CONTRATO,
CONTRATO,
GLOBALIZAÇÃO
E LEX MERCATORIA
CONVENÇÃO DE VIENA 1980 (CISG), PRINCÍPIOS CONTRATUAIS UNIDROIT (2010) E INCOTERMS (2010).
XXXXXXXXX X. X. GlITZ
CONTRATO,
GLOBALIZAÇÃO
E LEX MERCATORIA
CONVENÇÃO DE VIENA 1980 (CISG), PRINCÍPIOS CONTRATUAIS UNIDROIT (2010) E INCOTERMS (2010).
0000 Xxx Xxxxx - XX
Nossos Contatos
São Paulo
Xxx Xxxx Xxxxxxxxx, x. 000,
xx. 000, Xxxxxx, Xxx Xxxxx – SP CEP: 01.003-001
Acesse: www. xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx
Redes Sociais
Facebook: xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/XxxxxxxXxxxxxxx Twittter: xxxxx://xxxxxxx.xxx/XxxxxxxXxxxxxxx
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G477c
Xxxxx, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, 1970-
Contrato, globalização e LEX mercatória [recurso eletrônico] : Convenção de Viena 1980 (CISG), Princípios Contratatuais Unidroit (2010) e Incoterms (2010) / Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx. - Rio de Janeiro : Clássica, 2012.
recurso digital
Formato:
Requisitos do sistema:
Modo de acesso:
Inclui bibliografia e índice
ISBN 978-85-99651-51-3 (recurso eletrônico)
1. Contratos - Brasil. 2. Contratos (Direito internacional privado).
3. Cláusulas (Direito). 4. Livros eletrônicos. I. Título.
12-7605.
CDU: 347.4
18.10.12 25.10.12 039987
EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx
Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
Xxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx
Xxxxx Xxxxxx da Costa Xxxx Xxxxx
Xxx Xxxxxx
Xxxxxxxx Xxxxxx Vita Xxxx Xxxxxxxx Xxxx
Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx
Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx
Xxxxx Xxxxx Mara Darcanchy Massako Shirai
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx
Xxxxx Xxxxxxx
Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxx
Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx Moschen Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx
Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Menezes
Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxx xxx Xxxxxx
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy Produção Editorial: Editora Clássica Revisão: Xxxx Xxxxx
Capa: Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Adecomm Brasil (xxx.xxxxxxxxxxxxx.xxx.xx)
Esta licença permite que outros façam download das obras licenciadas e as compartilhem, contanto que mencionem o autor, mas sem poder modificar
a obra de nenhuma forma, nem utilizá-la para fins comerciais.
Por vezes, quando estou escrevendo estes cadernos, tenho um medo idiota de que saiam póstumos. Mas haverá escrita que não seja
póstuma? Tudo que sai impresso é epitáfio...
(Xxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxxx H, 2. ed. São Paulo: Globo, 2006. p. 357)
A lei escrita pode ser obra de uma ilusão, de um capricho, de um momento de pressa, ou qualquer outra causa menos ponderável; o uso, por isso mesmo que tem o consenso diuturno de todos, exprime a alma
universal dos homens e das coisas.
(Xxxxxxx xx Xxxxx, 25 de outubro 1896 In Obra Completa de Xxxxxxx xx Xxxxx. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, Vol. III, 1994, p. 384)
Dedicatória
Dedico este livro à memória de Xxxx Xxxxx de quem, felizmente,
herdei a curiosidade necessária à pesquisa científica.
Dedico esta obra à memória da Profa. Dra. Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx, quem primeiro despertou meu interesse para as relações jurídicas obrigacionais e me ensinou o rigor necessário à pesquisa científica.
Lista de Siglas
AAA – American Arbitration Association – Associação Americana de Arbitragem.
CCI – Chambre de Commerce Internationale – Câmara do Comércio Internacional
CE – Comunidade Europeia.
CIDIP – Conferência Interamericana de Direito Internacional Privado
CISG – United Nations Convention on Contracts for the International Sale of Goods (Vienna 1980) – Convenção das Nações Unidas sobre Compra e venda internacional de mercadorias (Viena 1980).
DCFR – Draft Common Frame of Reference – Minuta de moldura de referência comum.
DIP – Direito Internacional Público. DIPRI – Direito Internacional Privado. FMI – Fundo Monetário Internacional
INCOTERMS – International Commercial Terms – Termos do Comércio Internacional.
LCIA – London Court of International Arbitration – Corte de Arbitragem internacional de Londres
LICC – Lei de Introdução ao Código Civil MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
OEA – Organização dos Estados Americanos
OHADA – L’Organisation pour l’Harmonisation en Afrique du Droit des Affaires – Organização para harmonização do Direito empresarial africano.
OMC – Organização Mundial do Comércio.
PCCI – Princípios UNIDROIT Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais.
PECL – Principles of European Contract Law – Princípios do Direito contratual europeu.
SCC – Arbitration Institute of the Stockholm Chamber of Commerce – Instituto arbitral da Câmara de Comércio de Estocolmo.
SGECC – Study Group on a European Civil Code – Grupo de estudos sobre um Código Civil europeu.
TRIPS – WTO Trade-related aspects of intellectual property rights – Acordo da OMC sobre aspectos dos Direitos de propriedade intelectual relacionados com o Comércio
UCC – Uniform Commercial Code – Código Comercial Uniforme
EU – União Europeia.
ULIS – Convention relating to a Uniform Law on the International Sale of Goods – Convenção relacionada ao Direito uniforme aplicável às compras internacionais de mercadorias
UNCITRAL – United Nations Commission on International Trade Law – Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
UNIDROIT – International Institute for the Unification of Private Law – Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado
Resumo
O presente texto parte da proposição de que é possível que os costumes sejam fontes de obrigações contratuais. Para tanto, se buscou demonstrar esta premissa a partir de pesquisa jurisprudencial (arbitral e judicial) e do método comparado. Concluiu-se que, dada à internacionalização do Direito contratual, as fontes consuetudinárias internacionais devem ser objeto de tratamento doméstico, pois criam obrigações contratuais e não se limitam à interpretação do negócio jurídico. Não se pode, no entanto, negligenciar a necessidade de controle de seu conteúdo. Em termos detalhados, então, se pode afirmar que o papel reservado ao costume como fonte normativa do Direito contratual sempre foi residual no Direito brasileiro. Acompanhando a experiência moderna europeia, a doutrina e a legislação brasileiras enfatizam o papel secundário, quando não meramente interpretativo, do costume contratual. A jurisprudência brasileira, ao seu turno, em poucos casos dá tratamento geral para a figura. Por outro lado, o processo de redução de distâncias e aproximação cultural, social e econômica usualmente conceituada como globalização, fez sentir seu peso sobre os contratos por meio da incorporação de uma série de soluções saídas da prática comercial internacional. Embora pudessem ser justificados pelo vetusto princípio da liberdade, de alguma forma esses “usos” internacionais se insinuam para dentro do Ordenamento brasileiro ao ponto de exigirem que os próprios Tribunais lhe deem tratamento e guarida. De um lado, portanto, se nega a existência de papel normativo criativo ao costume contratual, por outro, ainda que de forma indireta, se reconhece não só sua existência, mas a possibilidade de que sua origem seja externa. Este tratamento paradoxal reflete, em alguma medida, outra consequência: o Direito contratual brasileiro está em processo de internacionalização. Eis, então, que um novo embate se anuncia: a ampla liberdade criativa (tributária da chamada Lex mercatoria) e o controle da incorporação do ato estrangeiro (ordem pública). Ao contrário de outrora,
contudo, nenhuma resposta simplista será viável especialmente em razão da complexidade da contemporaneidade contratual e das características regulatórias do Direito contratual brasileiro.
Palavras-Chave: Contrato – Costume – Internacionalização – Pluralismo Normativo – Lex Mercatoria – Ordem Pública.
Abstract
This study adopts the proposition that it is possible to the customs to be sources of contractual obligations. To support that premise, it was necessary to seek jurisprudential (arbitration and litigation) and comparative basis. Even more, due to contract law internationalization, customary international sources should be subject of domestic treatment, as they provide contractual obligations as well as they work as contractual interpretation tool. However, one can´t neglect the need to control the customary content. In detailed terms, then, we can say that the role reserved for the custom as contractual law rules source has always been residual in Brazilian law. Accompanying the modern European experience, doctrine and Brazilian legislation emphasize the secondary, when not merely interpretive, role of the contractual custom. To turn, Brazilian case law wasn´t able to give general treatment to contractual custom. Moreover, the process of reducing distances and cultural, social and economic approximation, usually called globalization, influenced the contracts through the incorporation of a number of solutions brought from the international trade practice. Although they might be justified by the age-old principle of freedom, somehow these international «uses» insinuate themselves into Brazil to the point of requiring that the Brazilian Courts themselves to give them treatment and shelter. On one side, if you deny the existence of a creative normative role in contractual custom by another, albeit indirect, is recognized not only their existence but the possibility of foreign origin. This paradoxical treatment reflects, to some extent, another consequence: the Brazilian contract law is in the process of internationalization. Here, then, a new confrontation is announced: a broad creative freedom (a tributary of the so-called Lex mercatoria) and the foreign act incorporation control (public order). Unlike before, however, no simplistic answer would be feasible, particularly because of the complexity of contemporary and regulatory Brazilian contract law.
Keywords: Contract - Custom - Internationalization - Normative Pluralism - Lex Mercatoria - Public Order.
Résumé
Cette étude adopte la proposition selon laquelle il est possible que les coutume doivent être reconnue comme des sources d’obligations contractuelles. Ainsi, pour démontrer cette hypothèse, il était necessaire qu’on xxxxxxxxxxx xx xxxxxxxxxxxxx (x’xxxxxxxxx xx xxxxxxxxx), xx xxxxxxxxxx, xxxxx, xx xxxxxxx comparative. On a pu conclure que, compte tenu de l’internationalisation du droit des contrats, les sources coutumier internationales devraient recevoir traitement domestique, car elles fournissent des obligations contractuelles et non pas seulement s´agittent de technique d’interprétation des affaires. On ne peut pas, pourtant, négliger la nécessité de contrôler leur contenu. En termes détaillés, alors nous pouvons dire que le rôle réservé à la coutume en tant que source de règles du droit contractuel a toujours été résiduel dans le Droit Brésilien. Accompagnant l’expérience européenne moderne, la doctrine et la législation brésilienne lui mettent en évidence le rôle secondaire, sinon simplement interprétatif, de la coutume contractuelle. Rarement la jurisprudence brésilienne, donne un traitement général à cette figure. Pourtant, les processus de réduction des distances et de rapprochement culturel, généralement conçus comme mondialisation, font sentir leurs effets sur les contrats par l’incorporation d’un certain nombre de solutions issues de la pratique du commerce international. Bien qu’ils auraient pu être justifiés par le vétuste principe de la liberté contractuelle, en quelque sorte ces «usages» internationales s’insinuent de telle forme dans le règlement brésilien que les tribunaux eux-mêmes sont appelés a à les accueillir et à les traiter. Par conséquent, d’un coté il est nié l’existence du rôle normatif de la coutume contractuelle, et de l’autre, quoique indirectement, il est reconnu non seulement son existence, mais la possibilité de que son origine soit étrangère. Ce traitement paradoxal reflète, dans une certaine mesure, une autre conséquence : le droit contractuel brésilien subit un processus d’internationalisation. Voici donc,
qu’une nouvelle confrontation s’annonce : la grande liberté de création (tributaire de la lex mercatoria) et versus l´ordre public. Au contraire d’autrefois, cependant, aucune réponse simpliste sera désormais possible notamment en raison de la complexité des caractéristiques contractuelles et réglementaires contemporaines du droit contractuel brésilien.
Mots-Clés: Contrat – Usage – Internacionalisation – Pluralisme Normatif
– Xxx Xxxxxxxxxx – Ordre Publique.
Resumen
Este estudio adopta la tesis de que es posible que las costumbres sean fuentes de las obligaciones contractuales. Por lo tanto, trató de demostrar esta premisa a través de una investigación jurisprudencial (arbitraje y judicial) y por el método comparativo. Se concluyó que, dada la internacionalización del Derecho contractual, las fuentes costumeras internacionales deben ser objeto de tratamiento doméstico, ya que proporcionan una obligación contractual y no solamente la interpretación del negocio jurídico. No se puede, sin embargo, descuidar la necesidad de controlar su contenido. En términos detallados, entonces podemos decir que el papel reservado a la costumbre como fuente de las normas del Derecho contractual siempre ha sido residual en la legislación brasileña. Siguiendo la experiencia europea moderna, la doctrina y la legislación brasileña reservan a la costumbre un papel secundario, cuando no meramente interpretativo. La jurisprudencia brasileña, a su vez en algunos casos da un tratamiento general para la figura. Por otra parte, el proceso de reducción de distancias y de aproximación cultural, como normalmente se define la globalización económica y social, influencia los contratos a través de la incorporación de una serie de soluciones consagradas por la práctica del comercio internacional. A pesar de que podría estar justificada por el principio secular de la libertad, de alguna manera estos “usos” internacionales se insinúan en Brasil hasta el punto de exigir que los propios tribunales les den el tratamiento y el reconocimiento. Por un lado, así que si uno niega la existencia de la función normativa de la costumbre contractual por otro, aunque sea indirecta, es reconocida no sólo su existencia sino la posibilidad de que su origen es extranjera. Este tratamiento paradójico refleja, en cierta medida, otra consecuencia: la ley brasileña de contratos está en el proceso de internacionalización. Aquí, entonces, que un nuevo enfrentamiento que se anuncia: una amplia libertad creativa (un afluente de la llamada lex mercatoria) y la orden pública. Diferentemente de antes, sin
embargo, una respuesta simplista no sería factible en particular debido a la complejidad de las actuales características contractuales y reglamentarias de la ley brasileña de contratos.
Palabras Claves: Contrato – Costumbre – Internacionalización – Pluralismo Normativo – Lex Mercatoria – Orden Publica.
Sumário
PARTE I – O costume como fonte de obrigações contratuais nacionais e internacionais 21
I. Introdução 21
II. Premissas metodológicas 36
2.1 Premissas básicas 36
2.2 Tempos de pluralismo jurídico 49
2.3 A internacionalização do direito contratual 59
III. A barganha pela soberania: o papel do costume no direito contratual
moderno 71
3.1 O costume como fonte do direito 71
3.1.1 O costume na formação do direito europeu contemporâneo 77
3.1.2 O costume na formação do Direito brasileiro contemporâneo 94
3.1.3 O costume na formação do Direito internacional contemporâneo 98
3.1.4 Brevíssimos apontamentos sobre a existência do costume como fonte do
direito no direito comparado 117
3.2 O costume como fonte do direito contratual 127
3.2.1 Dos tradicionais requisitos para formação do costume contratual 127
3.2.2 Do papel tradicionalmente dispensado ao costume como fonte do
direito contratual 139
3.3 Uma questão terminológica: costume, usos e práticas negociais 147
3.4 Notas conclusivas parciais 159
PARTE II – A internacionalização do direito contratual e o tratamento do costume como fonte de obrigações contratuais 165
IV. Proper law of contract, nova lex mercatoria 165
4.1 Globalização e desafios lançados ao direito tradicional 166
4.2 A tendência à uniformização e harmonização do direito contratual em âmbito internacional 176
4.2.1 Harmonização contratual em âmbito europeu 178
4.2.2 Iniciativas harmonizantes promovidas por estados: perspectiva brasileira 182
4.2.3 Iniciativas harmonizantes promovidas por organismos não estatais e entidades privadas 186
4.3 A Privatização das fontes: lex mercatoria e proper law of contract 190
4.3.1 Da antiga a nova lex mercatoria 192
4.3.2 Lex mercatoria: ordem jurídica autônoma? 201
4.3.3 A repercussão do debate na doutrina brasileira 209
4.3.4 Conseqüências normativas do debate .........................................................
4.3.5 Xxx xxxxxxxxxx: conveniência e oportunidade? .........................................
V. Tolerância, convivência ou desprezo? A dura relação entre costumes contratuais e ordenamentos nacionais ............................................................
5.1 Costumes contratuais locais, regionais ou nacionais segundo a jurisprudência estatal brasileira ..........................................................................
213
223
230
230
5.1.1 Supremo tribunal federal 231
5.1.2 Superior tribunal de justiça ........................................................................
5.1.3 Tribunal de justiça do paraná ......................................................................
5.1.4 Conclusão parcial .........................................................................................
5.2 Costumes contratuais internacionais reconhecidos por meio de tratados internacionais: o caso da convenção de viena de 1980 (cisg) ............................
5.3 Costumes contratuais internacionais reconhecidos por meio de consolidações de origem privada: o caso dos princípios relativos aos contratos comerciais internacionais unidroit (picc) e dos incoterms da
236
238
241
242
câmara de comércio internacional (cci) 260
5.3.1 Princípios relativos aos contratos comerciais internacionais pelo instituto internacional de unificação do direito privado internacional
- UNIDROIT (2010) 260
5.3.2 international commercial terms - INCOTERMS CCI (2010) 289
5.4 Notas conclusivas parciais: costumes contratuais internacionais
reconhecidos por tribunais nacionais? ...............................................................
PARTE III – Limites e perspectivas do costume como fonte de obrigações contratuais ...........................................................................................................
VI. Limites ao costume como fonte de obrigações contratuais .....................
6.1 Os limites dispostos aos contratantes: o exemplo da autonomia privada ..
6.2 Os limites a disposição dos estados: o exemplo da ordem pública internacional .........................................................................................................
6.3 Os limites para fora da ordem estatal: as possibilidades dos direitos humanos ..
VII. Conclusão .......................................................................................................
Referências Bibliográficas ..................................................................................
295
300
300
301
327
353
366
370
Parte I – O Costume Como Fonte de Obrigações Contratuais Nacionais e Internacionais
En éste, como en todos los problemas científicos, la teoría debe ajustarse a los hechos, ser respetuosa con ellos, por más molestos o chocantes que puedan resultar. No son los hechos los que deben ajustarse a nuestras concepciones científicas, sino, a la inversa, nuestras concepciones científicas a los hechos.1
I. Introdução
Aquele que se propõe a analisar o fenômeno contratual sabe que, tal como uma tela impressionista, sua descrição será ditada, mais pela percepção individual das luzes e sombras, que de um significado social único. A depender, portanto, da lente, diversa sua significação: instituto jurídico, fato social, realização antropológica, estrutura de poder, representação cultural2, etc..
Do ponto de vista jurídico se pode identificá-lo como instrumento de uma operação econômica3, prestando-se a facilitar o trânsito de bens, serviços; criar direitos e deveres e a organizar os interesses creditícios dos contratantes, instrumentalizando as trocas por meio de relações jurídicas obrigacionais. Além disso, contemporaneamente, reconhece-se que deve atender uma determinada finalidade social, ainda que este conteúdo seja objeto de alguma controvérsia4.
1 XXXXX XXX, Xxxxx. Fuentes del Derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1999, p. 79.
2 XXXXX, Xxxxxxxx. Law as culture: an invitation. Princeton: Princeton Press, 2006.
3 XXXXX, Xxxx. O contrato. Coimbra: Xxxxxxxx, 0000, p. 08-10; XXXX, Xxxxx. Les nouvelles frontières du droit des contrats. In: Revue internationale de droit comparé. v. 50, n. 4. oUt./dez. 1998, p.1019.
4 Para parte da doutrina trata-se de limitação à liberdade de contratar associada à ordem pública, não se con- fundindo com fundamento do exercício de liberdade (HIRONAKA, Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx. Con- trato: estrutura milenar de fundação do direito privado. In: Revista do Advogado, n. 68. São Paulo: AASP, dez. 2002, p. 86) ou, ainda, condição de validade, relacionada aos interesses de terceiro e à ordem pública (THE- ODORO JUNIOR, Xxxxxxxx. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 125-131). Para outra parte da doutrina, tratar-se-ia de mandamento de otimização, limitado às condições fáticas e jurídicas
É a partir desse múltiplo papel jurídico atribuído ao fenômeno contratual que se pode passar a compreender seus princípios e regime contemporâneos. Percebe-se, todavia, que apesar das inúmeras mudanças sociais, a doutrina jurídica brasileira mais tradicional insiste em compreender o contrato a partir, apenas, de seu conceito jurídico e, dentro dele, tão só, daquela concepção teórica que deita suas raízes nas conquistas liberais burguesas do século XVIII e XIX5. Este posicionamento privilegia o cego cumprir de cláusulas como se o contrato fosse um fim em si mesmo6, destituído de objetivos internos ou externos aos contratantes. Centrado no indivíduo, o contrato se torna, assim, expressão do egoísmo individual7, embora, paradoxalmente, abstraía sua condição humana.
Como construção moderna, a teoria contratual, reflete as opções políticas e econômicas liberais de um determinado período histórico, acentuadamente vinculadas a uma compreensão da realidade. Além disso, seu arcabouço conceitual privilegia uma ordem principiológica que continua a influenciar o modo de pensar da sociedade ocidental cristã. Não é sem motivo, portanto, que vários daqueles conceitos (liberdade, propriedade, igualdade, por exemplo) foram consagrados pela Constituição da República Federativa do Brasil (1988) como direitos fundamentais.
É neste cenário e segundo estas premissas que o contrato se constituiu como um dos pilares do sistema jurídico liberal, juntamente
(XXXXXX, Xxxxxxx Xxxx dos. O novo Código civil e as cláusulas gerais: exame da função social do contrato. In: Revista de Direito privado, n. 10. São Paulo: RT, abr./jun. 2002, p. 31) ou cláusula geral que assegura que a vontade receba tutela apenas quando socialmente útil (não se limitando à limitação do exercício da vontade) XXXXX, Xxxxxxx Xxxx Xxxxx de. Função social do contrato. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 191.
5 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx. O contrato e seus princípios. 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 1999, p. 14-26, 35-38. 6 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Contrato e Mudança Social. In: Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, dez. 1995, a. 84, v. 722, p.44.
7 “As exigências do novo modo de produção, tendo por suporte a iniciativa privada, a concorrência no mercado do trabalho e dos bens, e a equivalência nas trocas, vieram a determinar no plano jurídico a elaboração das ca- tegorias formais que melhor se ajustassem aos interesses dos agentes econômicos; assim se define, por um lado, a autonomia de querer como liberdade de contratar, liberdade de escolher o contratante; e liberdade de fixar o conteúdo do contrato, cujos efeitos jurídicos decorrem do simples consenso a que a ordem jurídica confere força obrigatória, e por outro a equivalência das prestações, cujo equilíbrio é livremente ponderado pelas partes”. FI- XXXXXX, Xxxxxx. Renovação do sistema de Direito Privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 144.
com a família e a propriedade8. O direito contratual que, então, se tornou paradigma foi aquele que se codificou por obra dos Estados liberais9 e que se pereniza em numerosas citações doutrinárias e precedentes jurisprudenciais.
Não é, contudo, sem razão que esta compreensão jurídica do fenômeno contratual privilegia a finalidade econômica do contrato. Dadas as circunstâncias sociais e históricas reinantes na Europa ocidental, se tornava indispensável a afirmação da livre iniciativa e, portanto, a proteção normativa da autonomia individual.
Esta visão, que se torna tradicional, tende, contudo, a simplificar a explicação do instituto, destacando seu papel econômico sobre os demais. Quando esta lógica passa a ser enfatizada acaba por criar verdadeiros dogmas10, exaltados pela mera repetição acrítica.
A partir, contudo, do momento que se percebe que são diversos os papéis que podem ser atribuídos ao contrato como instituto jurídico, sem que um deles prevaleça sobre os demais, passam a ser viáveis outras possibilidades interpretativas, normativas e criativas que, outrora, soariam heréticas.
Lembre-se, ainda, que as divergências sobre o papel jurídico a ser desempenhado pelo contrato encontram eco na atribuição política atribuída a cada Estado e na perspectiva de proteção da pessoa.
Se, por um lado, é certo que os Direitos fundamentais de primeira geração se destinavam à proteção do particular em face do Estado11, por outro, se compreende que também os interesses individuais
8 XXXXXXXXXX, Xxxx. Flexible droit: pour une sociologie du droit sans riguer. 10. ed. Paris: LGDJ, 1998, p. 255.
9 XXXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: XX, 0000. v. 3, p. 130-131.
10 Advirta-se que a expressão dogma não se refere ao caráter dogmático da norma jurídica, isto é, nos dizeres de Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx: “como ordem de validade, sem vinculação imediata e direta à sua realização no plano das realidades sociais”. (XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx de. Teoria do fato jurídico: plano da existência.
14. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 15). A expressão é utilizada no sentido de “verdade fundamental e incontes- tável” inspirada nas provocações lançadas especialmente em: PERLINGIERI, Xxxxxx. Normas constitucionais nas relações privadas. In: Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 6-7, 1998-1999, p. 63-65.
11 Daí porque soa genial a alusão ao monstro bíblico Leviatã (XXXXXX, Xxxxxx. Leviathan: or matter, form and Power of a Commonwealth Ecclesiastical and Civil. In: XXXXXX, Xxxxxxx (pub.). Britannica Great Books.
devem ser refreados12. O reflexo dessa discussão, por exemplo, acaba por influenciar o papel dado as chamadas fontes contratuais. Dessa forma, quanto mais se enfatiza a autonomia do sujeito, maior poder criativo ganha a vontade individual, em detrimento das demais possíveis formas de se compreender a criação de obrigações contratuais.
De outra feita, não deixou o contrato de ser o instrumento por excelência da vida econômica e a expressão da autonomia xxxxxxx00, mas as exigências da sociedade globalizada14 e contemporânea impuseram reformas na forma de se compreender tal fenômeno. Em suma, restaria claro que a engrenagem econômica não prescindiria da lubrificação imposta pelo objetivo social15 e, então, não se pode entender o instituto apenas pela operação econômica que representa.
Apesar do debate em torno das finalidades atribuídas ao contrato, pouco, ou quase nada, tem sido debatido sobre as demais fontes das obrigações contratuais, além da vontade individual. Há, por óbvio, consenso em torno da noção de que o contrato é expressão da liberdade negocial e, consequentemente, da vontade individual. Embora esta seja hoje limitada, como se demonstrará adiante, continua sendo a sua coluna
Londres: Britannica, 1952, p. 47).
12 XXXXX, Xxxxxxx. Transformações Gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: XX, 0000, p. 07. Daí porque soa igualmente genial a alusão ao brocardo homo homini lupus que, segundo TOSI, se trata de expres- são difundida entre os clássicos, mas que ganha notoriedade ao ser utilizada por XXXXXX como símbolo da crueldade humana no estado da natureza, anterior ao Estado. XXXX, Xxxxx. Dicionário de sentenças latinas e gregas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 538.
13 Entendida como o espaço de liberdade reconhecida ao indivíduo para celebrar contratos, estabelecendo sua forma, conteúdo, efeitos e duração. Tal liberdade passa, hoje, por expressivos condicionamentos internos e ex- ternos (limites), típicos daquilo que se chamará doravante: função social do contrato. “Agora já a autonomia privada, expressão da liberdade entendida como possibilidade de escolha dos meios mas idóneos para realizar os seus interesses, como manifestação do mais geral princípio da autodeterminação no direito, está a ceder o lugar a uma heteronomia de regulamentação exterior imposta por uma sempre mais alargada intervenção estatal face ao fenômeno de sujeição, de subordinação, de exploração de estratos sociais por imposição da concentração do capital (trabalhadores, utentes, consumidores, locatários, etc.)”. XXXXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 144.
14 Por globalização entender-se-á, provisoriamente, o conjunto de fenômenos, sociais, políticos, econômicos e culturais que tende a padronizar os relacionamentos humanos, suprimindo distinções culturais estritamente locais.
15 “Isto é, a iniciativa económica privada tem de visar, primeiramente, um objectivo, que é o progresso cole- tivo, que necessariamente se sobrepõe e não se confunde com os objetivos privados do empresário”. XXXXX, Xxx. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, 1982, p. 203.
vertebral. De outra feita, parece igualmente importante destacar que a liberdade contratual é, também, condicionada internamente ao vínculo contratual, isto é, deve ser exercida de forma a respeitar a principiologia contratual e especialmente os interesses dos contratantes, sem infringir, contudo, os direitos fundamentais e garantias básicas da pessoa.
A forma como a expressão de liberdade contratual ocorre também é sintomática para a compreensão do “novo” modelo negocial. É a partir dela, por exemplo, que se pode afirmar juridicidade aos contratos por adesão (ainda que a liberdade seja aceitar seu conteúdo ou não), a noção dos contratos relacionais16, a manifestação tácita de vontade, o comportamento concludente ou, ainda, admitir contratos celebrados por meios eletrônicos17 ou estritamente automatizados18.
Além disso, tal condicionamento possibilita, igualmente, admitir-se que os contratantes, individual ou coletivamente, contribuam com o rol de obrigações que comporão sua própria relação jurídica. Isso em grande parte já é aceito tranquilamente. Trata-se da forma mais tradicional de compreender a liberdade contratual e está positivada, no caso brasileiro, no art. 425 do Código Civil19. O que, contudo, não
16 Em resumo, segundo MACNEIL, existiriam dois tipos de contratos relacionais, aqueles realizados em so- ciedades de pouca especialização e mudança, ou seja, primitivas e aqueles realizados em sociedades contem- porâneas, mais complexas e com grande grau de especialização. O que tornaria possível unir esses dois tipos de contratos em um único conceito é o fato de que ambos se apoiam na colaboração. Os contratos contempo- râneos, no entanto, por serem mais complexos envolveriam diferentes variáveis: especialização da produção e medida de seu valor, existência de fontes internas e externas de solidariedade, planejamento com base na especialização e medida, compartilhamento de ônus e bônus, existência de obrigações subjacentes ao contra- to e existência de estrutura de poder e comando. XXXXXXX, Xxx X. O novo Contrato social. Rio de Janeiro: Xxxxxxxx, 0000, p. 10-34). No Brasil a teoria é aplicada por XXXXXX XXXXXX aos contratos de consumo ex- plicando as relações contratuais continuadas a partir de premissas de colaboração e solidariedade (XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Contratos relacionais e Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: XX, 0000, passim).
17 XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. A contemporaneidade contratual e a regulamentação do contrato eletrônico. In: XXXXXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx; et al. (Orgs.). Diálogos sobre Direito Civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, v. , p. 209-246.
18 Como, por exemplo, alguns portais de compra pela internet em que a programação inicial desenvolvida se dá com base em necessidade (atingindo-se níveis predeterminados) e preço captado também eletronicamente. Existem, inclusive, estudos de geladeiras que se “abasteceriam” sozinhas (smart refrigerators) a partir deste mesmo conceito ou, ainda, as comuns máquinas de venda de refrigerantes ou outras guloseimas tão comuns nas estações de metrô dos países europeus.
19 “Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código”.
encontra tal aceitação é que esta definição se dê de forma a expressar menor liberdade negocial, mas reconhecimento da normatividade de um costume contratual. Em outros termos, que obrigações contratuais possam decorrer não do consenso e da aceitação (tácita ou expressa), mas de condicionamento social previamente existente.
Xxxxxx, em alguma medida, esta pudesse parecer uma falsa indagação20. Em termos brasileiros, desde a compreensão da obrigação como relação jurídica obrigacional, composta de fases interdependentes e voltadas ao adimplemento21, a doutrina tem dificuldade em duvidar da capacidade do princípio da boa-fé objetiva de frutificar obrigações22, independentemente de sua previsão na relação. Tal hipótese, contudo, destaca-se como sendo interna corporis ao contrato, ou seja, o comportamento vinculante entre os contratantes por conta de modelo de conduta exigível entre si. Não se explica, contudo, como se poderia pretender que tais condutas obrigassem terceiros, nem como comportamentos distintos daqueles criados pelos sujeitos em sua relação (práticas ou usos) condicionariam seu comportamento23. Em outros termos, a explicação não é generalizada, depende sempre do comportamento demonstrado em cada negócio.
20 XXXXXX, por exemplo, discute que a dicotomia direito consuetudinário-direito estatuído seria, em verdade, derivada das dicotomias maiores: direito público-direito privado e direito natural-direito positivo. XXXXXX, Xxxxxxxx. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do Direito. Campinas: Manole, 2007, p. 152-158.
21 XXXXX X XXXXX, Clóvis V. do. A obrigação como processo. São Paulo: FGV, 2007. O autor se refere literal- mente à satisfação do interesse do credor. Por exemplo: p. 167.
22 Duas das funções atribuídas ao princípio da boa-fé, pela doutrina brasileira, são a de criação de deveres anexos (transparência, honestidade, lealdade, cuidado, etc.) e a de proteção das expectativas criadas. XXXX- XXX, Xxxxxxxx. O Direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 152-153, 157-165.
23 Uma exceção atualmente admitida por parte doutrina é, em relação ao princípio da relatividade dos efeitos do contrato, a chamada tutela externa do crédito pela qual se explica a obrigação ou dever, dependendo do autor, de se respeitar o contrato alheio, nascida da função social do contrato. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx. Os princípios do atual direito contratual e a desregulamentação do mercado. Direitos de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento. Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para inadimplemento contratual. In: . Estudos e Pareceres de Direito Privado: com remissões ao Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 137-147; XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 119; XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. A tutela externa do crédito e a função social do contra- to: possibilidade do caso Zeca pagodinho. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxxx. (Orgs.). Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, v. 2, p. 323-344.
Convém, ainda, destacar que a vontade individual, estritamente considerada, não é mais a única responsável pela produção de efeitos obrigacionais. Daí porque não se poderia mais conceber qualquer explicação jurídica do contrato a partir de uma lógica estritamente voluntarista.
Por outro lado, o Direito contratual brasileiro vem, ainda, debatendo o papel que pode ser atribuído ao “silêncio”24, ou como se prefere, comportamento concludente25. Se por um lado pode se admitir que o comportamento reflita concordância tácita com as condições negociadas por outra parte, por que não se poderia admitir, pelo menos em hipótese, que este mesmo comportamento fosse condicionado pela conduta social externada no costume negocial? Note-se que este último comportamento poderia mesmo ser totalmente desvinculado da liberdade negocial dos contratantes.
Assim, se, de um lado, o Direito contratual brasileiro admite que o contratante anua por meio da própria omissão (arts. 11126, 30327, 32628, todos do Código Civil brasileiro), por outro, relaciona a ideia de usos (art. 11329 e 52930 do Código Civil) e costumes (art. 113, 43231,
24 Entendido como uma forma de declaração tácita que corresponderia a “uma manifestação de vontade, por meio de um comportamento negativo, deduzida de circunstâncias concludentes, caracterizadas pelo dever e possibilidade de falar quanto ao silente e pela convicção da outra parte, indicando uma inequívoca direção da vontade incompatível com a expressão de uma vontade oposta”. (XXXXX XXXXX, Xxxxxx Xxxxx xx. O silêncio como manifestação da vontade. 3. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1961, p. 165-166). O termo silêncio é rejeitado tecnicamente como sinônimo de declaração tácita ou comportamento concludente por XXXX XXXXX, pois representaria total ausência de manifestação. XXXX XXXXX, Xxxxx. Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1995, p. 631.
25 A declaração tácita, mais abrangente que o mero silêncio, teria como característica a possibilidade de vir a ser acompanhada de atos que indiquem a manifestação de vontade sem que sejam, contudo, manifestados por símbolos ou sinais expressos.
26 “Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for neces- sária a declaração de vontade expressa”.
27 “Art. 303. O adquirente de imóvel hipotecado pode tomar a seu cargo o pagamento do crédito garantido; se o credor, notificado, não impugnar em trinta dias a transferência do débito, entender-se-á dado o assentimento”. 28 “Art. 326. Se o pagamento se houver de fazer por medida, ou peso, entender-se-á, no silêncio das partes,
que aceitaram os do lugar da execução”.
29 “Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. 30 “Art. 529. Na venda sobre documentos, a tradição da coisa é substituída pela entrega do seu título represen- tativo e dos outros documentos exigidos pelo contrato ou, no silêncio deste, pelos usos”.
31 “Art. 432. Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver
569, II32; 59633 e 61534, todos do Código Civil) com influência contratual. Alguns dos mencionados casos, inclusive, demonstram a capacidade de fonte obrigacional dos costumes (remuneração da prestação de serviços ou locação, ou mesmo aceitação do contrato, por exemplo).
Daí se depreende outro dado significativo: o papel dos costumes contratuais não está circunscrito à formação do contrato, mas a todas aquelas fases interdependentes mencionadas por COUTO E SILVA35. Eis o motivo pelo qual seria possível sustentar o costume contratual não só como fonte de obrigações na formação do contrato, durante sua execução, bem como em sua extinção36.
Por outro lado, em todos os mencionados exemplos há a referência à ausência de disposição legal ou contratual, ou seja, o conteúdo obrigacional do costume continuaria sendo subsidiário à lei ou ao contrato, tendo acentuado papel na interpretação do negócio37 (quando ausente a determinação pela manifestação livre do consentimento). O costume contratual, propriamente, somente seria vinculante se anuído38. Diante destas ponderações, algumas indagações podem ser feitas:
(i) seria, então, necessário o consentimento expresso para vinculação ao costume negocial, ou sua aceitação tácita bastaria?
(ii) Poder-se-ia imaginar que o costume contratual geral criaria,
dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa”.
32 “Art. 569. O locatário é obrigado: II - a pagar pontualmente o aluguel nos prazos ajustados, e, em falta de ajuste, segundo o costume do lugar;”
33 “Art. 596. Não se tendo estipulado, nem chegado a acordo as partes, fixar-se-á por arbitramento a retribui- ção, segundo o costume do lugar, o tempo de serviço e sua qualidade”.
34 “Art. 615. Concluída a obra de acordo com o ajuste, ou o costume do lugar, o dono é obrigado a recebê-
-la. Poderá, porém, rejeitá-la, se o empreiteiro se afastou das instruções recebidas e dos planos dados, ou das regras técnicas em trabalhos de tal natureza”.
35 XXXXX X XXXXX, Clóvis V. do. Op. cit., passim.
36 Para a exata compreensão desta afirmação deve-se levar em conta que não se nega a existência e a relevância do costume nas fases pré-negocial (durante as negociações, por exemplo, como sustentáculo para eventual responsabilidade civil) ou pós-negocial (após a concretização das prestações, na interpretação de um compor- tamento contraditório), mas tais situações não serão respondidas necessariamente por costumes contratuais e, portanto, não serão objetos de preocupação imediata deste trabalho.
37 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Usos e costumes no processo obrigacional. São Paulo: XX, 0000.
38 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 21.
para aqueles que não se portam em sentido contrário, a presunção de aceitação tácita?
(iii) Até onde se pode sustentar que o costume negocial condiciona o comportamento dos contratantes?
(iv) Seria possível admitir que o contratante ofendesse o costume negocial geral se isso não ofendesse sua disposição contratual?
(v) Se necessário o consentimento para fundamentação do costume contratual, não passaria este a compor a própria condição de prática contratual das partes? Isso porque uma vez exercida a autonomia privada, o costume contratual deixa de ser, para aquele negócio, relevante como costume, e passa a interessar como vontade já declarada.
(vi) O contrato, nesta medida, não negaria a existência do
costume ao afirmar a sua possibilidade?
Dentro da compreensão jurídica nacional tradicional, tais questionamentos, contudo, são falsos problemas. Isso porque o costume é usualmente encarado como fonte subsidiária do Direito brasileiro, tendo incidência limitada nas relações negociais (art. 4º39 da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro - Decreto-lei n° 4.657 de 1942 - LINDB). Observa-se, contudo, que o papel do costume na formação de obrigações contratuais não é algo residual. A depender da esfera jurídica a que o contrato esteja submetido, diferente abordagem se daria. Assim, doutrinariamente, se afirmava sua preponderância no chamado Direito Comercial (ou Empresarial, conforme modelo teórico adotado pela nova codificação civil brasileira) e o Direito Internacional40. Embora não se negue seu papel no Direito do Trabalho e no Direito civil, no que se refere aos contratos internos brasileiros, teria atribuição limitada: de fonte subsidiária, poder-se-ia admiti-lo como regra de interpretação do negócio.
Conforme se demonstrará, esta opção do Direito brasileiro
reflete aquela opção política de centralização, liberal-burguesa, da
39 “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
40 XXXXX, Xxxxxx. Lições preliminares de Direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 159-160.
construção jurídica em mãos de um legislador “nacional”41. Daquele momento em diante, a legislação reconheceria o costume, negando-lhe autonomia na construção jurídica42, tendência que acabou não sendo uma exclusividade brasileira43.
No plano internacional, contudo, a inexistência de um legislador “universal” gerou a necessidade de criação jurídica a partir de outras fontes. Uma dessas fontes privilegiadas foi, justamente, o costume internacional.
Na seara contratual internacional, por exemplo, o fenômeno da intensificação das relações comerciais internacionais (e consequentemente contratuais), a globalização, a construção de uma nova ordem mundial e a formação de blocos econômicos passaram a demandar uma maior preocupação com as chamadas “fontes do Direito”. Eis que surgem iniciativas como aquelas da Câmara de Comércio Internacional (CCI)44, do Instituto Internacional de Unificação do Direito Privado(UNIDROIT)45 e da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional
41 XXXXX, X. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 207.
42 “Quando, porém, ao lado do direito costumeiro, um direito de formação legislativa existe, precisa aquele, contudo, do reconhecimento direito ou indireto deste, para que sua obrigatoriedade fique assegurada”. XXX, Xxxxxxx. O Direito e a Vida dos Direitos. 6. ed. São Paulo: XX, 0000, p. 283-284.
43 XXXXX, X. Santos. Op. cit., p. 213. Para uma visão comparada da “monopolização” da produção normativa vide: XXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Poder Legislativo e Monopólio da Lei no Mundo Contemporâneo. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, p.07-28.
44 Câmara de Comércio Internacional de Paris é instituição privada, criada em 1919, que tem por objetivo estatutário, entre outros: representar todos os setores de atividade econômica internacional; contribuir para a harmonização e liberdade das relações comerciais no domínio jurídico e econômico e fornecer serviços especializados e pragmáticos à comunidade de negócios internacional. ICC. Statuts de la Chambre de Commerce Internationale. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxxxxxXxxxx/XXX/XXX_Xxxx_Xxxx/ pages/2008F.pdf>. Acesso em 19 de outubro de 2011.
45 Instituto Internacional de Unificação do Direito Privado, sediado em Roma, é organismo internacional e intergovernamental criado como órgão auxiliar da Liga das Nações (1926) e reformulado por acordo mul- tilateral em 1940. Seu objetivo estatutário é estudar meios de harmonizar e de coordenar o Direito privado dos Estados de modo a possibilitar uniformização das regras materiais do Direito Internacional Privado. Foi responsável pelos trabalhos preparatórios da Convenção de Haia de 1964 sobre a formação do contrato de compra e venda internacional de bens móveis; da Convenção de Bruxelas de 1970 sobre contrato de turismo; da Convenção de Washington de 1973 sobre testamento internacional; da Convenção de Genebra de 1983 sobre representação nas vendas internacionais e da Convenção de Ottawa de 1988 sobre leasing internacional. XXXXXXXXXX, Xxxxxxxxx. Une exercice de rénovation des sources du droit des contrats du commerce interna- cional: les Principles proposés par l’Unidroit. In: Revue Critique de droit International privé, n. 4. Paris: Sirey, out./dez. 1995, p. 641-670.
(UNCITRAL)46 na elaboração da Convenção de Viena de 1980 (CISG)47, para citar apenas aquelas de maior interesse para o presente trabalho. Além disso, promovem a consolidação e uniformização de costumes internacionais como ao consagrarem o princípio da primazia dos usos e costumes, a preponderância do princípio da boa-fé objetiva, do equilíbrio objetivo das prestações contratuais, entre outros.
Dentro da lógica internacional, portanto, o paradigma é outro: os costumes não só teriam função hermenêutica do negócio, mas igualmente construtiva ao ponto de serem consagrados em mesmo grau hierárquico que os Tratados Internacionais48.
Resta, portanto, compreender se, apesar de racionalidades distintas, seria possível aproximá-las? E se fosse possível aproximá-las, como se daria a convivência entre essas lógicas dentro do ordenamento nacional?
Este seria, portanto, o ponto chave para a tese a ser esboçada no presente trabalho. Partir-se-á da premissa de que não só a aproximação seria possível, mas altamente recomendada. Isso porque, em razão do fenômeno de internacionalização do Direito contratual, o posicionamento tradicional do Direito brasileiro parece ser insustentável em longo prazo49. Sinais de rachadura nesse edifício conceitual teriam começado a se
46 Criada pela Assembléia Geral em 1966, que propõe medidas de uniformização e harmonização do Direito comercial internacional. É composta de 60 (sessenta) países eleitos para um mandato de seis anos. Diversas de suas Leis modelo (de arbitragem, por exemplo) ou Convenções (CISG, por exemplo) possuem destacado papel na regulamentação do comércio internacional.
47 Convenção das Nações Unidas adotada em 11 de abril de 1980 em Viena, e que entrou em vigor em 1º da janeiro de 1988, que estabelece regime legal aplicável para contratos de compra e venda internacional de mer- cadorias. O Brasil ratificou o referido Tratado em 2014 (Decreto n° 8.327/2014). Disponível em: < xxxx://xxx. xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/_Xxx0000-0000/0000/Xxxxxxx/X0000.xxx>. Acesso em 24 de novembro de 2014.
48 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Curso de Direito Internacional Público. 3. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx Xxxxxx, 1971, v. 1, p. 146-152.
49 “Envolve um fenômeno que objetiva, por um lado, a renovação da estrutura da sociedade, e, por outro, a adaptação a uma nova realidade econômico-social, em que os padrões tradicionais foram drasticamente alte- rados, com a internacionalização das relações econômicas e sociais, obrigando a repensar os valores ideolo- gicamente consagrados no ordenamento jurídico e as influências interdisciplinares sofridas pelo direito nesta fase de mutação”. XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: XXXXXX, Xxxx Xxxxx. (Coord.). Repensando os fundamentos do Direito Civil Contemporâ- neo. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 11.
apresentar conforme se assentaram as bases negociais contemporâneas. Os próprios tribunais brasileiros, conforme se demonstrará, já teriam começado a ser confrontados com situações inesperadas, atípicas, desconhecidas da lei, mas maciçamente reconhecidas na prática negocial. Além disso, a insuficiência dos parâmetros jurisprudenciais,
unem-se problemas decorrentes da complexidade normativa. São eles de
quatro naturezas:
(i) A nova codificação civil brasileira procedeu, em grande parte do Direito contratual, à unificação entre os sistemas tradicionalmente civis e empresariais. Com isso, os contratos, independentemente de sua natureza passariam a ter, no Brasil, um mesmo regramento jurídico50.
(ii) O Direito contratual brasileiro não faz distinção ao regime legal aplicável a contratos nacionais e internacionais, ao final do procedimento conflitual51. Nesta medida, dependendo da solução dada pelo Direito internacional privado poder-se-ia aplicar o mesmo dispositivo indistintamente a contratos de origem e execução nacional e contratos de origem ou execução internacional.
(iii) O Direito contratual brasileiro não conceitua, ainda, com
50Advirta-se que vários autores sustentam que, apesar da unificação legislativa, os contratos empresariais e civis não estariam sujeitos ao mesmo regime, especialmente principiológico (como, por exemplo: XXXXXX- XX, Xxxxx X. Interpretação dos negócios empresariais. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxxx. (Coord.). Fundamentos e princípios dos contratos empresariais. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 106). Normalmente esta lógica parece ser defendida para limitar ou rechaçar a incidência de certas cláusulas gerais aos contratos empresariais. Nem todos compartilham desta opinião, ponderando que o regime principiológico é o mesmo, ainda que se aplique o critério da especialidade (como, por exemplo: XXXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx. Contratos: Direito Civil e empresarial. São Paulo: XX, 0000, p. 25-26). Ao lado disso, convém destacar que, de qualquer forma, o regime jurídico aplicável a ambos é necessariamente constitucional, daí porque a leitura da unificação legislativa tam- bém perpassa por mais este filtro de unificação valorativa. Apesar das “especificidades” do Direito empresarial, elas não teriam condão de subsistir frente a certos imperativos de ordem constitucional se por eles não forem recepcionadas, seja do ponto de vista normativo (por exemplo, a clássica análise piramidal kelseniana) ou valorativo (por exemplo, defendido pelos teóricos da constitucionalização do Direito privado).
51 Tradicionalmente um dos papéis atribuídos ao Direito internacional é o de determinar qual o Direito apli- cável a uma dada relação jurídica com conexão internacional, ou seja, vinculada faticamente a mais de um Ordenamento jurídico. Por mais paradoxal que isso possa parecer, esta determinação é baseada em uma es- colha realizada pelo legislador nacional (XXXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Direito internacional privado: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 03-04). Uma vez indicado o Direito aplicável ao caso submetido à análise, cessa a incidência da Lex fori (Direito do foro) para aquele tema. Dessa forma, se, por hipótese, aplicá- vel o Direito brasileiro para reger e qualificar um contrato (determinação da Lex fori), o juiz aplicará o Código Civil brasileiro para definição sobre sua natureza, créditos inerentes, transmissão de riscos, etc.
absoluta precisão os contratos sujeitos ao regime jurídico internacional. Isso de deve ao intenso debate doutrinário sobre o conceito de contrato internacional, aos diferentes conceitos incorporados pelos diferentes tratados promulgados (a depender do momento histórico de sua redação), pelos tratados internacionais ratificadados52, ou não, e da imprecisão da legislação nacional.
(iv) Diferença de parâmetros entre a legislação nacional e os tratados internacionais mais contemporâneos no momento de se afirmar a possibilidade de os contratantes escolherem o regime legal aplicável aos contratos sujeitos ao regime internacional.
Dessa forma, qualquer solução jurídica em matéria contratual passaria a independer da natureza, nacional ou internacional, do negócio. Uma solução assim unificada precisaria sopesar, contudo, diferentes finalidades e funções atribuídas a cada uma das diferentes relações. Em outros termos, embora haja um tratamento geral comum unificado legislativamente, em uma análise simplista, ou unificado de forma constitucionalizada, em uma análise mais complexa, o que os diferenciará será a finalidade econômica, social e reguladora específica. As fontes, no entanto, obrigacionais passam a ser as mesmas.
O que se percebe que é as “fronteiras” do Direito contratual não coincidem mais com as fronteiras do Estado soberano ou com as “fronteiras” conceituais do contrato nacional e internacional. Em grande medida o próprio conceito de contrato, antes de seu regime ser nacional ou internacional, se internacionalizou53.
De outra feita, a “incorporação” do regime internacional para dentro da legislação nacional faz incidir o peso de outras circunstâncias,
52 A ratificação é o ato internacional pelo qual um Estado se obriga internacionalmente, celebrando tratados internacionais (art. 2º da Convenção de Viena de 1969 - BRASIL. Decreto n. 7.030 de 14 de dezembro de 2009 que promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. DOU de 15 de dezembro de 2009). De acordo com o Direito constitucional brasi- leiro, trata-se de competência do chefe do Poder Executivo, mediante aprovação do Poder Legislativo (art. 84, VIII da Constituição da República).
53 No sentido empregado por XXXXXX-XXXXX, Xxxxxxxx. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47-53.
necessidades e problemas. Para atendê-las, os padrões relativamente “provincianos” da compreensão contratual nacional são demasiados estreitos. Neste sentido, a mera e vazia afirmação de soberania restringe a aplicação de justiça ao caso concreto. Lembre-se, ademais, que esta “importação” não se dá no sentido tradicional de nacionalização da norma internacional, restringindo-se sua discussão doutrinária e jurisprudencial, no Brasil, aos tratados internacionais54.
É neste cenário que se passa a defender a chamada “internacionalização”55 dos contratos, ou seja, que, em dadas
54 Em resumo, e de forma extremamente simplificada, pode-se dizer que se tratava de explicar qual a relação entre o tratado internacional e o ordenamento nacional a partir de duas correntes doutrinárias: monistas (para quem há um só sistema, prevalecendo um deles) e dualistas (para quem há independência entre os sistemas nacionais e internacionais, prevalecendo o nacional). O leading case brasileiro foi decidido em 1977 pelo Supremo Tribunal Federal quando firmou o entendimento de que tratado internacional poderia ser re- vogado por lei ordinária posterior (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 80.004/ SE. CONVENÇÃO DE GENEBRA, LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMIS- SÓRIAS - AVAL APOSTO A NOTA PROMISSÓRIA NÃO REGISTRADA NO PRAZO LEGAL - IMPOS- SIBILIDADE DE SER O AVALISTA ACIONADO, MESMO PELAS VIAS ORDINÁRIAS. VALIDADE DO DECRETO-LEI N. 427, DE 22.01.1969. EMBORA A CONVENÇÃO DE GENEBRA QUE PREVIU UMA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS DE CÂMBIO E NOTAS PROMISSÓRIAS TENHA APLICABILIDADE NO DIREITO INTERNO BRASILEIRO, NÃO SE SOBREPÕE ELA ÀS LEIS DO PAÍS, DISSO DECORRENDO A CONSTITUCIONALIDADE E CONSEQUENTE VALIDADE DO DEC-LEI N. 427/69, QUE INSTITUI O REGISTRO OBRIGATÓRIO DA NOTA PROMISSÓRIA EM REPARTIÇÃO FAZENDÁRIA, SOB PENA DE NULIDADE DO TÍTULO. SENDO O AVAL UM INSTITUTO DO DIREITO CAMBIÁRIO, INEXISTENTE SERÁ ELE SE RECONHECIDA A NULIDADE DO TÍTULO CAMBIAL A QUE FOI APOSTO. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Goes versus Xxxxxxxxx Xxxx Xxxxxxxx. Relator Min. Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Tribunal Pleno. Julgamento em 01/06/1977). Por outro lado, o próprio Supremo Tribunal Federal já discurte a necessidade de reformulação dessa orientação, como se extrai do voto do Min. Xxxxxx Xxxxxx no Recurso Extraordinário n° 466.343-1/SP: “É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 466.343-1/SP. PRISÃO CIVIL. De- pósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, §7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso Improvido. Julgamento conjunto do RE n° 349.703 e dos HCs n° 87.585 e n° 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Banco Bradesco S/A versus Lu- xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Relator Min. Xxxxx Xxxxxx. Tribunal Pleno. Julgamento em 03 de dezembro de 2008.).
55 CASELLA, por exemplo, se refere à “realização progressiva internacionalização do direito, todavia inci- piente entre nós, inscreve-se simultaneamente à reconsideração das modalidades e da extensão das relações entre direito interno e direito internacional, capítulo no qual, igualmente, o Brasil tem dado passos relevantes adiante e pode fazer avanço considerável” (CASELLA, Xxxxx Xxxxx. Introdução: ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque de 1958 – internacionalização do Direito e relações entre Direito Internacional e Direito interno. In XXXX, Xxxxxxx; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx (Coord.). Arbitragem comercial internacional: a Convenção de Nova Iorque e o Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 23) e completa “A temática da relação entre direito interno e internacional suscita a consideração do diálogo entre as fontes internacionais e internas, onde, mais que em contraposição, cabe falar em conjugação de esforços, para assegurar a concomitân-
circunstâncias, aos contratos nacionais (de origem ou tratamento) aplicar-se-iam soluções internacionalmente consagradas, especialmente pelo costume internacional. Assim, por exemplo, seria possível afirmar que algumas regras dos “Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais” (PCCI)56 poderiam servir de fundamento a reforçar uma decisão local, especialmente quando em jogo condições contratuais (cláusulas, conteúdo, tipo ou modelo) ou, ainda, padrão de cláusula arbitral da CCI poderia ser utilizado por juízes brasileiros como fundamento para solução de um determinado caso envolvendo interpretação de cláusula arbitral, ou mesmo sobre transferência de risco (INCOTERMS).57
Desse cenário é que se extrai o problema central do presente trabalho que pode ser alinhavado no seguinte percurso de indagações:(i) o costume negocial é fonte plena de obrigações contratuais? (ii) o costume como fonte de obrigações contratuais está restrito aos mecanismos nacionais de gênese normativa?; (iii) como se internacionaliza o costume como fonte de obrigações contratuais? e (iv) quais são os limites a que o costume negocial está sujeito como fonte de obrigações contratuais?
Para responder a todos estes questionamentos se faz necessária a compreensão do “novo” papel atribuído ao costume contratual, consagrando-o como fonte negocial plena, isto é, não restrita ao papel de
cia e a complementaridade dos planos internacional e interno de existência, validade e eficácia do direito, bem como da existência e da operação dos mecanismos processuais, adequados para assegurar-lhes a efetividade e a operacionalidade.” (grifos no original) (CASELLA, Op. Cit., p. 25).
56 Deve-se lembrar de que os PICC, segundo seu preâmbulo aplicam-se somente aos contratos comerciais internacionais. XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; et al. (Eds.). Princípios Unidroit Relativos aos Contratos Comerciais Internacionais/2004. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 01.
57 “Pela sigla ‘Incoterms’ deve-se compreender os chamados International commercial terms ou, no vernáculo, condições comerciais internacionais. São, em verdade, condições contratuais padrão do comércio interna- cional. Referem-se aos contratos internacionais de compra e venda em que é indispensável, na ausência de regulação específica, a identificação do momento de transferências dos riscos (e, portanto custos) sobre a mer- cadoria”. XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Transferência do risco contratual e incoterms: breve análise de sua aplicação pela jurisprudência brasileira. In: XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx; et al. (Coords.). Apontamen- tos críticos para o Direito civil brasileiro contemporâneo II - Anais do Projeto de Pesquisa Virada de Copérnico. Curitiba: Juruá, 2009, p.118-119.
esclarecimento interpretativo, mas também criativo de obrigações, para se passar às formas internacionais de sua consagração e os seus reflexos no Direito brasileiro contemporâneo.
Em um segundo momento se demonstrará a forma como esta fonte de obrigações contratuais se internacionaliza e como ela se relaciona com o contrato no ordenamento jurídico brasileiro para, finalmente, se poder afirmar não só seu poder normativo como seus limites e possibilidades.
Antes, contudo, de adentrarmos a temática específica dos costumes será necessário o estabelecimento de algumas premissas metodológicas indispensáveis às conclusões aqui postas.
II. Premissas Metodológicas
Excesivas prácticas consuetudinarias, por un lado, y demasiado pocas, por el otro, perturban la vida social del hombre. Es indispensable encontrar un equilíbrio armónico entre ambas58.
2.1 Premissas Básicas
Preliminarmente, convém destacar uma breve nota introdutória que talvez esclareça melhor os objetivos do presente texto.
Ao contrário do que, aparentemente, possa fazer crer, este não é um livro que descreverá os atuais contornos do contrato internacional59. Tão pouco, trata-se de trabalho com o propósito de discutir o Direito “civil” a partir dos olhos internacionais. Pretende-se, com o presente estudo,
58 XXXXX XXX, Xxxxx. Op. cit., p. 109.
59 Adverte KASSIS que conceituar o contrato internacional não é tarefa simples e de fato demonstra isso ao analisar toda a complexidade do Direito francês (KASSIS, Xxxxxxx. Le nouveau droit européen dês contrats internationaux. Paris: LGDJ, 1993. passim). Provisoriamente, contudo, adotaremos como conceito de um con- trato internacional o enunciado de XXXXXXXX, ou seja, “contrato que, contendo elementos que permitam vinculá-lo a mais de um sistema jurídico, tem por objeto operação econômica que implica o duplo fluxo de bens pela fronteira”. XXXXXXXX, Xxxx Xxxxx. Dos contratos internacionais: uma visão teórica e prática. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 24.
a realização de verdadeira revisão de “fontes”, tomada em um sentido mais literal e menos bibliográfico. A proposta do trabalho é, antes de tudo, interdisciplinar60 e não limitada às tradicionais ramificações jurídicas. Isso não impede, contudo, que alguns recortes temáticos sejam feitos, até mesmo porque serão necessários do ponto de vista do enfoque da pesquisa.
Em primeiro lugar, destaque-se que a pesquisa levou em consideração os contratos celebrados entre particulares e, portanto, suas conclusões restringem-se ao regime jurídico aplicável a essas relações61. Não serão abordadas, portanto, as particularidades envolvendo as relações convencionais entre Estados (daí porque o Direito Internacional Público, em seu sentido tradicional, será invocado tão somente como apoio às premissas gerais e não como base argumentativa essencial), nem aos contratos celebrados entre agentes políticos e particulares (não havendo menção ao chamado Direito administrativo).
Também dentro das relações interprivadas será, ainda, necessário outro recorte, uma vez que interessarão às conclusões propostas apenas aquelas relações jurídicas que envolvam sujeitos em igualdade de tratamento jurídico. Excluem-se, dessa forma, da pesquisa e de suas conclusões, as relações contratuais em que a vulnerabilidade é pressuposta, como o chamado Direito do Trabalho e o Direito do Consumidor. Advirta-se, no entanto, que nem todos os sistemas jurídicos comparados fazem semelhante recorte temático.
60 “A partir da leitura interdisciplinar do direito, portanto, a análise de cada caso concreto, na sua historicidade, é obrigatória em qualquer circunstância: há que se entender e interpretar a cultura do povo, seus valores e sua psicolo- gia, para avaliar a pertinência da solução apontada, diante da provável reação dos cidadãos às situações emergentes, envolvam elas crises e dificuldades, ou mesmo êxitos”. XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Op. cit., p. 14.
61 Entendem-se por relações interprivadas aquelas em que os sujeitos são, em geral, tratados de forma iguali- tária pelo Ordenamento jurídico, isto é, partindo-se da noção de liberdade, possam relacionar-se em aparente igualdade de condições. Excluem-se, portanto, deste conceito as relações envolvendo o agente estatal, dese- quilibradas por natureza.
Frise-se, portanto, que não estarão incluídas nas conclusões e afirmações do presente trabalho qualquer referência ou preocupação com relações contratuais mantidas entre sujeitos de Direito público entre si ou com particulares (quando a relação não for regida pelo chamado Direito privado) ou relações contratuais mantidas entre sujeitos de Direito privado com tratamento jurídico desigual (ou protetivo), seja em nível nacional ou internacional. A tese aqui esboçada pretende se aplicar, exclusivamente, às relações negociais privadas, nacionais ou internacionais, mantidas por sujeitos de Direito privado, em igualdade de tratamento jurídico, independentemente de sua natureza (civil ou empresarial, doméstica ou internacional). Em termos ainda mais sucintos, proceder-se-á o questionamento sobre o próprio fundamento da obrigatoriedade daqueles contratos, a partir da categoria do costume contratual. Perceba-se, pois, que suas conclusões poderão, em dado momento, ser úteis ao Direito internacional privado ou ao Direito comercial, ao Direito civil ou ao Direito Comercial internacional, daí porque inconveniente a categorização prévia.
Com tal pretensão, ao mesmo tempo em que se pode deixar de lado a ambição de definir a classificação jurídica e sua ramificação das conclusões aqui esboçadas (público versus privado, civil versus empresarial, nacional versus internacional), que tenderia a limitar suas aplicações, por outro poderá se ter em mente que, de alguma forma, desde exemplos e ferramentas de Direito privado nacional, até a lógica do Direito internacional privado e do Direito econômico internacional serão úteis para a pesquisa pretendida. Esta certeza, de alguma forma, está lastreada na convicção de que as mencionadas categorizações têm, nos dias atuais, maior valor como instrumento didático, justamente pela vantagem descritiva que aportam.
Além disso, em um segundo momento, será necessário o recurso
ao método62 do Direito comparado63, especialmente, no que concerne ao Direito contratual.
A comparação jurídica, segundo XXXXX, não seria outra coisa que a comparação entre diferentes sistemas jurídicos e que se prestaria a diversos fins: i) aprimoramento do Direito doméstico; ii) promoção da uniformização jurídica; iii) esclarecimento de soluções ou destaque de tendências e iv) investigações históricas ou filosóficas. O autor destaca, na verdade, seu papel metodológico64.
Tais finalidades, contudo, não são objeto de entendimento unânime. Enquanto alguns autores negam se tratar de mera comparação de distintas legislações65, outros destacam a necessidade de entendimento do ambiente em que aqueles Direitos se inserem, enfatizando, portanto, uma compreensão mais completa dos institutos apreciados66 e das demais
62 XXXXX, Xxxx. Tratado de Derecho Civil Comparado: introducción xx xxxxxxx xx xxx xxxxxxxx xxxxxxxxxxx x xx xxxxxx xxxxxxxxxxx. Xxxxxx: Revista de Derecho Privado, 1953, p. 05; XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx xxx. Direito com- parado e geografia jurídica. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 3. 1955, p. 349; XXXXXX, Xxxx. Curso de Direito Administrativo comparado. São Paulo: XX, 0000, p. 17; XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx. A relevância do Direito comparado e Direito e Desenvolvimento para a reforma do sistema judicial brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa, n. 163, Brasília, jul./set. 2004, p. 53; XXXXXXXX, Xxxxx. Globalização e Direito: além da metodologia tradicional dos estudos jurídicos comparados e um exemplo do Direito internacional privado. In: Re- vista de Informação Legislativa. n. 172, Brasília, out./dez. 2006, p. 121; XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Direito comparado: introdução e parte geral. Coimbra: Almedina, 2008, v. 1, p. 20-21. Em sentido contrário, defendendo tratar-se de “ciência autônoma”, vide: DEMOGUE, Xxxx. Les notions fondamentales du Droit privé. Paris: Editions Xx Xxxxxxx xx Xxxxx, 0000, p. 269; XXXXXX, Xxx. Direito comparado como ciência. In: Revista de Informação Legislativa, n. 134, Brasília, abr./jun. 1997, p. 242-243; XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O renascimento do Direito comparado. In: Revista de Informação legislativa, n. 162. Brasília, abr./jun. 2004, p. 249; XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito comparado. São Paulo: XX, 0000, p. 33-34; XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Common Law: introdução ao Direito dos EUA. 2. ed. São Paulo: XX, 0000, p. 19, 21; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx. Elementos de Direito comparado: ciência, política legislativa, integração e prática judiciária. Porto alegre: Sergio Fabris, 2008, p. 35. Por fim, para CONSTANTINESCO e DOLINGER é método e ciência. XXXXXXXXXXXXXX, Xxxxxxx-Xxxx. Tratado de Direito Comparado: introdução ao Direito comparado. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000; XXXXXXXX, Xxxxx. Direito internacional privado: parte geral. 7. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 45. Trata-se, contudo, de discussão estéril que pouco acrescenta ao sentido empregado à metodologia proposta.
63 Alguns autores entendem que a expressão - “Direito comparado” – é inadequada vez que não deixa claro o que designa (XXXXX, Xxxx. Tratado de Derecho…, p. 05), outros a defendem sob a perspectiva de que deno- mina a efetiva comparação de sistemas jurídicos: DANTAS, Xxx. Op. cit., p. 234.
64 XXXXX, Xxxx. Tratado de Derecho…, p. 03-08.
65 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Op. cit., p. 249
66 XXXXXX XXXXXX, Op. cit., p. 53. XXXXXX salienta que não se pode pela comparação buscar “fenômenos idênticos disfarçados sob nomes diferentes”, nem se trataria de uma questão de transformar diferenças con- cretas em semelhanças abstratas. Segundo o autor o conhecimento é local. XXXXXX, Xxxxxxxx. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 325-327.
fontes envolvidas67.
Como efeitos práticos do método, destacar-se-iam o suporte a decisões de política legislativa (especialmente a reforma da legislação)68, a integração regional69, a aplicação judicial de Direito estrangeiro e a cooperação judiciária internacional70, a garantia de maior eficácia ao Direito internacional (seja para aplicação pelos tribunais internos, para estabelecimento de standards ou determinação da origem das soluções de Direito internacional)71·, o desenvolvimento acadêmico- pedagógico72, o incremento da prática jurídica73, a atualização jurisprudencial74, como guia para entendimento das consequências políticas da decisão judicial e desenvolvimento do Direito comercial transnacional75·, a uniformização, a harmonização legislativa76 e a
67 XXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Teoria geral do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 176.
68 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 24-25; XXXX, Xxxxx xx. Comparative Law in a changing world. 3. ed. London: Routledge-Cavendish, 2007, p. 20; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 55-57; XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 46; XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Transnational commercial law: texts cases and materials. Oxford: Oxford press, 2007, p. 152; XXXXX, Xxxx. Os grandes siste- mas do Direito contemporâneo. 4. ed. São Paulo: Xxxxxxx Xxxxxx, 0000, x. 00-00 (xx xxxxxxx xx xxxxxxxxxxxxx- to). XXXXX chega a afirmar que o direito comparado é invenção ocidental com destacada função de servir a reforma legislativa. XXXXX, X. Xxxxxxx. Vers un droit comparé intégré? In: Revue internationale de droit comparé. v. 51 n. 4. out./xxx, p.843.
69 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., 2008, p. 57-64.
70 XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 19-21; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 64-75; XXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Op. cit., p. 181-183; XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; MCKEND-
XXXX, Xxxx. Op. cit., p. 158.
71 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Reflexões sobre o método comparado no Direito Internacional. In: O Direito Internacional em um Mundo em transformação. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 148.
72 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx xx Xx. Importância do Direito comparado. In: XXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. (Orgs.). O Direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao Professor Xxxxx Xxxxxxxx. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 691-692; XXXXX, X. Xxxxxxx. Op. cit., p. 850-851; XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 144-145.
73 XXXXX, X. Xxxxxxx. Op. cit., p. 848-850.
74 XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 150.
75 Ibidem, p. 154-158.
76 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 29-30; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 75- 82; XXXX, Xxxxx xx. Op. cit., p. 23-25; XXXXX, Xxxx. Os grandes sistemas..., p. 11-12; XXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Op. cit., p. 177-181; XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx xxx. Op. cit., p. 349. Em algumas matérias, especialmente obrigacionais e comerciais: DEMOGUE, Xxxx. Op. cit., p. 284-285; XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 159-165.
verificação da consistência do costume internacional77.
XXXXX, ligando-se à tradição de neutralidade científica, afirma, ainda, que o escopo da comparação seria a colheita de dados, independentemente de sua utilização final, descrevendo-a como potencialmente imparcial, no sentido de que a análise não comportaria uma valoração positiva ou negativa78.
Como técnica de harmonização e unificação79 legislativa, podem ser destacados os esforços de instituições públicas e privadas, de âmbito nacional ou internacional, como a UNCITRAL, a CCI e o UNIDROIT no âmbito do Direito privado internacional. Saliente-se, ainda, que embora este tenha sido o projeto comparatista a partir do fim da primeira guerra mundial, XXXXX não concorda que se confundiria com seus objetivos necessários, nem que seria a comparação a condição prévia da unificação80. XXXXX xxxxxxxxx, ainda, a conveniência deste tipo de objetivo81. Embora possa ser objeto, portanto, de alguma controvérsia doutrinária, em grande medida, o Direito comparado tem servido também a estas finalidades.
Sem adentrar a discussão em torno dos limites conceituais da comparação, optar-se-á por adotá-la como instrumento de aperfeiçoamento da técnica jurídica contratual, voltada a consecução de uma finalidade socialmente útil e relevante, isto é, possibilitar uma melhor solução
77 XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Transnational commercial law: texts cases and materials. Oxford: Oxford press, 2007, p. 165.
78 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 27, 34.
79 Enquanto a harmonização visa à aproximação normativa por meio da adequação da legislação interna dos diferentes países, a uniformização visa à identidade normativa pela criação de instrumentos internacionais únicos que congreguem o maior número possível de Estados partes. Como exemplo de tentativa de harmoni- zação legislativa pode ser citada: a Lei modelo de arbitragem da UNCITRAL, já como exemplos de tratados de uniformização os melhores exemplos são as Convenções Interamericanas recentemente ratificadas pelo Brasil e que serão citadas na segunda parte deste trabalho e a Convenção de Viena de 1980 (CISG), também ratificada pelo Brasil.
80 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 30.
81 XXXXX salienta que somente interessaria aos juristas identificar a possibilidade de unificação do Direito, enquanto que a definição se esta mesma unificação seria ou não desejável caberia à política. A opinião reflete a preocupação em definir a comparação como método científico, supostamente neutro. XXXXX, Xxxx. Os grandes sistemas..., p. 138.
(ou explicação) do caso concreto. Dessa forma, o método será útil não apenas para a compreensão de como os costumes podem criar obrigações contratuais, mas como isso acaba influenciando os trabalhos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais.
Entende-se que a exigência desta abordagem para a tese aqui esboçada se dá em razão: (i) da opção legislativa brasileira que nega ao costume contratual papel mais criativo, em detrimento da opção tradicional meramente interpretativa; (ii) esta mesma opção embora compartilhada por vários países da Civil Law não é a única solução jurídica conhecida;
(iii) nas relações contratuais internacionais um papel de destaque normativo é destinado ao costume; (iv) as medidas de harmonização ou unificação do Direito contratual, especialmente empresarial, privilegiam o papel do costume como fonte obrigacional; (v) os tribunais nacionais têm sido confrontados com situações nascidas de práticas corriqueiras, mas que não encontram respaldo por meio da aplicação da lógica estritamente formal e ritualística da lei (por exemplos, cláusula de no show, obrigação de renegociar82,INCOTERMS, etc.); (vi) o fenômeno da internacionalização dos contratos que, aparentemente, faz com que soluções típicas de negócios internacionais acabem se insinuando para negócios internos dada a praticidade ou utilidade de seus mecanismos (cláusulas de hardship, regras de transferência de riscos baseadas nos INCOTERMS, técnicas de redação83, novos tipos negociais84, técnicas de
82 Conhecidas nos negócios internacionais como cláusulas de hardship que criam a obrigação de negociação quan-
do preenchidas dadas circunstâncias previamente antecipadas pelos contratantes e que alterem profundamente as condições objetivas do contrato, seja pelo aumento dos custos ou pela diminuição do valor da contraprestação. A relevância de sua contratação, no Direito internacional, se dá em razão da inexistência de um suporte legislativo universal que pudesse embasar uma eventual pretensão revisionista do contratante lesado. Por outro lado, ainda que possa parecer paradoxal, seu fundamento é justamente a conservação do contrato, ou seja, invoca-se a fórmula da pacta sunt servanda (não cega às condições de equilíbrio) para justificar a necessidade de alteração das condições de cumprimento do contrato. Neste sentido: GLITZ, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Contrato e sua conservação: cláu- sula de hardship. Curitiba: Juruá, 2008, p. 137-178 e XXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Favor contractus: alguns apontamentos sobre o princípio da conservação do contrato no direito positivo brasileiro e no direito comparado. In: XXXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx (Coord.). Direito privado em discussão: ensaios para uma recomposição valorativa da pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009, p.265-267.
83 Podem ser citados como exemplos a proliferação do uso de “glossários” e “considerandos” tão típicos da prática contratual anglo-saxã e internacional.
84 Podem ser citados como exemplos tipos negociais outrora desconhecidos da praxe negocial brasileira, mas
estruturação da operação econômica85, etc.).
Por estes motivos parece mais razoável buscar alhures o fundamento suficiente para compreender justificar o novo papel que pelo costume contratual pode ser desempenhado no Direito brasileiro. Neste sentido, o método comparado não é neutro, nem diletante.
Assim, baseando-se naquele método pretende-se identificar a função instrumental-material desempenhada pelo instituto (costume contratual) em outros sistemas jurídicos nacionais e no regime internacional, comparando-os ao modelo consagrado no Brasil86. Frise- se, então, que esta comparação se dará não dentro do mesmo sistema de Direito positivo, mas com apoio da construção internacional. Na medida do possível, portanto, se buscará a comparação que ultrapasse os limites estritamente dogmáticos87. Não haverá, contudo, a preocupação com o esgotamento das fontes nacionais de nenhum sistema, nem nenhuma preocupação estatística com as fontes internacionais. Todas elas são citadas, apenas, como apoio argumentativo e, principalmente, para que sejam apontadas tendências.
Também não se pretenderá comparação histórica, preocupada com a identificação das raízes de cada um dos sistemas apreciados, até mesmo porque faltaria ao pesquisador domínio da metodologia adequada. Convém, ainda, destacar que a análise histórica, quando adequadamente conduzida, permitiria entender os movimentos de construção de poder do Estado nacional, mas não sua crise. Partir-se-á, portanto, do dado conhecido: a crise do modelo monopolista de produção normativa. Daí
que ganharam forte adesão como os contratos de confidencialidade (ou sigilo), memorandos de intenções (MoU), joint ventures, etc., todos oriundos da praxe anglo-saxã ou da prática internacional.
85 Como por exemplo, as holdings societárias como forma de preservação do controle acionário ou preser- vação do patrimonial familiar ou, ainda, os contratos “guarda-chuva” destinados a regular futuras relações complementadas, regularmente, por aditivos contratuais.
86 Destaque-se, ainda, que o Direito comparado não se trata de mero estudo de um Direito estrangeiro, ou seja, de citação de referências (doutrinárias ou legislativas) estrangeiras, mas comparando-as com vistas a melhor compreensão das opções adotadas pelo ordenamento brasileiro. Neste sentido vide XXXXX, Xxxx. Os grandes sistemas..., p. 138; XXXXXX, Xxx. Op. cit., p. 235.
87 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Op. cit., p. 249.
porque serão analisadas, muito brevemente, a crise do modelo feudal (que permite entender a mudança para o paradigma88 moderno) e a crise do modelo liberal, sem ilações mais antigas comuns nesta abordagem (como por exemplo, o Direito chinês, hindu ou romano)89.
Como em toda opção metodológica haverá prós e contras nesta abordagem. XXXXXX, por exemplo, entende que a vantagem deste método é óbvia90:seria por meio do estudo do outro que melhor se compreenderia a si próprio. Em certo sentido é o resultado reflexo da busca pela alteridade. A importância desta paradoxal conclusão é reforçada, separadamente, por XXXXXXX, XXXXXXXX, XXXXX e XXXXXX et al91. Neste sentido: “Comparative law, ironically, provides for a distance to the domestic legal order, while it redirects the analytical focus back onto it. Studying law in a foreign system, analyzing the ambiguity of legal and social and political and economic rule, reminds us of law’s other, social nature. This has a strong impact on our understanding of the emergence and creation of law, as it will likely illuminate the alternatives to legal order as well. This will ultimately not only open our eyes for the complex regulatory scheme in the studied foreign jurisdiction but also for the ambiguities of hard and soft law, official and non-official law in our domestic legal regime.” 92 88 XXXX explica a progressão da ciência, afirmando que a atividade desorganizada anterior à ciência (pré-
-ciência) acaba por se estruturar quando determinada “comunidade científica” adota um único paradigma.
Paradigma seria um modelo ou padrão aceito dentro daquela comunidade (XXXX, Xxxxxx. As estruturas das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1998, p.43.) A adoção desse paradigma constitui a “ciência normal” Os acontecimentos passariam a ser explicados dentro desse paradigma, mas ao fazê-lo, dificuldades e falsas explicações surgiriam. Se não mais fosse possível explicá-las dentro do paradigma, então, uma crise se manifestaria, e esta crise só se resolveria quando um novo paradigma surgisse.
89 Como por exemplo: MAINE, X. Sumner. El antiguo derecho y la costumbre primitiva. Madrid: España mo- derna, [1800?] e XXXXXXXX, Xxxxx. História do Direito privado moderno. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
90 XXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 20.
91 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 23-24; XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 45; XXXXX, Xxxx. Os grandes sistemas..., p. 04; XXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 148.
92 Tradução livre: “O Direito comparado, ironicamente, permite o distanciamento do regime jurídico domés- tico, enquanto redireciona o foco analítico de volta para ele. Ao estudar o Direito estrangeiro, analisando as ambigüidades do regulamento jurídico, social, político e econômico, somos lembrados da natureza social do Direito. Isto tem forte impacto em nossa compreensão acerca do surgimento e criação do Direito, assim como esclarece os sistemas jurídicos alternativos. Isto, em última análise, não só nos torna atentos à complexidade
Outro ponto interessante é o destacado, independentemente, por XXXXXXX, XXXXX e CRUZ: a comparação tem a possibilidade de auxiliar a jurisprudência local na busca de soluções adequadas ao caso concreto93. Isto é, o método tem funcionalidade para além de instrumento de reforma, atualização, harmonização ou unificação de legislação. Além disso, salienta CRUZ que a comparação serviria, ainda, de instrumento de preenchimento de lacunas, já que inúmeros institutos acabariam por ser importados de diferentes sistemas legais94. Este papel mais ativo poderia, então,
contribuir para transformar uma visão local ou nacional voltada para o passado, da qual somos, todavia, tributários, em uma perspectiva mundial orientada para o futuro. Isso contribui, finalmente, para mudar o ângulo de observação e para substituir o conhecimento unidimensional e limitado ao âmbito nacional por um pensamento pluridimensional aberto e alargado ao horizonte do mundo.95
Tal conclusão é especialmente relevante se levarmos em consideraçãoduasdaspremissasdopresentetrabalho:ainternacionalização do contrato e a incidência dos Direitos humanos como forma de controle dos costumes contratuais. Tais temas, por serem centrais, dependerão, no entanto, de maior detalhamento no curso da presente pesquisa.
Por outro lado, a adoção do método nem sempre é facilitada em termos de fontes doutrinárias e jurisprudenciais, nem é esta dificuldade uma particularidade da Academia brasileira96. Isso porque, normalmente
da estruturação regulatória na jurisdição estrangeira estudada, mas também, para as ambigüidades do Direito
oficial ou não, cogente ou não, em nosso próprio sistema jurídico”. ZUMBANSEN, Peer. Comparative Law’s Coming of Age? Twenty Years after Critical Comparisons. In: German Law Journal, v. 6, n. 7, 2005, p.1080.
93 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 24-25; XXXXX, X. Xxxxxxx. Op. cit., p. 844-848; XXXX, Xxxxx xx. Op. cit., p. 21.
94 XXXX, Xxxxx xx. Op. cit., p. 22-23.
95 XXXXXXXXXXXXXX, Xxxxxxx-Xxxx. Op. cit., p. iv.
96 XXXXXXXXX menciona a marginalização dos estudos de Direito Comparado nos estudos e pesquisas acadêmicas. ZUMBANSEN, Peer. Op. cit., p. 1073.
as estruturas curriculares não estão organizadas de modo a absorver a complexidade da compreensão de convivência normativa global e plural, refletindo, apenas, as “divisões tradicionais que separam o público e o privado”97, estruturando-se em torno do Direito positivo nacional.
Em outros termos, exigir-se-á a opção por fontes críticas de estudo do Direito na tentativa de se fugir ao discurso “funcionalista”98, ou seja, institucionalista e formal que acaba por privilegiar a falsa sensação de suficiência na capacidade nacional de, satisfatoriamente, exercer sua soberania na produção normativa sem se socorrer da experiência estrangeira e do diálogo com a comunidade internacional, sejam Estados, entidades privadas ou organismos de natureza diversa. Aparentemente, a crença na autopoese normativa está, ainda, arraigada no imaginário jurídico nacional.
Em terceiro lugar, também será imprescindível a busca compreensão da forma com que se dá a transposição do costume negocial da linguagem estritamente não jurisdicionalizada para formas de compreensão tradicional de jurisdição. Assim, sempre que viável, far- se-á uso da jurisprudência judicial e arbitral (nacional e internacional). Saliente-se, contudo, que dados os contornos da temática, haverá caso de limitação de apreciação pelos Judiciários locais e, por razões de confidencialidade, de acesso a laudos arbitrais. Estas limitações, contudo, não comprometerão as conclusões gerais do livro, mas representarão dificuldade de ordem estatística e de compilação para que se possam apontar tendências seguras.
Também se deve destacar que nas hipóteses em que forem
97 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. Op. cit., p. 250.
98 XXXXXXXXX menciona a existência de dois paradigmas no Direito comparado. De um lado, há forte preo- cupação em se justificar uma abordagem objetiva dos temas e instituições sujeitas à comparação (“juxtaposition plus”), por outro lado, a comparação é feita de forma “funcionalista”, ou seja, de forma a reduzir a análise àque- las instituições e temas que sejam institucionalizados formalmente, negando aquelas outras formas de criação normativa. Este último paradigma revelaria, em verdade, “Its reactionary content and its alleged objectivity’s “false modesty” (…) when the language of legal problem is translated into the language of universal problems”. (Tradução livre: seu conteúdo reacionário e sua falta de modéstia na alegada objetividade, quando a linguagem dos problemas jurídicos é traduzida como problemas universais). ZUMBANSEN, Peer. Op. cit., p. 1074-1076.
possíveis consultas ao entendimento jurisprudencial brasileiro, estas se darão de forma limitada (seja em verbetes, período ou tribunais). Esta opção se dá em razão da necessidade de manutenção do foco da pesquisa, já que a consulta servirá, normalmente, para esclarecimento de questões pontuais da tese ou de reforço argumentativo.
Finalmente, convém advertir que quando se justifica as opções metodológicas adotadas na presente pesquisa por sua utilidade e relevância social não se está a adotar qualquer posicionamento de defesa do pragmatismo, no sentido empregado por PERLINGIERI99, ou de praxismo no sentido de excessiva valorização da atividade prática. Ao contrário, parte-se, em primeiro lugar, da premissa de que o desenvolvimento teórico deve ser acompanhado da preocupação acerca de sua serventia “pública”100 daquilo a que propõe estudar, em especial dadas as circunstâncias de escassez de recursos para investimento no desenvolvimento da pesquisa jurídica.
Em segundo lugar, entende-se que, ainda que em grande parte teórico, não se pode prescindir da aplicação prática do Direito. Esta conclusão parece mais pungente quando se pretende a defesa de um novo papel a ser desempenhado pelo costume negocial. Não se trata, portanto, de se escrever para leitores que habitam “torres de marfim”. Além disso, o próprio Direito não é um fim em si mesmo, não é linguagem exclusiva de iniciados nos secretos rituais de algum “oráculo” legislativo, alheios aos seus reflexos. Trata-se de instrumento criado por Homens para solucionar problemas reais relativos a pessoas viventes101 e, como tal, mister que esteja
99 “O pragmatismo se baseia na efetividade: é assim porque é assim. Isto é a negação do Direito, porque o Direito é o dever-ser. O Direito promove a mudança da realidade, e para tal não pode sucumbir aos fatos. A primazia do Direito é a primazia da decisão política face à natureza das coisas. Nem sempre o Direito fotografa a realidade, porque pretende mudá-la. O Direito é justamente isto, uma força de transformação da realidade. O pragmatismo é o contrário disto, é a negação da força de transformação do Direito”. XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Normas constitucionais..., p. 65.
100 Expressão empregada no sentido de que é comum e de interesse de todos.
101 “A perspectiva crítica requer, também, a apreciação dos fenômenos que descrevem e analisam as mudan- ças jurídicas e sociais, sob pena de incidir em enfadonha repetição”. XXXXXX, Xxxx Xxxxx. Teoria crítica do Direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 224.
social, histórica e culturalmente adequado aqueles a quem se aplica. Parece correto pressupor que qualquer tese que nasça com pretensão deslocada do tempo e espaço em que é concebida, nasce morta.
Este tipo de descolamento, por exemplo, já criou situações, na História recente da Humanidade, em que se pôde afirmar a aplicação da norma codificada para negar plena cidadania ou segregação social com base em critérios raciais ou políticos: a legislação alemã - “Leis de Nuremberg” de 1935; a legislação sul-africana que vigorou entre 1950 e 1994; a legislação norte americana segregacionista, em vigor nos estados sulistas entre o final da guerra de Secessão e meados da década de 1960 e a legislação australiana de isolamento dos aborígenes. No caso brasileiro, lembre-se que o Ato Institucional n° 5 de 13 de dezembro de 1968 suspendia os direitos políticos e várias garantias individuais do cidadão brasileiro para assegurar a “autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo”.
Além disso, como se demonstrará, esta preocupação está condicionada por outro imperativo metodológico: a compreensão de que ainda que a análise se dê sobre relações e práticas interprivadas, nelas são incidentes e exigíveis os direitos e deveres decorrentes dos Direitos humanos e fundamentais. Em outros termos, portanto, se busca uma forma de compreender o Direito que possa ao mesmo tempo transformar a realidade, mas respeitar uma opção política indeclinável de respeito à pessoa.
Antes, contudo, de avançarmos para a análise dos elementos materiais da temática, ainda se faz necessária a abordagem de outras premissas para a construção argumentativa deste trabalho.
2.2 Tempos de Pluralismo Jurídico102
A primeira conclusão lógica que se pode tirar do método comparativo é a existência de pluralidade de sistemas normativos103 que disciplinam as diferentes relações sociais mundo afora. Esta pluralidade é especialmente interessante quando se leva em conta que o pluralismo também é de fundamentos104, métodos, valores e objetos105.Assim, por exemplo, pode-se lembrar as diferentes “famílias”106 jurídicas com os distintos sistemas de fontes normativas107. Além disso, como lembra FRADERA, dentro das próprias “famílias” convivem diferentes escolhas de soluções jurídicas108.
Mais interessante ainda é se levarmos em conta que o pluralismo também se dá em relação à própria compreensão da formação do Direito. Salienta FRADERA que enquanto o Civil Law é concebido como construção lógica e, portanto, desprovida de lacunas, o Common
102 Não se adotará a expressão “pluralismo” em seu sentido puramente político, isto é, “luta travada em nome da concepção de uma sociedade articulada em grupos de poder que se situem, ao mesmo tempo, abaixo do Estado e acima dos indivíduos, e, como tais, constituam uma garantia do indivíduo contra o poder excessivo do Estado [estatalismo], por um lado, e, por outro, uma garantia do Estado contra a frag- mentação individualista [atomismo]”. XXXXXX, Xxxxxxxx; XXXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: UnB, 1998. v. 1, p. 928, nem em sentido puramente filosófico, isto é, “doutrina que admite a pluralidade de substâncias no mundo (...) na terminologia contemporânea, designa-
-se freqüentemente com este nome o reconhecimento da possibilidade de soluções diferentes para um mes- mo problema, ou de interpretações diferentes para a mesma realidade ou conceito, ou de uma diversidade de fatores, situações ou evoluções no mesmo campo”. XXXXXXXXX, Xxxxxx. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 765.
103 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Global legal pluralism. In: Southern California Law Review, v. 80, 2007, p. 1157.
104 GEERTZ deixa isso claro quando analisa a normatividade em diferentes culturas: desde a preocupação islâmica com o testemunho normativo, a lógica da ordem social indiana e o decoro malaio. XXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 280-324.
105 XXXXXXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Towards a Renewed Universalism in Law. In: Diogenes, n. 219. SAGE, 2008, p. 56.
106 Expressão utilizada por XXXXX para agrupar os diferentes sistemas normativos, facilitando sua análise comparativa. XXXXX, Xxxx. Os grandes sistemas..., p. 21-23.
107 Ibidem, p. 15.
108 FRADERA, Véra Xxxxx Xxxxx de. Reflexões sobre a contribuição do Direito comparado para a elaboração do Direito comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 60.
Law109 pela própria característica de sua formação (case law110) não teria problemas em conviver com elas111.
Embora o conceito de pluralismo jurídico ainda seja objeto de intenso debate112, para a perspectiva do presente livro pode-se empregá- lo, em um primeiro momento, como o reconhecimento da existência de vários diferentes sistemas normativos espalhados pelo mundo. Segundo BOBBIO113, esta forma de pensar corresponderia à primeira fase do movimento pluralista.
Este tipo de construção, contudo, reflete um recente desafio imposto à dogmática clássica, especialmente quando atrelada ao padrão nacional positivo, como a brasileira. Este modelo, segundo MARQUES, seria testado pelos desafios propostos pela chamada pós-modernidade, ou seja, (i) a reavaliação do modelo contratual tradicional e (ii) a exigência de incidência dos direitos fundamentais do cidadão. Deve-se lembrar que muitos desses direitos, inclusive, são de inspiração e orientação internacional. Além disso, segundo a autora, a aparente segurança burguesa seria deixada de lado, reconhecendo-se que antinomias seriam inevitáveis e que o sistema conviveria com pluralismo de fontes legislativas e com a globalização das sociedades e economias114. Conclui afirmando que:
109 Xxxxxxx XXXXXX a expressão Common Law pode ser entendida em vários sentidos: (i) o Direito Comum nascido das decisões do Tribunal de Westminster (Londres), criado pela monarquia, e que acabariam se so- brepondo ao Direito consuetudinário e distinto do Equity destinado a aplicar a equidade e amenizar os rigores daquele tribunal; (ii) o segundo sentido, seria a distinção entre o Direito criado pelos juízes (judge-made-law) e aquele criado pelo legislador (Statute Law); (iii) em um terceiro sentido, reflete a distinção entre o Direito anglo-saxão e o Direito continental europeu (romano-germânico). XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 31-53.
110 Construção jurídica baseada em precedentes.
111 FRADERA, Véra Xxxxx Xxxxx de. Op. cit., p. 60-63.
112 XXXXX-XXXXXXXX, Xxxxx xxx. Who’s afraid of legal pluralism? In: Journal of Legal Pluralism, n. 47. 2002, p.37-82; XXXXXXXXXX, Xxxxxxxx. The more the merrier? A new take on legal pluralism. In: Social & Legal Studies, v. 13, n. 1. 2004, p. 57-79; XXXXXXXX, Xxxxx X. A non-essentialist version of legal pluralism. In: Journal of Law and Society. v. 27, n. 2. jun. 2000, p.296-321.
113 XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria geral do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 302-303.
114 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos bancários em tempos pós-modernos – primeiras reflexões. In: Re- vista de Direito do Consumidor, n. 25, jan. /mar. 1998, p. 19-38.
em tempos pós-modernos é necessário uma visão crítica do direito tradicional, é necessária uma reação da ciência do direito, impondo uma nova valorização dos princípios, dos valores de Justiça e equidade e, principalmente no direito civil, do princípio da boa-fé objetiva, como paradigma limitador da autonomia de vontade115.
Tal conclusão, contudo, não é exclusividade da sociedade brasileira do século XXI. XXXXX, por exemplo, já a externava em meados da década de 1950, afirmando que “o desgaste do instrumental jurídico” acompanhado da “incapacidade [dos juristas] para substituí-lo por outra aparelhagem adequada ao novo estilo de produção” importava que a técnica jurídica codificada permanecesse “praticamente estacionária”116. Ponderava o autor:
O culto ao texto legal e o culto da vontade do legislador conduzem necessariamente à estatolatria. O Direito emanado do Estado cobre toda a superfície da ordem jurídica. Esse monismo das fontes do Direito estiola todo esforço de pesquisa e de investigação do fenômeno jurídico, porque o reduz à legislação promulgada pelo Estado, ditada pela vontade soberana do legislador.117
Embora se insista na capacidade de adaptação da lei às novas exigências e costumes sociais118, o Direito escrito demonstra-se insuficiente: é impossível à “Lei” conter o “Direito”119. Esta conclusão parece ser extremamente importante, pois, no passado, já levou a alguma
115 Ibidem, p. 26.
116 XXXXX, Xxxxxxx. A evolução do Direito privado e o atraso da técnica jurídica. In: Revista de Direito GV,
v. 1. São Paulo: FGV, maio 2005, p. 121-122.
117 Ibidem, p. 124.
118 XXXXXX, Xxxxxxx. Les forces créatrices du Droit. Paris: LGDJ, 1955, p. 45-49; 65-67.
119 XXXXX, Xxxxxxx. A evolução do Direito..., p. 125.
confusão, especialmente em relação às diferentes traduções120.
Enfatize-se, portanto, que a “Lei” representa, tão somente, a simplificação necessária da complexidade das relações sociais. Dessa forma ela se caracteriza como uma dentre outras possíveis formas de regulação da vida em sociedade. O exagero em seu papel é que pode representar um problema121. Por isso parece equivocado identificar o progresso social com a criação legislativa, como se acostumou a doutrina122.
Este tipo de questionamento seria impensável dentro da lógica moderna, pois se associava à “Lei” a única construção racional possível. Falar de hipóteses diversas dela seria enveredar pelos caminhos da irracionalidade, inadmissíveis ao agente das Luzes. É em razão disso que XXXXXX atribui a HOBBES a fundação do positivismo123.
A legolatria, contudo, acentuou a constatação da insuficiência da lei na medida em que surgiriam conflitos que não estavam abarcados pelos estreitos limites do texto legal. Isto é, seja por uma questão ideológica, por uma escolha econômica124 ou por opção cultural, certas outras “realidades” ficariam de fora do padrão normativo “legal”.
Foi por meio desta brecha que começou a se insidiar a segunda fase do pensamento pluralista, chamada por BOBBIO, de institucionalista125. Trata-se da noção de que haveria diversos distintos sistemas normativos,
120 Como se sabe, os termos “Lei” e “Direito” não se apresentam como sinônimos, admitindo-se este como muito mais amplo que aquele (embora este significado pudesse, em dados momentos históricos, ser negado por algumas correntes filosóficas); já na língua anglo-saxã, são representados pelo mesmo vocábulo (law):“1. The enforceable body of rules that govern any society”. “2. One of the rules making up the body of Law, such as an Act of Parliament” (XXXXXX, Xxxxxxxxx X.; XXX, Xxxxxxxx. Oxford: a Dictionary of Law. 6. ed. Oxford: Oxford Press, 2006, p. 306). Tradução livre: “1. O corpo oponível de regras que rege uma sociedade. 2. Uma das regras que compõe o Direito, como ato do Parlamento”. São comuns, portanto, dificuldades de tradução, por exemplo, de textos ingleses/americanos para o português justamente por conta deste tipo de idiossincrasia semântica. Para jogo de palavras similar, mas profundamente mais interessante, entre os termos Droit (Di- reito) e Loi (Lei) ver: GROSSI, Xxxxx. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 114-115.
121 XXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 257-258.
122 XXXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., 10. ed., p. 16.
123 XXXXXX, Xxxxxx. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 745. 124 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2001, p. 45-46.
125 XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria geral..., p. 303.
tantas quantas fossem as diferentes instituições sociais126. De qualquer forma, este pluralismo ainda ocorreria por espécie de permissão estatal.
Assim, por exemplo, em dado momento, o próprio Estado moderno assegurava, por conveniência colonial ou por proteção dos povos conquistados127, o respeito à “diversidade” normativa (classic pluralism)128. Depreende-se, portanto, que o pluralismo jurídico “não é uma aberração temporária e sim um elemento central no cenário moderno”129. Assim, em dado momento histórico, não muito distante, ele chegou a fazer parte do cenário central da lógica política, econômica e social, liberal imperial das nações centrais do capitalismo europeu. Sua superação mais contemporânea fala do reconhecimento de um Direito estatal plural de sociedades industriais e não mais coloniais. Segundo XXXXXXX seria aqui que se incluiria a resistência ao Direito estatal por meio de organizações públicas não estatais, autorregulação profissional, agências reguladoras independentes, estandardização de modelos jurídicos e a figura da lex mercatoria, entre outras130.
Seguindo em direção à autonomia, XXXXXXX enuncia, ainda, um terceiro sentido: a existência de diversas “normas fundantes”131 em um mesmo território, sem que haja, necessariamente, a anuência do Estado, embora nem todos esses sistemas normativos pudessem ser
126 XXXXXX, Xxxxx. O ordenamento jurídico. Florianópolis, Fundação Boiteux, 2008, passim. O autor, por exemplo, compreende restritivamente o conceito de “norma”, identificando-a com sua origem estatal (p. 72- 73). Daí porque afirma que o ordenamento jurídico é “uma entidade que por um lado se move conforme as normas, mas, sobretudo, por outro lado, ele mesmo as move quase como se elas fossem peões em um tabuleiro de xadrez. Deste modo, elas representam mais o objeto e o meio da atividade do ordenamento, do que um elemento de sua estrutura”. (p. 69). A compreensão de norma que nutre o presente trabalho é diversa e não se limite àquela regra proveniente de autoridade legiferante.
127 XXXXXXXXX, Xxxx. Legal pluralism. In: XXXXXXX, Xxxx X.; XXXXXX, Xxxx X. (Eds.). International Encyclo- pedia of the Social & Behavioral Sciences. New York, 2001, p. 8651.
128 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx. Paradigmas inconclusos: os contratos entre a autonomia priva- da, a regulação estatal e a globalização dos Mercados. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 253.
129 XXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 352.
130 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 255-256.
131 Por normas fundantes o autor entende o discurso legitimador da fundação de um sistema jurídico. COR- REAS, Oscar. Introdução à sociologia jurídica. Porto Alegre: crítica Jurídica, 1996, p. 79-88.
considerados jurídicos132.
Já TAMANAHA propõe, por exemplo, seis diferentes “sistemas normativos” (entre eles o legal e o consuetudinário) e admite que possam ocorrer choques entre eles, uma vez que todos se arrogam obrigatórios, legítimos, competentes e supremos e porque diversos são os interesses que neles se apoiam133.
Como marca geral desta compreensão, restaria claro que o pluralismo nega, então, a exclusividade normativa do texto legislativo. O Estado legislador não se confunde, então, com todo o movimento criativo de normatividade social.
Além disso, contudo, o pluralismo jurídico já não ocorre, apenas, dentro dos estreitos limites das fronteiras nacionais134. Se em dado momento seria possível admitir a influência de normas internacionais para as mais variadas finalidades, também já não se pode negar que sua normatividade vaze para dentro das fronteiras estatais, independentemente do consentimento soberano.
XXXXXXX percebe, pois, que as teorias pluralistas precisam reformular suas explicações, pois o Direito não estaria mais se formando a partir das interações tradicionais (como por exemplo, étnica), mas pela reprodução contínua de redes globais especializadas135. No mesmo sentido é a opinião de XXXXXXXX que fala em pluralismo jurídico global (global legal pluralism)136.
Destas constatações parece viável retirar, assim, uma das
132 Ibidem, p. 92.
133 XXXXXXXX, Xxxxx X. Understanding Legal Pluralism: Past to Present, Local to Global. In: Sydney Law Review, v. 30. 2008 p. 397-401.
134 “Do ponto de vista técnico-jurídico, a sociedade sem fronteiras induz necessariamente a aplicação do pluralismo de fontes de direito, na medida em que sua consagração implica na necessária descentralização da origem do fenômeno jurídico, tanto no plano infra-estatal, quanto no supranacional”. XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Op. cit., p. 20.
135 TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a Emergência de um Pluralismo Jurídico Transnacional. Impulso In: Revista de Ciências Sociais e Humanas. v. 14, n. 33. 2003, p.14.
136 XXXXXXXX, Xxxx. The re-state-ment of non-state law: the state, choice of Law, and the challenge from global legal pluralism. In: The Wayne Law Review, v. 51, 2005, p. 1223-1224.
premissas deste livro: é factível “a negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda produção do Direito.”137
No sentido mais geral, portanto, a ideia de pluralismo jurídico reflete a existência, em dado campo social, de mais de um conjunto de regras obrigatórias138.Este termo pode ser compreendido de duas formas:
(i) como arranjo pelo qual o sistema jurídico convive com a diversidade (reconhecendo-a e atribuindo-a regras distintas)139 e (ii) no sentido de “heterogeneidade normativa”, a qual estaria submetido o indivíduo, em que o Direito não encontra suas fontes em um único sistema, mas também em autorregulações de vários campos sociais que podem: ajudar- se, complementar-se, ignorar-se ou frustrar-se mutuamente140. Todas as futuras asserções do presente trabalho serão feitas neste último sentido.
Assim, ao lado do Estado-legislador, existiriam outros campos sociais de produção normativa, ora reconhecidos por aquele, ora negados, segundo uma dada conveniência política, social ou econômica, mas sempre historicamente localizada, que não nos cabe questionar nos estreitos limites deste livro.
Trata-se, portanto, de reconhecer a existência de espaço normativo para além da Lei ou concedido por esta. Deste modo, por exemplo, desde regulamentos escolares, organizações burocráticas, relações de vizinhança, organizações comerciais internacionais141, interações em bolsas de valores, mercados securitários e até clubes142, relações entre cavalheiros, esportistas e praticantes de jogos de azar143 podem produzir algum tipo de normatividade. Nem todas elas, contudo,
137 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. XV.
138 XXXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 8650.
139 Idem.
140 XXXXXXXXX, Xxxx. What is legal pluralism? In: Journal Of Legal Pluralism, n. 24, 1986, p. 38-39.
141 XXXXXXXXX, Xxxx. Legal pluralism..., p. 8651.
142 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 1172.
143 XXXXXX, Xxxxx. Primeira lição sobre Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 31.
serão “eleitas” pela política legislativa estatal para se tornarem “Lei”, no sentido formal e institucionalizado do termo, mas também não é por isso que não serão obrigatórias, gerais e não produzirão os efeitos desejados e esperados por certa coletividade, obrigando seus componentes a certo comportamento.
Sua aplicabilidade se dá, ainda, não só em sistemas de solução de disputas não estatais (institucionalizados ou não), mas até mesmo na interação do Estado com as normas produzidas por estas mesmas entidades. Podem ser citados os exemplos das regulamentações de classe que se tornam obrigatórias (códigos de ética médica ou de qualquer outra profissão), as regulamentações antifumo que acabam publicamente encampadas144 e o reconhecimento de laudos arbitrais estrangeiros.
Por que, então, se falar de pluralismo jurídico neste determinado momento histórico?
Se de um lado, nos países de tradição continental, ainda se percebem os efeitos da descodificação, se avoluma a necessidade da busca de novas formas de ressistematização145.
Segundo PALACIO a discussão sobre o pluralismo jurídico ressurge, na América Latina, no final do século XX, por quatro fatores: (i) a crise do modelo de produção de acumulação de capital baseado na regulação de uma sociedade capitalista industrial frente as novas circunstâncias impostas pela globalização econômica, especialmente a flexibilização das relações produtivas; (ii) desenvolvimento de um movimento de reestruturação da hegemonia americana (neoamericanismo) em face da reorganização das principais economias globais e suas respectivas áreas de influências; (iii) processo de descentralização administrativa motivada pelas políticas neoliberais adotadas por países latino-americanos e (iv) surgimento de novos movimentos sociais. Ainda segundo o autor, a atual transformação jurídica se dá à custa do Estado pela interação local
144 XXXXXXXXX, Xxxx. Legal pluralism…, p. 8652.
145 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: XX, 0000, p. 77-79.
e global, sendo sua principal força transnacional, embora não haja a substituição do monismo jurídico estatal pelo internacional. Xxxxxxx, em verdade, a fragmentação e desorganização da sociedade, permanecendo as leis capitalistas como princípios orientadores146.
Na mesma linha, argumenta XXXXXXX que existiriam duas formas de se enxergar o pluralismo, aquele conservador que pregaria o anti-Estado esvaziando o papel conciliatório do Estado entre o Capital e o Social e aquela perspectiva comunitária (democrática-participativa) de organização social. Em suma, enquanto um seria representado por uma forma de regulação pluralista não estatal, mas privada, fortemente ligada às corporações internacionais e aos agentes econômicos; o outro, pela participação individual e coletiva na definição de novos direitos147. Xxxxxxx, portanto, segundo XXXXXXX também uma questão ideológica embutida na defesa do pluralismo, ainda que aparentemente maniqueísta. XXXXXX destaca, ainda, que diversas são as modalidades de discursos jurídicos: desde a afirmação da autoridade do Direito nacional (em uma consequente política de isolamento e protecionismo) ou a busca da harmonização universal (eliminando o pluralismo). Segundo o autor, nenhuma delas é totalmente bem sucedida, pois, em sua opinião, seria possível manter o hibridismo por meio da cooperação entre as diferentes fontes148. Também parece ser esta a conclusão de XXXXXXXX, para quem se trataria de perceber o novo papel do Estado diante da globalização149.
146 XXXXXXX, Xxxxxx. Pluralismo jurídico, neoamericanismo y postfordismo: notas para descifrar la natu- raleza de los cambios jurídicos de fines de siglo. In: Revista Crítica Jurídica, n. 17. 2000, p. 151-176.
147 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 355-358.
148 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 1163-1164.
149 “Instead of asking how globalization has changed the role of the state in the world, we must ask how the state must change itself in order to deal with globalization. Instead of asking how multiple communities can replace or supplement the state, we must ask how the state can accommodate multiple communities. Instead of asking how conflicts can be avoided through privatization and depoliticization of private law, we must ask how conflicts be resolved through a combination of public and private interests. In short, instead of moving the state to the periphery of our analyses and thereby denying its importance for our problems, we must move it into the analytical center of our analysis so as to be able to critique its role in globalization. To emancipate non-state law vis-à-vis the state, it is not enough to change the status of non-state law within the state. We must look as well at what is necessary on the side of the state to make such emancipation possible; and we must ask what kind of emancipation this will be”. (XXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 1258-1259). Tradução livre: “Ao invés
Reconhecendo o debate em torno das motivações e instrumentalizações da política e discurso pluralista, o presente trabalho se concentrará na identificação do pluralismo a partir do papel desempenhado pelo costume contratual, afirmando-o como uma destas formas de produção normativa não estatal, ainda que nem todos concordem que se trate de regulamentação não formalizada e oficial150. Além disso, partir-se-á da compreensão de que este é um fenômeno global e não limitado a países periféricos151.
Parecem, no entanto, evidentes as vantagens oferecidas pela admissão de que ao lado do Estado existem outras fontes normativas. Não se trata de negar sua importância152, mas perceber que confundir o Estado com o Direito e o Direito com a Lei é, em última análise, deixar que o próprio Estado estabeleça os limites em que agirá. A conclusão de ROULAND a este paradoxo é exemplar: “o pluralismo jurídico permite superar a problemática do Estado de direito ao afirmar que o Estado não tem o monopólio da produção do direito oficial.”153
Embora, segundo ASSIER-ANDRIEU, seja em sociedades em que existe a figura do Estado que mais facilmente se percebe a existência da estruturação jurídica, tal aproximação, contudo, afasta a construção jurídica da vida social, impermeabilizando-a, tornando-a institucional
de perguntar como a globalização alterou o papel do Estado no mundo, devemos indagar como o Estado deve alterar seu papel para lidar com a globalização. Ao invés de perguntar como as diferentes comunidades podem substituir ou suplementar o Estado, devemos indagar como o Estado pode acomodar as diferentes comunida- des. Ao invés de perguntar como os conflitos podem ser evitados por meio da privatização e despolitização do Direito privado, devemos indagar como os conflitos podem ser resolvidos por meio da combinação de interes- ses públicos e privados. Em resumo, ao invés de mover o Estado para a periferia de nossa análise, negando sua relevância para nossos problemas, devemos movê-lo para o foco de nossa análise de modo a sermos capazes de criticar seu papel na globalização. Para emancipar a normatividade não-estatal em relação ao Estado, não é suficiente alterar seu status dentro do Estado. Devemos verificar o que é possível de ser feito, no Estado, para tornar possível tal emancipação, além de indagarmos que tipo de emancipação ela será”.
150 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. XIX.
151 XXXXXXXXX, Xxxx. Legal pluralism..., p. 359.
152 Interessante que a abordagem adotada durante a Revolução francesa era a de proteger a indissolubilidade da República. Toda forma de diferença, seja de peso, medida ou cultura podia ser encarada como uma ameaça às conquistas revolucionárias. XXXXXXX, Xxxxxxx. Nos confins do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 163.
153 Ibidem, p. 174.
e formal154. Além disso, a abertura conceitual potencializada pelo pluralismo permite a atuação jurídica em níveis hoje não atingidos pelo Direito oficial, especialmente na América Latina, dadas as circunstâncias multiculturais, e de déficit cultural, democrático e participativo155. Em resumo, segundo XXXXXX: “o lugar de reflexão para a conquista do direito justo”.156
Resta presente, portanto, que não se pode negar a existência de um sistema normativo paralelo e autônomo à normatividade proveniente do Estado, baseado na consagração do costume contratual como fonte normativa. A relação entre ambos, contudo, é que passará a nos interessar daqui para frente. Isso porque em alguma medida importará em embate político157 ou afirmação democrática158.
2.3 A Internacionalização do Direito Contratual
Outro conceito preliminar que deve ser adequadamente fixado é o que será denominado neste trabalho de “internacionalização” do Direito contratual e que será fundamental para a conclusão proposta.
Como mencionado anteriormente, se perceberá que esta noção não é sinônimo da procura pela conceituação de “contrato internacional”, ou seja, de um contrato submetido ao regime típico daqueles negócios em que dois ou mais Ordenamentos jurídicos se apresentam como
154 Surgiriam “regras precisas, instâncias de julgamento, de classificações administrativas, de instituições pe- nitenciárias e outras concretizações jurídicas” que distanciam o jurídico do social. E esta distinção se com- pletaria com a escrita do Direito, pois a partir de então, dele poderiam ser extraídos diferentes significados e seus efeitos se perpetuariam para além de sua época, em detrimento de qualquer movimento social. ASSIER-
-XXXXXXX, Xxxxx. O Direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 20-24.
155 XXXXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxx. Pluralismo jurídico e o paradigma do Direito moderno: breves aponta- mentos. In: Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais da UniBrasil, Curitiba, n. 12, 2010, p.30.
156 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx. O Estado singular e o Direito plural. In: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, n. 25. 1989, p. 163.
157 Na medida em que reconheça certas regras ou negue a existência de outras em tentativa de afirmação de autoridade política. XXXXXXXXX, Xxxx. Legal pluralism…, p. 8654.
158 No sentido da não sujeição das novas normatividades ao controle ou prevalência do Direito estatal. XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 351-352.
potencialmente competentes para regular a relação obrigacional neles encapsulada e, que ao mesmo tempo, representa operação econômica transnacional.
Trata-se antes de processo de superação das fronteiras físicas e normativas dos diferentes Estados, em especial em relação à recepção de fenômenos normativos e a capacidade plena de conformação nacional dos institutos jurídicos.
Tradicionalmente, a aproximação de sistemas jurídicos pode se dar pelo “transplante” ou importação do sistema (típico em sociedades coloniais); por formas mais cooperativas como a harmonização, ou seja, a mencionada negociação de termos que aproximem os conceitos fundamentais do sistema normativo em questão e a unificação, em lugar da aproximação, a negociação envolve a assunção de um sistema único por ambos os países negociadores. Outras formas são, contudo, possíveis, sejam elas originárias da hard law159 ou da soft law160.
Hoje, por exemplo, se fala em aculturação. Seu conteúdo, contudo, ainda é vago e, talvez, possa refletir várias tendências reunidas. Assim pode ser representada pela “inspiração” típica de ex-metrópoles
159 “Hard law consists of international conventions, national statutory law and regional or international cus- tomary law. Only a small proportion of hard law rules will be of mandatory nature and they will normally be national legal system specific. Their “hardness” is due to the fact that when parties make an effective choice of substantive law they will have to take the law as they find it; they cannot modify it, but they may amend it with their contractual stipulations”. XXXXXXXX, Xxxxxx. Is Harmonisation a Necessary Evil? In: The Future of Harmonisation and New Sources of International Trade Law. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxx/ is_harmonisation_a_ necessary_evil.louka_mistelis/sisu_manifest.html>. Acesso em: 19 de outubro de 2011. Tradução livre: A Hard law consiste nas Convenções internacionais, legislação doméstica e Direito costumeiro internacional ou regional. Apenas uma pequena fração dessas regras será de natureza cogente, obedecendo às especificidades domésticas. A sua “dureza” é devida ao fato de que, quando as partes escolhem uma deter- minada legislação, elas terão que as adotar tal como as encontrarem, não podendo modifica-las, mas apenas emenda-las com disposições contratuais.
160 “Soft law consists of provisions embodied in model laws (but not incorporated in the national law), prin- ciples to be found in legal guides, and in scholarly restatements of international commercial law. Contractual stipulations agreed upon by the parties which do not conflict with relevant mandatory rules or public policy principles also belong to soft law. All these rules and principles are not legally binding and enforceable un- less the parties to a commercial transaction decide otherwise”. (Idem), Tradução livre: A soft law consiste em disposições estabelecidas em legislação-modelo (mas não ainda incorporadas ao Direito nacional), princípios localizados em guias jurídicos, e compilações doutrinárias do Direito comercial internacional. Condições contratuais aceitas pelas partes mas, que não confrontem disposições mandatórias ou ordem pública também a compõem. Todas essas regras e princípios não são obrigatórios nem exigíveis, salvo se as partes de um con- trato comercial decidirem em contrário.
sobre suas colônias161, pela influência de países soberanos sobre outros162 ou de textos normativos internacionais sobre o Direito interno163. Trata-se de processo complexo que não pode ser reduzido a um único modelo, não se refere apenas às regras e conceitos legais, nem é o Estado o seu único agente164. Em termos privados esta aculturação pode ser exemplificada pela importação de institutos tipicamente internacionais (a adaptação dos INCOTERMS à necessidade nacional pode ser citado165) ou pelo papel criativo da arbitragem, especialmente internacional166. Esta nova lógica, então, se “instila para dentro das ordens jurídicas nacionais e perturba os cânones habituais do direito moderno”167.
Dessa forma o que se coloca em cheque é a explicação tradicional do conceito de soberania que não pode mais ser entendido como absoluto
161 Como no caso do Direito francês sobre a legislação contratual libanesa (CABRILLAC, Séverine; XXXX, Youmna. L´acculturation en Droit des affaires libanais: le cas du droit des contrats. In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). L´acculturation en droit des affaires. Montréal: Éditions Thémis, 2005, p. 649) ou do direito francês sobre a legislação québécois. XXXXXXXX, Xxxxxxxx. L’évolution de la Justice Contractuelle en Droit Québécois: Une influence marquée du Droit Français quoique non exclusive. In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). Op. cit., p. 196-219.
162 Como o caso do Direito americano sobre o Direito francês. XXXXXXXX, Xxxxxxx. Justice contrac- tuelle: influence du droit américain? In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). Op. cit., p. 183-195.
163 Como o caso da CISG sobre o Direito québécois (XXXXX, Xxxxxxx. L´acculturation en matière de vente: l´influence de la CVIM sur la vente interne. In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). Op. cit., p. 143-182), das Convenções sobre transporte internacional sobre o Direito francês (BON-GARCIN, Xxxxxxxx. L’acculturation en matière de contrat de transport de marchandises par route: l’influence de la CMR sur le contrat de transport national. In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). Op. cit., p. 221-239) e da venda documentária internacional obre o Direito canadense. XXXXXXXX, Xxx. L’acculturation en droit des affaires québécois: le cas de la vente documentaire internationale. In: XXXXXXX, Xxxx-Xxxxx; XXXXXXXX, Guy. (Dir.). Op. cit., p. 241-291.
164 XXXXXXX, Xxxxxxx. Diffusion of Law: a global perspective. In: Journal of legal pluralism, n. 49, 2004, p. 34-35. 165 “La création de règles uniformes supplétives et leur stipulation généralisée par les acteurs du commerce international constituent ainsi par acculturation juridique les prémisses d´un droit commun contractuel
d´origine internationale sans que la réception des Incoterms par les ordres juridiques nationaux contredise
l´existence de ce droit commun. “ (XXXXXXX, Xxxxxxxx. Les incoterms: études d´une norme du commerce international. Paris: Litec, 2003, p. 426-427.). Tradução livre: “A criação de regras supletivas uniformes e sua generalizada utilização pelos atores do comércio internacional constituem, por aculturação jurídica, as pre- missas de um Direito contratual comum internacional, sem que a recepção dos Incoterms pelos diferentes sistemas nacionais contradiga a existência deste direito comum”.
166 XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 344.
167 XXXXXXXXXX, Xxxxx. Une possible histoire de la norme: les normativités émergentes de la mondialisa- tion. Montréal: Éditions Thémis, 2008, p. 86.
pela autoridade investida do poder legislativo interno168. O papel absoluto e exclusivo do Estado na produção normativa entra em crise, passando- se a admitir a possibilidade da existência de outras fontes normativas concorrentes (pluralismo, como visto no item anterior). Quando tais fontes localizam-se para fora do território do Estado, a crise atinge o cerne da soberania estatal.
O território, como “espaço de Direito”169 exclusivo do Estado, sempre foi observado como intransponível, no entanto:
Não há dúvida de que hoje o Estado está em crise, e está em crise o velho legalismo; não há igualmente dúvida de que um terreno eleito é exatamente aquele das fontes do direito, da produção jurídica. E assistimos, por causa da impotência e da ineficiência dos Estados, à formação e ao desenvolvimento de direitos paralelos ao direito oficial estatal, com a invenção de novos institutos jurídicos mais adequados a ordenar a nova economia e as novas técnicas. Canais de impulso privado que escorrem autônomos, que fixam as suas regras, que fazem frente a uma justiça privada.170
A questão chave que se abre, então, é que não há como se sustentar a visão absoluta de soberania também diante da perspectiva internacional. Essa advertência é necessária porque, tradicionalmente, no Direito Internacional Público, a noção de soberania normalmente é mais estreitamente vinculada à compreensão de exercício de autodeterminação e independência nacional171.
168 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Direito Internacional Econômico. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000,
p. 45-52. A idéia aqui debatida, no entanto, é que a soberania não deve ser entendida como a capacidade de exercício ilimitado de poder. Contemporaneamente se liga, internamente, à capacidade de uma determinada autoridade (normalmente pensada em termos de Estado) promulgar legislação com independência desde que obedecidas às limitações previstas em seu próprio ordenamento. Por outro lado, em termos internacionais não só se reconhece o dever de respeito à ordem internacional e à independência
169 XXXXXX, Xxxxx. Primeira lição..., p. 62-63.
170 Ibidem, p. 34.
171 Ainda que hoje se reconheça sua dificuldade frente à harmonização econômica vivenciada pelos diversos
A partir do século XX, percebeu-se, contudo, que diversos fenômenos faziam incidir seus efeitos em nível nacional, independentemente do consentimento do Estado. Na aurora do século XXI admite-se a hipótese que organismos internacionais, destituídos de soberania e braço armado, imponham sanções militares, econômicas e decisões “judiciárias” sobre Estados e seus representantes172.
Segundo FAUVARQUE-COSSON a internacionalização do Direito seria fenômeno relacionado à globalização. Ela seria incentivada pelo incremento da mobilidade dos indivíduos, a criação de organizações internacionais e suas atividades173. A questão chave que surgiria, portanto, seria qual a consequência desse fenômeno para os diferentes sistemas legais nacionais, desafio posto, principalmente, pela multiplicação das fontes normativas174, nacionais, internacionais, privadas e públicas.
Segundo XXXXXX-XXXXX, atualmente, não se poderia mais afirmar Estado como único produtor normativo, o cenário global não só revelaria que a produção jurídica se internacionalizou, como se descentralizou e se privatizaria175. Assim, não só passa a ser possível se buscar fundamento normativo alhures, como ele não depende, necessariamente, do consenso dos Estados. Esse processo acaba por valorizar não só a fontes de Direito não escritas, mas igualmente aquelas fontes internacionais e jurisprudenciais176. A recomposição normativa que passa a ser necessária, segundo a autora, deve ser centrada nos Direitos Humanos. Os próprios Direitos Humanos, em alguma medida, seriam exemplos de como a internacionalização permite a incorporação de normas estrangeiras ou não nacionais177.
países e o direito fundamental ao desenvolvimento.
172 Podem ser citados como exemplos os embargos econômicos e coalizões militares em face do Iraque e o julgamento por crimes de guerra em face de líderes nacionais do Sudão e das antigas Repúblicas balcânicas. 173 XXXXXXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 56. No mesmo sentido se manifesta: FORGIONI, Xxxxx X.
Teoria geral dos contratos empresariais. São Paulo: XX, 0000, p. 131-132.
174 XXXXXXXXX-XXXXXX, Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 56.
175 XXXXXX-XXXXX, Xxxxxxxx. Por um direito..., p. 45-59.
176 Ibidem, p. 88.
177 XXXXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 88-89.
SUPIOT alerta que a globalização não cria a homogeneização normativa apenas em nível internacional, mas que, igualmente, criaria sua territorialização178. A fragmentação do poder estatal (que chama de Garante dos pactos) faz proliferar a existência de agentes de poder independentes. Esta fragmentação só é possível a partir do momento em que a própria noção de soberania é questionada. Segundo o autor, isto se dá com a substituição do poder discricionário pelo poder funcional e pelo recuo do poder central em proveito da desregulamentação e aumento de espaço das normas técnicas179.
Em outros termos, isso equivaleria a afirmar que o papel regulamentador do Estado é passado a “Autoridades” que passam a normatizar tecnicamente os espaços deixados pelo vácuo estatal por meio de contratos. XXXXXX vê nisso a “enfeudação das liberdades”, ou seja, o contrato passa a dispor sobre valores não mais estritamente patrimoniais e passa a instrumentalizar as próprias fontes do Direito180.
Longe de designar a vitória do contrato sobre a lei a ‘contratualização da sociedade’ é muito mais o sintoma da hibridação entre a lei e o contrato e da reativação das maneiras feudais de tecer o vínculo social. (...) A identificação do Estado, da lei e da moeda foi, de fato, um momento da história, e essas figuras (...) são, pois, suscetíveis de ficar autônomas.181.
Assim, uma vez admitido o fenômeno da internacionalização, e aceita a perspectiva normativa pluralista, a influência para o Direito contratual seria igualmente relevante:
178 XXXXXX, Xxxxx. Homo juridicus: Ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fon- tes, 2007, p. 128-129.
179 Ibidem, p. 186-188.
180 Ibidem, p. 208-230.
181 XXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 132-133.
Como uma das fontes mais suculentas das obrigações, imprensados entre a práxis e as leis cada vez mais casuísticas e imperativas, os contratos, como instrumento técnico posto à disposição das partes para autorregularem seus interesses, vão se mantendo, principalmente através de modificações nos antigos tipos e da criação de novos.182.
Segundo XXXXXXXXXX a própria globalização teria harmonizado certas concepções jurídicas contratuais conciliando as diferenças nacionais. Embora o autor entenda que não se trate de fenômeno novo e que tenha conteúdo limitado ao Direito internacional comercial, reconhece sua importância e a necessidade de sua extensão, mas de forma a respeitar o que chama de ordem pública nacional. O autor, ainda, atribui a facilitação deste fenômeno ao surgimento de um Direito autônomo do comércio internacional, a disseminação do estudo comparado, internacionalização do costume empresarial e de consumo e surgimento da linguagem técnica da análise econômica183.
Talvez um melhor exemplo dessa tendência seja aquele relatado por WAINCYMER quando analisa a “internacionalização” do Direito comercial australiano e conclui que este é altamente influenciado e dependente das iniciativas internacionais184. O processo não só se desenvolveu com a facilidade de pesquisa e acesso a material, o incremento da educação internacional nas profissões jurídicas, as reformas legislativas
182 BULGARELLI, Waldírio. Atualidades dos contratos empresariais. In: Revista de Direito Mercantil, n. 84. RT, out./dez. 1991, p. 63.
183 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado de los contratos: parte general. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 29-30.
184 “In spite of uncertainty about the exact nature and status of the new lex mercatoria and gaps that remain in the field of public international trade law, the sheer body of international initiatives and the amount of time and energy devoted to such endeavors, readily supports the conclusion that Australian commercial law is heavily influenced by and dependent upon international developments”. XXXXXXXXX, Xxxx. The interna- tionalisation of Australia´s Trade laws. In: Sydney Law Review, v. 17, 1995, p. 335. Tradução livre: “Apesar da incerteza acerca da exata natureza e status da nova lex mercatoria e das lacunas remanescentes no Direito internacional público do comércio, o conjunto de iniciativas internacionais e o montante de tempo e energia dispendidos em tais empreendimentos, embasa a conclusão de que o Direito comercial australiano é, altamen- te, influenciado e dependente dos desenvolvimentos internacionais.”
(concorrência e práticas comerciais) com a adoção de instrumentos de unificação e harmonização (CISG para a compra e venda internacional de mercadorias, regras de Haia-Visby e Hamburgo para o contrato de transporte marítimo, Convenção de Varsóvia para o transporte aéreo, Convenção de Nova York de 1958 e da lei modelo da UNCITRAL para a arbitragem, etc.), a adoção dos mecanismos da OMC, como, igualmente, teria condicionado o Judiciário local à utilização de argumentação internacional185. A tese acaba sendo confirmada por XXXXXX XXXXXX quando afirma que a natureza do Mercado internacional determina que a cada dia menos transações possam ser consideradas exclusivamente domésticas ou nacionais186. Embora possivelmente isso seja mais verdadeiro em países de tradição anglo-saxã e de economias mais internacionalizadas, parece plausível afirmar que, em dado momento, em certos temas jurídicos, a influência internacionalizante é maior.
Se em matéria de contratação internacional, pode-se facilmente perceber esta tendência por meio, por exemplo, do número de medidas estatais187 e privadas188 de harmonização legislativa, por outro lado, em matéria doméstica o fenômeno não é menos significativo, embora, se
185 “foreign authorities as persuasive tools”. Ibidem, p. 303-306.
186 XXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxxx. Of contracts and treaties in the Global market. In: Max Planck University of New York in Belgrade, v. 8, 2004, p. 343.
187 Cite-se, por exemplo: a Convenção de Viena sobre Xxxxxxxxx xx xxxxxx x xxxxx xxxxxxxxxxxxx xx xxxxx- xxxxxx xx 0000 (XXXX) foi adotada por 77 (setenta e sete) países entre eles todos os membros do MERCOSUL, com exceção do Brasil (para listagem completa dos países contratantes e o status da Convenção vide: UN- CITRAL. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xx/xxxxxxxx_xxxxx/xxxx_xxxxx/0000XXXX_xxxxxx. html>. Acesso em: 21 de outubro de 2011). Outro exemplo é a Convenção de Nova Iorque sobre reconheci- mento e execução de laudos arbitrais estrangeiros foi adotada por 146 (cento e quarenta e seis) países, entre eles o Brasil (para listagem completa dos países contratantes e o status da Convenção vide: UNCITRAL. Dis- ponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xx/xxxxxxxx_xxxxx/xxxxxxxxxxx/XXXxxxxxxxxx_xxxxxx.xxxx>. Acesso em: 21 de outubro de 2011). Por fim, deve-se mencionar a Lei Modelo da UNCITRAL sobre arbitra- gens comerciais internacionais foi adotada por inúmeros países em sua versão proposta, além de ter servido de inspiração para tantos outros (Para listagem completa dos países contratantes e o status da Convenção vide: UNCITRAL. Disponível em: <xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx/xxxxxxxx/xx/xxxxxxxx_xxxxx/xxxxxxxxxxx/0000Xxxxx_xx- bitration_status.html>. Acesso em: 21 de outubro de 2011.
188 Citem-se: a consolidação de costumes internacionais pela Câmara de Comércio Internacional de Paris (INCOTERMS e UCP 600); a elaboração de Restatements como os Princípios do Direito Contratual Interna- cional da UNIDROIT (edição mais recente de 2010); os Princípios do Direito Contratual Europeu; Código Europeu dos Contratos e o Restatement on the Law of Contracts do American Law Institute.
reconheça, menos visível. Desta forma, a internacionalização não se confunde com a harmonização ou com a uniformização legislativa, mas se trata de processo de “osmose invertida”, ou seja, o meio de maior concentração normativa por excelência (nacional) demanda mais e variadas soluções que são transpostas do meio de menor concentração normativa (internacional), essencialmente criativo e flexível em matéria contratual.
Além disso, a legislação comunitária tem contribuído para a internacionalização do Direito dos contratos, algo que até pouco tempo atrás era eminentemente nacional189, assim como o movimento da Lex mercatoria190 contribui para a diminuição do espaço de regulamentação estritamente local191. O próprio método comparado e a homogeneização das práticas negociais permitiriam este tipo incorporação ao Ordenamento Jurídico interno. Neste sentido, comenta CANÇADO TRINDADE
No âmbito do direito internacional em nível regional integrado, o fenômeno está ligado ao papel crescente dos tribunais internos na própria criação (e não mera aplicação) do direito. A atuação dos tribunais nacionais nesse sentido foi objeto de atenção e debate no 9º Congresso de Direito Comparado da Academia Internacional de Direito Comparado (...) em que se enfatizou a participação dos tribunais internos na própria atividade normativa e estabelecimento de regras gerais de conduta, chegando-se mesmo a vislumbrar no todo do processo europeu comunitário de integração a possibilidade de renascimento do antigo ideal de um jus commune,
189 XXXXXXXXXX, Xxxxx X.; XXXXXXXX, Xxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx. The German Law of Contract: a com- parative treatise. 2. ed. Portland: Hart, 2006, p. 46.
190 Provisoriamente entendido como sistema normativo aplicável às relações comerciais internacionais. Ca- racteriza-se pela pluralidade de fontes e pela pretensão, em parte sustentada pela doutrina, de autonomia em relação aos Estados.
191 AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Os contratos nos Códigos civis francês e brasileiro. In: Revista CEJ, n. 28. jan. /mar. 2005, p. 19.
‘desnacionalizado’ através do método comparado.192
Portanto, também em matéria obrigacional, especialmente contratual, os limites soberanos do poder estatal se estreitaram. Isso equivale dizer que os contratantes vão buscar o fundamento de sua liberdade contratual não só no espaço que lhes é dado pela Lei, mas por todo o Ordenamento Jurídico (autonomia privada), isto é, com toda sua pluralidade de fontes: costumes internos e internacionais, inclusive.
XXXXXX XXXXXXXXX assevera que, em alguma medida, a soberania Estatal em alguns temas se aproximaria do “rugido de um rato”193, ou seja,
[os estados] operan tan solo en un minúsculo fragmento de un mercado de dimensión mundial, sobre el cual no pueden incidir eficazmente. La economía clásica estaba basada en un sistema de producción, distribución y consumo local; hoy día Ella se asienta fuertemente en bases internacionales, al punto que, por ejemplo, el poder impositivo de los Estados se diluye con holdings o grupos empresariales que transfieren los tributos de una jurisdicción a otra, o las empresas optan por asentar sus sedes de servicios en países que cuentan con un mejor ambiente en cuestiones de orden sindical o salarial, por citar ejemplos.194
Nem todos, contudo, concordam com este raciocínio195. XXXXXXXXXX, por exemplo, lembra que as particularidades nacionais
192 TRINDADE, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Op. cit., p. 159.
193 XXXXXXX, Xxxxxxxxx. Atlas de Derecho Privado Comparado. Madrid: Editorial Fundación Cultural del Notariado, 2000, p. 13 apud XXXXXX XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Temas de contratación internacional, inversiones y arbitraje. Asunción: CEDEP, 2006, p. 59.
194 Idem.
195 Xxxxxxx XXXX, embora a CISG tenha tentado codificar o Direito internacional para compras internacio- nais, os sistemas nacionais mantém importante papel da sua regulamentação. XXXX, Xxx X. Code, Custom, and Contract: The Uniform Commercial Code as Law merchant. In: Texas International Law Xxxxxxx, x. 00, 0000, x. 000.
xxx xxx xxxxxxxxxx, x xxxxx a identificar certa concepção “latino- americana” de contrato que privilegia o conteúdo constitucionalizado e a aplicação dos direitos fundamentais196.
Esses argumentos, todavia, por si só, frise-se, não são antagônicos com a internacionalização. Isso porque ela não se presta apenas aos reclames do Mercado197, mas igualmente às fontes normativas que consagram os Direitos Humanos mesmo que não tenham, ainda, sido convertidas pelo reconhecimento estatal (direitos fundamentais). Neste sentido, portanto, a internacionalização não é sinônimo da temida Lex mercatoria, mas serve de instrumento de repersonalização do contrato (nacional ou internacional). Por outro lado, a própria instrumentalidade adotada pela Lex mercatoria ajuda a revelar a forma como a internacionalização pode ser operada.
Embora prefira adotar o termo “Direito global”, TEUBNER parece apoiar esta conclusão quando explica que a coordenação mundial não é sentida apenas nas normas corporativas, mas igualmente nos Direitos humanos e no Direito ambiental198.
Assim, quando se define a possibilidade de internacionalização de normas contratuais ao ponto de elas virem a fazer parte do conjunto de fontes obrigacionais de um contrato interno, em parte, se defende a aplicação de normas de distintas fontes (que não necessariamente a nacional) por juízes nacionais, ou não, por meio do chamado “Direito transnacional”199.
196 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Tratado…, p. 33-34.
197 Entendido como abstração que acaba por representar os interesses estritamente privados, transnacionais, desvinculados a qualquer soberania específica e, portanto, tendentes ao exercício de suas atividades lucrativas em detrimento do bem estar das populações locais, da adequada fruição dos recursos não renováveis ou de qualquer outro valor que não identifiquem com os seus próprios.
198 TEUBNER, Gunther. Op. cit., p. 11.
199 “O Direito Transnacional inclui então tanto o aspecto cível quanto o criminal, inclui o que conhecemos como Direito Internacional Público e privado, e inclui o Direito nacional, tanto público como privado. Não há razão por que o tribunal judicial, seja nacional ou internacional, não devesse ser autorizado a escolher dentre todos estes corpos legais a regra considerada mais de acordo com a razão e a justiça para a solução de qualquer controvérsia particular”. XXXXXX, Xxxxxx. C. Direito transnacional. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965, p. 87.
Embora XXXXXX reconhecesse que haveria um problema de segurança e que esta lógica só se aplicaria aos casos “transnacionais”, a internacionalização do contrato permite supor, igualmente, o recurso a fontes normativas internacionais. A segurança, por sua vez, é dada pelo novo eixo de ressistematização do sistema, não mais nacional apenas. Daí porque se entender como a Lex mercatoria opera e se constitui sistema normativo passa a ser relevante.
A forma, contudo, como a internacionalização ocorre, suas relações com a cultura jurídica e os costumes locais são diversos e não apenas um bottom-top process200. Exemplos desse tipo de situação podem ser tirados de vários episódios concretos, como a disputa judicial pela construção do complexo de exploração da capacidade hídrica do vale do Narmada na Índia em que os vários níveis normativos demonstram a complexidade de se atuar com a perspectiva do pluralismo jurídico em nível global e local201 ou a aquisição de atividades empresariais locais por sociedades transnacionais, seja do ponto de vista concorrencial (caso Nestlé e Garoto), seja do ponto de vista da insolvência transfronteiriça (caso Parmalat).
Se o contrato é internacionalizado e as suas fontes normativas plurais, resta a análise de uma delas para a compreensão de como aquela ressistematização pode ocorrer. Para tanto, se propõe o aprofundamento no estudo do costume contratual.
200 Processo de baixo para cima.
201 Tratou-se de tentativa de construção de represas ao longo do vale do rio Narmada. O projeto se tornou internacional com o financiamento do Banco Mundial e empresas internacionais fornecedoras de serviços e equipamentos. O embate se deu junto ao Judiciário indiano envolvendo a discussão sobre a incorporação do Direito internacional e sua coerência com a perspectiva nacional. XXXXXXXXX, Xxxxxxxxxxxx. The Role of Law in Counter-hegemonic Globalization and Global Legal Pluralism: Lessons from the Narmada Valley Struggle in India. In: Leiden Journal of International Law, n. 18. 2005, p. 345–387.
III. A Barganha pela Soberania: O Papel do Costume no Direito Contratual Moderno
Xxxxxxxxx, em voz alta e clara, enuncia suas vontades. Na verdade ele tem pouquíssima liberdade. Cada qual sabe com relativa precisão o que há de caber a Fulano ou Xxxxxxxx conforme o costume, essa lei não escrita, porém tão impositiva quanto os Códigos mais rígidos.202
3.1 O Costume Como Fonte do Direito
Quando se fala de fonte do Direito se tenta explicar donde provêm os fundamentos normativos do sistema jurídico escolhido por uma determinada sociedade. Em alguma medida, portanto, trata-se de explicar a razões que determinam a fonte de legitimação para todo um mecanismo de “jurisdição”203.
Esta determinação não é, portanto, necessariamente universal e depende das condições históricas, temporais e sociológicas que condicionam as escolhas políticas de uma dada sociedade. Dessa forma, então, pode-se, grosso modo, em caráter estritamente preliminar, afirmar que enquanto os países do Common Law tendem a privilegiar o precedente jurisprudencial, os países do Civil Law preferem o recurso à legislação. Esta, no entanto, é uma visão limitada ao mundo ocidental, cristão e de formação moderna204.
Tal visão, simplista de “origem e fundamento”, foi, paulatinamente, substituída, nas sociedades ocidentais modernas, por uma compreensão mais elaborada e procedimental. Segundo XXXXXX, por exemplo, poder-se-ia falar de fonte em dois sentidos. Em um
202 XXXX, Xxxxxxx. Xxxxxxxxx Xxxxxxxx ou o melhor cavaleiro do mundo. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 13.
203 Expressão empregada não no sentido técnico, mas no sentido mais lato de dizer o Direito.
204 XXXXXXX, Xxxxxxx. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 173.
sentido puramente jurídico a fonte do Direito não seria outra que o próprio Direito, já que uma norma retira seu fundamento de validade de outra, hierarquicamente superior. Em um segundo sentido, mais amplo, admitir-se-ia como fonte do Direito qualquer influência sofrida pelos órgãos criadores do Direito. Neste último sentido, seriam carentes de obrigatoriedade e altamente ambíguas205. A armadilha conceitual posta por XXXXXX afasta qualquer ponderação não sistemática.
A classificação que acabou se tornando mais corriqueira foi aquela que divide as fontes do Direito em materiais e formais. Enquanto aquelas fariam referência à justificativa, às explicações sociológicas e históricas do Direito206; estas se refeririam ao modo de produção de uma norma207.
Esta distinção que poderia ter lugar em termos meramente didáticos, acabouinfluenciando fortemente a forma como se compreenderia o Ordenamento jurídico. Sendo sustentada pela majoritária doutrina208, se passou a admitir a tese de que a produção da norma jurídica dependeria de um procedimento que contaria com algum tipo de consentimento do Estado209: seja um processo legislativo, o reconhecimento formal da norma consuetudinária ou a manifestação reiterada dos tribunais.
Este viés procedimental210 da fonte normativa é destacado por indicar os requisitos para a produção válida de normas jurídicas211, relacionando-se, necessariamente, à existência de um poder que possa
205 XXXXXX, Xxxx. Teoria geral do Direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 192. O autor nega com isso também aquela corrente que defende que a norma é produzida pelo intérprete autorizado (por exemplo, o juiz).
206 XXXXXXX, Xxxxxx. Introdução crítica ao Direito. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1994, p. 197.
207 Ibidem, p. 197-198.
208 Por exemplo: XXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Op. cit., p. 53-54; XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria geral..., p. 196; XXXXX, Xxxxxx. Fontes e modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 12-14.
209 XXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 274; DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil: aulas proferidas na Faculdade Nacional de Direito [1942-1945]. Parte Geral. Rio de Janeiro: Rio, 1977, p. 82.
210 “os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa”. XXXXX, Xxxxxx. Lições preliminares..., p. 140. 211 XXXXX, Xxxxxx. Fontes e modelos..., p. 12.
exigir seu comportamento (Legislativo, Judiciário, Poder Social ou negocial)212. Normalmente se destaca que o procedimento confere certeza e racionalidade à produção normativa, deixando de lado tudo aquilo que deita suas raízes nas obscuridades213 medievais ou tem origens folclóricas ou meramente selvagens (não civilizados). Contudo, nem todas as fontes normativas convivem bem com a procedimentalização, já que nem todas são formais, escritas ou ritualísticas. De alguma forma, esta classificação tende a privilegiar apenas uma delas: a lei.
O problema parece residir, entretanto, na escolha sobre o que faz parte deste sistema. Se esta escolha for tão discricionária ao ponto de negar condição de “norma” aquilo que não tenha origem estatal, então, em última análise, norma é apenas aquilo que o legislador produz e, portanto, somente aquela regra que atende a uma determinada política de Estado. Nesta medida o papel regulador passa a ser exercido, apenas, pelo agente político.
Em termos modernos, esta construção nada teria de discricionária. Especialmente porque baseada no ideal do “contrato social” segundo o qual o monarca, escolhido pelo cidadão, representaria os maiores interesses da sociedade e deveria limitar o indivíduo de modo a garantir a vida em coletividade.
XXXXXX000, por exemplo, justificava a aliança entre “Estado” e o cidadão na medida em que a plena liberdade do homem o aproximaria das coisas, ou seja, sujeitá-lo-ia aos demais homens. Esta lógica se explicaria na própria liberdade que cada um tinha de usar seu poder para preservar sua própria natureza. A defesa do direito de cada um causaria uma situação de insegurança geral. Segundo autor, esta situação ensejaria a constatação racional de três leis naturais: (i) todo homem deveria
212 XXXXX, Xxxxxx. Lições preliminares..., p. 141.
213 Segundo Xxxx Xxxxxxxxxxx a metáfora artística da luz que vence a morte é comum por volta do ano de 1789. O movimento revolucionário francês se apodera da figura, tornando-a o “mito Solar da Revolução” que daria um novo foco de luz para o mundo. XXXXXXXXXXX, Xxxx. 1789: os emblemas da razão. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 38-43.
214 XXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 39-283.
buscar a paz e segui-la (ii) seria possível, ao homem, defender-se por todos os meios e (iii) todo homem deveria cumprir seus compromissos. A busca pela concretização desse ideal passaria, segundo XXXXXX, pela renúncia ao direito sobre todas as coisas e sua transferência a uma entidade coletiva. A transferência voluntária imporia o dever (obrigação) ao homem de respeitar seu próprio ato voluntário (já que o desrespeito seria contraditório) e, ao mesmo tempo, dada a natureza volúvel da vontade humana, seria mantida pelo receio da consequência em caso de descumprimento. A referida transferência se daria na busca de alguma vantagem, daí porque o homem não poderia transferir o direito de defender sua vida e integridade física. A barganha se completaria com a promessa de segurança.
O pacto social acabaria por certa “liberdade poética” representado pela Constituição. Por isso são tão comuns as referências às lutas pelo controle do poder monárquico inglês e a imposição da Magna Carta ao rei Xxxx (1215); a Declaração do Homem e do Cidadão (especialmente os arts. 1º, 2º, 4º, 5º e 6º)215 e sua consagração paulatina, como direitos fundamentais de primeira geração nos instrumentos constitucionais dos diferentes Estados (como por exemplo, o art. 5º, caput e II da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988216); isso para não mencionar
215 “Artigo 1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.; “Artigo 2º. O fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade. a propriedade, a segurança e a resistência à opres- são”.; “Artigo 4º. A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exer- cício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei”.; “Artigo 5º. A Lei não proíbe senão as acções prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene”.; “Artigo 6º. A Lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer se destine a proteger quer a punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade, e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos” [sem grifo no original]. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria Geral da República. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Disponível em: <xxxx://xxxx.xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxx-x-xxxxxxxxx-xx-xxxxx/xxxxxxxxxx/ direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf>. Acesso em: 19 de outubro de 2011.
216 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”. [sem grifo no original].
a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (especialmente o art. 1º)217.
Do ponto de vista moderno, a explicação e justificativa persistiam: esta era a única opção verdadeiramente racional. O indivíduo não pode atentar contra sua própria condição humana. Toda e qualquer outra escolha normativa seria irracional e autodestrutiva, o que ofenderia a própria condição de ser humano.
Esta lógica também introduz uma nova compreensão do papel do “Estado”218 na produção do Direito. Isso porque até então o titular do poder “centralizado” nem sempre desempenhava, de modo exclusivo e definitivo, a produção cogente de normas jurídicas. Em termos modernos, portanto, resumidamente, a plena liberdade seria cedida em troca da promessa de preservação da segurança. Este pacto se concretizaria com o corpo político (Leviatã) cuja lei não seria divina (natural), mas civil, fonte única do Direito219. Dentro desta lógica, qualquer outra suposta fonte (como o costume, por exemplo) precisaria ser confirmado pela lei220, pois expressão da mesma barganha.
Dessa forma, se substituía todo o sistema anterior de fontes de produção do Direito, privilegiando-se em seu lugar aquela que se “confunde com a vontade do Príncipe, o único personagem acima das paixões e dos partidarismos, o único capaz de ler o livro da natureza e traduzi-lo em normas, o único (...) que tem condições (...) de liberar- se com uma sacudida do emaranhado inextricável, mas frequentemente também irracional, de uso e costumes.”221
Passa a ser comum se identificar a afirmação de que o costume
217 “Todos los seres humanos nacen libres e iguales en dignidad y derechos y, dotados como están de razón y conciencia, deben comportarse fraternalmente los unos con los otros”. UN. La Asamblea General. Declaración Universal de Derechos Humanos. Disponível em: <xxxx://xxx.xx. org/es/documents/udhr/>. Acesso em: 19 de outubro de 2011.
218 A expressão é utilizada entre aspas por conta da inexistência, na época, da figura do Estado moderno.
219 XXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 740.
220 Ibidem, p. 749.
221 XXXXXX, Xxxxx. Mitologias jurídicas..., p. 45.
é fonte material do Direito, mas, ao mesmo tempo, ter-lhe negado o caráter formal de produção normativa222. Em outros termos, apesar de fonte, não seria dotado de obrigatoriedade. Alternativamente, quando se reconhece sua obrigatoriedade, seu papel é de segunda ordem, limitando- se a completar, especificar ou preencher lacunas do ordenamento223. Há mesmo aqueles que o reconhecem como fonte formal, mas sua incerteza é tão inconveniente que o faz recuar diante da lei224.
Tal opção, deliberada ou não, afastaria, segundo MIAILLE, a compreensão concomitante dos
factores que influenciam uma legislação, estudo que de algum modo viria dar algum relevo sociológico a uma descrição positivista das fontes do direito. Seria preciso, pelo contrário, que forma e conteúdo sejam simultaneamente abarcados na mesma explicação.225
A explicação que o autor encontra é o modo de produção econômico226. Adverte HESPANHA que tradicionalmente se trabalha com a impressão de que as fontes são sistematizadas, “proposições jurídicas de carácter genérico e abstracto, não [se] reconhecendo que o direito se possa manifestar, gota-a-gota, em soluções concretas e casuísticas”227.
Assim, a depender do modelo econômico dominante ou do modelo organizacional concebido como paradigma, o costume seria ou não fonte normativa.
XXXXXX explica, ainda, por exemplo, que em ordenamentos modernos o costume acaba recebendo tratamento de fonte delegada, e isto
222 XXXXXX, Xxxxx. Dos estudios sobre la costumbre. México: Fontamara, 2000, p. 115.
223 XXXXX, Xxxxxx. Fontes e modelos..., p. 68. 224 XXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Op. cit., p. 62-63. 225 XXXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 197.
226 Ibidem, p. 208.
227 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. O caleidoscópio do Direito: o Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007, p. 439.
representaria não só uma forma de complementar o ordenamento como reconhecimento de autorização aos particulares de produzir, através de comportamento uniforme, normas jurídicas228. Esta argumentação teria condão não só de explicar o costume contratual, mas também o costume internacional229. De alguma forma, no entanto, esta explicação retira do costume seu poder normativo para atribuí-la à autonomia reconhecida ao indivíduo (autonomia privada). Em outros termos, ao Ordenamento jurídico, bastaria a afirmação da autonomia privada, secundado pelo costume para fins interpretativos apenas. Em alguma medida, então, o costume poderia se confundir com a liberdade contratual.
XXXXXX, no entanto, questiona a conclusão geral de que o Direito teria como referência necessária o aparato estatal. Dentro de sua lógica argumentativa, o papel do Direito é ordenativo, ou seja, organizar as vontades, colocando limites nelas230. Perceba-se que há visível deslocamento da produção normativa de um polo a outro. O autor, entretanto, identifica justamente o contrário: o monismo “totalizante” que exige nada mais que a conduta “obsequiosamente legalista, sempre secundum legem”.231 Trata-se de um discurso de poder, excludente do pluralismo a que estaria vocacionado o Direito. Convém, assim, constatar a existência desse “pluralismo”.
3.1.1 O costume na formação do Direito europeu contemporâneo
Quando se fala do papel jurídico atribuído aos costumes, não é incomum que se apresente digressão histórica informando sua importância na Antiguidade232. Algumas vezes esta apresentação vem acompanhada
228 XXXXXX, Xxxxxxxx. Teoria geral..., p. 191.
229 XXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 56-69.
230 XXXXXX, Xxxxx. Primeira lição..., p. 11-13.
231 Ibidem, p. 30.
232 XXXXXXXXXXXX, Xxxxx. Coutume. In: Archives de Philosophie Du Droit, t. 35, Vocabulaire Fondamen- tal du Droit, 1990, p. 27-41.
da explicação de que isto se devia ao fato de que a “forma primitiva de agrupamento social não permitia a presença de leis escritas.”233
Já em um primeiro momento o costume se apresenta, então, em oposição à lei que, porque escrita e resultado de um procedimento previamente definido, é mais “desenvolvida”234. Assim, faz sentido o discurso que enfatiza o costume como fonte histórica do Direito ocidental. Mais uma vez seu papel como “antiguidade” é enfatizado. O costume seria fruto da tradição, forma simples de manutenção dos papéis sociais e de controle social pela imitação235. E o discurso se completa: é usual a referência ao Direito romano clássico236 como exemplo de aceitação da figura, especialmente na formação do jus gentium ou no regulamento das províncias, em que coexistia com as determinações imperiais237. O colapso político do Império teria permitido que o Direito romano clássico convivesse238, durante certo tempo, com o Direito germânico239,
233 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx. Algumas reflexões sobre os costumes In: Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, n. 76. São Paulo: RT, abr./jun. 1996, p. 45. No mesmo sentido: XXXXXX, Xxxxx
G. Os grandes sistemas jurídicos: introdução aos sistemas jurídicos europeus e extra-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 347; XXXXXXX, Xxxxxxxx. Direito e sistemas sociais: a jurisprudência e a criação de direito para além da lei. Florianópolis. UFSC, 1988, p. 94 e XXXXXXXX, Xxxxxx. Algumas considerações sobre o conceito his- tórico do costume. In: Revista da Ajuris: doutrina e jurisprudência. set. 1999, p. 383. XXXXXX chega mesmo a fazer a analogia entre as sociedades primitivas e o Direito internacional em que a ausência de um legislador força que os interessados editem as regras que regularão suas relações. XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx. Contratos internacionais de comércio: alguns aspectos normativos da compra e venda internacional. In: XXXXXX, Xxxxxx Xxxx. (Coord.). Contratos nominados: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 163.
234 “Os usos constituem um modo de normalização das relações económicas menos ‘moderno’ que a lei, tendendo a ser substituídos por esta nos ordenamentos contemporâneos. Daí porque a sua importância seja maior nos sectores mais atrasados da economia”. XXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 189.
235 XXXXXX, Xxxxx X. Op. cit., p. 321.
236 Segundo XXXXXXX não é antes do período imperial que os romanos farão referência ao Direito consue- tudinário já que “as pessoas tinham se tornado cidadãos romanos, mas nem ao menos formalmente tinham aceitado o direito romano e os costumes romanos. Antes como depois viviam segundo seu direito e sua tradi- ção”. XXXXXXX, Xxxxx. Fundamentos da Sociologia do Direito. Brasília: UNB, 1986, p. 337.
237 XXXXXXX, Xxxxxxxx. História do Direito português. 4. ed. Lisboa: Verbo, 2000, p. 83; 85-86.
238 Explica Caetano que “ficou inicialmente vigorando o sistema de personalidade do Direito: para se saber, num tribunal, qual a lei aplicável ao caso em julgamento, era preciso começar por perguntar às partes qual o grupo social e jurídico a que pertenciam, isto é, sob que lei viviam”. Ibidem, p.100.
239 O Direito das diferentes etnias germânicas era essencialmente consuetudinário, seus traços, contudo, são de difícil estudo vez que não foram reduzidos a escrito. Suas fontes básicas são literárias, costumes redigidos posteriores ao período das “invasões” e os costumes escandinavos. Estes últimos foram conservados dada a redação tardia (no século XI) dos costumes ditados por alguns anciões de aldeias. XXXXXXXX, Xxxx. Introdução histórica ao Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p. 162-165.
fortemente marcado pelo costume240, dada justamente a ausência de qualquer aparato estatal que impusesse um ou outro. A imagem é clara: a existência da burocracia estatal é sinônimo de modernidade e racionalidade. Sua ausência representaria o caos normativo, a selvageria.
Em primeiro lugar, deve se ter em mente que esta construção é uma forma de propaganda241. Propõe-se a apresentar qualquer outra estrutura social, não organizada sob a forma estatal, com cores francamente desfavoráveis. Além disso, a estrutura proposta é a pensada em termos ocidentais, excluindo, por exemplo, toda forma de estruturação política tradicional oriental. Em suma, o único modelo político aceitável, adequado à “Razão”, é aquele estruturado em torno de uma ideia surgida de um movimento político-filosófico europeu que enxerga no Estado a capacidade de substituição de um sistema de classes e sua abertura à livre iniciativa.
Como toda peça de propaganda, as cores do opositor precisam ser exageradas para sua perfeita identificação. Como salienta FITZPATRICK, “o costume foi reduzido a uma categoria periférica contraposta à lei mediante sua associação com o selvagem e com aqueles resquícios de menor expressão de um passado recalcitrante, ainda a serem transformados pela modernidade.”242
Não são à toa, portanto, os relatos dos viajantes e os bárbaros e fantásticos usos que encontram entre os “selvagens”243. Neste aspecto, os costumes daqueles que são “encontrados” são sempre objeto de curiosidade244, pois bucólicos245, se não absurdos246, e primevos.
240 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução Histórica ao Direito privado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 24.
241 Entendida como promoção de um conjunto de ideias.
242 XXXXXXXXXXX, Xxxxx. A mitologia na lei moderna. São Leopoldo: UNISINOS, 2005, p. 91.
243 O termo é referência ao célebre relato de Xxxx Xxxxxx sobre o seu cativeiro “entre os selvagens do Brasil”. Como se sabe, o autor esteve embarcado em navio mercante português que soçobrou na costa brasileira, tendo sido acolhido em Bertio- ga e acabando por ser capturado pelos Tupinambás que pretendiam devorá-lo em uma de suas cerimônias ritualísticas de celebração guerreira. Por fim comenta: “Eu de mim me dôo mais que vós desta miséria, porque sou de uma terra estranha e desafeito aos horrores desta gente; mas vós, que aqui nascestes e fostes criados, não vos deveis espantar do costume da terra”. XXXXXX, Xxxx. Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil. Curitiba: Fundação Cultural, 1995, p. 120.
244 Por exemplo: XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Recife: Fundação Xxxxxxx Xxxxxx, 2000. 245 Xxxxxx por influência do mito do bom selvagem. Por exemplo: XXXX, Xxxx xx. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980, p. 229-243.
246 Por exemplo: XXXXXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxx. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Senado Federal: 2008, p. 133-138.
Por outro lado, tais costumes, segundo XXXXX, podem ser comparados ao sistema positivo moderno, vez que se prestam a regular a ordem social, de acordo com suas condições e necessidades econômicas e impondo sanções em caso de descumprimento dos mandamentos. Em outros termos, são corpos de normas distintos dos meramente religiosos ou ritualísticos247.
Também se esquece de que o Direito moderno ocidental é fruto de longo processo construtivo, iniciado em plena idade média, em que, ao mesmo tempo, conviviam o regionalismo (costumes) e o cosmopolitismo (Direito romano e canônico). Em outros termos, também o Direito moderno tem, em seus genes, a “irracionalidade” que tanto nega.
Como salienta GROSSI, o Direito consuetudinário delineia-se a partir dos fatos, experiências compartilhadas pela população em dado território, portanto plural em fontes e vivo em produção. A produção jurídica culta (universitária) apropriar-se-á também deste material e o associará às elaborações romanas e canônicas permitindo a convivência do ius propria (direito local, autônomo) e do ius commune248. É este o “Direito comum” que transcenderá fronteiras, mas que encontrará na necessidade de afirmação de uma monarquia nacional soberana sua oposição. É apenas quando a afirmação do poder soberano de um monarca centralizador se faz necessário que ius commune é substituído por um Direito nacional249.
Além disso, o papel outorgado aos costumes variou de acordo com a região e a respectiva tradição250. Também se deve destacar que o Code Civil, monumento legislativo da modernidade, teve entre suas fontes, os costumes franceses pré-revolucionários251, especialmente
247 XXXXX, Xxxxxx. A idéia de lei. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 292-295.
248 XXXXXX, Xxxxx. Primeira lição..., p. 44-45.
249 XXXXXX, Xxxxx. O Direito entre Poder e Ordenamento. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 66.
250 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 02-03; 25.
251 XXXXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Histoire des Droits en Europe: de 1750 à nos jours. Paris: Éditions Flammarion, 2006, p. 70.
em matéria privada sob a qual nem o rei tinha poder de disposição252, embora posteriormente relegados a papel marginal253. Além disso, o Code representou uma transformação bastante violenta e sua assimilação foi lenta, especialmente em razão das mudanças políticas sofridas pela sociedade francesa254. Em resumo, o ordenamento jurídico pré-oitocentista era plural255.
Assim como em território franco256, na península ibérica, por exemplo, a administração visigótica, paulatinamente, iniciaria a codificação (ou compilação de costumes257) dos diferentes textos normativos de modo a organizar a administração da justiça. Neste período destacaram-se a lex romana wisigothorum (aplicável aos súditos romanos), o Codex Euricianus revisus (tentativa de unificação do tratamento jurídico dispensado aos diferentes súditos) e o Código Visigótico (que revogou as leis romanas, reconheceu alguns costumes e proibiu e baniu todos os demais)258. De qualquer forma, desde os períodos anteriores à incorporação da península à condição de província romana até o momento em que se consolidam as monarquias ibéricas, o Direito costumeiro vige plenamente259.
Embora se perceba a crescente importância atribuída à lei, esta ainda seria pouco sentida nas relações entre os particulares que insistiam em manter os costumes, mesmo que banidos260 ou provenientes da ocupação islâmica ou, ainda, de fontes estrangeiras durante a Reconquista261.
252 XXXXXX, Xxxxx. De la codificación a la globalización del derecho. Pamplona: Aranzadi, 2010, p. 70.
253 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 8; 12.
254 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Le code civil, fin de la coutume? A propos d´un anonyme toulousain. In: XXXXXX, Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Coutumes, doctrine et droit savant. Paris: LGDJ, 2007, p. 223-250.
255 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Justiça e Litigiosidade: história e perspectiva. Lisboa: Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, 1993, p.13.
256 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 30.
257 LE XXXX, Xxxxxxx. As raízes medievais da Europa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 48.
258 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 102-107.
259 MIRANDA, Pontes de. Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 29-30.
260 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 106.
261 Ibidem, p. 232-233.
Antes da formação do Estado moderno, portanto, é o costume a principal fonte do Direito privado262 ocidental. No caso lusitano, por exemplo, é a consolidação do poder monárquico que assegura a adoção de um sistema monista263 de fontes. Advirta-se, contudo, que este processo não foi abrupto, a centralização legislativa nas mãos do governo central português enfrentou oposição local e foi construída por meio da edição de leis e, posteriormente, consolidações (Ordenações)264. Mesmo no início desse processo, D. Xxxxxx XXX viu-se obrigado a respeitá-los, ainda que paulatinamente se admitisse ao rei o poder de apreciá-los, afastando os costumes negativos265.
LE GOFF, explicando as estruturas mentais da sociedade medieval, salienta a importância da autoridade, precedente e tradição, motivo pelo qual o costume ganha relevância como norma jurídica. Destaca, contudo, a necessidade de que seja prática reiterada imemorial e serena, não contestada266. Neste sentido, DUBY esclarece, ainda que se refira ao direito sucessório, a importância pré-moderna do costume: “Nessa época o costume sustenta a ordem do mundo. Ele é como que sagrado, indestrutível.”267
Mas, então, qual foi a fundamental alteração do pensamento ocidental que o tornou “profano”?
A explicação parece residir em seu fundamento. Segundo SENN, para a doutrina romana clássica, o fundamento da obrigatoriedade dos costumes repousaria na sua origem natural, sua aprovação geral e no fato de se aplicarem aos habitantes da cidade (mores) e, ao final da República, a todos os homens. Acrescentava, ainda, que para que
262 Embora se reconheça que a vetusta distinção entre Direito privado e público não tenha mais seu significa- do original, serve ela para fins didáticos e de limitação de complexidade. Neste sentido vide: XXXXXX, Norber- to. Estado, Governo, Sociedade: para uma teoria geral da política, 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.13-31.
263 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 37.
264 ibidem, p. 37-41.
265 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Op. cit., p. 64-65.
266 LE XXXX, Xxxxxxx. La civilisation de l´Occident médiéval. Paris: Éditions Flammarion, 2008, p. 301-302.
267 XXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 17.
fosse considerado costume, indispensável que fosse bom e necessário (recta e ratio). Este conceito, contudo, não ficaria intacto com o passar dos anos, salientava o autor268, já que, paulatinamente, a concepção de que o costume é baseado no consentimento do povo cede espaço para a individualização da atribuição legislativa, seja para órgãos imperiais, canônicos ou monárquicos269.
Ao final do chamado período medieval, a tendência de apropriação do corpo normativo pelas instituições canônicas resultou em um maior controle da “força da normatividade espontânea”270, seja por sua conciliação com o fundamento da doutrina religiosa, seja por sua conformação com o Direito do príncipe271.
Embora não se possa falar, ainda, em formação do Estado nacional, já se apresenta como imperativo político a consolidação de uma “lei” para um povo. Tratava-se do papel unificador da codificação que é percebido pelos reis visigóticos e pelos soberanos ibéricos a partir do século XIII. Lentamente, busca-se a imposição da supremacia da lei, até mesmo abolindo os costumes “maus”, atentatórios ao “Direito de Deus” e ao “Direito natural” e confirmando, apenas, os “bons” costumes272. Esta tendência é sentida, por exemplo, nas Ordenações Afonsinas quando elogiam as leis gerais das quais nem o rei se escusaria273 (e de certa forma é a tendência do Direito português274).
XXXXXX explica que, conforme a concepção feudal de monarquia entra em declínio, as autoridades que iniciam o processo de consolidação do poder dos Estados percebem que o sustentáculo político
268 XXXX, X. La leçon de la Rome antique sur Le fondement de la force obligatoire de la coutume. In: XXX- XXXX, Xxxxxxx. Introduction a l´étude du Droit comparé. Paris: Sirey, 1938, p. 218-226.
269 PINTOR, Xxxxxxxx Xxxxxx. Reflexions au sujet de la coutume en droit interne. In: XXXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 375-376.
270 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Op. cit., p. 49.
271 Idem.
272 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 352-353.
273 Ibidem, p. 537.
274 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 61.
desta nova sociedade será a assunção da plena soberania por meio do “diálogo” que manterá com todos os estratos sociais. Esta compreensão traz, ao mesmo tempo, deveres ao Estado – daí as crescentes necessidades orçamentárias, militares, etc. - mas igualmente a crescente centralização de poder275. Este processo variou no tempo e no espaço, mas duas tendências parecem ter sido seguidas: o financiamento burguês de “um braço armado” leal ao monarca centralizador e o recurso ao Direito romano como instrumento de afirmação de autoridade.
Os estudos do Direito imperial romano são retomados a partir da idade média e, progressivamente, passam a ser recepcionados como fonte do Direito privado nos diferentes Reinos. Mas não se trata, por certo, do mesmo Direito romano de outrora, mas daquele refratado pelas lentes canônicas276.
Os legisladores restauraram os princípios e as norma romanas, ali onde a tradição permitia e até onde as circunstâncias o aconselhavam, introduzindo-os sutilmente nos documentos das chancelarias ou dos corpos colegiados, glosando-os nas alegações por escrito ou aplicando, simplesmente, o seu espírito aos conselhos oferecidos ao rei. Se a sua irrupção, desde o século XII, havia sido franca e ostensiva, seus progressos foram depois mais lentos e difíceis. O sistema consuetudinário que havia elaborado a sociedade feudal e que, em princípio, enriqueceu as cidades que lutavam por suas liberdades, tinha outra origem e acusava outras tendências. Quando notaram as implicações do direito romano, as classes feudais resistiram a ele, enquanto as burguesias discriminaram nele o que lhes convinha e o que as ameaçava. Sem dúvida, estas últimas o resgataram naquilo que se relacionava com o patrimônio, visto que aspiravam restabelecer o direito de propriedade fundado na noção romana de domínio.277
Esta recepção, inicialmente, se concentra no sul da Europa, já que durante o século XVI vários são os trabalhos de compilação
275 XXXXXX, Xxxx Xxxx. Crise e ordem no Mundo Feudoburguês. São Paulo: Palíndromo, 2005, p. 233-243.
276 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 139-140.
277 XXXXXX, Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 244-245.
dos costumes levados a cabo na França central (pays de coutumes), atual Bélgica, Suíça, países da península escandinava, Alemanha e Espanha. Trata-se do processo de transformação do costume em lei278, acompanhada da dessacralização do tradicional e racionalização dos métodos intelectuais279. De certa forma, então, há um duplo movimento de acomodação política: a romanização e a compilação e homologação do costume.
A compilação e homologação dos costumes, segundo CAENEGEM, se dá como transição entre o sistema feudal e o modelo legislativo do período posterior280. Também foi esta a oportunidade de reduzir a incerteza de certas práticas costumeiras, modificando seu conteúdo e reduzindo sua fórmula à escrita mais próxima do Direito romano281.
Destaque deve ser dado, neste processo, à escrita. Ela não só serviu como instrumento de consolidação e generalização da lei, mas prestou-se, no caso dos costumes, a divorciá-los da realidade282. A concepção codificadora não se apresentava apenas como uma solução momentânea e local, mas universalizante e permanente, indiferente à realidade e experiência, artificial e imobilizadora283. Além disso, neste processo de seleção dos costumes, alguns deles são deixados de lado, outros aprovados, interpretados, precisados284 e, mais alguns, criados285.
278 XXXXXXXX, Xxxx-Xxxxx. Op. cit., p. 20-21.
279 LE XXXX, Xxxxxxx. La civilisation .., p. 316-317.
280 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 52.
281 XXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 274-282.
282 Segundo ASSIER-ANDRIEU é a escrita que permite a decomposição do texto, a extração de uma diver- sidade de significados, assegurando-lhe sobrevida, independentemente do contexto em que a norma estava inserida e do movimento social (ASSIER-ANDRIEU, Xxxxx. Op. cit., p. 23-25). Além disso, a escrita permite, segundo XXXXXXX, o distanciamento tempo-espaço, criando a perspectiva de passado, presente e futuro, contribuindo para a noção de tradição e de antigo. XXXXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 44-45.
283 XXXXXX, Xxxxx. História da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro: Xxxxxxx, 0000, p. 88-89; 98-99. 284 XXXXXXXX, Xxxxxxx. La rédaction des coutumes et les droits seigneuriaux: nommer, classer, exclure. In: Annales. Histoire, Sciences Sociales, a. 52, n. 5, 1997, p.1032.
285 XXXXXX-XXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., 2000, p. 32-33.
Tudo isso sob a perspectiva de buscar legitimação de um novo poder em uma antiga tradição286.
Neste aspecto fica evidente o interesse político de centralização de produção jurídica, de forma clara, completa e unitária287. Em certo sentido, este é um movimento que prenuncia a “ultrapassagem do racionalismo medieval para o voluntarismo”288 moderno. É a criação da “abstração” do Estado, afastando os indivíduos do exercício da soberania289.
apaisagemjurídicadamodernidadeésimples,xxxxx,simplicíssima. Com o imediato esclarecimento de que a simplicidade é fruto de uma drástica redução, que a complexidade própria a toda ordem jurídica foi obrigada a contrair-se em um cenário onde atores são unicamente os sujeitos individuais: de um lado, o macro- sujeito político, de outro, o micro-sujeito privado.290
A ordem moderna não convive com instâncias intermediárias de poder. Para tanto exige uma construção simples (lastreada na separação do Estado e do indivíduo proprietário) e racional (alheia aos grilhões feudais e lastreada em argumentação científica291). Surge a justificativa de que o Direito tradicional não era mais “adequado” àquela sociedade que surge das brumas feudais. Era necessário um Direito “erudito”292, geral e baseado na razão293. O paradigma estadualista não valoriza o pluralismo, associando o à ideia de ignorância, abuso, corruptela, em
286 Idem.
287 XXXXXXXX, X. X. xxx. Op. cit., p. 18-19.
288 XXXXXX, Xxxxx. Para além do subjetivismo jurídico moderno. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; SEE- LAENDER, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx (Orgs.). História do Direito em perspectiva: do antigo regime à moderni- dade. Curitiba: Juruá, 2008, p. 19.
289 XXXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxx. Figuras do Estado Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 32.
290 XXXXXX, Xxxxx. Para além..., p. 24.
291 NUSDEO, Fábio. Fundamentos para uma codificação do Direito econômico. São Paulo: XX, 0000, p. 10-11.
292 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 47-50.
293 XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 386.
suma, dando-lhe “imagem francamente distorcida”294.
Outro ponto importante é que o pluralismo feudal trazia, principalmente para o território francês, grande complexidade de organização judiciária, levando-se em conta as diferentes jurisdições e os diferentes “tipos” de direitos e privilégios envolvidos. XXXXXXX, por exemplo, cita cinco distintas jurisdições a depender do sujeito envolvido e quatro a depender dos bens objetos da demanda295. Ao lado disso, a estrutura jurídica social dificultava a circulação de terras e com ela, a possibilidade de participação e ascensão política296.
Segundo HESPANHA o processo de centralização do poder retira do sistema feudal seu fundamento ideológico. Uma das consequências disso é a apropriação pela autoridade central das competências (políticas, jurisdicionais, etc.) dos órgãos periféricos297. Em termos de produção normativa, isso quer dizer que o Estado (em última análise a sua formação estaria em curso) passa a exigir a “plenitude de sua vigência”298. Em outros termos, o particularismo e o primado do Direito comum e do costume local cedem espaço para a primazia da lei (sistemática e una).
A construção se completaria com a formação de um ordenamento particularista (normas especiais prevalecendo sobre gerais), tradicionalista (construído sobre a noção de um Direito encontrado racionalmente e, portanto não histórico) e com caráter doutrinário (construído por juristas e, portanto, alheio às condições locais)299.
Esta racionalidade estaria também lastreada na lógica liberal de
294 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. As vésperas do Leviathan: Instituições e Poder político em Portugal no século XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 441.
295 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Storia della Cultura Giuridica Moderna: assolutismo e codificazione del diritto. Bo- logna: Xxxxxx, 1996, p. 75-80. Neste mesmo sentido, sobre a adoção do direito romano no direito germânico: XXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 115.
296 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 83-84.
297 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime. In: . (Org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime: colectânea de textos. Lisboa: Fundação Xxxxxxxx Xxxxxxxxxx, 0000, x. 00-00.
000 XXXXXXXX, Antonio Manuel. Para uma teoria..., p. 64.
299 Ibidem, p. 84-85.
Xxxxxxx segundo a qual a busca do interesse pessoal individual conduziria ao bem estar de todos. XXXXXX adverte que essa racionalidade, pelo menos em termos econômicos, seria direcionada à produção de bens voltados a satisfação, sem qualquer tipo de julgamento social sobre esta última escolha.300 Para operar este esquema, indispensável, portanto, a liberdade (de escolha e de iniciativa). Tratava-se, entretanto, de construção artificial especialmente porque ao lado desta centralização trava-se outra batalha: a definição do espaço de poder do Estado.
É neste momento em que se arranjam as esferas públicas e privadas da vida social. Reconhece-se, por exemplo, o contrato como limite ao poder soberano301, ao mesmo tempo em que se reconhece seu papel de garantia (da propriedade privada, por exemplo). O contrato, contudo, adquire contornos econômicos. É, assim que se passa a instrumentalizar a proteção, em face do Estado, daquela parcela social que detém patrimônio.
Mesmo, contudo, neste período, o costume não é de todo abandonado302. Embora os instrumentos jurídicos estejam se voltando à consecução dos interesses econômicos burgueses, uma série de instituições feudais são mantidas303. Segundo MIAILLE a própria codificação napoleônica não seria mais que fruto de longo processo de centralização, uniformização e formalização de um Direito de mesma natureza que o costumeiro304. Processo esse iniciado com as compilações de costumes ainda sob o Antigo Regime305, conforme se fortalecem os respectivos reis franceses e se desenvolve o Estado absoluto306.
300 NUSDEO, Fábio. Op. cit., p. 08-09.
301 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A função do direito privado e da propriedade como limite do poder de Esta- do. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. (Org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime: colectânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 233-234.
302 XXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 240, 248.
303 XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Op. cit., p. 235.
304 XXXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 203.
305 XXXXXXXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 37; XXXXXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 17.
306 XXXXXX, Xxxxxxxx. Les sources du droit: le déplacement d’un pôle à un autre. In: Revue Trimestrielle du
Já segundo XXXXXXXX, os costumes e tradições foram, nesta época, no máximo, tolerados, pois não teriam apresentado verdadeiro desafio à ideologia e à produção econômica, embora criticados por representarem gastos desnecessários307.
Por pressões econômicas (e possibilidade de ganho) abre- se, assim, a oportunidade de choque: de um lado a invocação de usos imemoriais e de outro a delimitação fundiária308. Isto tudo em um momento em que se consolidava a ideia de propriedade e os direitos de uso passavam pelo processo de reificação e circulação (venda, arrendamento ou legado)309.
Neste aspecto, XXXXXXXX, referindo-se à sociedade inglesa, entende que a noção de costume era particularmente cogente até o século XVIII e explica seu papel a partir da ideia de legitimação310. Salienta o autor, que o costume, como Direito costumeiro, “adquiria a cor de um privilégio ou direito”311. Essa construção era intimamente associada aos ofícios e aos privilégios agrários e, embora apresentasse certos traços conservadores, não justificava sua aplicação em uma explicação racional312 e nem estava sujeita ao controle governamental 313. Xxxxxxx, em seus termos, certa rebeldia paradoxal de uma sociedade tradicional.
A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às racionalizações e inovações da economia (tais como os cerca mento, a disciplina de trabalho, os ‘livres mercados não regulamentados de cereais) que os governantes, os comerciantes ou os
Droit Civil, v. 2, abr./jun. 1996, p. 303.
307 XXXXXXXX, Xxxx. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Xxxx; RANGER, Xxxxxxx. (Orgs.). A invenção das tradições. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 17.
308 XXXXXXXX, X. X. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p. 105-118.
309 Ibidem, p. 112.
310 Ibidem, p. 14.
311 Ibidem, p. 15.
312 Assim, por exemplo, os anátemas e maldições apostas aos infratores deste Direito comum. Ibidem, p. 88.
313 Ibidem, p. 19.
empregadores querem impor. A inovação é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processo tecnológico/ social neutro e sem normas (‘modernização’, ‘racionalização’), mas sim a inovação do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma forma de exploração, a expropriação de direitos de uso costumeiros, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer. Por isso a cultura popular é rebelde, mas o é em defesa dos costumes.314
Esta defesa, contudo, se dá com a inovação de regras “paternalistas de uma sociedade mais autoritária”315, escolhidas de acordo com a conveniência atual. O costume apresenta-se, então, como insegurança e aproveitamento.
XXXXX, por exemplo, explica que neste período de transição entre a Idade Média e a Modernidade a própria condição de validade de uma norma se assentava em sua efetividade316. Aqui talvez houvesse, ainda, uma aproximação entre o costume e a legislação. Por outro lado a organização das forças produtivas em torno de “organizações corporativas” cria a pretensão de autogoverno317.
O esforço moderno se traduziria, então, em desvincular a eficácia da lei de sua efetividade: (i) em um primeiro momento os tribunais deixam de exigir a comprovação de sua observância; (ii) em seguida, deixam de exigir a comprovação do conhecimento de seu conteúdo e (iii) finalmente, aceitam a presunção de que a lei é eficaz desde que tenha sido regularmente publicada318.
Assim, por exemplo, enquanto as primeiras tentativas da
314 Idem.
315 Idem.
316 XXXXX, Xxxxxx. Da validade “usual” para a validade formal: a mudança dos pressupostos de validade da lei até o Século XIX. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx. (Orgs.). Op. cit., p. 110.
317 XXXXXXX, Xxxxxxxxxx. Sociedade “de estados”, “de ordens” ou corporativa. In: HESPANHA, Xxxxxxx Xx- xxxx. (Org.). Op. cit., p. 146.
318 XXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 111-117.
monarquia francesa de unificação e codificação civil (início do século
XVIII) enfrentaram dificuldades com o enraizamento dos costumes e dos poderes locais319, a centralização política e os “ideais” revolucionários garantiram “o monopólio do estatuto como fonte de direito”320.
O distanciamento do costume do seio do regramento da sociedade moderna se dá, inicialmente, a partir de imperativos econômicos321 (até mesmo como forma de unificação comercial322) e, em alguns casos, oinstrumento adotado é a criminalização323. Assim, quando o Estado passa a agir como “mercador” também passa a determinar as regras do jogo, unificando as fontes de Direito civil e de Direito comercial324.
Em um primeiro momento pode-se destacar a contribuição da educação formal para este fenômeno, já que, por exemplo, até o final do século XIII, não havia ensino jurídico em Portugal e a Justiça era administrada localmente, por juízes eleitos e, normalmente, analfabetos325. Além disso, há significa distinção no exercício do poder. Como HESPANHA salienta, anteriormente à modernidade, não havia oposição
319 CAENEGEM, R. C. van. Op. cit., p. 131.
320 Ibidem, p. 182.
321 “O conceito de propriedade rural exclusiva, como uma norma, a que outras práticas devem se adaptar, es- tava então se estendendo por todo o globo, como uma moeda que reduzia todas as coisas a um valor comum”. XXXXXXXX, X. X. Op. cit., p. 134.
322 XXXXXXX, Xxxxxx. Op. cit., p. 212.
323 A chamada Lei Negra, por exemplo, foi decretada na Inglaterra em 1723 e criminalizou diversas condutas praticadas nas chamadas Florestas reais (entre elas a caça e pesca). O ponto de destaque é que esta legislação se chocaria com o que parcela da população local entendia como sendo seu Direito costumeiro. Sobre suas con- seqüências, XXXXXXXX explica que “A única generalização que se pode fazer com segurança é a de que a Lei se manteve disponível no arsenal dos processos judiciais. Quando um delito parecia ter agravantes especiais, quando o Estado queria dar um exemplo de terror, ou quando um demandante particular era especialmente vingativo, a acusação seria formulada de modo a fazer o delito incorrer dentro da Lei”. XXXXXXXX, X. X. Senhores & Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 333-334. O autor enxerga nela o instrumento do domínio de uma classe (p. 350). Por outro lado, ao passar dos séculos nota o autor que seu papel é contradi- tório: se assegura a dominação e impõem-se novos valores (propriedade, igualdade, liberdade, etc.) também criam-se freios ao seu exercício, restringindo o exercício direto de meios de controle (tortura, prisão arbitrária, etc.) e excessos (p. 356).
324 XXXXXX, Xxxxx X. Op. cit., p. 61-63.
325 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 231. Embora os juízes fossem oficiais régios e as Ordenações os obrigas- sem a aplicar o Direito régio, não havia exigência que fossem instruídos no Direito escrito, nem mesmo que soubessem ler ou escrever. É apenas em 1642 que se proíbe o acesso de analfabetos às magistraturas ordinárias. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. As vésperas..., p. 451-452.
entre interesse público e particular (ou entre Estado e sociedade civil). Na verdade o poder político medieval era exercido de modo a assegurar os interesses privados, até mesmo por conta de sua estruturação em torno de uma pluralidade de senhores que englobavam poderes políticos e econômicos326. A esta lógica se opõe o exercício do poder político moderno que, diante da figura do Estado, é capaz de criar a preferência do interesse público e sua oposição ao interesse particular327.
O processo de centralização do poder é lento, daí porque nem sempre o Direito tradicional e o oficial entram em choque, mas convivem e se toleram. É o aumento do prestígio político do poder monárquico, o crescimento demográfico e o enfraquecimento da solidariedade social que reforçariam a substituição de paradigmas328.
É importante lembrar, ainda, a conveniência da certeza da lei. Os juristas modernos “desconfiam” da “insegurança” do costume. Esta lógica comparava a memória à certeza imutável dos documentos329. Mas, XXXXX, ainda que se refira às fontes históricas, salienta: também os arquivos oficiais poderiam ser pouco confiáveis, a depender das escolhas políticas feitas ou mesmo do intuito visado com a interpretação dos rituais realizados330. No mesmo sentido pode-se colher a opinião de HESPANHA que, comentando a redação dos Códigos modernos, especialmente o civil português de 1867, adverte que no embate entre juristas e legisladores sobre a criação do Direito, os próprios Códigos deixavam espaço para a
326 SCHIERA, Pierangelo. Op. cit., p. 148-149.
327 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. Para uma teoria..., p. 29-30.
328 “Grandeza populacional, sobretudo se acompanhada de uma elevada taxa de urbanização, ‘abertura’ da economia e instalação de um aparelho administrativo oficial e letrado, tais parecem ser os fatores decisivos para desarticulação do mundo político-administrativo não oficial e para a conseqüente promoção do direito e administração oficiais. O recurso á justiça oficial progride, assim, nas zonas populosas e de características urbanas, dotadas de uma economia mais aberta e mercantilizada e servidas por aparelho administrativo mo- derno, nomeadamente, por justiças letradas”. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. As vésperas..., p. 468.
000 XXXXX, Xxxx. História oral. In: XXXXX, Xxxxx. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 188.
330 XXX, Xxxxxxxx. Ritual and interpretation: the early medieval case. In: Early Medieval Europe Journal, v. 9, a. 2, Oxford: Blackwell, jul. 2000, p. 186; 194-195.
atuação final daqueles331 que o controlavam, quando necessário, por meio de mecanismos próprios (erro sobre direito, por exemplo, que permitia excluir a aplicação da lei pelo desconhecimento332).
Também a lei se prestaria a extinguir as antigas iniquidades existentes entre as pessoas. A lógica da igualdade formal asseguraria que todos estivessem sujeitos às mesmas condições legais. Assim, de um lado, extinguiam-se os privilégios de estamentos; por outro, contudo, abstraía-se a condição humana do sujeito, mantendo-se algum tipo de punição ao “socialmente fraco, o pobre, o ignorante, ou seja, para a grande maioria”333.
Aprimeira significativa oposição a este processo de consolidação da lei foi a reação promovida pela Escola Histórica alemã334. Tal corrente doutrinária defendia que o Direito surgiria do costume e seu reconhecimento jurisprudencial. Tratava-se de forte oposição à ideia da codificação, surgida de uma Revolução liberal e universalista, além de franca defesa da aristocracia alemã335. Dentre as outras Escolas merecem destaque os defensores do “direito livre” que ligam o costume aquilo que pode receber tutela jurisdicional336. Também nos Direitos inglês, alemão e francês houve oposição: MAINE, por exemplo, incorporava a perspectiva evolucionista na explicação dos costumes, como por exemplo, o costume do rapto no desenvolvimento da exogamia e a percepção de prole mais saudável entre as sociedades primitivas337. Já EHRLICH338 parte para
331 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. Um poder um pouco mais que simbólico: juristas e legisladores em luta pelo poder de dizer o Direito. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx. (Orgs.). Op. cit., p. 195. 332 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. Prática social, ideologia e direito nos séculos XVII a XIX. In: Separata de
Vértice, n. 340, 341-342. 1972, p. 40.
333 XXXXXX, Xxxxx. Para além..., p. 27.
334 Corrente filosófica que defendia que o Direito deveria ser entendido como resultado de processo de cons- trução histórica, cuja validade dependeria de representar a consciência de um povo. O autor de maior proje- ção desta Escola foi Savigny que cunhou a expressão Volksgeist para explicar aquela representação.
335 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Op. cit., p. 55-56.
336 XXXXXX, Xxxxx X. Op. cit., p. 389.
337 MAINE, H. Sumner. Op. cit., p. 200-202.
338 XXXXXXX, Xxxxx. Op. cit., p. 373 et seq.
a construção do conceito de “Direito Vivo” segundo o qual existiria um Direito dominante na vida, distinto daquele Direito “vigente” nos tribunais e Códigos, que deveria ser aprendido na “observação direta do dia-a-dia” do comércio, dos costumes e usos e também das associações, tanto as legalmente reconhecidas quanto as ignoradas e até ilegais.”339 Enquanto que GENY340criticava a centralização da produção normativa na lei.
Apesar dessas valiosas contribuições doutrinárias, de uma forma geral foi o modelo centrado na legislação, que relega o costume ao segundo plano, punição pelo “pecado original de nascer à margem da vontade do legislador”341, que se apresentou como paradigma do sistema normativo dos países da Civil Law. O modelo tradicional brasileiro, como se demonstrará, é um exemplo disso.
3.1.2 O costume na formação do Direito brasileiro contemporâneo
O Direito brasileiro anterior à codificação era regulado por uma plêiade de fontes na qual se consagrava, expressamente, o costume como fonte do Direito (Ordenações Filipinas342 e Lei de 18 de agosto de 1769
– Lei da Boa Razão). Tal legislação permaneceu em vigor mesmo após a Independência política do país e a proclamação da República343.
Certa tendência, contudo, se verifica desde os trabalhos da Consolidação das leis civis de Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, de Xxxxxx xx Xxxxxx e de Felício dos Santos. Busca-se, a partir de então, organizar o Direito privado na forma de uma codificação, ou seja, sistematizado344. Antes de
339 Ibidem, 1986, p. 378.
340 XXXX, Xxxxxxxx. Méthode d’interpretation et sources em droit privé positif. 2. ed. Paris: R. Xxxxxx & Du- rand-Auzias, 1954. 2t.
341 XXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. Hacia un nuevo paradigma. El orden jurídico de la Ilustración frente al antiguo Derecho. In: XXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx. (Dir.). La Codificación: raíces y prospectiva - la codificación em Amé- rica. Buenos Aires: El Derecho, 2004, p.270.
342 MIRANDA, Pontes de. Op. cit., p. 46.
343 XXXXX, Xxxxxxx. Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 08.
344 Ibidem, p. 11-12.
um Código definitivo dá-se início à tentativa de centralização do poder produtor de normas. Ocorre, contudo, que o Estado Imperial Brasileiro ainda não era capaz de se impor e abarcar todas as regiões do país e, mesmo, todas as classes sociais345.
Assim, por exemplo, o Código Comercial consagrava o costume como regra de interpretação do contrato comercial em geral (art. 130 e 131346) e, incidente e especialmente, no contrato de comissão (art. 169347), no contrato de locação (art. 234348) e seguros marítimos (art. 673349), esta parte ainda em vigor. Além disso, o Regulamento n° 737 de 1850 estabelecia verdadeira hierarquia entre o costume e a fonte legislativa (art. 2º)350. A aplicação de ambas as codificações ficaria a encargo de tribunais comerciais em cuja composição estariam “deputados-comerciantes” conhecedores dos usos comerciais351.
A República recém-nascida não é menos sedenta de centralização e, paulatinamente, o costume cede espaço à legislação. O Código Civil
345 XXXXX, Xxxx Xxxxxxxx xx Xxxx. Costume – redemocratização, pluralismo e novos direitos. In: Revista de Informação legislativa, n. 130. Brasília: Senado Federal, abr./jun. 1996, p. 71.
346 “Art. 130. As palavras dos contratos e convenções mercantis devem inteiramente entender-se segundo o costume e uso recebido no comércio, e pelo mesmo modo e sentido por que os negociantes se costumam explicar, posto que entendidas de outra sorte possam significar coisa diversa”. e “Art. 131. Sendo necessário in- terpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: (...) 4 - o uso e prática geralmente observada no comércio nos casos da mesma natureza, e especialmente o costume do lugar onde o contrato deva ter execução, prevalecerá a qualquer inteligência em contrário que se pretenda dar às palavras;”.
347 “Art. 169. O comissário que se afastar das instruções recebidas, ou na execução do mandato não satisfizer ao que é de estilo e uso do comércio, responderá por perdas e danos ao comitente. Será, porém, justificável o acesso da confissão: (...) 2 - não admitindo demora a operação cometida, ou podendo resultar dano de sua expedição, uma vez que o comissário tenha obrado segundo o costume geralmente praticado no comércio;”
348 “Art. 234. Concluída a obra na conformidade do ajuste, ou, não o havendo, na forma do costume geral, o que a encomendou é obrigado a recebê-la; se, porém, a obra não tiver na forma do contrato, plano dado, ou costume geral, poderá enjeitá-la ou exigir que se faça abatimento no preço”.
349 “Art. 673 - Suscitando-se dúvida sobre a inteligência de alguma ou algumas das condições e cláusulas da apólice, a sua decisão será determinada pelas regras seguintes: (...) 3 - o costume geral, observado em casos idênticos na praça onde se celebrou o contrato, prevalecerá a qualquer significação diversa que as palavras possam ter em uso vulgar;”
350 “Art. 2º. Constituem legislação commercial o Código do Commercio, e subsidiariamente os usos commer- ciaes (art. 291 Codigo) e as leis civis (arts. 121, 291 e 428 Codigo). Os usos commerciaes preferem ás leis civis sómente nas questões sociaes (art. 291) e casos expressos no Código”.
351 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Op. cit., p. 72-73.
de 1916, por exemplo, revogou os costumes que lhe fossem contrários (art. 1807)352. A opção política liberal, o federalismo centralizador e oposterior dirigismo político deixaram ainda menos espaço para seu desenvolvimento.
Dentro da tradição civilística brasileira, portanto, o costume acabou sendo reconhecido como fonte formal do direito353, embora seu papel tenha sido secundário em relação à lei (art. 4º da LINDB354). Isso se dá a tal ponto que a lei deveria prevalecer mesmo quando contrária ao costume de longa tradição355. Assim, se sua importância é subsidiária (segundo Beviláqua, a “fonte immediata (sic) do direito é a lei”356), seu papel seria o de atender à insuficiência legal para abranger todos os fenômenos sociais e, em alguma medida, servir de elemento atualizador do sistema357.
A longa tradição de desconfiança sobre o papel do costume permaneceu arraigada na doutrina mais contemporânea. Assim, por exemplo, XXXXX chega a afirmar que o “direito costumeiro é o direito que a oligarquia dominante impõe à sociedade” e que, portanto, pressuporia uma sociedade estática358. Deve-se reconhecer, também, que tal crítica também pode ser oposta à legislação, como parecia ser o caso do Código Civil brasileiro de 1916:
Devido a essa contensão, o Código Civil, sem embargo de ter aproveitado frutos da experiência jurídica de outros povos, não se liberta daquela preocupação com o círculo social da família, que
352 “Ficam revogadas as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código”.
353 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito Civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 39.
354 “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
355 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito..., p. 39.
356 BEVILAQUA, Clovis. Theoria geral do Direito civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Xxxxx xx Xxxxxxx, 1949, p. 26. E por extensão, o costume acabaria como a primeira fonte subsidiária.
357 DEL´OLMO, Xxxxxxxxx xx Xxxxx; XXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxx. Lei de Introdução ao Código Civil Bra- sileiro Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 38.
358 XXXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Curso de Direito..., p. 281.
o distingue, incorporando ‘a disciplina das instituições básicas, como a propriedade, a família, a herança e a produção (contrato de trabalho), a filosofia e os sentimentos da classe senhorial. Suas concepções a respeito dessas instituições transfundem- se tranqüilamente no Código. Não obstante, desenvolveu-se, à larga, a propensão da elite letrada para elaborar um Código Civil à sua imagem e semelhança, isto é, de acordo com a representação que, no seu idealismo, fazia da sociedade.359
Embora não mencionado na Constituição da República atualmente em vigor, o Direito brasileiro positivo infraconstitucional refere-se ao costume em diversas passagens. Assim, por exemplo, o Código de Processo Civil estabelece como ônus processual a prova do conteúdo do Direito consuetudinário alegado (art. 337)360; a Medida Provisória 2.186-16/2001, ao regulamentar a Convenção de Diversidade Biológica, define comunidade local como aquela que mantém prática costumeira (arts. 4° e 7°, III)361; o art. 8º da Consolidação das Leis do Trabalho362; e a Lei das sociedades anônimas que menciona o objeto mercantil como aquele que se rege pelos “usos” do comércio (art. 2°). Também o Código Civil de 2002 a eles se refere nos já mencionados arts. 113, 432, 569, II ; 596 e 615. Estas referências demonstram, ainda, submissão do costume à legislação.
359 XXXXX, Xxxxxxx. Raízes históricas..., p. 22.
360 “A parte, que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz”.
361 “Art. 4º É preservado o intercâmbio e a difusão de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado praticado entre si por comunidades indígenas e comunidades locais para seu próprio benefício e baseados em prática costumeira”. e “Art. 7º Além dos conceitos e das definições constantes da Con- venção sobre Diversidade Biológica, considera-se para os fins desta Medida Provisória: (...) III - comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas;
362 “As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, deci- dirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito compara- do, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público”.
Tal conclusão é corroborada pela atual redação do art. 4º da LINDB. Ainda que o Direito positivo brasileiro não dê tratamento específico ao costume, reconhece-o como fonte do Direito. O papel, contudo, desta fonte seria, segundo XXXXX, “inferior”363 ao da lei, vez
que subsidiário.
Deve ser questionado, no entanto, se este modelo de pensamento já não é ultrapassado. XXXXXX, por exemplo, categoricamente afirma que: “Se a sociedade civil concedeu ao Estado, num instante histórico de definição improvável, o monopólio da criação de normas jurídicas, a verdade é que os tempos atuais reclamam a devolução de uma parcela do poder nomogenético ao seio social.”364 Concluindo pelo “esgotamento do velho monopólio estatal de produção normativa”.365
3.1.3 O costume na formação do Direito internacional contemporâneo
No cenário internacional, ao contrário do modelo tradicionalmente associado ao direito interno, reconhece-se a pluralidade de fontes como essencial na construção normativa. Entretanto, ao se limitar a análise do Direito internacional à perspectiva da solução de conflito de leis, talvez, a questão fosse de menor importância.
A premissa, contudo, do presente trabalho é de que o contrato, como instituto jurídico que se internacionaliza, não diz respeito apenas a preocupações de lógica interna (e, portanto apenas a considerações de conflito de leis ou de legislação nacional), mas igualmente de regulação internacional. Daí porque passa a ser essencial a compreensão de como eventuais costumes internacionais podem influenciar a existência da relação jurídica contratual.
Além disso, qualquer tentativa de explicar a internacionalização
363 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro interpretada. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 142.
364 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxx. Op. cit., p. 25.
365 Ibidem, p. 29.
do Direito contratual e dela extrair asserções que possam ser úteis à conclusão proposta precisaria se aventurar nos terrenos nada firmes da chamada “globalização”. Também é certo que qualquer menção ao seu conteúdo será, sempre, resumida e limitadora. Isso porque se trata de fenômeno heterogêneo, com amplo espectro de aplicação e com diferentes naturezas, causas e características. Pode-se, assim, falar de globalização econômica e jurídica, ou, ainda, criticar-se o termo e adotar-se o modelo francófilo (mondialisation). Neste cenário incerto busca-se, assim, um novo fundamento de “segurança”.
O costume toma central papel no Direito internacional, especialmente por conta da descentralização nacional da produção normativa, característica típica daquele fenômeno de globalização366.
A advertência metodológica lançada por XXXX, no entanto, é completamente adequada: quem e de que forma podem ser criados os costumes do ponto de vista internacional?367 Isso porque normalmente se tem a ideia de que é um ator estatal que, por sua atuação diplomática, cria os fundamentos do costume internacional.
Como se perceberá, contudo, nem sempre é o Estado quem o fará, nem é sua atuação diplomática, necessariamente, a forma que fará surgir o costume internacional. A importância dessa conclusão é a percepção de que há também, em sede internacional, um maior espaço de regulamentação de que aquele abrangido pelo agente estatal (quer ele queria ou não), que não depende de seu consentimento (quer queiram os voluntaristas ou não) e que independe de formalidades específicas.
A segunda conclusão lógica, que daí se retira, é que o Direito internacional já não é mais o mesmo. Mas antes de atingirmos tal estágio, mister avançarmos pela clássica distinção entre o DIP (Direito Internacional Público) e o DIPRI (Direito Internacional Privado).
366 CADENA AFANADOR, Xxxxxx Xxxx. La nueva Lex mercatoria: un caso pionero en La globalización del derecho. In: Papel Político, n. 13, out. 2001, p. 101-102.
367 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxx. Os métodos no Direito Internacional. São Paulo: Lex, 2007, p.93.
(i) No chamado Direito Internacional Público368, reconhece-se, há muito, o papel do costume como fonte normativa. Apesar disso, ainda hoje é comum o debate doutrinário acerca da real natureza do Direito consuetudinário. Assim, se XXXXXX asseverava que no fundamento de validade de todo tratado estava uma norma consuetudinária369 e AGO defendia a formação espontânea do Direito internacional370; BARBERIS, não só afirma que o costume não pode ser fonte do Direito, pois não há nenhuma norma da qual retire validade, como analisa a possibilidade de codificação do Direito costumeiro por meio de tratados371.
No entanto, com base no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça372, tradicionalmente se afirma não só a força normativa dos costumes, como sua equivalência em relação às demais fontes373. Tratar- se-ia de necessidade decorrente da criação não unilateral de Direito374.
Para a caracterização do costume internacional, normalmente a doutrina indica a necessidade de dois requisitos: prática internacional generalizada e a convicção de necessidade375, embora amplo tenha sido odebate doutrinário acerca da real necessidade deles.
Do ponto de vista público o conceito do elemento subjetivo
(convicção de necessidade) ainda não é pacífico e tem gerado na Corte
368 Entendido como ramo do Direito internacional que se ocupa em regular as relações internacionais não privadas.
369 XXXXXX, Xxxx. Teoria geral..., p. 525.
370 AGO, Xxxxxx. Positive Law and International Law. In: The American Journal of International Law, v. 51, N. 4. out. 1957, p. 729-733.
370 XXXXXXXX, Xxxxx. Xxxxxxxxxx xxx xx xxxxxxx xnternationale. In: Annuaire Français de Droit International, v. 36, 1990, p.9-46.
372 “A Corte cuja função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem sub- metidas, aplicará: (...) b) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceita como sendo direito; (...)” LITRENTO, Oliveiros. Direito Internacional público em textos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 53.
373 KIVILCIM-FORSMAN, Zeynep. Principe d’egalite entre le traite et la coutume en droit international public. Disponível em: <xxxx://xxxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxx-xxxxx/XXXX-0000-00-00-00/XXXX-0000-00-00- 04-Kivilcim.pdf> Acesso em: 19 de outubro de 2011.
374 XXXXXXX, Xxxxxxx. Le droit spontané. Paris: Economica, 2002, p. 354.
375 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxx de. Direito Internacional costumeiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001, p. 13; BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado. São Paulo: Atlas, 2009, p. 68; XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 81.
Internacional de Justiça algum tipo de debate. Assim, por exemplo, a Corte chegou a se pronunciar sobre a necessidade de aceitação do costume pelos envolvidos, no famoso caso Lotus de 1927 sobre abalroamento marítimo envolvendo embarcação francesa e turca e a consequente responsabilização dos respectivos oficiais, quando afirmou a importância do elemento subjetivo (convicção) e, portanto, da tese voluntarista do Direito internacional376. Essa mesma tendência foi sentida em outros casos: Nicarágua377 (1985), Jurisdição de pesca378 (1974), Direito de passagem379 (1960) e Pessoal consular e diplomático dos Estados Unidos380 (1980), entre outros.
A insistência nesta tese potencialmente traria, para o Direito internacional Público, o problema dos “novos” países surgidos do período de descolonização e das ruínas do império soviético. Isso porque como não teriam consentido com aqueles “costumes” consagrados (em matérias como Asilo, Direito de Paz e Guerra, etc.) a eles não poderiam, em tese, ser invocadas tais obrigações.
Em parte a insistência nesta conclusão se deve à tradicional explicação de que como não existe paralelo entre o sistema adotado pelo
376 TRINDADE, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx. Reavaliação das fontes do Direito Internacional Público ao iní- cio da década de oitenta. In: O Direito Internacional..., p. 29.
377 Trata-se de caso envolvendo Nicarágua e Estados Unidos da América que envolvia a discussão sobre a existência de Direito costumeiro a não intervenção de um Estado nos assuntos internos de outro. Segundo XXXXXXXXXXXX o caso refletiu a tensão entre antiga e a nova tendência para caracterização do costume internacional, mas a Corte acabou fazendo prevalecer a primeira (XXXXXXXXXXXX, H. C. M. Customary International Law and the Nicaragua Case. In: Australian Year Book of International Law, v. 11, 1991, p.01-31).
378 Trata-se de caso envolvendo o Reino Unido e a Islândia em que se discutiu a extensão da zona preferen- cial de pesca costeira e a necessidade de preservação dos recursos naturais e os direitos históricos de pesca. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Fisheries Jurisdiction (United Kingdom v. Iceland), Merits, Judg- ment, I. C. J. Reports 1974. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx-xxx.xxx/xxxxxx/xxxxx/00/0000.xxx>. Acesso em: 19 de outubro de 2011.
379 Trata-se de caso envolvendo Portugal e Índia sobre a existência de Direito costumeiro de passagem so- bre o território indiano em razão de dois enclaves coloniais portugueses. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Right of passage (Portugal v. India), ICJ, 1960. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx-xxx.xxx/xxxxxx/xx- les/32/4523.pdf>. Acesso em: 19 de outubro de 2011.
380 Trata-se de caso envolvendo os Estados Unidos da América e o Irã sobre a existência de Direito interna- cional costumeiro de o Estado prover segurança a corpo consular e diplomático de outro. CORTE INTER- NACIONAL DE JUSTIÇA. United States Diplomatic and Consular Staff in Tehran, Judgment, ICJ. Reports 1980. Disponível em: <xxxx://xxx.xxx-xxx.xxx/xxxxxx/xxxxx/00/0000.xxx>. Acesso em: 19 de outubro de 2011.