AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO COM
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ª VARA EMPRESARIAL DA COMARCA DA CAPITAL
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pelo
Promotor de Justiça que esta subscreve, vem, com fulcro nas Leis 7.347/85 e 8.078/90, ajuizar a competente
PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA
em face de TICKETS FOR FUN – T4F, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ/MF sob nº XXX, com sede na XXX, pelos fatos e fundamentos alinhados a seguir:
Contextualização do caso
1) O inquérito civil público que serviu de base à presente foi deflagrado por reclamação de XXXXXXX XXXXXXX XXXXXXXX junto ao serviço de ouvidoria geral do MPRJ em face da ré, TICKETS FOR FUN - T4F, porquanto, tendo pagado o valor do ingresso para o evento musical Lollapalooza, produzido pela empresa reclamada, que se realizaria na cidade de São Paulo, em abril do corrente ano, não lhe foi possível obter o reembolso, por recusa da ré, do valor pago por aquele ingresso, diante do adiamento do evento referido por conta do estado de calamidade pública decretado pelo decreto legislativo 06/20 para evitar a propagação do corona vírus.
2) A reclamante aduziu que nenhuma das duas opções oferecidas pela ré diante do descumprimento da sua obrigação contratual lhe interessou, já que a primeira, a utilização do ingresso na nova data a ser confirmada para a realização do festival musical (‘a confirmar, de 6 a 8 de dezembro’ do corrente ano) comportaria obrigação incerta, pois, a uma, não se pode determinar que já em dezembro, a situação sanitária atual terá sido regularizada a ponto de permitir a aglomeração típica dessa espécie de festival.
3) Por outra, tampouco tendo a ré confirmado a lineup dos artistas que se apresentariam naquela ocasião, faltaria a informação mínima àquela proposta para viabilizar a possibilidade de escolha, pela mesma, do consumidor.
4) A duas, prossegue a reclamante, a alternativa de conversão do valor do ingresso pago em créditos a quem rejeitar a primeira ‘é péssima, pois não se sabe se existirá algum evento futuro que interessará as pessoas e mesmo que exista se elas poderão ir, ou seja, o dinheiro está empatado a espera de que uma situação muito hipotética ocorra’ (f. ).
5) Ainda segundo a reclamante, a ré, posteriormente ao cancelamento do evento em questão, passou três meses ‘sem dar uma comunicação mais esclarecedora sobre o reembolso do valor dos ingressos e agora está orientando as pessoas que não poderão comparecer na nova data (em dezembro de 2020) que peçam, até 08/07/2020, para converter o que já foi pago em créditos no site para usar em futuros eventos’, sob pena de perecimento do seu direito.
6) Prossegue, a reclamante, observando que ‘[É] nítido em todas as redes sociais da empresa que grande parte dos consumidores está insatisfeita com as opções e gostaria de ter o dinheiro de volta, afinal muitas pessoas perderam seus empregos e tiveram suas rendas reduzidas de modo que dificilmente poderão comparecer a eventos em um curto prazo.’
7) Em relação ao que a negociação não poderia deixar de abranger, arremata, a reclamante, registrando que ‘[G]ostaria que fosse solicitado à empresa que apresentasse proposta de reembolso do valor dos ingressos aos clientes, ainda que fosse de forma parcelada ou com
algum tipo de desconto para que o prejuízo fosse compartilhado, porque do jeito que está o prejuízo está muito maior para o consumidor que é a parte mais vulnerável.’
8) A ré, por outro lado, na qualidade de empresa produtora do já renomado festival musical internacional Lollapalooza, foi remunerada, com o pagamento do ingresso individual para o evento a se realizar em abril do ano corrente, no Autódromo de Interlagos na cidade de São Paulo, SP, à importância de R$ 1.165,00 (hum mil cento e sessenta e cinco reais).
9) Ocorre que, com o advento do estado de calamidade pública decretado com fundamento na necessidade de combate à propagação da COVID- 19, deixou, a ré, de cumprir a sua obrigação contratual na data prevista.
10) Visando a atenuar os efeitos negativos da quase total paralisação de grande número de setores da economia por causa da pandemia, tem sido fomentada a negociação entre as partes para a manutenção do vínculo contratual com o cumprimento de obrigação alternativa, condicionando, via de regra, a possibilidade de resolução do mesmo a que as indispensáveis tratativas anteriores tenham sido frustradas.
11) In casu, todavia, a lei n. 14.046/20 dispôs que, rejeitando, o consumidor, o cumprimento da obrigação contratual em outra data ou o reembolso em forma de créditos válidos para adquirir produtos ou serviços oferecidos pelo próprio fornecedor, este poderia, unilateralmente, subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga.
12) Aí resta a controvérsia: seria possível juridicamente a solução prevista no diploma legal referido na parte em que autoriza o fornecedor a subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga caso frustrada a negociação?
13) Atendendo à notificação ministerial para se manifestar acerca daquela investigação, a ré fundou, por sua vez, a sua recusa a reembolsar o valor já pago pelo ingresso do evento musical, na agora sancionada lei n. 14.046/2020, de 24 de agosto de 2020, decorrente
da MP 948 e do projeto de Lei de conversão -PLV 29/2020, segundo a qual, verbis,
‘Art. 2o Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:
I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou II - a disponibilizacã̧ o de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.
§ 1o As operac es de que trata o caput deste artigo
ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data a partir de 1o de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos servicos, ou
30 (trinta) dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes.
§ 2o Se o consumidor não fizer a solicitação a que se refere o § 1o deste artigo no prazo assinalado de 120 (cento e vinte) dias, por motivo de falecimento, de internação ou de força maior, o prazo será restituído em proveito da parte, do herdeiro ou do
sucessor, a contar da data de ocorrência do fato impeditivo da solicitação.
§ 3o (VETADO).’
Inocorrência da condição de descumprimento da obrigação de reembolsar
a) show sem data certa nem lineup
14) Antes de adentrar o exame de constitucionalidade de referido diploma legal, é bem de ver que o dispositivo que invoca para subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga não socorreria a ré, pois não se adequaria, prima facie, à espécie. Senão vejamos:
15) Primeiro, não se verifica o implemento da condição para fazê-lo, visto que o inciso I do art. 2º da lei n. 14.046/20 prevê, para viabilizar a escolha do consumidor, a saber, a ‘remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados’.
16) É que, segundo referido diploma legal, para tanto, a ré deveria, primeiro, informar ao consumidor a data certa para a realização do evento musical vindouro, e não, tout court, designá-lo em data ‘a confirmar’. Além disso, deveria a ré prestar a informação inequívoca de quem serão os artistas a se apresentarem na edição remarcada, assim como em que datas, especificamente, já que o festival tem duração de três dias.
17) Sem que lhe tenham sido informados referidos aspectos essenciais do serviço, não há como invocar o poder de subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga por não ter ele aceitado uma daquelas obrigações alternativas.
18) Logo, o implemento da condição prevista na lei n. 14.046/20 para aquele fim não se verifica no caso, pois não foi remarcado o serviço (art. 2º, inc. I).
19) A informação é um dos pilares do Código de Defesa do Consumidor, pois permite o conhecimento indispensável que funda o
convencimento sobre a necessidade de consumir um produto ou serviço. A jurisprudência do Pretório Superior é pacificada em relação ao dever de informar, sobretudo os aspectos essenciais do que se consumirá, verbis,
‘PROCESSO CIVIL. PROCESSO COLETIVO. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO COLETIVA. DIREITO À INFORMAÇÃO. DEVER DE INFORMAR. ROTULAGEM DE PRODUTOS ALIMENTÍCIOS. PRESENÇA DE GLÚTEN. PREJUÍZOS À SAÚDE DOS DOENTES CELÍACOS. INSUFICIÊNCIA DA INFORMAÇÃO- CONTEÚDO "CONTÉM GLÚTEN". NECESSIDADE DE COMPLEMENTAÇÃO COM A INFORMAÇÃO-ADVERTÊNCIA SOBRE OS RISCOS DO GLÚTEN À SAÚDE DOS DOENTES CELÍACOS. INTEGRAÇÃO ENTRE A LEI DO GLÚTEN (LEI ESPECIAL) E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI GERAL).
1. Cuida-se de divergência entre dois julgados desta Corte: o acórdão embargado da Terceira Turma que entendeu ser suficiente a informação "contém glúten" ou "não contém glúten", para alertar os consumidores celíacos afetados pela referida proteína; e o paradigma da Segunda Turma, que entendeu não ser suficiente a
informac o "contém glúten", a qual deve ser
complementada com a advertência sobre o prejuízo do glúten à saúde dos doentes celíacos.
2. O CDC traz, entre os direitos básicos do consumidor, a "informação adequada e clara sobre
os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentam" (art. 6o, inciso III).
3. Ainda de acordo com o CDC, "a oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores" (art. 31).
4. O art. 1o da Lei 10.674/2003 (Lei do Glúten) estabelece que os alimentos industrializados devem trazer em seu rótulo e bula, conforme o caso, a informação "não contém glúten" ou "contém glúten", isso é, apenas a informação-conteúdo. Entretanto, a superveniência da Lei 10.674/2003 não esvazia o comando do art. 31, caput, do CDC (Lei 8.078/1990), que determina que o fornecedor de produtos ou serviços deve informar "sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores", ou seja, a informação-advertência.
5. Para que a informação seja correta, clara e precisa, torna-se necessária a integração entre a Lei do Glúten (lei especial) e o CDC (lei geral), pois, no fornecimento de alimentos e medicamentos, ainda mais a consumidores hipervulneráveis, não se pode contentar com o standard mínimo, e sim com o standard mais completo possível.
6. O fornecedor de alimentos deve complementar a informação-conteúdo “contém glúten” com a informação-advertência de que o glúten é prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca.
Embargos de divergência providos para prevalecer a tese do acórdão paradigma no sentido de que a
informac o-conteúdo "contém glúten" é, por si só,
insuficiente para informar os consumidores sobre o prejuízo que o alimento com glúten acarreta à saúde dos doentes celíacos, tornando-se necessária
a integração com a informac o-advertenĉ ia correta,
xxxxx, precisa, ostensiva e em vernáculo: "CONTÉM GLÚTEN: O GLÚTEN É PREJUDICIAL À SAÚDE DOS DOENTES CELÍACOS". (EResp 1515895).
20) De fato, na espécie, a falta de informação é corolário da dúvida ínsita na designação de nova data ainda ‘a confirmar’.
21) Não é certo que o afrouxamento das medidas de distanciamento social, ainda este ano, para viabilizar a aglomeração de milhares de pagantes sem o risco de agravamento ou retomada da curva de contaminação. É bem de ver que até eventos internacionais tradicionais, como o Desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, que ocorreria após cerca de dois meses da data ora designada para o evento musical em questão, deverão ser cancelados.1
22) Exigir, nestas condições, que o consumidor faça a escolha pela vindoura edição do evento em data incerta corresponderia a lhe impor o pagamento por serviço que sequer saber se poderá consumir, o que remonta a rematado disparate, devidamente vedado pelo art. 51, IV e XIII, CDC.
23) Xxx, induziria à perplexidade que tivesse o consumidor que fazer tal ‘escolha’ apenas e tão somente para justificar a manutenção do
1 xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxx-xx-xxxxx-xx-xxx-xxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxxx-xx- fevereiro-de-2021--divulga-colunista.html
vínculo contratual e, assim, garantir à ré o poder de não lhe devolver o valor já pago.
24) Mas não é só.
25) Sem o corolário da data certa do show, que seria a montagem final da grade de artistas que se apresentará, a perplexidade se agrava: a quais números assistiria quem aceitar a obrigação alternativa? Sem confirmar tampouco a grade de artistas, a ré pretende que quem tenha inicialmente comprado o ingresso para assistir, p. ex., à banda norte-americana Red Hot Chilly Peppers, aceite, agora, assistir à, digamos, cantora Xxxxx, estilos musicais radicalmente diversos.
26) É de meridiana clareza que, sem as condições concretas da prestação adiada do serviço, a previsão legal invocada pela ré para subtrair a opção de reembolso é inaplicável à espécie e não dialoga com o próprio espírito da Política Nacional das Relações de Consumo, que tem por objetivo a transparência, a boa fé objetiva e a harmonia das relações de consumo (art. 4º, CDC).
27) Ao contrário, a pretensão de não reparar o dano causado ao consumidor agrava o seu estado de vulnerabilidade e viola o seu direto básico à informação. Senão, vejamos:
b) A alternativa de conversão em créditos: o fornecedor
sempre ganha
28) Poderia se dizer que ainda restaria a alternativa prevista no art. 2º, inc. II da lei n. 14.046/2020, a saber, ‘a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas’, para que a ré possa subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, ainda que o consumidor a rejeite.
29) Ocorre que, primeiro, a ré, em sua ‘Política de Ingressos’, fixou o prazo até 08 de julho de 2020 para que ‘seja feito o pedido de créditos’, o que já elimina, preliminarmente, a possibilidade do exercício do direito de escolha da alternativa na presente data.
30) Mesmo que assim não o fosse, como, inclusive, destaca, com razão, a reclamante, ‘a opção de converter o valor em crédito é péssima, pois não se sabe se existirá algum evento futuro que interessará as pessoas e mesmo que exista se elas poderão ir, ou seja, o dinheiro está empatado a espera de que uma situação muito hipotética ocorra’.
31) Como salta aos olhos, esta alternativa, assim como a primeira, desequilibra a relação jurídica respectiva, pois confere ao polo vigoroso da mesma a prerrogativa de transferir todo o risco do negócio para o polo vulnerável da relação de consumo, subtraindo ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga mesmo que rejeitadas as mesmas.
32) A negociação posta em tais termos é teratológica, pois, a pretexto de priorizar a subsistência do vínculo contratual, altera a essência do objeto do contrato (art. 51, XIII, CDC) e impede o reembolso do valor pago, ainda que eventualmente sujeito a desconto de percentual limitado e/ou em parcelas.
33) Mutatis mutandi, encampou, o art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20, a lógica do comerciante que, alegando a falta de troco, devolve em balas a diferença do preço pago pelo produto que revendeu. Rematado disparate!
34) Ouvisse a vox populi proclamar que Direito é bom senso, a solução legislativa poderia, para se compatibilizar com o seu fundamento de validade, ter abrigado a alternativa vislumbrada pela própria reclamante em relação à negociação da forma de reembolso da quantia já paga, mas não, tout court, subtraí-lo integralmente ao consumidor que rejeite as alternativas acima, verbis,
‘É nítido em todas as redes sociais da empresa que grande parte dos consumidores está insatisfeita com as opções e gostaria de ter o dinheiro de volta, afinal muitas pessoas perderam seus empregos e tiveram suas rendas reduzidas de modo que dificilmente poderão comparecer a eventos em um curto prazo. Gostaria que fosse solicitado a
empresa que apresentasse proposta de reembolso do valor dos ingressos aos clientes, ainda que fosse de forma parcelada ou com algum tipo de desconto para que o prejuízo fosse compartilhado, porque do jeito que está o prejuízo está muito maior para o consumidor que é a parte mais vulnerável’ (gn).
35) Como visto, a lei n. 14.046/20 definitivamente não se aplica ao caso, considerando que, sem a confirmação da data do evento e de sua lineup, esgotado o prazo, igualmente, para a solicitação da conversão do valor pago em créditos, a ré não preencheu os requisitos legais para justificar subtrair ao consumidor o reembolso do valor já pago.
36) Porém, ainda que tivesse oferecido alternativas plausíveis, a simples recusa do consumidor às mesmas não poderia, em nenhuma hipótese, implicar a perda do valor já pago.
A incompatibilidade do art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20 com o Código de Defesa do Consumidor
37) Diante da natureza das relações jurídicas entabuladas no mercado de consumo, a Política Nacional das Relações de Consumo define o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mesmo como princípio a ser atendido para alcançar o objetivo de atender às suas necessidades e respeitar a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (art. 4º, CDC).
38) Em todo caso, independente da aplicabilidade das alternativas legais ao evento, a consequência legal da recusa respectiva, subtraindo ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga corresponderia, a seu turno, a transferir ao mesmo a integralidade do risco do negócio. De um lado, o fornecedor, polo vigoroso da relação de consumo, não sofreria, em nenhuma hipótese, as consequências do descumprimento da sua obrigação e, de outro, o consumidor que não
aceitasse as alternativas que aquele apresentou, perderia o valor já pago do ingresso.
39) Xxxxx consulta à orientação da jurisprudência acerca do assunto revela a impossibilidade jurídica da transferência do risco do negócio para o consumidor, verbis,
‘PROCESSO CIVIL - CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO - DISCUSSÃO DE CLÁUSULAS
CONTRATUAIS | - CABIMENTO | - CDC | - |
APLICABILIDADE | - CLÁUSULAS | ABUSIVAS | - |
NULIDADE - DESVANTAGEM AO CONSUMIDOR - RECURSO IMPROVIDO. 1) CONQUANTO SEJA CEDIÇO QUE A AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO TENHA POR ESCOPO, PROVANDO O DEVEDOR A MORA ACCIPIENDI DO CREDOR, LIBERAR-SE DE UMA EVENTUAL MORA SOLVENDI, NADA OBSTA QUE A DEMANDA COMPORTE DISCUSSÃO SOBRE A ORIGEM, VALIDADE, QUALIDADE E PERTINÊNCIA DA DÍVIDA OU RECONHECIMENTO DE NULIDADE DE CLÁUSULA CONTRATUAL. 2) NÃO PODE O FORNECEDOR, SOB ALEGAÇÃO DE QUE O CONTRATO LHE ESTÁ SENDO DESFAVORÁVEL, MODIFICAR UNILATERALMENTE A FORMA DE REAJUSTE DA
MENSALIDADE. NÃO DEVE O FORNECEDOR T RANSFERIR AO CONSUMIDOR O RISCO DE SUA ATIVIDADE. SE É PRESTADOR DE SERVIÇOS DE SAÚDE, É SEU MISTER ELABORAR OS CÁLCULOS FINANCEIROS NECESSÁRIOS PARA CUMPRIR SUA PARTE DO PACTO, GARANTINDO-SE O SEU LUCRO. NO CURSO DA AVENÇA, VERIFICADO EVENTUAL PREJUÍZO ECONÔMICO, NÃO HÁ COMO REPASSAR
AO CONSUMIDOR TAL ÔNUS.’ (APC 20030111132682 – TJDF)
40) A prática prevista no recém editado diploma legal contraria, assim, o espírito do Estatuto Consumerista, pois protege, não o polo vulnerável da relação de consumo, mas, pasmem, o seu polo vigoroso, que poderá transferir todo o prejuízo causado pelo seu descumprimento contratual para o legítimo vulnerável.
41) Finalmente, embora a teleologia do diploma legal referido seja até certo ponto, louvável, pois, desde que possível, o descumprimento da obrigação contratada deve ensejar obrigações alternativas para evitar a resolução do vínculo contratual e o seu impacto econômico e social, a sua mens deve se plasmar na política de redução de danos, preservando, em qualquer hipótese, o poder do consumidor de, querendo, rejeitar as alternativas legais sem que isto implique subtrair-lhe a opção de reembolso da quantia já paga.
42) O momento atual exige que a sociedade, em conjunto, envide esforços para viabilizar a execução dos contratos, preservando os respectivos vínculos contratuais, com o cumprimento de obrigações contratuais alternativas negociadas e adequadas à realidade fática que se impôs a todos indiscriminadamente.
43) É a consciência dessa motivação que tem sido capaz de evitar a resolução do vínculo contratual. A título de ilustração, merece consulta a recente reportagem acerca do assunto, registrando que, em média, um em cada cinco contratos de locação no país vieram a ser renegociados por causa da situação de calamidade pública2. A estatística sobre a qual se debruça a matéria jornalística demonstra que a autêntica negociação entre as partes reduziu aluguéis em cerca de 25% (vinte e cinco porcento).
44) Óbvio, pois se locador não aceitasse a proposta do locatário que não pudesse arcar mais com o aluguel vigente anteriormente ao início da pandemia, o contrato teria de ser resilido sem que o locador recebesse mais qualquer valor; tal, porém, não se dá com o serviço
2 xxxxx://xxxxxxxxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxx/0000-00/xxxxxxxx-x-xxxxx-xxxxx-xxxxxxxxxxxxx- renegociar-contratos-de-aluguel
prestado pela ré, pois se o consumidor não aceitar a proposta apresentada por ela, perderá, de qualquer modo, o valor já pago em favor da mesma, privando-se-o de qualquer forma de composição do prejuízo.
45) Prosseguindo o raciocínio, a construção de solução negociada para o aproveitamento do vínculo contratual existente deve resultar de concurso paritário, visando à concretização do ideal da política de redução de danos para ambas as partes e, em última análise, para todo o corpo social. Nesta toada, é indispensável incentivar a negociação entre os interessados, desde que não seja esta não se preste a simular esdrúxula doação do valor do ingresso em favor da ré, resguardando, sempre e sempre, a possibilidade de resolução do vínculo com o reembolso do valor já pago.
46) Outro não seria o sentido do princípio da boa fé objetiva que deve reger as relações jurídicas em geral e, especialmente, as de consumo.
47) Com isso, ao prever que ‘o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem’ a remarcação do evento adiado ou a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços e eventos disponíveis na empresa ré, o art. 2º, in fine, do novel diploma invadiu o terreno já habitado pelo Estatuto Consumerista, transferindo, indevidamente, à parte vulnerável da relação de consumo, o risco pelo prejuízo causado pela não prestação do serviço.
48) A interessante lição de RIZZATO NUNES, in Curso de Direito do Consumidor, 2ª edição, p. 599, destaca justamente que a opção de subtrair ao consumidor o reembolso do valor não deve servir como penalidade se rejeitadas as formas de cumprimento alternativo da obrigação do fornecedor, verbis,
‘Não se pode esquecer que a lei n. 8.078/90 adotou o princípio da conservação do contrato e parece certo que o esforço é no sentido de aproveitar a relação jurídica existente. Claro que, não havendo
como manter o contrato, ele será nulificado, tendo direito o consumidor a eventual indenização por perdas e danos materiais e morais.’ (GN).
49) De outra forma, prossegue o autor consagrado, além de o fornecedor transferir para o consumidor o risco do negócio, subtraindo- lhe a opção de reembolso da quantia já paga, aprofunda a injustiça da previsão legal em questão, a possibilidade de revenda do mesmo ingresso cujo valor não reembolsou, obtendo, o fornecedor, vantagem manifestamente excessiva.
50) A iniquidade já foi, mutatis mutandi, enfrentada pela jurisprudência pátria, verbis,
‘É evidente que uma cláusula que estabeleça que o réu perderá as importâncias pagas em caso de rescisão contratual não seria aceita se o consumidor pudesse opinar sobre as suas obrigações constantes do pacto celebrado, máxime quando se sabe que em hipótese tal não há qualquer prejuízo à construtora, mas, antes disso, até lucro, porquanto poderá vender o imóvel a outro interessado, por preço atualizado.’ (Ap. 197.165-2/3, rel. Des. Pinheiro Xxxxxx, x. x., x. 00- 00-00, XXXX, 1.771/462).
51) Na verdade, a lei em questão prevê negociação cujo iter o consumidor deve percorrer, como o mito de Dâmocles, com uma espada sobre a cabeça, não caracterizando, assim, propriamente, negociação entre as partes, mas espécie de imposição de solução arquitetada para abusar da sua vulnerabilidade na relação de consumo. Xxxxxx, excluiu do seu espectro de incidência o cerne da obrigação contratual, de modo a extrair manifestação de vontade que proteja, em prejuízo do vulnerável, o polo vigoroso da relação de consumo do risco do próprio negócio.
52) Poupando, o maldado édito, o fornecedor de qualquer espécie de concessão, impede, pois, a legítima negociação de que é inerente a concessão de parte a parte.
53) Xxx, negociação em que apenas uma das partes tem a ceder não faz, evidentemente, jus ao conceito respectivo, a que se refere com precisão o sítio xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxxxxxx/, consultado em 27 de agosto de 2020, verbis,
‘Para que haja uma negociação, é preciso que duas partes apresentem seus pontos de vista e encontrem um denominador comum que satisfaça a ambas, em um processo decisório compartilhado. Ao contrário do que dita o senso comum, negociar não é sinônimo de pechinchar ou levar vantagem, mas de solucionar conflitos e obter desfechos satisfatórios para as disputas.’
54) Finalmente, além de, como se viu, o caso concreto não se adequar à hipótese legal, o art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20 contraria, como destacado acima, os objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo e não reúne as condições necessárias para justificar a sua aplicabilidade.
A inconstitucionalidade
55) A Ordem Econômica e Financeira, objeto da preocupação do legislador constitucional originário no Título VII da Constituição da República, prevê como princípios gerais da atividade econômica a livre iniciativa e a defesa do consumidor (art. 170, caput e inc. V da CR), entre outros. Da interação dos mesmos, é que surgirá o esteio normativo em que se dará o desenvolvimento sadio da atividade econômica.
56) A defesa do consumidor, por sua vez, foi pormenorizadamente regulamentada com a edição, em seguida à promulgação da Carta
Política em 05 de outubro de 1988, da lei n. 8.078/90, o Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
57) Diante da evidente vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, em que a fonte da obrigação contratual não é, necessariamente, a autonomia da vontade, o Estatuto Consumerista instituiu norma de ordem pública e interesse social (art. 1º, lei n. 8.078/90) que relativiza princípios elementares da teoria geral dos contratos, como o pacta sunt servanda e lex inter partes, visando a autorizar ao Estado restaurar o equilíbrio da relação jurídica respectiva sempre que necessário.
58) É dizer que a livre iniciativa terá o aval constitucional para se desenvolver se e somente se também observar o princípio da defesa do consumidor, erigido, ainda em sede constitucional, a direito e garantia fundamental individuais e coletivos (art. 5º, XXXII, CR).
59) Não é o que ocorre no caso.
60) O art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20, ao dispor que ‘o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor’ se este rejeitar as alternativas legais a que se refere, caracteriza contradição em termos em relação à própria ideia motriz da lei n. 8.078/90, que é, como destacado, a regulamentação legal do preceito constitucional erigindo a defesa do consumidor a condição ao exercício da livre iniciativa. Senão, vejamos:
61) A lei n. 8.078/90 prevê expressamente que são nulas de pleno direito cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga (art. 51, II, CDC) e à vedação da transferência do risco do negócio a terceiros (art. 51, III, CDC).
62) Neste aspecto, releva destacar que a interpretação do conceito legal de ‘cláusulas contratuais’ deve ser o mais amplo possível, incluindo todas as formas possíveis de fazerem nascer relações jurídicas de consumo, como, aliás, o próprio dispositivo legal em questão (art. 2º, in fine, lei n. 14.046/20).
63) Logo, assim como o risco do empreendimento deve correr por conta do próprio empreendedor, pois a quem aufere o bônus do
negócio, não é dado rejeitar-lhe o ônus, muito menos transferi-lo para o polo vulnerável da relação de consumo, o reembolso de quantia já paga quando o serviço não for prestado é corolário da vedação de enriquecimento sem causa, que se daria caso válida a inviável exploração da livre iniciativa em prejuízo à defesa do consumidor.
64) Finalmente, o art. 2º, in fine da lei n. 14.046/20 é incompatível com o seu fundamento de validade e deve ser incidentalmente declarado inconstitucional.
O dano moral coletivo
65) Como amplamente abordado acima, o enfrentamento da situação de calamidade pública causada pela pandemia do COVID-19 despertou a consciência jurídica universal para a necessidade de compreender que a cooperação se sobrepõe à competição quando o dano e/ou o perigo de dano afetam a todos indistintamente. Consequentemente, a possibilidade de manutenção do vínculo contratual nas diversas áreas da economia passou a motivar concessões de parte a parte, adaptando-se os contratos sempre que possível à nova realidade.
66) No caso, todavia, o fornecedor, ao subtrair ao consumidor a opção de reembolso do valor já pago caso este rejeite as alternativas de cumprimento da obrigação contratual, manteve-se na posição daquele a quem a calamidade pública, tout court, não afetaria. Usando o vulnerável consumidor como espécie de escudo, livra-se da obrigação de indenizar o dano causado por não ter prestado do serviço. Transfere, assim, ao consumidor, o risco do seu empreendimento, contrariando, o fornecedor, não só o espírito de cooperação referido acima, mas, como salta aos olhos, o princípio legal da boa fé objetiva (art. 4º, III, CDC).
67) A boa fé objetiva está prevista no Código de Defesa do Consumidor e, para a doutrina abalizada, é regra de conduta, ou seja, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade para equilibrar as relações de consumo. XXXXXXX NUNES esclarece o que persegue a cláusula geral da boa fé objetiva, verbis,
‘(...) Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, há um desequilíbrio de forças’ (in op. cit. p. 128)
68) Xxx, como destacado com pertinência pela reclamante, ‘muitas pessoas perderam seus empregos e tiveram suas rendas reduzidas de modo que dificilmente poderão comparecer a eventos em um curto prazo’, o que evidencia que, antes de pautar a sua conduta pela satisfação do seu exclusivo interesse patrimonial, a fornecedora ré deveria se ocupar em igualmente satisfazer o real interesse do consumidor que contratou o seu serviço, atingido, como todos, pela pandemia.
69) Mas não.
70) Ao subtrair ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga caso rejeitadas as esdrúxulas alternativas de cumprimento do contrato, não garante, a ré, o respeito ao consumidor, nem coopera para atingir o fim de não causar lesão a ninguém, realizando o interesse das partes contratantes, sem obter vantagem patrimonial indevida.
71) Opera, assim, em desabrido desprezo à dignidade da pessoa humana, fundamento constitucional da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CR), sem apreender que, sobretudo no estado de calamidade pública pelo qual o país atravessa, prevalecer-se da posição de força na relação de consumo para ‘levar vantagem em tudo’ contraria o que dela deveria se esperar, pois, na qualidade de sociedade empresária com lucrativa atuação, teria os meios de contribuir para atenuar os efeitos nocivos da pandemia na ordem jurídica pátria.
72) A possibilidade de indenização do dano moral está prevista na Constituição da República (art. 5º, V, CR). O texto constitucional não limita a violação à esfera individual. Alterações históricas e legislativas têm levado a doutrina e a jurisprudência a entender que,
quando são atingidos valores e interesses fundamentais de um grupo, não há como negar a essa coletividade a defesa do seu patrimônio imaterial.
73) No julgamento do Recurso Especial n. 636.021, em 2008, a ministra do STJ NANCY ANDRIGHI registrou que o artigo 81 do CDC rompeu com a tradição jurídica clássica, de que só
indivíduos seriam titulares de um interesse juridicamente tutelado ou
de uma vontade protegida pela lei.
74) Uma das consequências dessa evolução legislativa seria o reconhecimento de que a lesão ao direito do consumidor coletivamente considerado corresponde a um dano não patrimonial. Dano que, para a ministra, merece uma compensação. Outrossim, os danos morais coletivos decorrem do próprio ato ilícito de subtrair do consumidor a opção de reembolso do valor já pago, dispensam a prova de efetivo dano ou sofrimento da sociedade e se fundam na responsabilidade de natureza objetiva, em que é desnecessária a comprovação de culpa ou de dolo do agente lesivo3.
75) Acerca da finalidade da condenação por danos morais coletivos, releva destacar trecho de outro aresto, ainda da lavra da ministra XXXXX XXXXXXXX, segundo o qual a espécie de ataque ao direito do consumidor que caracteriza o dano moral coletivo é aquele causado à própria existência da sociedade, como, no caso, o agravamento da vulnerabilidade do consumidor na relação de consumo, verbis,
‘As lesões envolvidas no dano moral coletivo relacionam-se, ademais, a uma espécie autônoma e específica de bem jurídico extrapatrimonial, referente aos valores essenciais da sociedade, de modo que o dano moral coletivo trata, pois, da reparação da ofensa ao ordenamento jurídico como um todo e aos valores juridicamente protegidos que
3 Superior Tribunal de Justiça STJ - AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL : AgInt no AREsp 1343283 RJ 2018/0201781-9
garantem a própria coexistência entre os indivíduos’. (REsp 1.473.846)
76) Finalmente, é bem de ver que, como destaca a reclamante, ‘a empresa Tickets for Fun, depois de meses sem dar uma comunicação mais esclarecedora sobre o reembolso do valor dos ingressos agora está orientando que as pessoas que não poderão comparecer na nova data (em dezembro de 2020) que peçam, até 08/07/2020, para converter o que já foi pago em créditos no site para usar em futuros eventos’.
77) Como aflora por leitura direta do trecho acima, a ré postergou a solução da situação de conflito por três meses em que, certamente, não só não reembolsou o valor já pago, como gozou da apropriação do mesmo, até que sobreviesse a inconstitucional Medida Provisória, ora convertida na lei n. 14.046/20, outorgando-lhe o inconstitucional poder de esmagar economicamente o consumidor do seu serviço.
78) Ao invés de, como é de esperar em qualquer civilização que se preze, adotar conduta proativa e, nesses três meses, convocar o consumidor para fazer a sua escolha livre e consciente em relação à manutenção do vínculo contratual, aguardou ansiosa e gananciosamente pela edição do dispositivo legal que lhe garantiria o poder de nada perder.
79) Logo, para determinar o valor da indenização a que a sociedade autora faz jus pelo dano moral que lhe causou a ré, deverá ser observado o caráter dúplice de referida verba, que, por um lado, atingirá a motivação do ofensor quanto à reiteração da prática abusiva e, por outro, representará uma compensação pelo desgaste que impingiu. A jurisprudência tem se orientado nesse sentido, verbis,
‘A indenização por dano moral não deve ser simbólica, mas efetiva. Não só tenta no caso visivelmente compensar a dor psicológica, como também deve representar para quem paga uma reprovação, em face do desvalor da conduta. (TJSP
- 1a C. Dir. Privado – XX. XXX-XXX 000/00 - xx)
‘A indenização por dano moral tem caráter dúplice, pois tanto visa à punição do agente quanto à compensação pela dor sofrida, porém a reparação pecuniária deve guardar relação como o que a vítima poderia proporcionar em vida, ou seja, não pode ser fonte de enriquecimento e tampouco inexpressiva’ (2o TACSP – 7a C. – Ap. RT 742/320).
A tutela antecipada
80) Não há dúvida de que a ‘negociação’ prevista pelo art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20, subtraindo ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, caso rejeitado o cumprimento alternativo da obrigação contratual, não passa de pretexto para garantir ao empreendimento do polo vigoroso da relação de consumo confortável risco zero, já que integralmente transferido ao consumidor que, porém, é quem tem o direito básico à proteção contra o método comercial desleal ou coercitivo (art. 6º, IV, CDC).
81) Por outra, além da vedação legal também expressa a que se refere o art. 51, III do CDC, foi expressamente definida como ‘cláusula abusiva’ e, destarte, nula de pleno direito, aquela que subtraia ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga (art. 51, II, CDC), tudo a sustentar a incompatibilidade vertical do art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20 com o seu fundamento de validade, o art. 170, inc. IV e V da Constituição da República.
82) De tudo isto, resulta de meridiana clareza que, a uma, se encontra preenchido, para o deferimento da antecipação da tutela de urgência, o requisito processual do fumus boni iuris, que é a plausibilidade da tese ora sustentada em relação à condenação da ré a reembolsar a quantia já paga por quem as alternativas de cumprimento da obrigação inicialmente contratada não atenderam.
83) A duas, diante da característica de generalidade do estado de calamidade pública, indiscriminadamente afetando os diversos setores da vida em sociedade, transferir o risco do negócio ao polo vulnerável
da relação de consumo implica subtrair-lhe recurso ao qual poderia emprestar destino diverso, enfrentando, quiçá, despesas urgentes à própria subsistência.
84) Xxxxxxxxx, até a provável procedência do pedido principal por provimento jurisdicional de mérito definitivo, o evento musical em questão, ainda que ocorra posteriormente à data ‘a confirmar’ em dezembro desde ano, já terá, certamente, se realizado, o que não impedirá a ré de vir a revender o ingresso cujo valor já pago não tiver reembolsado, obtendo vantagem exagerada por ofender os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence (art. 51, Parágrafo Primeiro, inciso primeiro, CDC).
85) Daí que é indispensável assegurar, incontinente, ao consumidor que não aceitar as propostas de cumprimento de obrigação contratual alternativa previstas na lei n. 14.046/20, o direito ao reembolso do valor já pago, justificando, o perigo da demora do provimento jurisdicional definitivo no caso, o deferimento da tutela antecipada de urgência, pelo preenchimento dos requisitos legais respectivos.
86) Xxxxxx, outrossim, o autor coletivo, a concessão de tutela antecipada, determinando, esse r. Juízo, que a ré, ao cabo do processo de negociação a que faz referencia a l. n. 14.046/20, caso rejeitadas, pelo consumidor, as alternativas que prevê, proceda ao reembolso do valor já pago pelo ingresso para o evento musical em questão sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por ocorrência, corrigidos monetariamente.
OS PEDIDOS PRINCIPAIS
87) Pelo exposto, REQUER, finalmente, o Ministério Público:
a) que, após apreciado liminarmente e deferido, seja julgado procedente o pedido formulado em caráter liminar;
b) que seja a ré definitivamente condenada a se abster de subtrair ao consumidor que adquiriu o ingresso para o evento Lollapalooza, que deveria ter se realizado em abril de 2020 no autódromo de Interlagos, em São Paulo, SP, a
opção de reembolso do valor já pago, caso frustrada a negociação a que se refere a lei n. 14.046/20, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por ocorrência, corrigidos monetariamente, declarada incidentalmente a inconstitucionalidade do art. 2º, in fine, da lei n. 14.046/20, na parte em que prevê que ‘o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor.’;
c) que seja a ré condenada a indenizar, da forma mais ampla e completa possível, os danos materiais e morais de que tenha padecido o consumidor, individualmente considerado, em virtude dos fatos narrados, a ser apurado em liquidação;
d) que seja o réu condenado a reparar os danos materiais e morais causados aos consumidores, considerados em sentido coletivo, no valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), em consequência da gravidade dos fatos narrados e da robustez financeira do réu que presta serviços de produção de eventos artísticos internacionais;
e) a publicação do edital ao qual se refere o art. 94 do CDC;
f) a citação do réu para que, querendo, apresente contestação, sob pena de revelia;
g) que seja condenado o réu ao pagamento de todos os ônus da sucumbência, incluindo os honorários ao CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, à base de 20% sobre o valor da causa, mediante depósito em conta corrente n.º 2550-7, ag. 6002, Banco Itaú S/A, na forma da Res. 801/98.
Nos termos dos artigos 319, VII c/c 334, §5º do Código de Processo Civil, o autor desde já manifesta, pela natureza do litígio, desinteresse em autocomposição.
Protesta, ainda, o Ministério Público, nos termos do artigo 319, VI do Código de Processo Civil, pela produção de todas as provas em direito admissíveis, notadamente a pericial, a documental, bem como depoimento
pessoal do réu, sob pena de confissão, caso o réu (ou seu representante) não compareça, ou, comparecendo, se negue a depor (art. 385, § 1º, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da inversão do ônus da prova previsto no Código de Defesa do Consumidor.
Atribui-se à causa, de valor inestimável, o valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais).
Rio de Janeiro, 1º de setembro de 2020
XXXXXXX XXXXX
Promotor de Justiça