THE ROLE OF THE REAL CONTRACTS IN THE BRICS COUNTRIES: THE CONTRACT OF LOAN
O PAPEL DOS CONTRATOS REAIS NOS PAÍSES DO BRICS: O CONTRATO DE MÚTUO1
THE ROLE OF THE REAL CONTRACTS IN THE BRICS COUNTRIES: THE CONTRACT OF LOAN
Antonio Saccoccio2
Professor Titular de Direito Romano da Universidade Degli Studi di Brescia
(UNIBS, Brescia/BS, Itália)
ÁREA(S): direito privado; direito con- tratual; direito romano.
RESUMO: O presente trabalho preten- de examinar a evolução da natureza do contrato de mútuo de contrato real para contrato consensual, a partir do Direito romano, a fim de focar na análise dos ordenamentos jurídicos dos países integrantes do bloco Brics.
ABSTRACT: The present work aims to examine the evolution of the nature of the loan contract from a real contract to a consensual contract, based on Roman law,
in order to focus on the analysis of the legal systems of the countries that are part of the BRICS bloc.
PALAVRAS-CHAVE: contrato de mútuo; contratos reais; Brics.
KEYWORDS: contract of loan; real contracts; Brics.
SUMÁRIO: 1 O mútuo no Direito romano: a base do sistema jurídico; 2 O mútuo na tradição civilista: da glosa ao humanismo; 3 O mútuo na América Latina: os dois modelos diferentes; 4 Os países do Brics; Conclusão.
1 Tradução: Fábio Siebeneichler de Andrade, Professor Titular de Direito Civil da Escola de Direito da Pontifícia Católica de Porto Alegre/RS (PUC-RS), Professor do Programa de Pós-Graduação da PUC-RS, Advogado. E-mail: xxxxxxxxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx. Currículo: xxxx://xxxxxx.xxxx. br/5144874187298158. Orcid: xxxxx://xxxxx.xxx/0000-0000-0000-000X; e Flávia de Medeiros Dillenburg, Mestranda em Direito (PUCRS), Especialista em Processo Civil (PUCRS), Bacharel em Direito (PUCRS), Advogada. E-mail: xxxxxxxxxxxx@xxxxxxx.xxx. Currículo: xxxx://xxxxxx.xxxx. br/3968883439658655. Orcid: xxxxx://xxxxx.xxx/0000-0000-0000-0000.
2 E-mail: xxxxxxx.xxxxxxxxx@xxxxx.xx.
SUMMARY: 1 The loan in roman law: the foundation of the legal system; 2 The loan in the civilian tradition: from the glossa to the humanism; 3 The loan in Latin America: the two different models; 4 The Bric’s countries; Conclusion.
A
1 O MÚTUO NO DIREITO ROMANO: A BASE DO SISTEMA JURÍDICO
estrutura dogmática do contrato de mútuo no Direito romano ainda representa um impasse em relação ao sistema jurídico, especialmente se o considerarmos desde a época de sua
“fundação”, nos Códigos de Xxxxxxxxxx, até os seus “subsistemas” europeus e latino-americanos3.
Como comumente referido pelos estudiosos, no Direito romano, mediante contrato de mútuo, uma parte (o mutuante) transfere para outra parte (o mutuário) a propriedade de uma certa quantidade de dinheiro ou de outros bens fungíveis. O mutuário é obrigado a devolver ao mutuante não exatamente as mesmas “coisas”, mas sim a mesma quantidade de dinheiro ou a mesma quantidade de bens com a mesma qualidade (tantundem eiusdem generis et qualitatis)4.
O contrato de mútuo remonta às origens do Direito romano e tem as suas raízes em uma época de economia agropastoril, na qual era comum, entre os cidadãos romanos, o mútuo de sementes, suprimentos de comida e pequenas somas de dinheiro, a fim de enfrentar tempos difíceis. Por volta do século III a.C., com o desenvolvimento de um comércio de larga escala, o mútuo passou a ser reconhecido como um contrato iuris gentium; desse modo, também se tornou acessível aos estrangeiros (peregrini) e o seu uso foi amplamente difundido entre a população. Uma actio stricti iuris, a condictio, destinada a repetir o que uma parte tinha dado à outra, era o instrumento utilizado para a obtenção de uma
3 Para o sistema do Direito romano, v. Xxxxxxxx, X. Riconoscimento del sistema, interpretazione sistematica, armonizzazione e unificazione del diritto, em Roma e America. Diritto romano comune, 24, 2007, 3-15; Esborraz, D. La individualización del Subsistema jurídico latinoamericano como desarrollo interno propio del Sistema jurídico romanista (I) e (II), em Roma e America. Diritto romano comune, 21, 2006, 5-56 e 24, 2007, 33-84.
4 Cf. Gai. 3,90 = I.3,14 pr.; D.12,1,2,1 (Paul., 27 ad ed.); Xxxxx, X. Das römische Privatrecht, I, Das altrömische, das vorklassische und klassische Recht, München, 19712, 530 ss.; Talamanca, M. Istituzioni di diritto romano,
Milano, 1995, 541; sobre mútuo no Direito romano, bibliografia em Saccoccio, A. Mutuo reale, accordo di mutuo e promessa di mutuo in diritto romano, in Fiori, R. (Ed.), Modelli teorici e metodologici nella storia del diritto privato, Napoli, 2011, 345 e seguintes.
proteção legal concreta. Assim, também por razões técnico-processuais (bem como por razões éticas), o contrato de mútuo era essencialmente um contrato livre de ônus (gratuito) para os romanos e as partes tinham que vinculá-lo a outro contrato, a stipulatio usurarum, para o pagamento de juros (não usurários)5.
Durante muito tempo, os juristas romanos incluíram o contrato de mútuo entre os contratos reais: isso é evidente mesmo mediante uma leitura superficial das Institutas de Gaio ou Xxxxxxxxxx, ou do Digesto.
Entretanto, se, de um lado, os romanos tentavam defender com vigor a natureza real do mútuo; de outro, provavelmente para lidar com as necessidades advindas da prática, tendiam a elaborar modelos dogmáticos que superassem a necessidade da entrega (traditio) para a produção dos efeitos (obrigatórios) do contrato.
Com relação à última questão, deve-se, porém, ter em mente:
1) a constante “desmaterialização”, repetidamente atestada pelas fontes romanas, dos elementos da traditio nos mútuos: v.g., juristas romanos discutiam a possibilidade de o mandatário (mandatarius) reter como emprestadas as quantias em seu poder em decorrência do contrato de mandato6; eles também admitem outras formas de traditio brevi manu e de delegatio solvendi7.
2) A importância da conventio para determinação não apenas da data da restituição (dies solutionis), mas também do local (locus solutionis)8, da qualidade (qualitas)9 ou quantidade (quantitas)10 das coisas a serem devolvidas, ou mesmo do valor a ser devolvido (maior que a datio)11.
5 Sobre o assunto, v. Xxxxxx, X. Gratuité en droit romain. Études d’histoire et d’ethnologie juridique, Bruxelles, 1963, 303 e seguintes; Maschi, C. A., La gratuità del mutuo classico, in Studi in onore di Balladore Xxxxxxxx, I, Milano, 1978, 289 e seguintes; Garofalo, X. Scambio e gratuità. Confini e contenuti dell’area contrattuale, Padova, 2011; sobre a condictio romana, v. Xxxxxxxxx, X. Si certum petetur. Dalla condictio dei veteres alle condictiones giustinianee, Milano, 2002.
6 Cf. D.17,1,34 pr. (Afr., 8 quaest.); D.12,1,15 (Ulp., 31 ad ed.).
7 Para o anterior, v. D.12,1,9,9 (Ulp., 26 ad ed.); para o posterior, v. D.12,1,9,8 (Ulp., 26 ad ed.).
8 Cf. D.13,4,6 (Pomp., 22 ad Sab.).
9 D.12,1,22 (Iul., 4 ex Min.)
10 D.12,1,11,1 (Ulp., 26 ad ed.), onde o único limite era a quantia da datio.
11 V. D.12,1,9,8 (Ulp., 26 ad ed.) (supra, nt. 7). No que diz respeito ao aumento da relevância da voluntas no contrato real de mútuo, v. Xxxxx, M., Xxxxxx und stipulatio, in Xxxxxxx Xxxxxxxxx I, Athenis, 1963, 155 e seguintes. [= in Ausgewählte Schriften II, Napoli, 1976, 271 e seguintes].
3) O desenvolvimento, especialmente na prática cotidiana, do Stipulationsdarlehen (mutua cum stipulatione), no qual o mútuo era “apre- sentado” em outro contrato (verbal), a stipulatio, pela qual o mutuário frequentemente prometia a restituição do capital e dos juros con- juntamente12. Em tais casos, como amplamente comprovado pelas fontes relacionadas à prática13, os juristas reconheciam apenas a existência do contrato verbal14 (ou, desde o período pós-clássico, de um contrato re et verbis). Portanto, a stipulatio destinada à restituição não estava nem relacionada a uma datio anterior e nem a uma datio determinada no mesmo momento da própria stipulatio. Na verdade, era frequente que o devedor prometesse a restituição de uma quantia que, na verdade, ainda não recebera (a chamada non numerata pecúnia). Assim, nesses casos, a datio não constituía um requisito de validade do contrato, mas um requisito de eficácia, porque seu real propósito era evitar que o mutuário pudesse se valer da exceptio non numeratae pecuniae15.
4) A existência do contractus mohatrae (tradução latina de um termo árabe que, na verdade, significava um tipo diferente de transação legal), em que o mutuante dava para o (futuro) mutuário um objeto material (um vestido, uma bandeja de prata, etc.), para que ele pudesse vendê-lo e ficasse com o dinheiro a título de mútuo16.
5) A promessa de um mútuo (stipulationes de mutuo dando e accipiendo) mediante a qual o stipulator e o promittens se comprometiam, res- pectivamente, a dar e a receber uma quantia como mútuo17.
12 D.46,2,6,1 (Ulp., 46 ad Sab.); D.45,1,126,2 (Pap. 3 quaest.); D.44,7,52 (Mod. 2 reg.).
13 D.12,1,40 (Paul., 3 quaest.); D.22,1,41,2 (Mod., 3 resp.); D.45,1,122 pr. (Xxxxx., 28 dig.); v. Camodeca, G., Tabulae Pompeianae Sulpiciorum. Edizione critica dell’archivio puteolano dei Sulpici, II, Roma, 1999, 133 e seguintes.
14 Xxxxxxxxx, X. “Una verborum obligatio” e “obligatio re et verbis contracta”, in IURA, 50, 1999 (mas publ. 2003), 7 e seguinte.
15 D.12.1.30 (Xxxx., 5 ad Plaut.); Gai., 4,116 a; v. Xxxxxxxx, X. Non numerata pecunia im klassischen römischen Recht, in SDHI, 60, 1994, 405 e seguintes.
16 Cf. D.17,1,34 pr. (Afr., 8 quaest.); D.12,1,11 pr. (Ulp., 26 ad ed.); D.19,5,19 pr. (Ulp., 31 ad ed.).
17 Cf. D.45,1,68 (Xxxx., 2 ad ed.); ligeiramente diferente é a stipulatio dari curari (uma promessa de trabalhar para a doação de dinheiro): cf.: D.12,1,42,1 (Cels., 6 dig.); D.45,1,67,1 (Ulp., 2 ad ed.). D.12,1,30 (Paul., 5 ad Plaut.) não diz respeito a essas questões.
Embora todos esses casos pareçam representar “o primeiro passo em direção ao reconhecimento de um mútuo meramente consensual”18, é necessário reconhecer que a estrutura real desse contrato resistiu dentro da jurisprudência romana, que trata, em relação aos mútuos, como singularia recepta.
Essa é a principal razão para a formidável resistência da ancoragem exclusiva do mútuo romano à categoria dos contratos reais durante todo o curso do sistema do Direito romano.
2 O MÚTUO NA TRADIÇÃO CIVILISTA: DA GLOSA AO HUMANISMO
Podemos traçar as linhas de desenvolvimento do pensamento jurídico relacionado ao contrato de mútuo na Europa, deixando de lado, por enquanto, os eventos relacionados a esse tipo de contrato na Espanha e na América Latina, que serão examinados posteriormente.
Para os glosadores, assim como para os comentadores, não havia dúvidas de que o mútuo era um contrato real. Todavia, eles distinguiam um mútuo “natural”, em que a datio havia sido efetivamente posta em prática, de um mútuo civil, em que a datio era considerada implícita, como no caso da non numerata pecúnia após os dois anos de prescrição da querella19. Os comentadores (Xxxxxxx xx Xxxxxxxxxxxx, Xxxxxx xx Xxxxxxx, Xxxx Xxxxx, Xxxx xx Xxxxxxx, Xxxxxxx Xxxxx, etc.) não se afastaram desse esquema e continuaram a ver o contrato de mútuo apenas como um contrato real20.
Porém, já no início do século XVI, o ambiente cultural na Europa começou a mudar e a ideia do consensualismo passou a ter uma maior influência no direito dos contratos.
De um lado, os cristãos canonistas confirmaram que a observância do princípio da pacta sunt servanda era uma questão concernente à esfera da consciência. Não respeitar promessas, portanto, não combinava com a ética de
18 V. Xxxxxxxxxx, X. The Law of Obligation. Roman Foundations of the Civilian Tradition, Oxford, University Press, 1996 (1. ed. South Africa 1990), 159.
19 V., v.g., gl. tuum a D.12,1,2,2 e gl. creditum a D.12,1,2,3.
20 V., v.g., Xxxxxxxx Xxxxxxxxxxxx, In secundam veteri Digesti commentarii, Venetiis, 1570, ad D.12,2,2, c.6.
um bom cristão, de maneira que o consentimento deveria ser aceito como uma fonte de obrigações21.
Por outro lado, é possível verificar algumas opiniões divergentes também durante o humanismo do mos gallicus. De fato, para Xxxxxxx Xxxxxxxx (Xxxxxxx Xxxxx, 1522-1590), não havia dúvida de que o mútuo constituía um contrato real; no entanto, um de seus alunos, Xxxxxxxx Xxxxxx (1536-1617), inspirado pela velha glossa das Instituições de Justiniano22, basicamente sustentava que, da mesma forma que os bois são amarrados por seus chifres, os homens deveriam estar amarrados por suas palavras. A conclusão que alcançou era a de que uma simples promessa valia tanto quanto a stipulatio do Direito romano23.
Esse modo de pensar está alinhado aos principais ideais da Renascença, para os quais o homem é o centro do universo e, posteriormente, também às teorias liberais. Na economia e na filosofia (Xxxx Xxxxx [1632-1704], Xxxxxx Xxxxxxxx [1685-1753], Xxxxx Xxxx [1711-1776], Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx [1712-1778]), um princípio tornou-se cada vez mais relevante: todos devem ser livres para se vincular apenas por seu consentimento24. Portanto, não surpreende o fato de que um Jurista holandês, Xxxxxx Xxxxxxx (1588-1657), tenha destacado que o dilema entre os aspectos reais do contrato e o consentimento no mútuo romano deveriam ser solucionados em favor do último25.
21 Esse princípio foi estabelecido desde o Concílio de Cartago de 348 (“pax servetur, pacta custodiantur”) e mais tarde tornou-se vinculativo a partir de 1212 (Supiot, A. Homo juridicus. Essai sur la function anthropologique du droit, Paris, 2005 trad. It. Homo juridicus. Saggio sulla funzione antropologica del diritto, Milano, 2006, 117 e seguinte; trad. Bras. Homo juridicus. Ensaio sobre a função antropológica do Direito, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 115), e implica que aquele que não age de acordo com a sua palavra comete pecado mortal: Xxxxxxx, X. Pacta sunt servanda. Considérations sur l’histoire du contrat consensuel, in Revue intern. de droit comp., 1961, p. 18 e seguintes.
22 Gl. vinculum a I.3,13 pr.: “Ut enim boves funibus visualiter ligantur, sic homines verbis ligantur intellectualiter”; e então: “Verba ligant homines, taurorum cornua funes”.
23 XXXXXX, X. Institutes coutumières, manuel de plusieurs et diverses règles, sentences, & proverbes, tant anciens que modernes, du droit coutumier & plus xxxxxxxxx xx xx Xxxxxx, 0000.
24 Em acréscimo aos ingleses Petition of Right (1626), Habeas Corpus Act (1679) e Bill of Rights (1689), é possível lembrar um nome, um livro, uma data: XXXXX, X. (1632-1704) Two Treatieses of Government, 1690; sobre o assunto, v. XXXXXX, N., Liberalismo e democrazia, Xxxxxx, 0000, passim; STEINBERG,
J. Xxxxx, Xxxxxxxx and the Idea of Consent. An Inquiry into the Liberal-Democratic Theory of Political Obligation, West Point (Conn.), 1981.
25 XXXXXXX, X. In quatuor libros Institutionum imperialium commentarius academicus et forensis, Xxxxxxx, 1777, 3,15,1, 662.
Todavia, essa abordagem não foi universalmente compartilhada. Na Europa, de um lado, as doutrinas do direito natural e do iluminismo passaram a afirmar-se: elas exaltavam a liberdade individual e a liberdade de negociação, de maneira que o consentimento, por si só, pudesse gerar um contrato. De outro lado, entre os juristas do usus modernus pandectarum, particularmente na Alemanha e nas regiões da Europa central de 1600 e 1700, é possível encontrar mais de um que claramente apoiava a ideia de que o mútuo era um contrato real. É o caso, por exemplo, das opiniões de Xxxxxxxx Xxxx Xxxxxxxxxx (1618-1687) e outros juristas menos conhecidos desse período26.
Ambos, Domat27 e Pothier28, confirmaram que o mútuo é um contrato real, ancorando tal entendimento em fontes romanas; no entanto, o argumento de Xxxxxxx, de que não podemos retribuir o que não recebemos, não é forte o suficiente e constitui um ponto fraco de toda a teoria do mútuo como um contrato real.
Como aconteceu em muitos casos, as escolhas contidas no Código Civil francês (1804) confirmam as teorias desses dois juristas: vejamos, por exemplo, o art. 1.892 do Código, que, sem dúvida, inclui o mútuo entre os contratos reais, seguindo a tradição do Direito romano clássico29. As alegações de que os franceses, de iure condendo, podem ter se inclinado para a possibilidade de codificar (também?) um contrato de mútuo consensual30, não são indiscutíveis31, mas não encontraram uma recepção legislativa.
O modelo diferente do consensualismo no direito contratual encontra, em vez disso, uma saída quase natural no Prussiano Allgemeines Land Recht (ALR), de 1794. Esse código, como um produto do iluminismo jurídico, codificou dois tipos de mútuo. Um é o mútuo stricto sensu (o eigentliches Darlehen), caracterizado
26 XXXXXXXXXX, X. Tract. synopt. de mutuo, litterarum obligatione et quaerella non numeratae pecuniae, Tübingae, 1663; XXXXXXX, P. von. Differentiae iuris rom. et germ. in mutuo, Xxxxx, 0000.
27 XXXXX, X. Le leggi civili nel lor ordine naturale II, Napoli, 1788 (it. transl. of the ed. Paris, 1777), 119.
28 Cf. XXXXXXX, X. X. Trattati dei contratti di beneficenza I, Napoli, 1839 (trad. it.), p. 80.
29 Art. 1.892 CC fr.: “Le prêt de consommation est un contrat par lequel l’une des parties livre à l’autre une certaine quantité de choses qui se consomment par l’usage, à la charge par cette dernière de lui en rendre autant de même espèce et qualité”.
30 Cf. Xxxxxxx, Leçons, 2, Paris, 1966, 64 e seguintes; Ghestin, X. Traité de droit civil. Les principaux contrats spéciaux, Paris, 1996, 811; STARK, B. Droit civil. Obligations, Paris, 1972.
31 Xxxxxx-Xxxxxxxxxx, M. N. Existe-t-il encore des contrats réels en droit français? Ou la valeur des
promesses de contrat réels en droit positiv, in Revue trimestrielle de droit civil, 1985, p. 1 e segs.
pela prévia entrega de uma quantidade de dinheiro ou outros bens fungíveis, com a obrigação para o mutuário de devolvê-las (vejamos ALR I, 11, 1, § 653). O outro, que pode ser definido como um mútuo não stricto sensu, é caracterizado pelo fato de que uma parte assume a obrigação de emprestar à outra parte (§ 654).
Nesse segundo tipo, puramente baseado no consenso, a parte obrigada a emprestar pode ser reclamada pelo cumprimento de sua obrigação de emprestar, exceto se a outra parte preferir rescindir o contrato e postular por uma compensação pelos danos. Não obstante, o ALR deu à parte que prometeu emprestar a possibilidade de não emprestar a quantia prometida, caso as condições econômicas do mutuário (que, em todo caso, é obrigado a receber o dinheiro: § 658) se modificassem ao ponto de tornar-se duvidosa sua capacidade de devolver o dinheiro (§ 655 a 656).
A posição adotada no ALR foi apenas parcialmente aceita entre os pandectistas. Esses juristas tenderam a reconhecer o mútuo como um contrato real com base no mesmo argumento de Xxxxxxx (não podemos devolver o que não recebemos), embora a possibilidade de um contrato preliminar de mútuo (Vorvertrag), que teria, obviamente, o consentimento como base, fosse amplamente admitida32. Contudo, o contrato de mútuo foi uma zona de conflito aberta para os juristas alemães da época, que tentavam, de algum modo, superar os limites decorrentes de sua caracterização como um contrato real33.
Resultados dessa abordagem dos juristas alemães podem ser encontrados no BGB de 1900, embora nos trabalhos preparatórios tenham demonstrado preferência à ideia do mútuo baseado no consentimento. De fato, o § 607 mantém uma conotação real do mútuo, mesmo que deixe uma porta aberta para a possibilidade de concluir um contrato preliminar de mútuo (Darlehenvorvertrag:
32 Glück, C. F. F. Ausfürliche Xxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000 (xx. transl. ed. by X. Xxxxxxxx, Commentario alle Pandette XII, Milano, 1901, § 779 e seguintes); Xxxxxxx, F. C. von. Das Obligationenrecht als Theil des heutigen römischen Recht II, Berlin, 1853, § 77, 246 nt. 1; Xxxxxxxxx, X. Zur Lehre der Vorvertrag, in Archiv für die Civilistische Praxis, 71, 1887, 43 e seguintes; Id., Neue Beitrage zur Xxxxx xxx Xxxxxxxxxx, xxxx., 00 v.; contra o Vorvertrag do mútuo, v. Xxxxxxxx, X. Xxxxxxxxx XX. Xxxxxxxxxxxxxxxxxx,
Xxxxxx, 00000, 28.
33 V., v.g., Xxxxx, X. Realcontract und Vorvertrag, in Jahrbücher für die Dogmatik des heutigen römischen un deutschen Privatrechts (Xxxxxxx’x Jahrbücher), 31, 1892, 190 e seguintes (em que a entrega é considerada como condicio iuris do mútuo); Xxxxxxx, G. Realverträge im heutigen Recht, in Archiv fur bürgerliches Recht, 38, 1913, 314 e seguintes.
§ 610). A solução do BGB encontrou diferentes apoiadores na Alemanha34, embora os que abraçavam a solução do mútuo com base no consentimento continuassem a promover essa abordagem35. Apesar de uma forte resistência da jurisprudência, a última abordagem encontrou um bom suporte na reforma de 2002 do BGB: o mútuo de dinheiro (Gelddarlehen) foi separado do mútuo de outros bens fungíveis (Sachendarlehen), e ambos foram estruturados como contratos consensuais.
Todavia, ainda no século XX, na Europa, o mútuo consensual ingressou no Código Federal Suíço das Obrigações (Obligationenerech) de 1882-1911, que, mesmo regulando os contratos reais (doação manual, penhor e transporte ferroviário), considerou o mútuo apenas um contrato consensual (art. 312).
Além disso, também na Itália, os estudiosos gradualmente conseguiram defender a ideia de um mútuo consensual, porém com o emprego de meios completamente diferentes dos utilizados na Alemanha.
Na Itália, a escolha do Code Xxxxxxxx (mútuo real), aos menos em suas intenções, foi seguida pelo Código Civil de 1865. A terminologia ambígua usada por esse Código36, embora constantemente reformulada por estudiosos e juízes para trazê-la de volta à realidade, ofereceu argumentos aos adeptos da teoria consensual37.
Pelo contrário, uma escolha comprometedora foi feita na então chamada versão ítalo-francesa do Código das Obrigações de 1927, que, seguindo o ALR, manteve a dupla possibilidade: as partes podem escolher celebrar o mútuo como um contrato real ou como um contrato consensual (art. 636)38.
O Código italiano de 1942 mostra um particular desenvolvimento na questão. Nos trabalhos preparatórios, seguindo a abordagem da versão ítalo-
34 Lübtow, U. von. Die Entwicklung des Darlehensbegriff im römischen und in geltenden Recht, Berlin, 1965, 81 e seguintes; Xxxxxx, X. Xxxxxxxx xxx Xxxxxxxxxxxx XX, Xxxxxxx, 000000 (1. ed., 1953), § 51; Medicus,
X. Xxxxxxxxxxx XX, Xxxxxxxxxx Xxxx, Xxxxxxx, 0000, 133; Zimmermann, R. The Law of Obligation. Roman Foundations of the Civilian Tradition, Oxford, 1996 (1. ed. South Africa, 1990), 164 e seguintes.
00 Xxxxxxxxxx-Xxxxxxx, Xxxxx xxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxx Xxxxxxxx, 000000, § 142 I.
36 Cf. art. 1.819: “Il mutuo o prestito di consumazione è un contratto, per cui una delle parti consegna all’altra una data quantità di cose, coll’obbligo nell’ultima di restituire altrettanto della medesima specie e qualità di cose”.
37 Pacifici-Mazzoni, V. E. Istituzioni di diritto civile v. 2, Firenze, 19275, 399; on the ambiguity of “per cui” of art. 1.819, v. Xxxxxxx, X. La “datio mutui”. Prospettive romane e moderne, Napoli, 1989, 17 e seguintes.
38 V. Xxxx, X. Il mutuo, in Trattato di diritto privato diretto da X. Xxxxxxxx 00. XX, Xxxxxx, 0000, 660.
-francesa, o mútuo foi considerado como um contrato com dupla natureza, real e consensual, e as partes poderiam escolher39. Na última leitura antes da promulgação do Código, todavia, a redação do artigo foi amplamente modificada, e o art. 1813 mostra que, para o legislador italiano, o mútuo continua sendo um contrato real, que é também o que as Xxxxxx e parte dos acadêmicos sustentaram40.
Na Itália, há alguns estudiosos que afirmam que os contratos reais foram automaticamente excluídos pelo legislador italiano, que recepcionou uma noção de contrato baseada essencialmente no consentimento41; há outros doutrinadores que acreditam que, com o art. 1.821 (“promessa de mútuo”), o mesmo legislador teria escolhido estruturá-lo não como um contrato real42. Na verdade, na Itália, a Suprema Corte elaborou uma noção de mútuo consensual, quando, durante os anos 50, teorizou a existência do chamado “mútuo para um fim específico” (mutuo di scopo). Esse é um tipo de mútuo principalmente usado para a construção de imóveis (mutui edilizi), em que o mutuante identifica a finalidade para a qual o mútuo deve servir. Dessa forma, o contrato é concluído quando as partes chegam a um acordo; o mútuo do dinheiro (normalmente relacionado ao avanço das obras) diz respeito à fase da execução do contrato, e não mais ao estágio de celebração do contrato. Posteriormente, esses estudiosos italianos reconheceram que, de acordo com o modelo que as partes decidirem usar, o contrato poderia ser tanto real quanto consensual.
Se olharmos para os mais recentes projetos de unificação do direito contratual que demandam a maior parte da atenção na Europa, é evidente que o modelo de mútuo consensual parece ser significativamente o dominante.
39 V. art. 615 do Progetto preliminare del libro delle obbligazioni, in Lavori preparatori del Codice civile (anni 1939-1941), v. II, Roma 1942, 183.
40 Xxxxxxxx, X. xx /Xxxxx, X. Istituzioni di diritto privato, II, Diritti di obbligazione e contratti. Tutela dei
diritti, Milano-Messina, 19538, 375; Forchielli, P. I contratti reali, Milano, 1952; G. Giampiccolo, x.x. Xxxxx (dir. priv.), in ED, 27, 1977, 446 ss.; Messineo, F., Manuale di diritto civile e commerciale (codici e
norme complementari), Milano, 19589, V, 124 ss.; MaschI, C. A. I. La categoria dei contratti reali. Xxxxx xx xxxxxxx xxxxxx, Xxxxxx, 0000; Rescigno, P. Manuale del diritto privato italiano, Xxxxxx, 00000, 746.
41 Xxxxx, X. Il contratto, in Trattato di diritto civile diretto da F. Xxxxxxxx, XX/0, Xxxxxx, 0000, 613 e seguintes.
42 Carres I, F. I. Il comodato. Il mutuo, Torino, 1950 – Trattato di diritto civile italiano diretto da X. Vassalli,
v. VIII, fasc. 5 e 6, 99 ss.; Xxxxxxxxx, Il conto corrente bancario, Napoli, 1955, 41 (que pensa que o art. 1.813 seja apenas uma relíquia histórica); V. Xxxxxxx, Mutuo (storia), in ED, 27, 1977, 442 e seguintes.
Esse modelo parece basear-se tanto nos Princípios de Contratos Comerciais da Unidroit (1994) quanto no chamado Projeto Lando (1996/2000), o PECL (Principles of European Common Law): eles declaram que o contrato consiste no mero consentimento, sem necessidade de qualquer outro requisito.
No § 3.2 dos Princípios da Unidroit, declara-se expressamente que a norma pretende especificamente “excluir que a conclusão do processo de formação [do contrato] possa... depender da entrega de uma coisa”.
Pelo contrário, o Code européen des contrats – Avant-project (Gandolfi, 2002) mantém aberta a possibilidade de “dobrar” um contrato real com um modelo consensual correspondente (e atípico). Dessa forma, com base nessa abordagem, o mútuo poderia ser considerado como um contrato real, mas as partes também poderiam estruturá-lo como um contrato consensual.
A definição do contrato do Draft Common Frame of Reference (DCFR) (2008), por sua vez, (II.I:101) prevê, em um sentido semelhante de domínio do consentimento, que “um contrato é um acordo que se destina a dar origem a uma relação jurídica vinculativa ou a ter algum outro efeito jurídico”43.
3 O MÚTUO NA AMÉRICA LATINA: OS DOIS MODELOS DIFERENTES
Em relação ao sistema latino-americano (supra, item 1), como sabido, o ponto de partida para a propagação do Direito romano no novo mundo são as Siete Partidas (século XIII). Nas Siete Partidas, o mútuo é essencialmente considerado como um contrato real, não obstante também pareça ser reconhecida a possibilidade de as partes fazerem, uma a outra, uma promessa de dar e receber um montante no mútuo44. Além disso, a glosa de Xxxxxxxx Xxxxx (século XVI) ao texto faz esse reconhecimento45.
O ponto de inflexão é representado pelo Ordenamiento de Alcalá (1348), que promulgou uma grande reforma no sistema contratual das Partidas, prevendo que, em todos contratos, o consentimento era condição necessária e suficiente para o surgimento das obrigações. No Direito de Castilla y Léon, assim, o princípio “solus consensus obligat” foi fixado no direito contratual alguns séculos
43 Xxxx, X. X. (Ed.). Principles, Definitions and Model Rules of European Private Law, Draft Common Frame of
Reference, v. 3, Munich, 2009, 2464.
44 Part. 5,1,9.
45 Gl. de gracia a Part. 5,1 Tit.
antes de sua disseminação na Europa, e daqui foi rapidamente transferido para a América, por exemplo, por meio do livro do jesuíta espanhol Xxxxxxxxxxx xx Xxxxxxxx (século XVI), Arte de los contratos46.
Essa Ley do Ordenamiento de Alcalá, mostrando que todos os contratos, inclusive o de mútuo, eram considerados, naquele tempo, consensuais, também foi confirmada na Nueva Recopilación, editada em 156747. Ainda mais claramente, foi adotado na Novísima Recopilación publicada em 1805, na qual esse princípio consta no começo do Título X48, provando a importância que ainda lhe era atribuída no final do século XIX na Ibero-América.
Também podem ser encontradas testemunhas da aceitação do princípio do consensualismo na América Latina em outro texto, que amplamente circulou por lá, e influenciou as codificações nacionais: o Projeto de Código Civil Espanhol de Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx (1783-1855) em 1851. No Projeto, o mútuo é coerentemente definido (art. 1.630) dessa forma: “Préstamo es el contrato por el cual una de las partes se obliga á entregar á la otra... dinero ú otra cosa de las fungíbles...”.
Na América Latina, entretanto, o desenvolvimento do princípio do consensualismo não chegou a eliminar a categoria do contrato real, que se manteve vivo graças à força intrínseca das partidas e às opiniões de vários juristas latino-americanos49. Os juristas, basicamente, afirmavam que não era oportuno abandonar a categoria dos contratos reais, e que entender a norma do Ordenamiento de Alcalá como se realmente quisesse excluir a categoria não era correto, chegando a um ponto que o mesmo legislador espanhol não queria alcançar50.
Por essa razão, na América Latina os projetos de codificação civil (Projecto
Xxxxxxx [1851], art. 2.167; Consolidação das leis civis [1857]; e o Esboço [1864] de
46 B. De Albornoz, Arte de los contratos, Valencia, 1573, fol. 5, lib. I, De las obligaciones y promisiones, cap. VIII.
47 Nov. Rec. 5,16,2.
48 Noviss. Rec. 10,1,1.
49 Xxxx Xxxxx Xxxxxxx (1777-1820), Xxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxx Xxxxxx (1808-1877), Xxxx Xxxx (1731-1806), Xxxxxx xx Xxxxx (1776-1860), Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxx (1742-1814) e Xxxxxxx Xxxxxxxx x Xxxxxx (1784-1847).
50 Xxxxx, X. Xxxxx xx xx/Montalbán, X. X. Xxxxxxxxx de derecho civil y penal de España II, Madrid,
18616, 297 nt. 1 e 446; Claro Solar, L. Explicaciones de derecho civil chileno cit., 581; Esborraz, D. F. Contrato y sistema en América Latina, Buenos Aires, 2006, 143 e seguintes.
Teixeira de Freitas51), bem como os Códigos Civis elaborados no século XIX (os chamados Códigos de la transfusión del derecho Romano y de la independencia ou Códigos de la madurez), não renunciaram à categoria do contrato real52.
Um ponto de virada para a América Latina é representado pelo Código Civil Federal do México (1928). Após as duas Codificações Federais de 1870 (art. 2.809) e 1884 (art. 2.684), que eram alinhadas com os Códigos de outros países da época, o código elaborado em 1928 adotou o princípio consensualista e reconheceu a possibilidade de que um mútuo poderia ser celebrado pelo mero consentimento (art. 2.384). Evidentes e declaradas são as influências, em tal escolha, do Ordenamiento de Alcalá, do Proyecto Xxxxxx Xxxxxx e do suíço OR de 1882-191153.
Esse modelo, que permaneceu adormecido durante anos no sistema latino-americano, ressurgiu nos anos 80 do século passado (muito embora se possa ter presente também o chamado Projeto Bibiloni do Código Civil, lançado nos anos 30, na Argentina54). Ele é conscientemente adotado no Código Civil do Peru ([1984], art. 1.648, que mudou sua abordagem ao tópico em comparação com os Códigos anteriores de 1852 e 1936) e no Código Civil de Cuba ([1987], art. 379). Também, nesses casos, é clara e declarada a inspiração no Código Civil do México de 1928 e nos estudiosos alemães (em particular Larenz).
Por essas razões, na literatura jurídica latino-americana, o contrato real é considerado um “arcaísmo jurídico”55, ou uma categoria “hoy huérfana de todo sustento”56; os estudiosos explicam que a lei pode, em casos particulares, prever que os efeitos são “emancipados” da necessidade de executar algumas solenidades, como seria a entrega57.
51 V. infra, § 4.
52 Art. 2.196 CC chi. (1855), art. 2.197 CC uru. (1868), art. 2.240 CC arg. (1869), art. 1.256 XX xxx. 0000
(x xxx. 000 XX xxx. 2003).
53 Xxxxxxxxx Xxxxxxxx, X. De los derechos personales de crédito u obligaciones, México, 1996, 103 seguintes; Sánchez Medal, R. De los contratos civiles. Teoría xxxxxxx xxx xxxxxxxx-Xxxxxxxxx xx xxxxxxxx-Xxxxxxxx
xxxxxxx xx xx Xxxxxxxxx, Xxxxxx, 000000, 223.
54 Xxxxxxxx, X. X. Xxxxxxxxxxxx de reformas al Código Civil argentino VI, Buenos Aires, 1932, 275.
55 Xxxxxxxx, X. X. Xxxxxxxxx/1. Parte general, Buenos Aires, 1997, 128.
56 Mosset Iturraspe, X. Contratos (ed. actualizada), Santa Fé, 1998, 65 e seguintes.
57 A entrega é entendida como condicio iuris do mútuo: Xxxxxxx Xxxxx, X. Curso de contratos (Montevideo 1962) 204 ss.; para a base dessa teoria cf. Xxxxx, X. Realcontract und Vorvertrag, en Jahrbücher für die
Dessa forma, em nada surpreende que uma escolha em favor do mútuo consensual também tenha sido feita no novo Código Civil da Argentina de 2015.
4 OS PAÍSES DO BRICS
A) BRASIL
Nesse artigo, serão examinadas as regras relativas ao contrato de mútuo nos países do Brics pertencentes ao sistema do Direito romano: essa é a razão pela qual o contrato de mútuo na Índia não será analisado.
No Brasil, a categoria do contrato real foi defendida por Xxxxxxxx xx Xxxxxxx (1816-1883) na Consolidação das Leis Civis (1858). Esse estudioso esclarece que os contratos são consensuais ou reais, e os últimos requerem algo além do mero acordo58.
Alguns anos depois, o mesmo Teixeira de Freitas repete, no Esboço
(1859-1867), que os contratos são reais ou consensuais (art. 1.903).
O jurista brasileiro Xxxxxx Xxxxxxxxx (1859-1944), autor do Projeto final do Código Civil brasileiro de 1916, também defendeu a categoria dos contratos reais59.
Com base nesses elementos, portanto, pode-se bem entender que o Código Civil de 1916 (art. 1.256), mas também o mais recente Código Civil de 2002 (art. 586)60, observam a resistência e validade dessa categoria dogmática.
B) RÚSSIA
O Código Civil russo, promulgado em 1964, baseado na Lei de Princípios promulgada em 1961, foi fortemente influenciado pelo Direito romano. O Direito romano chegou à Rússia por força da tradição legal diretamente relacionada aos Códigos de Xxxxxxxxxx e aos seguintes reescritos em grego de algumas de suas partes, também por meio da tradição resultante diretamente da Escola
Dogmatik des heutigen römischen und deutschen Privatrechts [Xxxxxxx’x Jahrbücher] 31 [1892] 190 seguintes; Messineo, F. v. Contratto (dir. priv.), en ED 9 (Milano 1961) 883.
58 Vd. art. 477: “Quando se-empresta alguma cousa, que consiste em numero, pêso, ou medída, e com o uso se-consome, o emprestimo chama-se mutuo”.
59 Cf. Beviláqua, C. Direito das Obrigações, Recife, 1895 (repr. da 5. ed., Rio de Janeiro, 1977), 186 e 250.
60 Art. 586: “O mútuo é o mútuo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade”.
de Bolonha. O Código Civil de 1964, como sabido, também foi fortemente
influenciado pela pandectística alemã.
Esse Código Civil, no seu art. 269, declara claramente uma estrutura real para o mútuo:
Pelo contrato de mútuo, uma parte (o mutuante) transfere para a propriedade de outra parte (o mutuário), ou para a sua gestão operativa, dinheiro ou outros artigos definidos por características genéricas, e o mutuário se compromete a devolver mutuante a mesma quantia de dinheiro ou uma quantidade igual de artigos do mesmo tipo e qualidade.
Vale destacar, nesse Código Civil, a necessidade da forma escrita para o mútuo superior a 50 rublos e a expressa previsão de que o contrato é considerado concluído apenas com a transferência da propriedade do dinheiro.
O Código Civil de 1994-1996 parece, ao menos na definição, transformar o
mútuo em um contrato puramente consensual.
De fato, o art. 807 declara:
Através do acordo de mútuo, uma parte (mutuante) deve transferir para a propriedade de outra parte (mutuário) dinheiro ou coisas marcadas por características genéricas, enquanto o mutuário se compromete a devolver ao mutuante a mesma quantia de dinheiro (o valor do mútuo) ou igual quantidade de coisas do mesmo tipo e qualidade.
Pode-se sustentar que esse artigo foi influenciado pelos modelos ditos como soft law, presentes no cenário europeu, antes mencionados: primordialmente pelos Princípios da Unidroit (supra, § 2), que afirmam um domínio do princípio do consensualismo no direito contratual.
Na mesma direção de relevância do consentimento, o art. 812 do Código
Civil russo especifica que
o mutuário terá o direito de contestar o contrato de mútuo em razão da falta de dinheiro, provando que o dinheiro ou outras coisas não foram recebidas por ele,
na realidade, pelo mutuante ou foram recebidas em quantidade menor que a prevista no contrato.
Todavia, de um ponto de vista dogmático, o ordenamento jurídico russo não parece se aprofundar muito na consensualização do mútuo real. De fato, mesmo que a transferência da propriedade do dinheiro seja desviada do momento constitutivo do contrato para a simples obrigação mutuante, o § 2º do art. 807 confirma que o contrato pode ser considerado resolvido pelo simples momento da entrega do dinheiro ou das coisas (“Um contrato de mútuo será considerado concluído desde o momento em que o dinheiro ou as coisas são transferidos”).
Também é importante salientar a exigência da forma escrita para os mútuos que excedam uma certa quantia (dez vezes o salário-mínimo: art. 808) e a introdução de um especial “mútuo para uma finalidade” (art. 814) que se aproxima do mutuo di scopo, criado na Itália pela Suprema Corte (supra, § 3).
C) CHINA
Na China, o contrato de mútuo foi recentemente disciplinado pela lei geral de contratos de 1999, a que se teve acesso na tradução italiana feita pelos colegas Xxxx e Formichella61.
Essa lei contempla apenas o mútuo em dinheiro (Título 12), não referindo o mútuo de outras coisas fungíveis. Ela diferencia mútuos “financeiros” (arts. 196-209) e mútuo entre indivíduos (art. 210-211). O primeiro é um contrato consensual, que deve ser realizado em forma escrita; o último não tem uma forma determinada e parece ser um contrato real.
O art. 196 prevê que o mútuo (financeiro) é o contrato em que o mutuário toma dinheiro do mutuante e se compromete a restituir a mesma quantia em dinheiro.
A intenção do legislador chinês de estruturar esse mútuo financeiro como um contrato consensual é comprovada pelo art. 201, que prevê que, se o mutuante não entregar o dinheiro de acordo com o prazo e a quantia determinados no contrato, fica responsável pelas perdas sofridas pelo mutuário. O art. 201 também prevê que, se o mutuário não receber o dinheiro no momento
61 Xxxxxxxxxxx, L./Xxxxx, X. (Ed.). Leggi tradotte della repubblica popolare cinese: legge sui contratti, Torino, 2002, 87 e seguintes.
e na quantia acordados, deverá pagar juros a partir do momento em que foi acordado que deveria ter recebido o dinheiro.
Essa interpretação parece ser confirmada pelo art. 210, no qual se esclarece que o mútuo entre indivíduos se torna efetivo apenas com a transferência do dinheiro, de forma que o momento em que o contrato produz seus efeitos é claramente deslocado para um momento subsequente à troca de vontades, como acontece com o modelo dos contratos reais.
O legislador chinês, portanto, parece ter codificado um mútuo real entre indivíduos e um mútuo consensual em todos os outros casos, com particular referência às operações financeiras operadas por intermédio de um banco62. Essa abordagem não é inteiramente nova no sistema do Direito romano: como já referido, o Código Civil da Prússia (ALR de 1793) e o Projeto ítalo-francês para a unificação do Direito das Obrigações de 1927 traçaram importantes precedentes nessa direção (supra, § 3).
Também nesse caso vale destacar que a forma escrita é expressamente exigida para esse contrato pelo art. 197, salvo acordo em contrário pelas partes.
Xx Xxxxxxx, no seu “Projeto de Código Civil Verde”, sugere mudar essas regras, estruturando apenas os mútuos gratuitos como contratos reais e os mútuos onerosos como contratos consensuais.
D) ÁFRICA DO SUL
Podemos afirmar que a África do Sul pertence ao sistema jurídico romano63.
O Direito dos Contratos sul-africano foi forjado a partir de regras derivadas principalmente do Direito Civil romano holandês do século XVII e do common law inglês do século XIX.
Na África do Sul, uma noção de contrato fundada exclusivamente no acordo entre as partes é adotada, exceto pela necessidade de uma forma específica, quando expressamente exigida. Essa é a razão pela qual nesse ordenamento jurídico a categoria de contrato real é desconhecida, embora seja bem conhecida a categoria dos contratos com efeitos reais.
62 Xxxx Xxxx, X. I contratti reali dal diritto romano al diritto moderno, Tesi di Dottorato, Roma, 2015, 121 e seguintes.
63 Xxxxxxxx, X. Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxx, Xxxxxxxxx, 00000, trad. It Santarelli. U./FUSCO, S. A., Milano, 1980, II, p. 229.
CONCLUSÃO
Em conclusão, é preferível não concordar com o modelo do mútuo consensual.
Particularmente, não se considera que seja possível aceitar uma solução em que se estabeleça uma noção abstrata de contrato (considerado como o acordo entre duas ou mais partes para criar um arranjo específico sobre os seus interesses) e, então, as partes tenham que lidar, em suas transações, com a maior parte dos problemas complexos que possam surgir posteriormente. A vida real parece ser muito mais complexa do que esse esquema superficial.
A posição do legislador chinês parece ser mais respeitosa na concretização do que acontece na vida diária e, de uma forma útil, diferencia a estrutura do contrato de mútuo, a depender se o mutuante é um banco (e, nesse caso, o mútuo é geralmente oneroso, porque envolve juros) ou um indivíduo (e, nesse caso, usualmente tratamos de mútuos gratuitos).
Ao longo da história, ambos os mútuos reais e consensuais encontraram um lugar no sistema jurídico romano e de várias formas estão aparecendo nas ordens jurídicas dos países do Brics.
Submissão em: 28.05.2020 Avaliado em: 16.07.2020 (Avaliador B) Avaliado em: 05.07.2020 (Avaliador C)
Aceito em: 02.08.2020