Cláusula resolutiva e de vencimento antecipado na Recuperação Judicial Termination and acceleration clauses in the Reorganizations
Cláusula resolutiva e de vencimento antecipado na Recuperação Judicial Termination and acceleration clauses in the Reorganizations
Marcelo Barbosa Sacramone1
Resumo
A autonomia de vontade dos contratantes é limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes. Na decretação de falência do devedor, a cláusula resolutiva deve ser considerada inexistente por ser contrária ao interesse público de proteção da coletividade de credores. A rescisão do contrato é incompatível à norma cogente, que garante ao administrador judicial o direito de cumprir os contratos se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos. Em que pese a inexistência de norma expressa na recuperação judicial, a cláusula de vencimento antecipado das obrigações e a cláusula resolutiva comprometem a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. Para que se busque a satisfação do interesse público na manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, a liberdade contratual de condicionar o vencimento antecipado ou a resolução dos contratos em razão da recuperação judicial deve ser restringida.
Abstract
The freedom of choice of the contractors is limited by considerations of public order and the common practices. In the debtor's bankruptcy ruling, the termination clause to be considered void as contrary to the public interest of creditors protection. The termination of the agreement is incompatible with compulsory rule of law, which guarantees the bankruptcy trustee the right to enforce contracts if compliance reduce or prevent the increase in the bankruptcy liability or necessary to the maintenance and
1 Doutor e Mestre em Direito Comercial pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor
de Direito Empresarial da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e pr ofessor de pós - graduação da Escola Paulista da Magistratura (EPM). J uiz de Direito do Estado de São Paulo. Autor de obras e artigos jurídicos.
Xxxxxxxx xxxxxx: cláusula resolutiva; vencimento antecipado; recuperação judicial; falência; capitalismo humanista.
Key words: termination clause; acceleration clause; reorganization; bankruptcy; humanistic capitalism.
1 - Introdução
Historicamente, a concepção clássica de contrato fora baseada na autonomia de vontade dos indivíduos, os quais figurariam em igualdade de condições. Em contraponto ao intervencionismo estatal característico do Antigo Regime, o modelo de contrato era o instrumento para uma nova classe de poder que surgia, a burguesia, e que pretendia se contrapor ao poder hierárquico das monarquias absolutistas.
A liberdade conferida aos indivíduos para tutelarem seus próprios interesses elevava a vontade como elemento essencial do contrato. Pelo contrato, entendia-se que a vontade das partes de tutelarem seus interesses individuais aumentava a riqueza de ambas e promovia o desenvolvimento econômico.
Para que o contrato bilateral pudesse ocorrer, como um contrato de compra e venda, ambas as partes atribuíam maior valor ao bem adquirido do que ao bem entregue. O comprador valorava a mercadoria adquirida mais do que o preço pago por ela, assim como o vendedor valorava mais o preço do que a mercadoria vendida2 . O contrato beneficiava ambas as partes, pois com a troca eram aumentadas as riquezas individuais. Beneficia-se também a economia como um todo, pois os recursos eram dirigidos à sua melhor alocação, já que transferidos àqueles que mais os valoravam.
2 XXXXX, Xxxxxx. The problem of social cost, in Journal of law & Economics, v. III, Chicago, The University of Chicago Press, October 1960.
A autonomia de vontade das partes, caracterizada pela liberdade de contratar e de estabelecer os termos dessa contratação, contudo, ruía diante de o pressuposto de igualdade formal não equivaler à igualdade material dos agentes. A preponderância econômica, a necessidade premente de recursos e a falta de alternativas na contratação permitiam a imposição da vontade de um dos contratantes sobre a vontade do outro4.
Além da insuficiência da igualdade formal, as posições contrat uais podiam se alterar ao longo do tempo, com a modificação das circunstâncias e a interferência de interesses diversos àqueles dos contratantes.
A ampla liberdade de contratar, para garantir a justiça contratual, exigiu novamente a intervenção estatal. Não apenas passou-se a prover mecanismos para que a vinculação ocorresse apenas em face da efetiva vontade manifestada, com a regulação dos vícios do consentimento, como se passou a disciplinar os limites em que a autonomia das partes poderia livremente regular seus interesses. A autor regulação da vontade dos contratantes passou a ser limitada por considerações de ordem pública e pelos bons costumes5.
A discussão quanto aos limites da liberdade de contratar dos indivíduos diante do envolvimento de interesses de terceiros está presente na eficácia das cláusulas contratuais resolutivas e de vencimento antecipado das obrigações em razão da recuperação judicial.
2 – Cláusula resolutiva
A cláusula reso lutiva é verdadeiro exercício dessa autonomia privada dos contratantes. Pela cláusula resolutiva, empregada em seu sentido geral pelo Código Civil
3 RANOUIL, Véronique. L’Autonomie de la Volonté, 1ª ed., Paris, Presses universitaires de France, 1980, p. 133.
4 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. As novas figuras contratuais e a autonomia da vontade , in Revista de
Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 91, São Paulo, 1996, p. 143.
5 BESSONE, Darcy. Do contrato – Teoria Geral, 3ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1987, p. 31.
A condição é elemento acessório e completamente dispensável do suporte fático do negócio jurídico. Ela deriva exclusivamente da vontade das partes e não é própria da substância do negócio6. É adicionada ao negócio jurídico para modificar algumas de suas consequências naturais e, como depende da vontade exclusiva das partes, pode versar sobre infinitos eventos.
Como elemento acidental ou particular do negócio jurídico, a condição serve para ajustar a vontade dos contratantes à incerteza de um evento futuro. “A função da condição consiste em adequar ao futuro, que é incerto, as relações inter-humanas”7.
Na condição resolutiva, a ocorrência do fato futuro e incerto extingue, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe. Os efeitos jurídicos do negócio jurídico são produzidos desde logo, ao contrário da condição suspensiva, mas cessarão caso a condição resolutiva prevista ocorr a. Seu âmbito de incidência, contudo, restringe -se ao plano da eficácia. A validade e existência do negócio jurídico permanecem inalterados, embora seus efeitos sejam cessados.
O implemento da condição resolutiva provoca o desfazimento de todos os efeitos produzidos pelo negócio jurídico. As partes são repostas na mesma situação jurídica que se encontravam antes da celebração do negócio jurídico. O efeito ex tunc determina que as partes procedam às restituições recíprocas, como se o negócio jurídico não tivesse sido realizado.
O desfazimento de todos os efeitos do negócio jurídico, contudo, nem sempre ocorre. O efeito ex tunc , retroativo, não ocorrerá na hipótese de negócio jurídico de execução continuada. Diante do cumprimento das prestações, seria impossível , para algumas contratações, a desco nstituição dos efeitos produzidos. Salvo disposição em contrário, a resolução importará em efeito ex nunc apenas. As prestações já satisfeitas não serão restituídas, mas a resolução produz irá efeito quanto às prestações futuras, cujos sujeitos ficarão dispensados de seu cumprimento.8
6 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx. Xxxxxxx Xxxxxxxx – existência, validade e eficácia, 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2013, pp. 38-40.
7 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, t. 5, 3ª ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1970, p. 105.
8 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos, 24ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 176.
A cláusula resolutiva que estabelece como condição o inadimplemento da obrigação é conhecida por pacto comissório. O pacto era previsto no art. 1.163,caput, do Código Civil de 1916, que determinava, no contrato de compra e venda, que “ajustado que se desfaça a venda, não se pagando o preço até certo dia, poderá o vendedor, não pago, desfazer o contrato ou pedir o preço”.
Apesar de o artigo não ter sido reproduzido no atual Código Civil, sua previsão reproduziria a disciplina da condição resolutiva prevista na parte geral do Código, a qual não se restringe, outrossim, ao inadimplemento do preço. Qualquer evento futuro e incerto, dentre eles o não pagament o do preço ou o descumprimento de qualquer outra obrigação convencionada, poderá, mediante a previsão das partes, resultar em resolução de pleno direito e independentemente de prévia interpelação judicial do negócio jurídico.
3 – Cláusula de vencimento antecipado
Como elemento acidental ou particular do negócio jurídico, a condição poderá, diante da conveniência das partes, suprimir todos os efeitos de um negócio jurídico, caso implementada a condição resolutiva, ou apenas alterar um dos efeitos para adequar a vontade presente das partes ao evento futuro e incerto. As partes poderão convencionar, diante da ocorrência do evento futuro e incerto, que apenas ocorrerá o vencimento antecipado das obrigações.
As partes contratantes podem livremente convencionar a época de cumprimento da prestação e da contraprestação ou condicionar seu cumprimento à implementação de determinado evento futuro. Nada impede que se altere esse momento do cumprimento em razão do implemento de determinada condição.
A antecipação da exigibilidade do débito é convencionada pelas partes frequentemente diante da ocorrência de fatos futuros e incertos que possam majorar o
Pelo dispositivo, determinou-se que ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato, nas hipóteses de falência ou de concurso de credores, se os bens hipotecados ou empenhados forem penhorados em execução por outro credor ou se cessarem ou forem insuficientes as garantias do débito e o devedor intimado se negar a reforçá-las. Em todas essas hipóteses legais, o vencimento antecipado da dívida decorre de aumento de risco de inadimplemento do devedor caso se aguarde o vencimento originário da obrigação.
A hipótese legal de vencimento antecipado das obrigações em razão da falência do devedor foi reproduzida no art. 77, da Lei 11.101/05, Lei de Recuperações e Falência. Pelo dispositivo, a decretação da falência determina o vencimento antecipado das dívidas do devedor e dos sócios ilimitada e solidariamente responsáveis, com o abatimento proporcional dos juros.
Esse efeito legal da sentença de decretação da falência procura assegurar o tratamento igualitário entre os credores. Exige- se o vencimento antecipado das obrigações para tornar possível a mensuração de todos os débitos existentes no momento da quebra e permitir que os credores da mesma classe possam receber proporcionalmente ao valor de cada crédito o valor resultante da liquidação dos ativos 9. É por conta dessa equalização à data da decretação de falência que os juros remuneratórios devem ser proporcionalmente abatidos.
A par conditio creditorum impõe pela lei apenas o vencimento antecipado das obrigações do falido. Os créditos do falido não se torna m antecipadamente vencidos em razão de sua falência.
4 – A falência como condição resolutiva
9 Sobre o art. 25, do Decreto Lei 7.661/45, com redação similar, versava Xxxxxxx de Xxxxxxx Xxxxxxxx: “trata-se, pois, de uma regra, pode dizer -se, universal, cuja finalidade é assegurar a todos os credores tratamento igual na insolvência ou na falência do devedor comum, evitando, por outro lado, as delongas e complicações que, no processo de liquidação do patrimônio onerado ou falido, acarretaria a manutenção do termo ou do prazo” (VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências , v. 1, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 221).
A cláusula procura proteger a parte contratante do aumento do risco decorrente da presunção legal de insolvência da parte contrária. Ainda que a insolvência econômica não seja fundamento necessário para o procedimento de falência, a decretação de falência evidenciaria aumento do risco de inadimplemento das obrigações pelo devedor.
Diante do risco de inadimplemento, a condição resolutiva permitiria à parte o desfazimento de todos os efeitos do negócio jurídico, com o retorno à situação anterior à celebração do contrato. Referida resolução do contrato poderia fundamentar um pedido de restituição dos bens em poder da massa falida e entregues pelo credor como parte de sua prestação, pois a resolução exigiria o retorno das partes ao status anterior. Esse pedido de restituição em razão da cláusula resolutiva, porém, poderia reduzir o produto obtido pela massa falida em eventual alienação dos bens em conjunto, além de privilegiar um dos credores em detrimento dos demais.
Na hipótese de contração de prestação continuada, salvo convenção em contrário pelas partes, a condição manteria as prestações já cumpridas, mas desoneraria as partes do cumprimento das prestações futuras. A desobrigação de cumprimento de eventual prestação poderá tornar a massa carente de serviços fundamentais ou bem que lhe era fundamental para a conservação do estabelecimento ou maximização do valor dos ativos.
Para parte substancialda doutrina, ainda sob a regência do Decreto -Lei 7.661/45, a decretação da falência não provoca, por força de lei simplesmente, a rescisão dos contratos. A falta de proibição legal , entretanto, permitiria que as partes livremente contratassem a resolução do contrato na hipótese de falência10.
À míngua de proibição legal, a teoria apregoa que os contratantes poderiam se precaver quanto ao risco da decretação da falência da contraparte. Ainda que a massa falida possa cumprir a prestação convencionada, a morosidade ou dificuldade desse
10 Xxxxxxxx xx Xxxxxxxx sustenta que a convenção não provoca “ofens a a princípio algum de ordem pública. O direito da massa, agindo esta como representante do falido, mede- se pelo direito deste” (XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, v. VII, Rio de Janeiro, Xxxxxxx Xxxxxx, 1946, p. 460). No mesmo sentido, XXXXXXXX, Trajano de Xxxxxxx. op. cit., v.1,
p. 298; XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Tratado de Direito Comercial, v. 14, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 515/516.
Conforme apregoa Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, “o direito falimentar, como capítulo do direito comercial, tem normas contratuais de natureza supletiva da vontade dos contratantes; seus preceitos sobre obrigações contra tuais só se aplicam se as partes não convencionarem diferentemente. Assim, o contrato se rescinde não por força do decreto judicial, mas pela vontade das partes contratantes, que o elegeram como causa rescisória do vínculo contratual”12.
A corrente doutrinária oposta, contudo, pugna pelo reconhecimento da inexistência da cláusula resolutiva expressa na hipótese de falência. Para essa corrente, por ferir interesses de ordem pública, a cláusula deveria ser considerada não escrita13.
Para Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, a cláusula resolutiva em razão da falência apenas não poderá ser considerada válida se o administrador judicial não pretender dar cumprimento ao contrato. Para o autor, “a falência, por se tratar de instituto colocado à disposição dos interessados para afastar do meio comercial aquele empresário que já está falido de fato, assume características que extrapolam o mero interesse privado”14.
De fato, o direito empresarial prioriza a autonomia de vontade dos contratantes e disciplina a composição dos interesses privados dos agentes econômicos, em grande parte interesses exclusivamente patrimoniais . Embora ramo do direito empresarial, a disciplina falimentar é exceção a essa regra geral.
11 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro , v. VII, Rio de Janeiro, Xxxxxxx Xxxxxx, 1946, p. 460 . Para o autor: “é válido, portanto, o pacto em virtude do qual a declaração da falência opera como condição resolutiva do contrato, cessando as relações jurídicas criadas, para que o síndico ou liquidatário não substituta o falido na execução; não seria lícito, entretanto, ao co - contratante reclamar preferências ou privilégios fundados nesse pacto, salvo o seu direito de concorrer na falência”. (idem).
12 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas, São Paulo, Saraiva, 2005, p. 317.
13 Na doutrina, Xxxxxxx Xxxxxx (SANTOS, Penalva. Obrigações e contratos na falência . 2a ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2003) e Xxxxx Xxxx (XXXX , Xxxxx. Direito Concursal, 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1999); XXXXXXXXXX, Xxxxxxx. Cláusula Resolutiva Expressa por insolvência nos contratos empresariais: uma análise econômico- jurídica, in Revista de Direito da GV , v. 2, n. 1, xxx -xxx 2006, p. 41; MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro . Falência e recuperação de empresas , v. 4, 7ª ed., São Paulo, Atlas, 2015, p. 325.
14 XXXXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Lei de Recuperação de Empresas e Falência , 10ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 282.
A eficiência do procedimento falimentar tutela, ainda, o interesse social de preservação de uma coletividade de credores, cuja maximização do valor dos ativos liquidados permitirá sua maior satisfação em razão do rateio (art. 75, da Lei 11.101/05). O interesse particular do devedor falido ou de algum particular contratante é apenas considerado para essa proteção se conforme o interesse comum da coletividade de credores e da massa falida.
Nesses termos, as normas falimentares, expressão de intervenção do Estado para disciplinar as relações jurídicas celebradas entre os agentes e preservar o interesse social, possuem natureza tipicamente cogentes. A faculdade de seu cumprimento não poderá ser disponível às partes envolvidas, de acordo com exclusivamente seu interesse privado.
No caso da cláusula resolutiva em razão da falência, conforme art . 128, do Código Civil, extingue -se para todos os efeitos o direito a que ela se opõe. Esse desfazimento da obrigação poderá impedir a maximização dos ativos a serem liquidados para pagamento dos credores ou provocar a majoração do passivo. Ambas as hipóte ses ocorreriam em detrimento da coletividade interessada.
A proteção à coletividade dos credores que poderia ser prejudicada pela resolução do contrato é assegurada pela possibilidade expressa de cumprimento, pelo administrador judicial, dos contratos. Nesse sentido, os arts. 117 e 118, da Lei 11.101/05 garantem ao administrador judicial, independentemente de qualquer cláusula no contrato, o direito de cumprir os contratos bilaterais ou unilaterais em que a massa falida seja devedora, desde que o cumprimento reduza ou evite o aumento do passivo ou desde que seja necessário à manutenção e preservação de seus ativos . Os contratos, por força de determinação legal, não se resolverão, a menos que o administrador judicial decida que não é do interesse social da coletividade de credores o seu cumprimento.
A cláusula resolutiva em razão da falência, nesses termos, deverá ser considerada como juridicamente impossível. “Juridicamente impossível é a condição que tem por fito
ato que o mundo jurídico não deixa entrar ou valer, por ser contra regras jurídicas; obsta à sua realização a ordem jurídica” 15. A impossibilidade, entretanto, difere-se da ilicitude porque a condição não contamina todo o negócio jurídico. Esse, por si só, não é reprovável16.
A resolução ipso facto do contrato em razão da falência contraria norma cogente, nos termos do art. 124, do Código Civil. Como condição resolutiva impossível, referida condição será considerada inexistente e o negócio jurídico a ela subordinado permanecerá eficaz, independentemente da decretação da falência.
5 – Cláusulas resolutiva e de vencimento antecipado na recuperação judicial
O direito de promover o cumprimento dos contratos na recuperação judicial não é conferido ao devedor, tal como expressamente atribuído pela Lei ao administrador judicial na hipótese de falência. Ao contrário da falência, também, a Lei 11.101/05, ao disciplinar o processamento ou a concessão da recuperação judicial, não determinou o vencimento antecipado das obrigações do devedor submetidas ao plano.
A ausência de disciplina quanto ao vencimento antecipado não ocorria no Decreto Lei 7.661/45. O ato normativo revogado previa, em seu art. 163, que “o despacho que manda processar a concordata preventiva determina o vencimento antecipado de todos os créditos sujeitos aos seus efeitos”.
Sobre o dispositivo, a doutrina do período sustentava que o vencimento antecipado determinado na lei não acarretava a imediata exigibilidadedos créditos. Esses poderiam ser cobrados apenas no momento em que se tornasse m exigíveis, conforme o estabelecido no âmbito da concordata. O vencimento antecipado provocava, sob a égide do Decreto Lei 7.661/45, apenas efeitos restritos à habilitação dos credores na concordata17.
15 PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 127.
16 PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 129.
17 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. Concordata – Garantia por fiança e vencimento antecipado das obrigações , in Revista dos Tribunais, ano 76, v. 622, São Paulo, RT,1987, p. 19. Para Xxxxxxxx, “a supressão do prazo não traz, na concordata preventiva, vantagem alguma para o credor, porquanto, além da moratória que suporta no curso do processo, fica sujeito ao prazo da concordata para o seu pagamento” (XXXXXXXX, Trajano de Xxxxxxx. Comentários à Lei de Falências, v. 2, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 315)
Para Xxxxxxxx, “vai -se tornando comum em certos contratos de trato sucessivo, como no de locação de imóveis, e em alguns contratos administrativos para a execução de serviços públi cos, a cláusula resolutória, no caso de locatário requerer concordata preventiva. Dada a liberdade que têm as partes de estipular o que mais convém aos seus interesses e à segurança deles, não há negar a validade da cláusula”18.
Na atual lei de falência e recuperação de empresas, o art. 49, §2º, estabelece que a recuperação judicial não provocará o vencimento das obrigações. Segundo o dispositivo, que tampouco determina a rescisão dos contratos, “as obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial”.
Entretanto, à míngua de qualquer vedação expressa na Lei 11.101/05, os contratantes procuraram regular seus interesses privados diante de uma eventual contingência futura. Como a recuperação judicial do devedor poderia indicar risco de satisfação das obrigações do devedor, as partes passaram a convencionar condições de vencimento antecipado ou de resolução das obrigações em razão da distribuição do pedido ou do processamento da recuperação, ainda que os créditos não fossem considerados concursais, para fins desta.
A despeito da ausência de regra legal específica proibindo as referidas cláusulas, o instituto da recuperação, tal como estabelecido pela Lei 11.101/05, procura garantir instrumentos ao empresário devedor para que possa viabilizar a superação da crise econômico-financeira que o acomete e, por consequência, permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e a satisfação dos interesses dos credores.
Ao contrário da concordata, todavia, a viabilidade dessa reestruturação pelo próprio empresário é aferida exclusivamente pela coletividade dos credores, à qual é
18 XXXXXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxxxx. op. cit., v. 2, p. 319. No mesmo sentido, REQUIÃO, Xxxxxx. Curso de direito falimentar, v. 2, 14ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, pp. 95- 96.
A preservação da autonomia dos contratantes, com a conservação das obrigações tal como contratadas, a menos que alteradas pelo plano de recuperação judicial, não pode significar, entretanto, ausência de interferência estatal ou liberdade contratual irrestrita dos contratantes . Como benefício legal ao devedor empresário, as cláusulas de vencimento antecipado e de resolução contratual comprometem os objetivos do instituto da recuperação e devem ser limitadas.
Nos termos do art. 47, da Lei 11.101/05, o interesse público de preservação da empresa, sua função social e de estímulo à atividade econômica submeteriam as relações empresariais envolvendo o empresário recuperando a um diverso regime jurídico.
Conforme lição de Xxxxxxxxx, “o princípio da preservação da empresa, acolhido na Lei nº 11.101/05, dá uma nova característica à empresa, deslocando-a de uma condição limitada ao interesse de seus sócios, para a elevar ao patamar de interesse público, ou seja, passa a ser considerada como uma instituição e não mais uma relação de natureza contratual.
Deixa de ter a dependência da vontade dos sócios para, no caso, passar a atender a outros interesses (a função social, os empregados, os credores, etc) que se sobrepõem ao interesse dos sócios”19.
Esse novo regime a que se submetem as relações do devedor limita a autonomia da vontade das partes contratantes. O interesse público restringe os efeitos de eventual cláusula contratual que determine o vencimento antecipado da obrigação ou a resolução do contrato simplesmente pela distribuição do pedido ou pelo processamento da recuperação judicial. Isso porque referidas cláusulas prejudicariam o interesse de toda a coletividade de credores, dos demais envolvidos na condução da atividade empresarial e do desenvolvimento econômico nacional como um todo. O benefício legal conferido justamente pela Lei para que o empresário em crise possa se recuperar de modo a
19 XXXXXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxx. Reflexões sobre a recuperação judicial de empresas, in Direito Recuperacional – Aspectos Teó ricos e Práticos (Newton de Lucca e Xxxxxxxxxx xx Xxxxxxx Domingues coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2009, pp. 124/125.
Preenchidos os requisitos legais para seu requerimento, o pedido de recuperação judicial, estruturado pela Lei para beneficiar o empresário em crise econômico financeira e para preservar sua atividade, não poderá ser previsto como cláusula contratual que provoque efeitos contratuais tais que levem o empresário irremediavelmente à falência. Ainda sobre a vigência do Decreto Lei 7.661/45, estabelecia Xxxx Xxxx que “seria de todo absurdo concebermos se possa divisar na concordata um objeto em relação ao qual se imponha comportamento negativo ao devedor, no sentido de que este se obrigasse a não requerê-la”20.
A condição resolutiva ou de ve ncimento antecipado contraria as normas da Lei 11.101/05, notadamente seu artigo 47, e deverá ser considerada, nesses termos , como condição juridicamente impossível.
A condição não poderia ser entendida como possível sequer quando as obrigações não estivess em submetidas à recuperação judicial. Conferiu a Lei à coletividade dos credores a decisão, por maioria qualificada, de recuperar ou não o empresário conforme o plano de recuperação apresentado. O vencimento antecipado da obrigação garantida por alienação fiduciária, por exemplo, permitiria que apenas um único credor comprometesse a recuperação judicial pretendida pela maioria ou mesmo unanimidade dos credores concursais21. Seu interesse particular, contudo, não poderia se sobrepor ao interesse social da coletividade de credores, nem ao interesse público de preservação da atividade empresarial, sob pena de comprometimento de todo o instituto da recuperação.
6 - Conclusão
20 GRAU, Xxxx Xxxxxxx. op. cit., p. 21.
21 Nesse sentido, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx sustentam que “o Código Civil de 2 002 contém normas contratuais que devem ser respeitadas no exame dessa questão. A principal delas, evidentemente, é que o contrato deve ser pautado em razão e nos limites da sua função social, limitação que abrange tanto a liberdade de contratar quanto a de resolver unilateralmente os contratos” (SALOMÃO, Xxxx Xxxxxx e XXXXXXX XXXXXX, Xxxxx. Recuperação judicial, extrajudicial e falência, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2015, p. 272).
O novo regime jurídico imposto pela recuperação judicial às relações jurídicas celebradas pelo empresário em crise econômico financeira procura preservar o interesse público da preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica. Esse novo regime jurídico limita a autonomia contratual dos indivíduos e o princípio do pact a sunt servanda em prol da coletividade de credores, fornecedores, trabalhadores, consumidores e demais envolvidos com a condução da atividade empresarial.
As cláusulas de vencimento antecipado e de resolução contratual, ao comprometerem a igualdade de tratamento entre os credores e permitirem o benefício particular de um contratante em detrimento dos demais, devem ser consideradas ineficazes, sob pena de comprometerem a eficiência da recuperação judicial do empresário e, consequentemente, o próprio interesse público ao desenvolvimento econômico nacional.
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