1996, 9.648/1998). Por fim, tivemos um parcial, mas importante, recuo da ideia de competição em 2004, o qual vem se mantendo até os dias de hoje, nada obstante algumas aberturas (Leis 10.848/2004, 12.783/2013)54.
Como se constata dessa breve retrospectiva, a extensão e a intensidade da aplicação da competição estão severamente determinadas por escolhas políticas. A organização concorrêncial, para este setor, não é um mandamento que tenha base e origem na Constituição, mas é uma escolha deixada ao legis- lador ordinário, que a modula e conforma, segundo sua apreciação – certa ou errada sob alguma perspectiva de análise que se favoreça – política, social, estratégica etc.
53 Ver KAERCHER LOUREIRO, Gustavo, Constituição, Energia e Setor Elétrico, Porto Alegre: Fabris, 2009; KAERCHER LOUREIRO, Instituições de Direito da Energia Elétrica - Volume I, cit. KAERCHER LOUREIRO, Gustavo, Constituição e Energia, Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, v. 23, 2010.
54 Como indicado no texto, entre 1995 e 2004 tivemos um projeto de organização setorial chamado de Novo Modelo do Setor Elétrico cuja caracte- rística básica era não apenas introduzir, no segmento de comercialização de energia elétrica, a competição, como ampliar seu alcance e radicali- dade. Pretendia-se, num certo horizonte de tempo, generalizar a liberdade dos agentes (distribuidores) e usuários relativamente à escolha da contraparte que lhes venderia energia e à determinação das condições de contratação (veja-se o caput do art. 10 da Lei 9.648/1998 e o art. 15 da Lei 9.074/1995, em sua redação original). Para tanto, foram criadas figuras novas no universo do direito da energia – o Produtor Independente de Energia – PIE, cf. art. 11 da Lei 9.074/1995; o comercializador “puro”, cf. art. 26 da Lei 9.427/1996; o consumidor “livre” de energia cf. arts. 15 e 16 da Lei 9.074/1995; o Mercado Atacadista de Energia – MAE, cf. art. 12 da Lei 9.648/1998, dentre outros – e institutos específicos, viabilizadores da competição – o livre acesso às redes, cf. art. 15, § 6º da Lei 9.074/1995; a operação do sistema em bases indicadas no art. 13 da Lei 9.648/1998; a contratação separada da energia e de seu transporte cf. art. 9º da Lei 9.648/1998 etc. Esse modelo foi colocado em questão quando do racionamento de energia, ocorrido em 2001-2002 e a sua premissa fundamental, de ampliação e intensificação da competição foi trocada por uma competição moderada, circunscrita ao então criaddo Ambiente de Contratação Livre – ACL e, em certa medida, aos leilões de energia no Ambiente de Contratação Regulada - ACR.
No que respeita à comercialização, convivemos atualmente com (no mínimo) dois distintos espaços nego- ciais, organizados de forma diferente quanto ao grau de liberdade das partes para transacionar ener- gia: o Ambiente de Comercialização Livre – ACL e o Ambiente de Comercialização Regulada – ACR. Esta distinção é um dos principais feitos da Lei 10.848/2004 (arts. 1º e 2º, sobretudo55). Podemos deixar o ACR de lado56. Interessa-nos aqui o ACL.
O ACL não está aberto a qualquer sujeito. Distribuidores57, em princípio58, e determinados consumidores não podem dele participar. Compõe-se esse ambiente de três categorias de sujeitos59: a.) os geradores que optarem por nele ingressar (em princípio, eles podem também atuar no ACR); b.) os comercializa- dores (“puros”); c.) os consumidores que preencham certas condições objetivas (de tensão e demanda) e que tenham expressamente optado por realizar seus fornecimentos no ACL (seja por “migração” dos chamados “consumidores potencialmente livres60”, seja por ingresso originário). Os consumidores do ACL são normalmente subdivididos em “consumidores livres61” e “consumidores incentivados62.
55 “Art. 1º A comercialização de energia elétrica entre concessionários, permissionários e autorizados de serviços e instalações de energia elétrica, bem como destes com seus consumidores, no Sistema Interligado Nacional - SIN, dar-se-á mediante contratação regulada ou livre, nos termos desta Lei e do seu regulamento, o qual, observadas as diretrizes estabelecidas nos parágrafos deste artigo, deverá dispor sobre: (...); II - condições de contra- tação livre; (...).” Lei 10.848/2004.
56 O ACR possui dois grandes (sub)espaços de contratação: a.) aquele que envolve os usuários ditos cativos e as distribuidoras (normalmente se fala, aqui, da “relação de fornecimento”); b.) aquele composto pelas relações das distribuidoras com os geradores que lhes vendem energia por meio dos Contratos de Comercialização de Energia no Ambiente Regulado – CCEAR, que são de variado tipo (e há ainda outros, além dos CCEAR’s) Aqui se fala de “contratos de suprimento”. Nesse último mercado do ACR, os contratos decorrem de leilões em que vence o ofertante que apresentar o menor preço de venda de energia para as distribuidoras. Esses leilões e os contratos que deles decorem são completamente determinados pelas autoridades públicas competentes (MME, ANEEL, com a participação da Câmara de Comercialização de Energia), de modo que a competição só se verifica para a obtenção do contrato de suprimento.
57 Distribuidores não podem negociar com consumidores livres. Antes podiam: “Art. 4º (...). § 5º As concessionárias, as permissionárias e as autorizadas de serviço público de distribuição de energia elétrica que atuem no Sistema Interligado Nacional – SIN não poderão desenvolver atividades: (...). III
- de venda de energia a consumidores de que tratam os arts. 15 e 16 desta Lei, exceto às unidades consumidoras localizadas na área de concessão ou permissão da empresa distribuidora, sob as mesmas condições reguladas aplicáveis aos demais consumidores não abrangidos por aqueles artigos, inclusive tarifas e prazos, ressalvado o disposto no § 13; (...).” Lei 9.074/1995.
58 Podem vender excedentes de exposição involuntária, de que não trataremos aqui.
59 “Art. 47. A contratação no ACL dar-se-á mediante operações de compra e venda de energia elétrica envolvendo os agentes concessionários, permissionários e autorizados de geração, comercializadores, importadores, exportadores de energia elétrica e consumidores livres. Parágrafo único. As relações comerciais entre os agentes no ACL serão livremente pactuadas e regidas por contratos bilaterais de compra e venda de energia elétrica, onde estarão estabelecidos, entre outros, prazos e volumes.”
60 “Art. 49. Os consumidores potencialmente livres que tenham contratos com prazo indeterminado só poderão adquirir energia elétrica de outro fornecedor com previsão de entrega a partir do ano subsequente ao da declaração formal desta opção ao seu agente de distribuição. § 1º O prazo para a declaração formal a que se refere o caput será de até quinze dias antes da data em que o agente de distribuição está obrigado, nos termos do art. 18, a declarar a sua necessidade de compra de energia elétrica com entrega no ano subsequente, exceto se o contrato de fornecimento celebrado entre o consumidor potencialmente livre e o agente de distribuição dispuser expressamente em contrário. § 2º A opção do consumidor potencialmente livre poderá abranger a compra de toda a carga de sua unidade consumidora, ou de parte dela, garantido seu pleno atendimento por meio de contratos, cabendo à ANEEL acompanhar as práticas de mercado desses agentes. § 3º O prazo definido no caput poderá ser reduzido a critério do respectivo agente de distribuição.” (Decreto 5.163/2004). Sobre migração, ver ainda art. 11 do Decreto 2.655/1998, arts. 52 e 52 do Decreto 5.163/2004.
61 Arts. 15 e 16 da Lei 9.074/1995.
62 Art. 26 da Lei 9.427/1996 e “Art. 48. Os consumidores ou conjunto de consumidores reunidos por comunhão de interesses de fato ou de direito, cuja carga seja maior ou igual a 500 kW, quando adquirirem energia na forma prevista no § 5º do art. 26 da Lei no 9.427, de 26 de dezembro de 1996, serão incluídos no ACL.” Dec. 5.153/2004.
“Art. 1º (...). § 2º Para fins de comercialização de energia elétrica, entende-se como: VIII - consumidor livre é aquele que, atendido em qualquer tensão, tenha exercido a opção de compra de energia elétrica, conforme as condições estabelecidas no art. 15 e no art.16 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995; IX - consumidor potencialmente livre é aquele que, a despeito de cumprir as condições estabelecidas no art. 15 da Lei nº 9.074, de 1995, seja atendido de forma regulada; e X - consumidor especial é o consumidor livre ou o conjunto de consumidores livres reunidos por comunhão de interesses de fato ou de direito, cuja carga seja maior ou igual a 500 kW, que tenha adquirido energia na forma estabelecida no § 5º do art. 26 da Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Art. 26 da Lei 9.427.” (Decreto 5.163/2004).
O ACL está organizado em duas grandes dimensões complementares: a.) o âmbito dos contratos ditos “bilaterais” e b.) o âmbito das transações “à vista”, multilaterais, realizadas na (e pela) Câmara de Comercialização de Energia – CCEE (mercado de curto prazo, spot ou de sobras e déficits63 que veremos logo mais).
Os integrantes do ACL exercitam, dentro de certos limites, sua liberdade contratual. Dentre tais limites estão, por exemplo, obrigações de aderir à CCEE64 e de se submeter às suas regras e procedimentos de contabilização (liquidação necessária de sobras e déficits de energia segundo essas regras e pro- cedimentos); exigência de contratação, pelos consumidores participantes, da totalidade de suas previ- sões de consumo por meio dos contratos bilaterais65; exigência de contratação de garantias; imposição de certas formas e procedimentos relativos às contratações bilaterais (registro do contrato na CCEE) e mesmo prescrição de conteúdo mínimo66, dentre outras.
De modo simplificado, temos que, para cada contrato no ACL, as partes são livres para a.) decidir com quem contratar; b.) quando contratar; c.) quanto contratar; d.) como contratar e, sobretudo, e.) a que preço contratar energia elétrica67. E podemos dizer também que estamos diante de negócios e de sujeitos em face dos quais se aplicam os preceitos clássicos que regem a celebração, a execução e a interpretação dos contratos (arts. 421 e segs. do CCB e não, prima facie, a legislação consumerista).
Síntese de quanto visto até aqui
Com essas noções já podemos avançar, não sem antes realizar uma síntese de tudo quanto visto até aqui. Essa recapitulação é importante porque, na seção seguinte, a última, faremos a junção das dife- rentes perspectivas que vimos até o momento. É essa junção que fornece a última premissa de compre- ensão dos contratos de energia.
• Na Seção III vimos como funciona um sistema elétrico e qual é a lógica de sua operação, a cargo do ONS:
o O SIN é coordenado e controlado por um único sujeito que tem a visão do todo e possui condições de ordenar ou mesmo de interferir nos principais recursos e elementos do sistema.
63 Rigorosamente, o mercado de curto prazo também interessa aos contratos de suprimento do ACR (não interessa, juridicamente, aos contratos de fornecimento realizados com os consumidores cativos).
64 “Art. 50. Os consumidores livres e aqueles referidos no art. 48 deverão ser agentes da CCEE, podendo ser representados, para efeito de contabili- zação e liquidação, por outros agentes dessa Câmara.” (Decreto 5.163/2004).
65 Art. 15, § 7º da Lei 9.074/1995.
66 Note-se, en passant, as definições equivocadas de “contrato bilateral” constantes do arts. 1º e 4º da Convenção de Comercialização (REN ANEEL 109/2004) : “Contrato Bilateral – instrumento jurídico que formaliza a compra e venda de energia elétrica entre Agentes da CCEE, tendo por objeto estabelecer preços, prazos e montantes de suprimento em intervalos temporais determinados.” “Art. 4º (...). § 3º A contratação de energia elétrica no ACL será formalizada mediante Contratos Bilaterais livremente pactuados, que deverão prever, entre outras disposições, montantes de energia e de potência, prazos, preços e Garantias Financeiras.” De onde saiu isso?
67 As liberdades clássicas de contrato cf. XX XXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxx, Direito das Obrigações, 12. ed. Coimbra: Almedina, 2009, p. 229 e segs.
o Para esse sujeito, o ONS, geradores e consumidores são partes (físicas) integrantes do sistema; os primeiros, tidos como recursos de produção e os segundos, como demandantes.
o O ONS decide quem vai produzir energia para atender à carga prevista (quanto e quando) em base a critérios de segurança energética e economicidade sistêmica. Ele não se orienta e sequer conhece os contratos eventualmente celebrados por estes sujeitos (que ele vê como meros equipamentos). Ele manda gerar quem achar melhor, sob a perspectiva da otimização eletroenergética e atende quem estiver com a tomada ligada.
o Os produtores, como decorrência, não determinam sua produção.
o A energia se mistura na rede e segue o percurso de menor resistência (gerador “joga no sistema” e consumidor “tira do sistema”).
• Pela Seção V, por outro lado, vimos que:
o A regulação isola a energia elétrica do fio e a trata como uma coisa móvel que é passível de compra-e-venda. Em especial, na arquitetura contratual do ACL, diferentes sujeitos en- gajam-se em contratos de energia de modo competitivo, vale dizer, com liberdade para auto-determinarem os montantes, os tempos de entrega e os preços da energia. Gerado- res/comercializadores vendem livremente (dentro de certos limites) e consumidores com- pram livremente.
Essa arquitetura parece pressupor um mundo que não é o elétrico. Temos que combinar a operação do sistema com suas características peculiaries, centralizadas e cooperativas, com a (livre) negociação de contratos de energia no ACL.
VI. COMO CONCILIAR OS MUNDOS FÍSICO E CONTRATUAL? LASTRO E MERCADO DE SOBRAS E DIFERENÇAS (MERCADO DE CURTO PRAZO)
Se um gerador não controla sua produção, pode vender qualquer montante de energia que desejar? Dadas as características do sistema elétrico, como saber quando o vendedor adimpliu a compra-e- venda? Se a celebração dos negócios é livre, o que ocorre quando um gerador vendeu mais (ou menos) energia do que gerou, sob as ordens do ONS? E o consumidor: ele deve “desligar a tomada” quando tiver chegado no limite de suas compras? Se, porém, não fizer isso, a quem pagará pela energia con- sumida sob essas condições, visto que será atendido pelo ONS? E se o inverso acontecer: qual o destino comercial da energia que o consumidor comprou e não usou, considerando que, como não se estoca, a energia não ficou empilhada em sua unidade? A resposta à primeira pergunta nos remete à figura do
lastro contratual; as respostas às demais são também relacionadas com a ideia de lastro, mas estão mais diretamente ligadas ao mercado residual (em relação aos contratos bilaterais), de contabilização de sobras e déficits de compras e/ou vendas (o impropriamente chamado “mercado de curto prazo” ou “mercado spot”).
V.1. Lastro de energia para venda
Retome-se a questão: se o gerador não controla sua produção, como saber qual é a quantidade de energia que pode comprometer em seus contratos? Vende o quanto quiser? Até onde vai a sua liber- dade de contratar, em termos quantitativos? A resposta encontra-se no conceito de lastro de energia, previsto (surpreendentemente68), não em uma lei, mas em um regulamento, o Decreto 5.163/200469: o gerador pode vender energia elétrica até o limite de seu lastro (e não até o limite de sua produção efetiva em determinado período, algo que, como se sabe, ele não controla). Mas o que é o tal lastro? Diz-nos o art. 2º do Decreto 5.163/2004:
Art. 2º Na comercialização de energia elétrica de que trata este Decreto deverão ser obedecidas, dentre outras, as seguintes condições:
I - os agentes vendedores deverão apresentar lastro para a venda de energia para garantir cem por cento de seus contratos; (...).
§ 1º O lastro para a venda de que trata o inciso I do caput será constituído pela garantia física proporcionada por empreendimento de geração própria ou de ter- ceiros, neste caso, mediante contratos de compra de energia.
§ 2º A garantia física de energia de um empreendimento de geração, a ser definida pelo Ministério de Minas e Energia e a qual deverá constar do contrato de concessão ou do ato de autorização, corresponderá à quantidade máxima de energia elétrica associada ao empreendimento, incluída a importação, que poderá ser utilizada para comprovação de atendimento de carga ou comercialização por meio de contratos.
Explorar em profundidade essa noção nos levaria para muito longe e para muito além do direito. Em termos sintéticos, o conceito de lastro está ligado a uma grandeza própria do planejamento da expan- são do parque gerador, a garantia física70. Esta última noção, por sua vez, tem por pano de fundo preocupações relativas à segurança energética.
68 A disciplina normativa desta noção central da contratação de energia é absolutamente escassa e remete a um problema já diagnosticado alhures. KAERCHER LOUREIRO, Xxxxxxx, Instituições de Direito da Energia Elétrica - Volume I, cit., Parte IV, Título II, Capítulo Único (“As fontes normativas do direito da energia elétrica: elenco e características”).
69 Além do art. 2º, citado no texto, ver ainda, art. 4º, § 2º; art. 5º e art. 6º do mesmo Decreto.
70 Também em relação à garantia física minguam as normas jurídicas, enquanto que abundam as especulações e metodologias técnicas e de engenharia sobre como determiná-la. A ideia de fundo que se encontra sob o conceito de garntia física apareceu na regulação setorial sob a expressão, “energia
Com efeito. Dada a inegável essencialidade da energia elétrica, os estudos de expansão e configura- ção do parque gerador incorporam metodologias que proporcionam margens de segurança energética no dimensionamento da oferta do bem. Não se quer apenas energia; deseja-se energia segura, isto é, deseja-se que a capacidade de produção dê conta, com margem de risco controlada, da demanda prevista. Essa exigência importa em determinar um tanto de energia segura que se considera (o plane- jador considera71) que cada usina pode aportar ao sistema elétrico – se ela efetivamente irá gerar essa quantidade de energia, se vai gerar menos ou até mais do que essa grandeza “estática” indicada pela garantia física, é algo que será decidido pelo ONS nos planos e programas de operação, bem entendido.
O atingimento desse objetivo leva à atribuição, para cada usina, no ato de sua outorga, de uma de- terminada quantidade de energia estabelecida sob premissas de segurança energética (“folga”). Essa específica quantidade de energia segura é a sua contribuição abstrata e duradoura (e revisável sob certas circunstâncias) para a oferta total de energia do sistema. É a sua garantia física72, estipulada no ato de sua outorga e que funciona como uma espécie de “certificado”. Ela é a base “de engenharia” do conceito comercial de lastro73.
assegurada” - que estreou também numa norma infralegal, o art. 21 do Decreto 2.655/1998 (regulamento parcial da Lei 9.648/1998). O dispo- sitivo tratava, apenas, de usinas hidrelétricas e, dentre essas, somente as integrantes do Mecanismo de Realocação de Energia – MRE: “Art. 21. A cada usina hidrelétrica corresponderá um montante de energia assegurada, mediante mecanismo de compensação da energia efetivamente gerada. (...). § 2º Considera-se energia assegurada de cada usina hidrelétrica participante do MRE a fração a ela alocada da energia assegurada do sistema, na forma do disposto no caput deste artigo. § 3º A energia assegurada relativa a cada usina participante do MRE, de que trata o parágrafo anterior, constituirá o limite de contratação para os geradores hidrelétricos do sistema, nos termos deste regulamento.§ 4º O valor da energia assegurada alocado a cada usina hidrelétrica será revisto a cada cinco anos, ou na ocorrência de fatos relevantes. § 5º As revisões de que trata o parágrafo anterior não poderão implicar redução superior a cinco por cento do valor estabelecido na última revisão, limitadas as reduções, em seu todo, a dez por cento do valor de base, constante do respectivo contrato de concessão, durante a vigência deste.§ 6º A alocação da energia assegurada, de que trata o caput, e as revisões previstas nos §§ 4º e 5º, propostas, em conjunto pelo GCOI e GCPS e seus sucessores, serão homologadas pela ANEEL.” A primeira normatização relativa à suficiência de lastro para venda encontrava-se no art. 5º da Resolução ANEEL n. 249/98, com o primeiro mecanismo de verificação e sistemática de penalização estabelecidos na Resolução ANEEL n. 352/2003. Como se vê, o conceito de lastro tinha ainda menos base normativa do que o de seu suporte à época (energia assegurada). A garantia física, no lugar de energia assegurada, apareceu apenas em 2004, com o Decreto 5.163/2004 (regulamento da Lei 10.848/2004). A figura é apenas mencionada – e sua compreensão pressuposta – em leis posteriores, notadamente a Lei 12.783/2013 (art. 1º, § 1º, II e § 10; art. 4°, § 1°; art. 8º, §§ 8º; art. 15, § 10º). Questão tormentosa é saber se e o que ainda está valendo do antigo conceito de energia assegurada (art. 21 do Decreto 2.655/1998), em especial, a determinação de revisões periódicas da grandeza. No passado recente, houve uma tentativa de aplicar este dispositivo de modo geral – “revisão ordinária de garantias físicas” – que acabou numa intensa judicialização da questão e não foi levado adiante.
71 “Art. 4º O Conselho Nacional de Política Energética - CNPE deverá propor critérios gerais de garantia de suprimento, com vistas a assegurar o adequado equilíbrio entre confiabilidade de fornecimento e modicidade de tarifas e preços. § 1º O Ministério de Minas e Energia, mediante critérios de garantia de suprimento propostos pelo CNPE, disciplinará a forma de cálculo da garantia física dos empreendimentos de geração, a ser efetuado pela Empresa de Pesquisa Energética - EPE, mediante critérios gerais de garantia de suprimento.”
72 Resultante de uma combinação complexa de características individuais de cada usina – dimensão, fonte utilizada, disponibilidade de combustível, comportamento etc. – e de configuração de todo o sistema elétrico – combinação das fontes, relações de complementariedade/contraste entre tipos de usinas, localização de cada qual etc.
73 A garantia física é, pois, o mais básico parâmetro das possibilidades de venda do gerador, independentemente do que efetivamente vier a gerar. Em termos precisos, as quantidades de energia que podem ser transacionadas (o número de MWh) é determinado por uma grandeza que afere a capacidade energética da usina no longo prazo e integrada no sistema, ou seja, a sua contribuição para a confiabilidade da oferta de energia ao longo do tempo (dada em MW). Atualmente, encontra-se em discussão separar lastro de energia, de tal sorte que a confiabilidade não seria a determinante dos montantes de energia que poderiam ser vendidos pelo gerador – e seria ela própria, confiabilidade, um “produto” a ser transa- cionado em outro mercado, aquele dito “de capacidade”. Só que o mercado de capacidade não seria bilateral no Brasil. Como é um item de benefício universal, haveria leilões em que os vendedores receberiam de todos os consumidores do país, que pagariam proporcionalmente a seus consumos. Como no atual Encargo de Energia de Reserva.
Com ele não se confunde, porém. Isso porque, para além de algumas sutilezas regulatórias que distin- guem a garantia física e o lastro próprios de cada usina, o lastro pode ser composto também de ga- rantias físicas de outras usinas, “adquiridas” mediante contratos de compra-e-venda de energia, como o admite o § 1º do art. 2º do Decreto 5.163/2004, acima citado. Simplificando e sintetizando, um determinado gerador pode vender o que tiver de lastro (e sem se preocupar, assim, com as decisões operacionais que o ONS vier a tomar); e este se determina pela garantia física de sua usina e por contratos de compra de energia que tiver feito. Pode vender menos, mas nunca mais do que o lastro que possuir. Se ultrapassar este limite será penalizado, nos termos das normas setoriais (é bom notar que o comprador, ainda que tenha adquirido energia de um sujeito “sem fundos”, i.e., sem lastro, rece- berá o produto do sistema, que opera com outra lógica que não a comercial; mas sofrerá consequências por ter comprado de um vendedor sem respaldo). Com isso se resolve um dos mistérios da contratação de energia elétrica: como pode o produtor vender energia elétrica se não sabe se e quando a irá produzir? Ele a pode vender no limite de seu lastro, formado originariamente a partir da garantia física, a qual é uma grandeza fixa estabelecida quando da outorga do título habilitante74.
E quanto ao consumidor? Possui ele também um limite para consumir ou adquirir energia, um lastro de consumo? A resposta é negativa: o consumidor de energia elétrica que atua no ACL não possui um limite de compra semelhante ao teto de venda dos geradores. Ele é livre para comprar o tanto que entender adequado, desde que o faça mediante “compras bilaterais”, isto é, negócios jurídicos celebrados com geradores (e comercializadores) individualizados e identificados, segundo preços e montantes estabeleci- dos de comum acordo. Se consumir mais energia do que tiver comprado nesses contratos receberá o produto – cf. acima – mas suportará certas consequências comerciais e regulatórias (que não veremos)75.
Sob essas premissas, vendedores e compradores no ACL celebram compras-e-vendas de energia elé- trica antes do momento de seu efetivo consumo76.
VI.2. Mercado spot, de curto prazo ou de liquidação de sobras e déficits
VI.2.1. Considerações gerais
Já no plano operacional, quando da produção e uso efetivos da energia, o gerador produzirá as quantidades de energia que lhe tiverem sido alocadas pelos planos e programas do ONS, dentro da Ordem de Mérito e o consumidor, por seu turno, gozará de energia enquanto a estiver demandando
74 Diga-se, incidentalmente, que o lastro também informa a ação do comercializador de energia elétrica: por certo, ele não possui garantia física, uma vez que não tem usinas; mas, para poder vender energia, deve comprá-la de geradores que a possuam – e que a vendam até o limite de suas garantias físicas.
75 “Art. 15 (...). § 7º O consumidor que exercer a opção prevista neste artigo e no art. 16 desta Lei deverá garantir o atendimento à totalidade de sua carga, mediante contratação, com um ou mais fornecedores, sujeito a penalidade pelo descumprimento dessa obrigação, observado o disposto no art. 3o, inciso X, da Lei no 9.427, de 26 de dezembro de 1996.” Lei 9.074/1995.
76 Existem também transações qualificadas como ex post mas que não serão tratadas em detalhe aqui cf. adiante.
do sistema (em condições normais de operação nunca lhe falta, fisicamente, energia; poderá faltar-lhe comercialmente, como já veremos).
Dados esse dois planos distintos, o que poderá acontecer em termos de fenômenos físicos (geração e consumo) vis-à-vis os fenômenos comerciais (vendas e compras)?
Para compreender o problema, imaginemos, para um período qualquer de aferição, as seguintes hipó- teses envolvendo um gerador/vendedor (“Gα”) e uma carga/comprador (“Cα”) envolvidos em um con- trato de compra-e-venda:
• Hipótese A – Gα produziu mais energia do que vendeu (lastro atendido). Nesse caso, diz-se que ele teve “sobra” de energia.
• Hipótese B – Gα produziu menos energia do que vendeu (idem). Diz-se que ele teve “déficit” de energia.
• Hipótese C – Cα consumiu mais energia do que comprou. Diz-se que ele teve “déficit” de energia.
• Hipótese D – Cα consumiu menos energia do que comprou. Diz-se que ele teve “sobra” de energia.
Tenha-se presente, agora, que essas hipóteses se aplicam a todos e a cada um dos integrantes do SIN: cada sujeito, gerador ou consumidor77, tem, de um lado, seu comportamento físico, de produção e con- sumo; e, de outro, a sua posição contratual, de compras e vendas. A complexidade do sistema elétrico se repropõe, tal e qual, na complexidade do mercado elétrico. E a ocorrência de sobras e déficits de energia, frequente no plano individual de cada sujeito, é certa no plano sistêmico do mercado. Pode- se dizer sem medo de errar que não ocorre de o total de energia gerada e vendida sob os contratos coincidir, exatamente, com o total de energia consumida e neles comprada. Sempre haverá alguém que gerou a mais/menos do que seus contratos pressupunham e sempre haverá alguém que consumiu mais/menos do que comprou. Sobras e déficits são elementos inerentes ao mercado de energia elétrica.
De consequência, assim como o sistema elétrico complexo exige a presença de uma entidade centrali- zadora e coordenadora de sua operação, o mercado elétrico erigido sobre esse sistema também requer uma instância centralizadora semelhante, encarregada de comparar e de dar trato econômico-comer- cial aos montantes de energia contratados, em face daqueles efetivamente produzidos e consumidos (apurar sobras e déficits78). Tal entidade, à semelhança do ONS, deve conhecer, em cada período de comercialização:
77 E também comercializadores e distribuidores, que não nos interessam aqui.
78 Reitere-se: trato econômico apenas dessas discrepâncias. O preço da energia contratada antecipadamente sob os negócios bilaterais é dado pelas decisões das partes que discutem e estabelecem livremente o valor do produto.
(i.) o comportamento físico dos integrantes do SIN: se gerador, sua produção efetiva; se consu- midor, seu consumo efetivo, o que se alcança por meio de medições;
(ii.) o comportamento contratual desses mesmos sujeitos: o quanto um gerador vendeu (e/com- prou) naquele período; o quanto um consumidor comprou nesse mesmo período, o que se alcança pelo registro dos contratos junto à instância centralizadora do mercado.
Essa instância, no Brasil, é a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, “pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, sob autorização do Poder Concedente e regulação e fiscalização pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL” que tem por finalidade principal “viabilizar a comercialização de energia elétrica” (art. 4º da Lei 10.848/2004). A CCEE é integrada “por titulares de concessão, permissão ou autorização, por outros agentes vinculados aos serviços e às instalações de energia elétrica, e pelos consumidores enquadrados nos arts. 15 e 16 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995” (art. 4º, § 1º da Lei 10.848/2004). É regida por regras e procedimentos de comercialização, editadas pelo Poder Concedente e pela ANEEL às quais aderem todos os seus participantes (art. 4º, § 2º da Lei 10.848/2004)79.
Deixando de lado aspectos importantes relacionados à CCEE mas não relevantes para nossos objeti- vos80, as suas duas atividades principais que viabilizam a comercialização de energia no Sistema Inter- ligado Nacional são: (i.) apuração das situações dos vendedores/compradores no mercado de curto prazo de energia, se detentores de sobras ou déficits em cada período de comercialização (o que é feito comparando-se situações contratuais e comportamento físico), ou seja contabilização; (ii.) trata- mento econômico dessas sobras e déficits, com pagamentos e recebimentos pelos sujeitos que possuem déficits e sobras, respectivamente, ou seja, liquidação. Contabilização e liquidação. Vejamos isso mais de perto.
VI.2.2. Contabilização e Liquidação
Segundo calendários constantes de suas regras e procedimentos, a CCEE realiza periodicamente (em bases mensais), a contabilização e liquidação das sobras e déficits. Para cada mês do ano a CCEE fecha a contabilização e realiza a liquidação das transações no mercado de curto prazo. Dentro desses meses são individualizadas e identificadas as suas 672, 000, 000, 000 xxxas, conforme tenha ele 28,
29, 30 ou 31 dias.
Atualmente, esses intervalos de 60 minutos dentro de cada mês são os “átomos” de comercialização, os menores períodos nos quais a CCEE verifica a existência de sobras e diferenças – é dizer, por meio das
79 São as Regras e os Procedimentos de Comercialização, elaboradas pela CCEE e aprovadas pela ANEEL. Para uma visão geral delas, xxx.xxxx.xxx.xx.
80 Dentre as inúmeras normas que desenvolvem o funcionamento e a estrutura da CCEE, veja-se o Decreto 5.177/2004.
medições, identifica quanto o agente produziu/consumiu e, por meio do registro dos contratos, estabe- lece suas posições contratuais, ou seja, o quanto comprou ou vendeu naquela específica hora (isso exige que também os contratos de compra-e-venda discriminem as quantidades de energia transacionada e as distribuam em base horária por todo seu prazo de vigência – trata-se dos procedimentos de “sazo- nalização” e “modulação” que encontraremos em outro estudo dessa coletânea). Uma vez feitas essas comparações, consolida-se, para cada integrante da CCEE, sua posição dentro do mês de referência81. O agente que, em determinados blocos horários, possui sobras está “positivamente exposto” ao mer- cado de curto prazo; aquele que apresenta déficits está “negativamente exposto”.
Expressando-se de modo mais conforme à linguagem do mercado: quando um agente apresenta sobras
- está positivamente exposto porque produziu mais energia do que vendeu ou porque consumiu menos do que comprou em determinada semana – ele as “liquxxxxx” xx xxxxxxx xx xxxxxxxxxx (x xx credor aí). Quando tem déficits - está negativamente exposto porque produziu menos energia do que vendeu ou porque consumiu mais do que comprou – ele as comprará nesse mesmo mercxxx xx xxxxx xxxxx (x xx devedor aí).
Acerca dessas sobras e déficits é importante observar quatro pontos.
O primeiro é algo um tanto óbvio e que já deve ter ficado claro, mas que vai dito por escrúpulo. A contabilização da CCEE é, em sua essência, retrospectiva: os contratos bilaterais de que nos ocupamos são normalmente feitos e registrados na Câmara antes do período de apuração, assim como as sobras e déficits já ocorreram quando são apontadas pela CCEE. Não há nada de previsão ou de estimativa aqui, e o uso do verbo no futuro “comprará” ou “venderá energia no mercado de curto prazo” não passa de uma maneira de dizer que o sujeito ainda tem que pagar ou receber pelo que foi por ele produzido (a menos) ou consumido (a mais) fora dos contratos. Convém deixar bem marcada essa ob- viedade porque de modo marginal admite a CCEE contabilizar, em favor de agentes do mercado, montantes de energia transacionados em contratos celebrados depois do período de produção e con- sumo, mas antes do fechamento do mês de apuração (para “dar uma chance” de ajuste de posições contratuais relativas a produções e consumos passados, a CCEE estabelece uma janela para essas ne- gociações ditas ex post82).
O segundo ponto: a referência a sobras e déficits aponta para um fenômeno comercial, não físico. Ela reflete a posição contratual de cada sujeito à luz de sua produção ou consumo. No mundo da operação, como ja vimos, a energia ainda não se estoca (nem num hipotético armazém do produtor nem na casa
81 As semanas, como tais, não são relevantes para a apuração de sobras e déficits contratuais, mas apenas para o cálculo do Preço de Liquidação de Diferenças – PLD que logo encontraremos. A partir de 2021, a unidade temporal semana desaparecerá totalmente, pois o PLD será calculado diariamente, para cada hora do dia seguinte.
82 Esta anomalia ocorre no Brasil em razão da existência de penalidades regulatórias por falta de lastro contratual para cobrir produção e consumo. Em princípio, todos os contratos deveriam registrados antes da produção e consumo, com pequena antecedência (dia anterior).
ou fábrica do consumidor) e por isso, o sistema elétrico produz exatamente o que dele se demanda (e se demanda exatamente o que se produz)83.
O terceiro ponto decorre do segundo: se não há sobra ou falta de energia no mundo físico e se a energia não se estoca, a soma algébrica de sobras e déficits no plano da comercialização do mercado de curto prazo é zero. Isso pode parecer mágica, mas não é, e os exercícios numéricos singelos que faremos na Segunda Parte demonstrarão de modo didático essa circunstância84.
O quarto e último ponto: essas sobras e déficits são apreciadas economicamente a um valor único de mercado estabelecido centralizadamente pela CCEE. Trata-se do preço da energia “à vista” (daí a referência a preço spot ou de curto prazo)85.
Esse valor é o Preço de Liquidação de Diferenças – PLD, fixado hora a hora do mês e para cada submercado de energia86. Sua construção deve “refletir as variações do valor econômico da energia elétrica” (o custo de produção da energia varia muito e em intervalos muito curtos). Seus contornos estão na Lei 10.848/2004 (arts. 1º, inc. III e § 5º) e nos arts. 57 e segs. do Decreto 5.163/2004. Ele é estabelecido ex ante (num momento anterior ao consumo e produção) e sua base87 é o já referido Custo Marginal de Operação – CMO.
Esta vinculação entre PLD e CMO se entende, uma vez que ao produzir ou consumir fora de contratos (sem estabelecimento prévio de preços), os sujeitos devem pagar o quanto, efetivamente, custa a gera- ção de energia no exato momento (hora) em que dela necessitam. Como dissemos, o PLD é o preço da compra à vista do bem88 e oscila consideravelmente ao longo do tempo (horas, semanas, meses), uma vez que a energia não se estoca. Assim, ficar exposto positiva ou negativamente ao PLD pode ser um
83 Considerando-se sempre as perdas técnicas, bem entendido.
84 Desde já, porém, pode-se perceber conceitualmente essa soma zero. Tomemos um extremo inverossímel, mas possível, em que aparentemente a conta do mercado não fecha: imagine-se que, devido a uma crise sem precedentes, todos os consumidores acabaram por usar, durante um mês terrível, menos energia do que compraram. Houve, de consequência, uma sobra sistêmica. Se não conhecêssemos as peculiaridades do setor, poderíamos ser tentados a concluir que ocorreu mais produção de energia do que consumo e que todos os consumidores ficaram com um produto inútil encalhado nas mãos. Esse é o raciocínio que vale para mercadorias normais em que pode haver excesso de produção (e formação de estoques ociosos por parte dos produtores ou acúmulo de bens inservíveis adquiridos por compradores que não sabem o que fazer com eles). Mas já sabemos que não vale para o mundo da eletricidade em que a produção é sempre igual ao consumo. Pode, então, ser tentador imaginar que se todo o mundo consumiu menos do que comprou e todo mundo produziu menos do que vendeu, as coisas ficariam, também no plano comercial, “elas por elas”; geradores receberiam o preço estabelecido em contrato pela produção efetiva e consumidores só pagariam pelo que que efetivamente consumiram. Mas não funciona assim. No plano comercial os consumidores pagam por toda a energia contratada e os geradores são tratados como tendo que entregar esse todo, mesmo que fisicamente isso não faça muito sentido. Isso significa que, comercialmente, à exata quantidade de energia comprada (sob contratos) e não consumida corresponde a exata quantidade de energia vendida (sob contratos) e não gerada: essas sobras dos consumidores são, rigorosamente, os déficits dos geradores os quais deverão, portanto, buscar a energia dos consumidores no mercado de curto prazo para honrar seus contratos. Sobras e déficits se anulam e a soma dá zero.
85 Abstraindo-se das peculiaridades da produção e consumo de energia, pode-se usar com cautela a definição de mercado spot encontrada nos livros de economia, qual seja, a de um mercado em que as transações da commodity envolvem pagamentos à vista (não pactuados antes) e pronta entrega.
86 Não nos interessa por ora.
87 O PLD não é um outro nome do CMO, porém: possui valores máximo e mínimo (que limitam o CMO) e é calculado sem levar em conta as restrições de operação (transmissão, basicamente) internas de cada submercado.
88 A função comercial-regulatória do PLD é a que seu nome indica: servir de preço para valorar as diferenças. Em termos econômicos (não regulatórios), esse preço tem várias outras funções. É uma importante baliza para determinar os preços dos contratos bilaterais (quanto mais próximos da entrega, mais esses preços se aproximam do PLD esperado etc.); sinaliza a necessidade (e o local) de novas plantas e linhas de transmissão etc.
ótimo ou um péssimo negócio, mas é sempre um risco não negligenciável. Veremos na Segunda Parte que uma das funções primordiais dos contratos de energia não é propiciar a fruição física do bem, algo que é determinado pela operação do sistema, mas antes, é realizar uma espécie de “seguro” contra o risco de exposição ao oscilante PLD.
Apenas a título de esclarecimento desse quarto ponto, é bom ter presente que, se a soma dos montantes de energia transacionados como sobras e déficits é zero, zero será também o somatório dos pagamen- tos e recebimentos que ocorrerão nesse mercado relativos a tais sobras e déficits. Isso nos leva à liqui- dação89.
Sob o ponto de vista individual, normalmente cada sujeito possui, em cada período de contabilização, sobras ou déficits de energia, precificados ao PLD. Consumidor ou gerador que seja, ele deverá receber ou pagar, conforme seu comportamento físico comparado com seus contratos bilaterais. Mas como pa- gará e receberá pelas sobras e déficits? Os integrantes do mercado em posições opostas escolhem entre si seus parceiros de negócios para fechar a conta?
A resposta é, previsivelmente, não: a liquidação tem caráter multilateral. Simplificando tremendamente o procedimento realizado pela CCEE, pode-se dizer que ela organiza, segundo suas normas de comer- cialização, constituição de garantias90, pagamentos e recebimentos entre todos os agentes de mercado, segundo suas posições, sem individualização de parte e contraparte. Um sujeito com sobras de energia, credor no mercado, recebe seu crédito de todos os devedores do mercado e assim o inverso: um agente com déficits paga “ao mercado” que se encarrega, sucessivamente, de realizar a distribuição dos pa- gamentos ao conjunto dos credores. A operacionalização efetiva de tais “compensações” fica a cargo de uma instituição financeira contratada pela CCEE, que recebe valores devidos e os credita. Como se vê, a CCEE não é parte na liquidação. Como já o disse a Lei 10.848/2004, sua função é “viabilizar” a comercialização de energia.
VI.2.3. Considerações finais sobre o mercado de curto prazo
O mercado de curto prazo, assim estruturado, é o outro meio pelo qual os agentes transacionam energia elétrica. Fala-se, pois, em “contratos bilaterais” e “transações de curto prazo” como as espécies negociais que esgotam o universo de possibilidades para compradores e vendedores, quaisquer que sejam eles.
A natureza jurídica ds operações comerciais realizadas no curto prazo não é de todo clara e pode dar margem a discussões, mas uma coisa é certa: esse mercado não é um mero adereço dos contratos
89 “Art. 46. A Liquidação Financeira das operações de compra e venda de energia elétrica realizadas no âmbito Mercado de Curto Prazo far-se-á de forma multilateral, com periodicidade máxima mensal, conforme Procedimentos de Comercialização específicos.” (Convenção de Comercialização).
90 “Art. 47. Serão executadas as garantias financeiras dos agentes da CCEE inadimplentes no processo de Liquidação Financeira do Mercado de Curto Prazo, incluindo penalidades. § 1º Caso as Garantias Financeiras executadas não sejam suficientes para a cobertura dos compromissos financeiros dos agentes inadimplentes, os demais Agentes da CCEE responderão pelos efeitos de tal inadimplência, na proporção de seus créditos líquidos de operações efetuadas no Mercado de Curto Prazo no mesmo período de Contabilização.” (Convenção de Comercialização).
bilaterais. É uma condição de possibilidade deles, exigida em razão das peculiaridades da produção e do consumo de energia elétrica.
Essas circunstâncias todas trazem muitas dúvidas e necessidade de aprofundamentos. Para além da questão acerca da “natureza jurídica” das transações realizadas no curto prazo, outras há, como a configuração da CCEE, a posição dos agentes em face da necessidade de aportes de garantias, o status das regras e procedimentos de comercialização, a natureza de outros pagamentos e recebimentos realizados pela CCEE no âmbito da contabilização e liquidação etc.
Nosso propósito, porém, ao trazer o tema, é apenas permitir uma melhor compreensão de como se estru- tura e como funciona um contrato de compra-e-venda de energia elétrica. Este é o tema de outro estudo.
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