A conformação da relação contratual no Código dos Contratos Públicos*
A conformação da relação contratual no Código dos Contratos Públicos*
A. Considerações iniciais: 1. O contrato administrativo entre a legalidade e a autonomia; 2. Conformação, reconformação ou transformação da relação contratual?;
B. Em especial, sobre os poderes de conformação da relação contratual por parte do contraente público no CCP: 1. Duas observações sobre a sistemática; 2. Os poderes do contraente público de conformação da relação contratual: 2.1. Poder de direcção; 2.2. Poder de fiscalização; 2.3. Poder de modificação unilateral; 2.3.1. Os desdobramentos do poder de modificação unilateral: i) O poder de modificação stricto sensu; ii) O factum principis; iii) A alteração de circunstâncias; iv) A força maior; 2.3.2. A modificação unilateral e a questionável aproximação à alteração das circunstâncias; 2.3.3. As consequências da modificação do contrato; 2.4. Poder de sancionamento; 2.5. Poder de resolução unilateral: 2.5.1. A resolução-sanção; 2.5.2. A resolução por razões de interesse público; 3. A natureza dos actos de conformação da relação contratual; 3.1. Os acordos endocontratuais; 4. A executividade dos actos de conformação da relação contratual; 5. Em jeito de balanço: contrato administrativo ou pacto...xxxxxxx?
A. Considerações iniciais
1. O contrato administrativo entre a legalidade e a autonomia
Estatui o artigo 278º do Código dos Contratos Públicos (DL 18/2008, de 29 de Janeiro = CCP)1 que "Na prossecução das suas atribuições, e sempre que esteja em causa o exercício da função administrativa, os contraentes públicos podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer". Em plena linha de continuidade com o artigo 179º do CPA2, esta generosa fórmula permite afirmar, com clareza, que se encontra ultrapassada a visão negativista do contrato administrativo — propugnada por autores como XXXX XXXXX, que recusava a ideia de a Administração, enquanto poder, se rebaixar ao plano dos seus súbditos, abdicando da expressão da sua soberania —, cumprindo hoje assinalar a relevância deste instrumento na prossecução das missões de interesse público da Administração do Estado Social, que não dispensa a colaboração dos privados, ou das entidades que mais aptidão revelem para desenvolver as tarefas projectadas3. Respeitados os
* Este texto serviu de suporte às comunicações da autora no Curso de Pós-Graduação em Contratos, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra nos anos lectivos de 2007/2008 e 2008/2009, organizada pelo Doutor Xxxxx Xxxxxxxxx, e pelos Mestres Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxx. Agradece-se a lembrança do convite aos organizadores.
1 Todos os artigos citados sem indicação de fonte pertencem ao CCP.
2 O artigo 14º/1/c) do DL 18/2008, de 29 de Janeiro revogou todo o Capítulo III da Parte IV do CPA, relativo ao contrato administrativo.
3 Sobre a figura do contrato administrativo em geral, vejam-se, na doutrina portuguesa: Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual de Direito Administrativo, I, 10ª ed., Lisboa, 1973, pp. 569 segs; Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Direito Administrativo, I, Coimbra, 1984, pp. 633 segs; Xxxx Xxxxxx XXXXXXX XXXXXXX, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Xxxxxxx, 0000, esp. 343 segs; idem, Contrato administrativo, in DJAP, III, Lisboa, 1990, pp. 54 segs; Xxxxx Xxxx XXXXXXXXXX, Requiem pelo contrato administrativo, Coimbra, 1990; Xxxx XXXXX DA FÁBRICA,
§7º da voz Procedimento Administrativo — O contrato administrativo — do DJAP, VI, Lisboa, 1994, pp. 524 segs; Xxxxx XXXXXXX DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, Coimbra, 2001, pp.
495 segs; Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo. Uma instituição do Direito
princípios da competência, da legalidade e da proporcionalidade (cfr. também os artigos 280º e 281º), a Administração goza de autonomia pública no estabelecimento de vínculos contratuais4. A abertura da actuação administrativa à consensualidade — por força de circunstâncias práticas e jurídico-políticas — não permite dissociar os contratos administrativos da matriz substantiva civil; todavia, como acentua XXXXXXX XXXXXXX XX XXXXXXXX, não pode olvidar-se que "há, no contrato administrativo especificidades directamente decorrentes do facto de ele, além de definir, em obediência à lógica do pacto, os direitos e obrigações das partes, se traduzir, simultaneamente num instrumento ou mecanismo votado à prossecução de
interesses públicos, ou seja, por nele estar também presente a lógica da função"5.
O mesmo é dizer que a articulação entre Administração e particulares não se faz sem assegurar a supremacia do contraente público através do reconhecimento de um conjunto de poderes que lhe permite, se e quando necessário, garantir eficazmente a realização do interesse público subjacente ao contrato. Estes poderes — cuja qualificação como exorbitantes se fez tradicional (apesar da "normalidade" que revestem, para alguns6) — são de cinco ordens: direcção; fiscalização; modificação unilateral; aplicação de sanções por não execução ou execução indevida; e rescisão unilateral. O elenco apresentado no artigo 180º do CPA não divergia da listagem constante do artigo 302º, denotando uma sedimentação doutrinal e jurisprudencial nesta sede. É a dimensão da legalidade a prevalecer sobre a dimensão da autonomia, ainda que sob a estrita tutela dos princípios da prossecução do interesse público, da igualdade e da proporcionalidade.
E nem se considere isolada esta preponderância do interesse público, imagem de marca da administratividade do contrato: recordem-se realidades como a imperatividade do acto administrativo (de autoridade), ou como a causa legítima de inexecução de sentença condenatória da Administração. Aí detectamos imediatamente outros sinais da ascendência da Administração enquanto curadora do interesse público — no segundo caso, mesmo arrostando contra a força vinculativa genérica das decisões judiciais (artigo 205º/2 da CRP) —, sem que,
Administrativo do nosso tempo, Coimbra, 2003; Xxxxxxx XXXXXX XX XXXXX e Xxxxx XXXXXXX XX XXXXX, Direito Administrativo Geral, III, Coimbra, 2006, pp. 263 segs.
Na doutrina estrangeira: Xxxxxxxx XXXXXXX XXXXX, Tratado de Derecho Administrativo, II, 10ª ed., Madrid, 1992, pp. 85 segs; Xxxxxx XXXXXX e Xxxxx-Xxxx XXXXXX, Droit Administratif, 4ªed., Paris, 1993, pp. 350 segs; Xxxxx XXXXXX XX XXXXXX, Direito Administrativo, 9ª ed., S. Xxxxx, 1998, pp. 207 segs.
4 Sobre o conceito de autonomia pública, Xxxx Xxxxxx XXXXXXX XXXXXXX, Legalidade e autonomia..., cit., pp. 469 segs (que o Autor define como "a permissão de criação, no âmbito dos actos administrativos e dos contratos administrativos, de efeitos de direito não predeterminados por normas jurídicas e titularidade e exercício do correspondente poder, isto é, de margem de livre decisão na criação de efeitos de direito nas situações concretas regidas pelo Direito Administrativo" — p. 470.)
5 Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, O acto administrativo contratual, in CJA, nº 63, 2007, pp. 3 segs, 3.
6 Note-se que, no que toca ao poder de fiscalização, ele é genericamente aceite no âmbito dos contratos de empreitada de obras privadas: artigo 1209º/1 do CC. Chamando a atenção para esta dimensão de "normalidade" do poder de fiscalização, Xxxxx Xxxx XXXXXXXXXX, Requiem..., cit., p. 126.
no entanto, fiquem comprometidos a sua adstrição à juridicidade, o controlo jurisdicional da sua actuação ou a responsabilidade que desta possa resultar.
2. Conformação, reconformação ou transformação da relação contratual?
A descontextualização da fórmula "conformação da relação contratual" do âmbito do CCP sugere-nos algumas observações. Por um lado, a conformação/configuração da relação jurídica contratual começa com a abertura do concurso para a celebração do contrato — ou com a sua assinatura, se não houver lugar a concurso —, ou mesmo antes, caso se trate, por exemplo, de empreendimentos susceptíveis de provocar impactos ambientais consideráveis, quanto à mera decisão de localização. As determinações prévias à selecção do contraente privado têm origem na avaliação que o contraente público faz das circunstâncias de interesse público que motivam a celebração do contrato, mas podem também provir da necessidade de adaptação aos objectivos de preservação e promoção de bens de fruição colectiva, como o ambiente, o urbanismo, o património, a saúde pública.
Por outro lado, e espelhando esta abertura a ponderações não estritamente relacionadas com o objectivo de interesse público subjacente ao contrato, as possibilidades de reconformação da relação contratual não se esgotam nas determinações emanadas do contraente público. Atente- se no artigo 40º/2 do CPTA, em que o prolongamento da legitimidade reconhecida no âmbito pré-contratual a entidades investidas em legitimidade popular se verifica no período da execução do contrato [alínea d)], e bem assim se confirma a legitimidade processual de utentes do serviço e do Ministério Público para questionarem judicialmente os termos da execução, facto que pode acarretar mutação do status quo [alíneas b) e c)].
Outras situações próximas, mas diversas da que é objecto deste texto, são a dos ajustamentos — diligências prévias à adjudicação —, conforme se retira do artigo 99º, ou as figuras da redução e conversão do contrato, em virtude invalidade parcial ou total do seu clausulado (cfr. o artigo 285º/3). Em ambos os casos se assiste a uma alteração do contrato, com intensidade variável, sem estarmos perante a figura da “conformação” da relação contratual tratada na Parte III do CCP.
Uma outra nota que gostaríamos de deixar, antes de entrar na análise das disposições do CCP, diz respeito ao limite último dos poderes de conformação exercidos pela Administração no seio da relação contratual pública: o objecto do contrato. Ainda que na posse de um poder tão intenso como o de modificação unilateral — signo por excelência da disparidade de nível entre os contraentes —, a Administração não pode impor a aceitação, pelo contraente, de cláusulas que transformem o contrato num vínculo de natureza diversa (v.g., de empreitada em concessão de serviço público). É, de resto, o que decorria do artigo 180º/a), 2ª parte do CPA,
bem como, mais desenvolvidamente (e denotando a preocupação de salvaguardar a igualdade/concorrência reportada à fase de formação do contrato), do artigo 313º/1 do CCP.
B. Em especial, sobre os poderes de conformação da relação contratual por parte do contraente público no CCP:
Esta matéria vem regulada no Capítulo IV, do Título I, da Parte III do CCP (Regime substantivo dos contratos administrativos7). Sem embargo da evolução qualitativa (e quantitativa) que o seu enunciado revela em face da parcimónia do CPA (onde estes aspectos se reconduziam aos artigos 179º, 180º, 186º e 187º), há dois pontos que nos parecem passíveis de crítica no plano sistemático (1.). De seguida, passaremos a uma análise das soluções introduzidas pelo CCP e que acentuam a publicidade da relação contratual administrativa (2.).
1. Duas observações sobre a sistemática
Em primeiro lugar, nota-se a ausência de um elenco de disposições de aplicação genérica em sede de poderes de conformação da relação contratual, ou seja, preceitos que poderiam ter-se reunido sob a égide de uma Secção I, à qual se seguiriam Secções relativas a cada um dos poderes em especial. Em concreto, isso redundaria na extracção dos artigos 303º a 306º para uma Secção II, deixando na Secção I os artigos 302º e 307º a 309º (ou 310º — a figura dos acordos endocontratuais poderia eventualmente albergar-se sob uma Secção autónoma, em virtude da sua natureza substantiva).
Em segundo lugar, esta construção permitiria conferir coerência ao CCP em sede de qualificação dos poderes de conformação — como, aliás, resulta do artigo 302º/c), d) e e). O que queremos frisar — e ainda que possa parecer algo bizantino — é a identidade de natureza dos poderes reconhecidos ao contraente público. Tal como se encontram "arrumados", a ideia que fica é que os poderes de direcção e fiscalização são poderes de segunda, indiferenciados no meio de disposições de aplicação genérica, e que os restantes poderes, esses sim, exprimem a natureza específica do poder administrativo. Mesmo que tal visão possa ter, materialmente, a sua parte de verdade8, a homogeneidade que o CCP quis imprimir neste âmbito justificaria, porventura, um tratamento idêntico do ponto de vista do relevo concedido às prerrogativas da Administração no seio da relação contratual pública.
7 Para a qualificação do contrato como administrativo, veja-se o artigo 1º/6. Sobre as dificuldades levantadas por este preceito, nomeadamente quanto às consequências da aplicação da alínea d), Xxxxx XXXXX XX XXXXXXX, Contratos administrativos e poderes de conformação do contraente público no novo Código dos Contratos Públicos, in CJA, nº 66, 2007, pp. 3 segs, 7 segs.
8 Cfr. Xxxxx Xxxx XXXXXXXXXX, Requiem..., cit., pp. 120 segs; ou, noutra perspectiva, Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX (O acto administrativo..., cit., p. 15), quando afirma que, em bom rigor, a grande maioria dos actos que traduzem o exercício do poder de fiscalização não configuram actos administrativos.
2. Os poderes do contraente público de conformação da relação contratual
A teoria dos "poderes exorbitantes" tem a sua raiz no Arrêt Societé des granits porphyroides des Vosges, prolatado pelo Conselho de Estado francês no ano de 1912 (embora a expressão só bem mais tarde — em 1973 — tenha sido utilizada pelo mesmo Tribunal, no Arrêt Société d'exploitation électrique de la rivière du Sant, vulgarizando-se desde então9). Curiosamente, o Conselho de Estado não se ocupou do caso, declarando-se incompetente, na medida em que o contrato (de fornecimento de pavimento à cidade de Lille) não conteria qualquer indício de "administratividade". É nas Conclusões do Comissário de Governo que desponta a teoria dos poderes exorbitantes: com efeito, se, ao contrário do que concretamente se verificava, o contrato contivesse cláusulas atributivas de prerrogativas especiais à Administração, que ela não pudesse exercer senão enquanto investida no seu estatuto de poder público, então aí a competência do Conselho de Estado revelar-se-ia inequívoca porque inequívoca seria a natureza administrativa do contrato.
Os poderes descritos no artigo 302º — ressalvado o poder de aplicar sanções previsto na alínea d) (v. infra, 2.4.) —, são poderes inerentes à função do contrato (veja-se a ressalva inicial, expressa no corpo do preceito, respeitante à "natureza do contrato", que se aplica, por exemplo, aos chamados contratos paritários, nos quais, embora em presença de duas entidades públicas, uma assume posição de supremacia sobre a outra, bem como aos contratos de execução instantânea10). São poderes-deveres, dos quais a Administração não pode abrir mão, uma vez que estão funcionalizados à prossecução do interesse público11. Constituem poderes co-naturais ao contrato administrativo: existem apesar da ausência de previsão contratual e impõem-se contra a (eventual) exclusão prevista no contrato12. Revelam-se, por isso, indisponíveis pelas partes, devendo a alusão do corpo do artigo 302º ao "disposto no contrato" ser entendida como uma autorização de definição (v.g., dos poderes de fiscalização), mas nunca de restrição (v.g., do poder de modificação unilateral)13.
9 Cfr. Xxxxxx XXXXXX e Xxxxx-Xxxx XXXXXX, Droit Administratif..., cit., pp. 366-367.
10 Cfr. Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo..., cit., p. 113.
11 Xxxxxxx XXXXXX XX XXXXX e Xxxxx XXXXXXX XX XXXXX (Direito Administrativo Geral, cit, p. 357) defendem mesmo a inconstitucionalidade de qualquer norma que admita a renunciabilidade dos poderes de conformação da relação contratual — salvo o sancionatório — pela Administração, uma vez que isso redundaria numa demissão da obrigação de prossecução efectiva do interesse público. Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX, Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2ª ed, Xxxxxxx, 0000, p. 823, consideram, por seu turno, que qualquer previsão contratual no sentido da exclusão de tais poderes se deve considerar nula e não escrita.
12 Sobre o fundamento e a irrenunciabilidade dos poderes de direcção e fiscalização, cfr. o Acórdão do STA de 30 de Setembro de 1999, in ApDR de 9 de Setembro de 2002, pp. 5315 segs.
13 Neste sentido, Xxxxx XXXXXXXXX, A relação jurídica fundada em contrato administrativo, in CJA, nº 64, 2007, pp. 36 segs, 40.
2.1. Poder de direcção
O poder de direcção surge como forma de colmatar eventuais lacunas de regulação ou densificação do modo de execução das prestações, evitando assim que o escopo do contrato administrativo seja diminuído ou mesmo desviado do seu objectivo de prossecução do interesse público (artigo 304º/1). Consiste na emissão de ordens, directivas ou instruções e incide sobre os domínios técnicos, financeiros ou jurídicos de execução (artigo 304º/2). Tais orientações devem ser transmitidas por escrito — ou reduzidas a escrito no prazo de cinco dias, salvo justo impedimento, caso as circunstâncias tenham ditado a urgência da sua comunicação verbal (artigo 304º/3).
O exercício deste poder encontra-se limitado por três princípios:
i) de optimização do fim de interesse público que o contrato prossegue (artigos 303º/1 e 304º/1);
iii) de não diminuição da responsabilidade da contraparte (artigo 303º/3).
Relativamente a estes princípios, julgamos que a sua enunciação pode revelar-se útil em dois planos: em primeiro lugar, quanto aos dois primeiros, no âmbito do controlo da validade dos actos em que se consubstanciam [cfr. o artigo 307º/2/a)], na medida em que, porque apelam a concretizações do princípio da proporcionalidade — a adequação e a proibição do excesso —, fornecem ao julgador critérios de aferição da conformidade das ordens, directivas ou instruções, com o bloco de legalidade aplicável. Em segundo lugar, e quanto ao terceiro princípio, ele traduz, simultaneamente, uma regra de responsabilização e uma regra de repartição da responsabilidade: na verdade, o preceito — sobretudo o nº 3 do artigo 303º, no que toca às prestações de concepção15 — esclarece que a actuação "telecomandada" do co- contratante não transfere a responsabilidade para a Administração (nomeadamente, a autonomia do co-contratante impõe-lhe que responda nos termos da culpa in vigilando — cfr. o artigo 493º/2 do CC), mas também não a exime de responder por danos que nas suas instruções tenham causa adequada, em eventual concurso de culpa com o co-contratante e submetida ou não ao regime de solidariedade (em caso de responsabilidade por facto ilícito — cfr. o artigo 497º/1 do CC).
Note-se que, quanto a este ponto, poder-se-ia colocar a questão de saber se o co-contratante tem a possibilidade de desobedecer à orientação emanada da Administração, considerando o princípio (afirmado) de respeito pela sua autonomia, bem como a avaliação da adstrição da
14 Cfr. os artigos 1209º/1 do CC, e 182º/3 do DL 59/99, de 2 de Março (com alterações posteriores).
15 Que integram contratos de aquisição de serviços, cujo concurso se rege por um iter especial — v. os artigos 219º segs.
ordem à melhor execução possível do contrato16. Parece-nos que, ressalvados casos extremos como os previstos no artigo 271º/3 da CRP (cumprimento de ordem que redunde em prática de crime) e, eventualmente, de ordens que importem a afectação do núcleo essencial de direitos, liberdades e garantias (dos utentes do serviço, por exemplo) — em que a ordem será nula e não produzirá quaisquer efeitos jurídicos —, o co-contratante deve, caso a validade da ordem lhe suscite dúvidas, requerer ao tribunal administrativo territorialmente competente a suspensão de eficácia do acto que a incorpora (cfr. os artigos 00x x 00x/0 xx XXXX) e, caso esta não seja concedida, executá-la (resguardando-se, através desta conduta, de pedidos indemnizatórios que venham a surgir — no que pode ser visto como uma espécie de aceitação sob protesto).
2.2. Poder de fiscalização
O poder de fiscalização constitui penhor da realização do concreto interesse público que subjaz ao contrato. Configura uma prerrogativa instrumental aos poderes sancionatório e de resolução do contrato por incumprimento, pois depende do seu exercício a constatação dos factos que originam a aplicação de sanções ou a decisão de rescindir unilateralmente o contrato. Desdobra-se em fiscalização dos aspectos técnicos, financeiros e jurídicos do modo de execução das prestações (artigo 305º/1); investe o co-contratante num dever de sujeição/toleração de inspecções e obriga-o a fornecer informação (ressalvados os segredos profissionais ou comerciais) — artigo 305º/217; inscreve-se em documentos que atestem formalmente os resultados das diligências desenvolvidas (artigo 305º/3); pode ser levada a cabo por comissões paritárias ou entidades públicas ou privadas nas quais o adjudicante delegue18 tais tarefas (artigo 305º/4 e 5).
Além destas condições de efectivação do poder de fiscalização, o co-contratante encontra-se ainda vinculado aos princípios enunciados nos artigos 303º e 304º, que mencionámos em 2.1. e que melhor ficariam, como também assinalámos, consignados numa secção de disposições gerais — pelo menos no que toca à vinculação da Administração aos parâmetros da adequação e da necessidade no exercício da prerrogativa (note-se a repetição do princípio da proibição do excesso no artigo 305º/2).
16 Estabelecendo a justa distinção entre o poder de direcção em sede de relação hierárquica e contratual, Xxxxxxx XXXXXX XX XXXXX e Xxxxx XXXXXXX XX XXXXX, Direito Administrativo Geral, cit, p. 354.
17 Embora este dever de informação seja, em bom rigor, recíproco — cfr. os artigos 289º e 290º/1.
18 Xxxxxxxxx XXXXXX chama a atenção para que esta expressão deve ser entendida de forma flexível, na medida em que a relação entre adjudicante e entidade fiscalizadora pode revestir natureza contratual (opinião veiculada na sessão leccionada na Pós-Graduação de Direito da Contratação Pública organizada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa nos meses de Outubro a Dezembro de 2007, no dia 5 de Dezembro de 2007 — subordinada ao tema "Conformação da relação jurídica contratual").
A fiscalização de projectos de investigação e desenvolvimento submete-se a regras próprias, a estabelecer em portaria dos Ministros responsáveis pelos sectores das obras públicas e da ciência (artigo 306º).
2.3. O poder de modificação unilateral
Conforme dispõe o artigo 311º, a modificação do contrato pode ocorrer por via negocial, por decisão judicial ou arbitral, ou por actuação do poder de modificação unilateral da Administração. Na verdade, a decisão judicial poderá resultar (entre outras): da impossibilidade de alcançar a modificação por via negocial; do desfecho de um processo de impugnação de um acto administrativo que determine a modificação unilateral por razões de interesse público (desfavorável ao co-contratante); da decisão favorável de um pedido apresentado pelo co- contratante, no sentido da modificação do contrato cujo equilíbrio se rompera por superveniência de circunstâncias fácticas imprevistas que tornaram o seu cumprimento, nos termos iniciais, demasiado oneroso.
Antes de analisar as soluções que o legislador do CCP urdiu nesta sede, convém tecer breves considerações sobre os caminhos teóricos da modificação do contrato, tal como foram sendo construídos pela jurisprudência. Assim estaremos em melhores condições de avaliar as diferenças entre algumas figuras que se cruzam neste domínio, e de diagnosticar eventuais razões para a sua assimilação ou dissimilação no plano do regime da modificação do contrato.
2.3.1. Os desdobramentos do poder de modificação unilateral
i) Poder de modificação stricto sensu
O poder de modificação exprime-se através de um acto administrativo praticado no âmbito do contrato o qual, por força da reconsideração das razões de interesse público que lhe foram subjacentes, implica uma alteração do seu clausulado e do conteúdo das prestações do co- contratante, sem, no entanto, pôr em causa a essência do contrato — a integridade do seu objecto.
Esta prerrogativa exorbitante foi "inventada" pelo Conseil d'État francês, em 1902 (Arrêt Compagnie nouvelle du gaz de Deville-lès-Rouen), para aliviar os municípios franceses do
19 Sobre o poder de modificação unilateral, veja-se Lourenço XXXXXXX XX XXXXXXX, O poder de modificação unilateral do contrato administrativo pela Administração (e as garantias contenciosas do seu co-contratante perante este exercício), Lisboa, 2007.
pagamento de indemnizações aos concessionários da distribuição de gás para iluminação pública, aquando do surgimento da electricidade20. Não se tratando de um problema enquadrável através da teoria da imprevisão [v. infra, iii)], o Alto Tribunal francês teve que ancorar na autoridade da Administração como curadora do interesse público um poder de, unilateralmente, alterar o modo de execução do contrato, impondo ao prestador do serviço um dever de adaptação. Oito anos depois, a propósito da necessidade de colocar em circulação mais eléctricos em Marselha por parte da concessionária do serviço, o Conselho de Estado aprofundaria a teoria, estabelecendo, pela pena do Comissário de Governo Xxxx Xxxx, três princípios/limites de actuação do poder de modificação unilateral: a existência deste poder independentemente da sua previsão pelas partes; a intangibilidade do objecto do contrato; a ressarcibilidade de danos emergentes e lucros cessantes do co-contratante em razão das modificações introduzidas (Arrêt Compagnie générale française des tramways de Marseille).
Recusado por alguns, circunscrito aos contratos de concessão de serviços públicos por outros, o poder de modificação unilateral é actualmente radicado no poder/dever irrenunciável de avaliação estratégica das prioridades de interesse público por parte da Administração — um fundamento extracontratual, portanto. Esta posição decorre cristalinamente do pensamento de um Autor como SÉRVULO CORREIA, que vê no poder de modificação uma manifestação, não de um instrumento de actuação administrativa em especial, mas antes da própria função administrativa enquanto função constitucionalmente investida da missão de contínua optimização das formas de prossecução dos interesses públicos. “A «potestas variandi» que se entende implícita em qualquer contrato administrativo é — afirma o Autor — apenas uma manifestação de um mais lato poder de definir inovadoramente situações jurídicas entre a Administração e os particulares em prossecução dos interesses colectivos”21. Trata-se, portanto, de um “verdadeiro princípio geral de Direito Administrativo” que, escreve XXXXX XXXXX, deixa a regra da estabilidade do contrato “na disponibilidade da Administração”22: ele vale tão- só e apenas enquanto a concepção de actuação finalisticamente orientada para a melhor prossecução do interesse público não se alterar.
ii) O factum principis
Para XXXXXXXX XXXXXXX, modificação unilateral e fait du Prince eram noções equivalentes23. Tratar-se-ia, em ambos os casos, de alterações introduzidas no contrato por acto
20 Sobre a evolução histórica e sobre os vários matizes da teoria do poder de modificação unilateral, cfr. o nosso Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 674 segs.
21 Xxxx Xxxxxx XXXXXXX XXXXXXX, Contrato administrativo... cit., p. 84.
22 Xxxxx XXXXX, Estabilidade contratual, modificação unilateral e equilíbrio financeiro em contrato de empreitada de obras públicas, in ROA, 1996/III, pp. 913 segs, 925 e 928.
23 Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual de Direito Administrativo, 2ª ed., Lisboa, 1947, pp. 513 segs.
do poder público, quer tivessem o contrato por objecto directo, quer o atingissem reflexamente. Já na doutrina francesa, DE LAUBADÈRE, MODERNE e DELVOLVÉ começam por identificar fait du Prince em sentido amplo (qualquer intervenção que recaia sobre o contrato, qualquer que seja a sua fonte) e fait du Prince em sentido estrito (alteração provocada pela entidade administrativa contratante). Neste último encontram ainda medidas de modificação unilateral (que têm por objecto directo as condições de execução do contrato) e medidas que indirectamente afectam o equilíbrio do contrato — fait du Prince strictissimo sensu. Os próprios Autores admitem, todavia, tratar-se de uma distinção artificial e sem consequências24.
Parecendo inspirar-se nesta exposição, XXXXX XXXXXXXXX sugere, a propósito da concessão de serviços públicos, a destrinça entre poder de modificação unilateral e fait du Prince. O Autor entende que “embora possa provocar um quadro de efeitos semelhante ao que decorre do poder de modificação unilateral, deve dele distinguir-se aquilo que a doutrina designa por fait du prince (factum principis) — conceito que designa uma actuação exterior ao contrato da Administração concedente, de outra entidade administrativa ou até do legislador, a qual determina uma perturbação significativa na equação económico-financeira do contrato. Ao contrário do poder de modificação, estão aqui em causa medidas gerais, que têm efeitos sobre o contrato, embora o não tenham por objecto”25.
Pensamos que a diferenciação entre figuras impõe-se, e deve gerar consequências de diversa natureza26. Note-se que, quando a alteração é imposta, ainda que reflexamente, por medidas emanadas de uma entidade estranha ao contrato — sendo certo que tais medidas deverão provocar uma alteração significativa, não compreendida na álea de risco negocial —, é teoricamente também a essa entidade, e não somente ao adjudicante, que poderão ser imputados eventuais danos sofridos pelo co-contratante (embora em termos diversos)27. A alteração não é motivada por uma reponderação da forma de prossecução do interesse público subjacente ao
24 Xxxxx XX XXXXXXXXX, Xxxxxx MODERNE e Xxxxxx XXXXXXXX Traité des contrats administratifs, II, 2ª ed., Paris, 1984, p. 517.
25 Xxxxx XXXXXXXXX, A concessão de serviços públicos, Coimbra, 1999, p. 260. Repare-se que, ao incluir no fait du Prince medidas gerais adoptadas por outras entidades e pelo legislador, o Autor (no parágrafo seguinte ao transcrito) vê-se forçado a abranger a imprevisão no fait du Prince — xxxxxxxxxx que a jurisprudência e a doutrina desmentem.
Como explica Xxxxxx XXXXXX XXXXX, La modificación del contrato administrativo de obra. El ius variandi, Madrid, 1997, pp. 33, 34, nota 25, a relativa imprecisão — decorrente da construção pretoriana do Conseil d’État — de caracterização dos pressupostos de ambas as teorias leva a que, na doutrina, haja autores a diluir a imprevisão no fait du Prince. Esta construção é, como realçam Xxxxx XX XXXXXXXXX, Xxxxxx XXXXXXX e Xxxxxx XXXXXXXX (Traité..., cit., p. 516), das mais confusas do Direito dos contratos administrativos.
26 Neste sentido, Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX, Código..., cit., pp. 823-824.
27 Contra, afirmando que "o sujeito do dever de ressarcir a contraparte dos danos sofridos não é a entidade à qual é imputável o fait du prince, mas a pessoa colectiva administrativa contratante, na sua qualidade de titular do interesse público prosseguido, pela qual corre o risco da sua eventual redefinição legislativa", Xxxxxxx XXXXXX XX XXXXX e Xxxxx XXXXXXX DE MATOS, Direito Administrativo Geral, cit, p. 359.
contrato; antes é determinada por razões exógenas ao exercício da função administrativa (caso de medidas legislativas), ou pelo menos alheia ao concreto balanceamento de interesses presente no contrato (caso de medidas gerais decretadas por outra entidade que não a adjudicante). Daí que julguemos preferível, no plano teórico, caracterizar quatro tipos de situações:
a) a modificação unilateral stricto sensu, em que o adjudicante, por força de uma redefinição estratégica do modus operandi, tendo em conta novas circunstâncias de interesse público ou reponderação das existentes, determina a alteração da forma de execução do contrato. As mudanças radicam em causas subjectivas, emergentes da percepção que o adjudicante tem relativamente à melhor forma de prosseguir as necessidades públicas que determinaram a celebração do contrato — logo, os danos para o co-contratante devem ser ressarcidos pela totalidade: danos emergentes e lucros cessantes;
b) a modificação unilateral lato sensu, na qual a entidade adjudicante se limita a fazer reflectir no contrato determinações genéricas, de sua lavra, mas emitidas à margem do seu poder de conformação da relação contratual, tecidas abstractamente para reger uma determinada categoria de contratos. Esta situação distingue-se, quer da modificação unilateral típica — porque desligada da reponderação casuística do interesse público subjacente ao contrato —, quer da alteração das circunstâncias — na medida em que não existe imprevisão do facto gerador da alteração, apesar de ele não se esgotar na reconformação do conteúdo das prestações contratuais. A compensação a atribuir ao co-contraente há-de aproximar-se daquela concedida em sede de modificação unilateral em sentido estrito, porque, em última análise, a alteração dá-se por facto imputável ao contraente público, apesar de ter origem numa reconfiguração abstracta da regulação de uma categoria de contratos;
c) a modificação unilateral induzida ou reflexa, com origem numa alteração desencadeada por uma decisão emanada de uma entidade administrativa externa ao contrato. Neste caso, as alterações que o adjudicante promove são determinadas por valorações específicas da função administrativa mas alheias à sua esfera de intervenção. Funcionam, portanto, como um facto imprevisto para a entidade adjudicante28, que mais não faz senão reconformar a relação contratual com o conteúdo das medidas que lhe são apresentadas29. Esta alteração, em nosso
28 Neste sentido, Xxxxxx XXXXXX e Xxxxx-Xxxx XXXXXX, Droit Administratif..., cit., p. 377. Xxxxx XXXXXX XX XXXXXX (Direito Administrativo..., cit., p. 231) assinala também que, no Direito brasileiro, por força da estrutura federal do Estado, a teoria do fait du Prince só tem aplicação se a entidade responsável pela adopção das medidas gerais for "da mesma esfera de governo em que se celebrou o contrato (União, Estados e Municípios); se for de outra esfera, aplica-se a teoria da imprevisão".
29 Exemplo distinto é o apresentado por Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX (Código..., cit., p. 825), de um regulamento autárquico sobre o modo de prestação de um determinado serviço concessionado em exclusivo. Aqui, sob a aparência do exercício de um poder normativo esconde-se, na verdade, o exercício do poder de modificação unilateral, gerando um dever de reposição do equilíbrio financeiro do contrato afectado.
entender, não deve gerar, para o adjudicante, um dever de ressarcimento para além dos danos emergentes, nos termos da equidade. Isso não obviará, todavia, à propositura de uma acção, contra a entidade administrativa responsável pela emissão das medidas gerais, a título de efectivação da responsabilidade administrativa por facto lícito (exigindo, portanto, a demonstração da especialidade e anormalidade do prejuízo), caso a manutenção do contrato se revele insustentável para o co-contratante;
c’) finalmente, aquilo a que reconduziríamos o factum principis em sentido próprio: a alteração dos termos do contrato por superveniência de uma alteração legislativa que imediatamente se reflicta no seu conteúdo (sem curar de discutir agora da validade desta hipótese à luz das normas de aplicação da lei no tempo e da salvaguarda da relação contratual duradoura, nos termos do artigo 12º/2 do CC). Esta hipótese deve funcionar identicamente (e por maioria de razão) como facto imprevisto para a entidade administrativa adjudicante, gerando um dever de compensar o contraente pela manutenção do contrato em termos diferenciados, nos termos da equidade30. Caso o contrato não sobreviva à radicalidade das alterações impostas31, resta ao contraente a imputação de responsabilidade por facto da função legislativa, a determinar nos termos da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro (Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas).
iii) A alteração de circunstâncias
A consagração do instituto da alteração das circunstâncias no CCP tem o sabor da reposição de uma verdade histórica. Na verdade, depois do esquecimento a que a figura foi votada durante séculos, em homenagem ao princípio da intangibilidade do contrato, foi no Direito Administrativo que ressurgiu, sob a veste da "teoria da imprevisão"32. Mais uma vez o Conseil d'État francês se revelou determinante, lançando as bases da "indemnização de imprevisão" no Arrêt Compagnie générale d'éclairage de Bordeaux (1916), associando-a a uma alteração totalmente imprevisível, alheia à vontade de qualquer uma das partes e essencial à reposição do equilíbrio do contrato. Desonerando parcialmente a concessionária — ou seja, fazendo com que o concedente partilhe o prejuízo adveniente da alteração das circunstâncias—, a imprevisão permite a manutenção do contrato após a revisão/actualização das cláusulas directamente responsáveis pelo desequilíbrio.
30 Consideramos esta hipótese como factum principis em sentido estrito em virtude da associação que estabelecemos entre esta figura e o exercício de poderes soberanos de inovação no plano jurídico, traduzido na emanação de comandos legislativos.
31 Cfr. o exemplo avançado por Xxxxx XXXXXXXXX (O contrato administrativo..., cit., p. 136), de privatização de uma actividade que havia sido objecto de um contrato de concessão de exclusivo.
32 Sobre a figura da alteração das circunstâncias no âmbito dos contratos públicos, Xxxxxxx XXXXXXX XXXXXXXX, Contratos públicos. Subsídios para a dogmática administrativa, com exemplo no princípio do equilíbrio financeiro, Cadernos O Direito, nº 2, 2007, pp. 79 segs e 105 segs.
À semelhança do que sucedeu em França, o nosso ordenamento jurídico ressuscitou a clausula rebus sic stantibus através da teorização da imprevisão no domínio dos contratos administrativos. A economia portuguesa não ficou imune aos efeitos da I Guerra, nem à crise que se instalou subsequentemente, tendo o legislador previsto, em diplomas especiais, formas de restabelecer o equilíbrio comutativo dos contratos, sobretudo de concessão33. Para XXXXXXXX XXXXXXX, tal preocupação radicava num imperativo de equidade (“assegurar a justiça comutativa nos contratos a longo prazo”), sendo expressão de “um princípio geral de Direito Administrativo”34. A imprevisão pressupõe a ocorrência de um facto imprevisível, externo à vontade das partes, acarretando uma excessiva onerosidade para o devedor, a qual ultrapassa o risco normal do contrato. “Quando se verifique o caso imprevisto, o devedor não fica em rigor exonerado da obrigação de cumprir: apenas, conforme as hipóteses, lhe será facultado rescindir o contrato, pedir a revisão das cláusulas de remuneração ou solicitar uma indemnização” — esclarece o Mestre de Lisboa35.
Embora a aplicação da teoria da imprevisão pelos tribunais administrativos portugueses se revele errática36, certo é que o artigo 437º do Código Civil tem nela directa inspiração, como reconheceu XXX XXXXX00. Ironia do destino, o Capítulo do CPA dedicado ao contrato administrativo não aludia à modificação do contrato administrativo por alteração das circunstâncias — facto que, se podia compreender-se por não configurar um exemplo de poder exorbitante, não desculpava a ausência de (pelo menos) remissão para a lei civil como forma de disciplinar tais situações. Antes do CCP, XXXXX XXXXXXXXX identificava o artigo 437º do Código Civil como base do direito de pedir a modificação ou a resolução do contrato administrativo, quer por alteração de circunstâncias, quer na sequência do exercício do poder de modificação unilateral de que resulte um desequilíbrio da justiça contratual38. Já noutro local tivémos oportunidade de sublinhar a conveniência da incorporação do instituto na lei procedimental administrativa (ou em lei especial reguladora da matéria dos contratos administrativos, como é o CCP), frisando, no entanto, que a associação dos dois fenómenos — modificação unilateral e alteração das circunstâncias — é dogmática e praticamente perniciosa39.
33 Cfr. Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual..., 2ª ed., cit., pp. 517 (nota 1) e 518 (nota 1).
34 Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual..., 2ª ed., cit., p. 519; idem, Tratado elementar de Direito Administrativo, Coimbra, 1944, p. 343 (onde escreve que a teoria da imprevisão tem subjacente um imperativo de “realização da Justiça através de mecanismos de livre composição dos interesses diferentes”).
35 Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual..., 2ª ed., cit., p. 517.
36 Cfr. o nosso Risco e modificação..., cit., pp. 701 segs.
37 Xxxxxxx XXX XXXXX, Resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias,
in BMJ (68), 1957, pp. 293 segs, 303.
38 Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo..., cit., pp. 128-129.
39 Xxxxx XXXXX XXXXX, Xxxxx e modificação..., cit., p. 706, nota 233.
iv) A força maior
É duvidoso que a força maior deva ser mencionada em sede de modificação do contrato, na medida em que, em regra, serve de suporte, não a uma alteração do contrato, mas antes à suspensão da sua eficácia — ou à impossibilitação da sua manutenção por desaparecimento do objecto ou do interesse do credor40 — durante o período de ocorrência de um evento que perturbe a normalidade do desenvolvimento das prestações a que as partes se vincularam41. A razão porque a mencionamos aqui prende-se ao facto de, historicamente, a jurisprudência do Conseil d'État francês associar — para dissociar — força maior a imprevisão.
No arrêt Compagnie des messageries maritimes et autres, de 1909, foi considerada legítima a caracterização de uma greve decretada pelos estados-maiores da marinha mercante como cas de force majeure, paralisação essa que inviabilizava o funcionamento dos serviços postais marítimos assegurado por empresas concessionárias. O Tribunal considerou que tal greve constituía um caso de força maior, na medida em que: a) era totalmente alheia à vontade do contraente que a invoca; b) era impossível de prever ou evitar; e c) inviabilizava em absoluto o cumprimento das obrigações contratualmente assumidas.
A força maior surge, assim, como uma justificação da paralisação do serviço, o qual, após a sua cessação — caso seja temporária — volta a funcionar como do antecedente, nos mesmos termos, e sem que a suspensão da actividade importe penalizações para o devedor da prestação. Caso o evento impeditivo se prolongue e torne o cumprimento impossível, então a força maior transforma-se em causa de rescisão legítima por qualquer das partes (por perda de interesse do credor ou por desaparecimento do objecto do contrato). Pode acontecer, porém, que a impossibilidade se traduza na excessiva onerosidade (caso típico de uma inesperada alta de
40 O nº 2 do artigo 509º do CC define força maior como "toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa". Segundo Diogo FREITAS DO AMARAL (Curso..., cit., p. 652), a força maior traduz-se no "facto imprevisível e estranho à vontade dos contraentes que impossibilita absolutamente o cumprimento das obrigações assumidas" (já assim, Xxxxxxxx XXXXXXX, Manual..., 10ª ed., cit., p. 623), mas o conceito é operativo quer em casos de impossibilidade temporária ou parcial (cfr. os artigos 792º e 793º do CC), quer em hipóteses de impossibilidade absoluta (artigo 790º/1 do CC) — com consequências distintas.
Segundo Xxxxxxxx XXXXXXX XXXXX (Tratado..., cit., pp. 95-96, nota 29), a força maior pode adquirir, em sede de contrato administrativo, um triplo efeito:
i) determina o incumprimento definitivo, sem culpa de qualquer das partes;
ii) suporta o incumprimento temporário, exonerando a parte impossibilitada de cumprir de responsabilidade contratual;
iii) pode gerar um dever de indemnizar o co-contratante, como se de um seguro de risco anormal se tratasse ("Es como um seguro constituído sin prima de asseguramiento, como una cobertura de riesgos concedida por el más fuerte, por quien tiene un interés público en evitar la ruína de la empresa"). Esta última vertente configura, em bom rigor, um caso de força maior deslizante para a imprevisão — por razões que se prendem com o grande interesse de manutenção do contrato. A jurisprudência do Conseil d'État comprova esta hipótese.
41 O artigo 297º/a) refere a possibilidade de suspensão de execução do contrato em termos suficientemente abertos ("impossibilidade temporária de cumprimento do contrato") para aí caber a figura da força maior. Ver também o artigo seguinte, que incide sobre o recomeço da execução.
preços): aí, a invocação de força maior pode ser atalhada com a atribuição de uma indemnização que restabeleça o equilíbrio contratual, sendo-lhe aplicado o mesmo regime da imprevisão, a fim de possibilitar a continuação de execução do contrato.
2.3.2. A modificação unilateral e a questionável aproximação à alteração das circunstâncias
Depois de panoramicamente passados em revista os institutos da modificação unilateral e da alteração das circunstâncias (e figuras próximas), cumpre agora averiguar como disciplinou o CCP estas figuras e que soluções determinou em razão da caracterização operada.
Deve começar-se por relembrar uma regra de ouro neste domínio: a intangibilidade do objecto do contrato — artigo 313º/1, 1ª parte. A Administração "pode mudar o contrato mas não pode mudar de contrato"42. Na verdade, se o objecto do contrato for atingido — numa perspectiva qualitativa, sempre — estaremos em presença de um novo contrato e fora do âmbito de uma "mera" modificação43. Além da intocabilidade do objecto do contrato, o artigo 313º revela também uma especial preocupação com a salvaguarda das condições de leal concorrência, vedando qualquer forma de manipulação do poder de modificação (em conluio com o co-contratante) que as afronte. De acordo com o nº 2 do preceito, uma modificação unilateral — ressalvadas as situações de modificações necessárias por força do decurso do tempo — só não falseia a concorrência se for “objectivamente demonstrável que a ordenação das propostas avaliadas no procedimento de formação do contrato não seria alterada se o caderno de encargos tivesse contemplado essa modificação”44.
Um outro limite, específico dos contratos com objecto passível de acto administrativo ou sobre o exercício de poderes públicos prende-se com o respeito pela margem de livre decisão administrativa. Nestas hipóteses, estatui o nº 3 do artigo 313º, a modificação por alteração de circunstâncias anormais, imprevisíveis e totalmente fora do âmbito dos riscos do contrato, ou opera por acordo entre as partes, ou gerará a resolução do contrato — uma vez que ao tribunal, judicial ao arbitral, está vedada a interferência no espaço de valoração próprio da entidade administrativa.
O artigo 312º indica dois fundamentos para a modificação do contrato: em razão de superveniência de circunstâncias anormais e imprevisíveis45, “desde que a exigência das obrigações por si assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta
42 Diogo FREITAS DO AMARAL, Curso..., cit., p. 620.
43 Atente-se nos vários exemplos avançados por Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Direito Administrativo, cit., pp. 699-700. O Autor alerta para a restrição do poder de modificação unilateral às chamadas "cláusulas regulamentares", por contraposição às "cláusulas contratuais". Estas definem direitos e deveres recíprocos dos contraentes, não interferindo com o modo de realização do interesse público; aquelas respeitam à organização do serviço ou utilização do bem, disciplinando a sua fruição pelos utentes. As cláusulas de incidência económica devem considerar-se, em regra, contratuais — por isso, imodificáveis —, "mas só quanto às que não se repercutam directamente na exploração do serviço, obra ou bem público; caso contrário, a cláusula deve considerar-se «regulamentar», portanto, modificável" (pp. 701-702). V. também Xxxxxxxx XXXXXXX XXXXX, Tratado..., cit., pp. 91-92; Xxxxxx XXXXXX e Xxxxx-Xxxx XXXXXX, Droit Administratif..., cit., p. 375.
44 Um reforço da transparência inerente a esta modificação é induzido pelo artigo 315º, que obriga à publicitação das alterações objectivas do contrato que representem um valor acumulado superior a 15% como condição de eficácia dos actos/acordos modificativos.
45 Note-se que o artigo 79º/1/d) (e nº 4) apela identicamente à figura para justificar decisões de não adjudicação já após a conclusão do procedimento pré-contratual.
pelos riscos próprios do contrato” — alínea a) —, e “por razões de interesse público decorrentes de necessidades novas ou de uma nova ponderação das circunstâncias existentes”
— alínea b). Até aqui, o CCP parece inspirar-se na dicotomia tradicional: a primeira figura, ressuscitada pelo Direito Administrativo mas relegada pelo CPA estritamente para o domínio do Direito Civil (artigo 437º do CC); a segunda, com ligação estreita ao estatuto de poder detido pela Administração na relação contratual de Direito Administrativo. Problemática é a abertura revelada no artigo 314º/1/a) a uma terceira via, construída a partir da fórmula da “alteração anormal e imprevisível”, mas dependente da actuação do contraente público, ainda que fora do exercício dos seus poderes de conformação.
O poder de modificação unilateral, na sua essência, tem sempre um fundamento subjectivo: a reponderação das circunstâncias de interesse público que subjazem ao contrato. A modificação perturba o equilíbrio da relação contratual por causa exclusivamente imputável à entidade adjudicante (tenha ela uma incidência directa no contrato ou puramente reflexa). Daí que a sua invocação se deva ao adjudicante/contraente público e a contestação dos seus termos caiba ao adjudicatário.
Já a alteração das circunstâncias — ainda que entendida em sentido lato, como uma mudança dos pressupostos físicos, económicos e jurídicos de execução do contrato — deriva de uma causa objectiva, externa às partes, imprevisível, que torna a manutenção da relação contratual insustentável nos termos inicialmente previstos devido à excessiva onerosidade que provoca para o adjudicatário. Daí que a sua invocação caiba a qualquer dos dois (cfr. os artigos 312º/2 e 332º/1/a))46.
A assimilação entre modificação unilateral lato sensu e alteração das circunstâncias, no artigo 314º/1, perturba a percepção deste desdobramento. Como explica XXXXX XXXXXXXXX, "uma coisa é a modificação unilateral imposta pelo contraente público, que, do ponto de vista do co-contratante implicará, em princípio, a reposição do equilíbrio financeiro do contrato (...). Nesta hipótese, há uma sucessão lógica dos seguintes momentos: i) consideração, pelo contraente público, de um facto de interesse público que, na sua óptica, recomenda uma modificação; ii) imposição da modificação de cláusulas contratuais; iii) reposição do equilíbrio financeiro do contrato, em benefício do co-contratante (na medida em que não suporte qualquer risco de modificação).
Diferente se apresenta a modificação por força da alteração de circunstâncias; neste caso, a sucessão é a seguinte: i) alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes
46 Ressalte-se, com Xxxxxxxx XXXXXXX XXXXX (Tratado..., cit., p. 93), que a invocação da causa superveniente de modificação do contrato pelo co-contratante pode ser levada a cabo mesmo que o contrato exclua tal possibilidade — em homenagem à prevalência da justiça do contrato.
fundaram a decisão de contratar; ii) pretensão no sentido da modificação, a qual se traduzirá, em regra, numa alteração das cláusulas financeiras, segundo critérios de equidade"47.
Temos então um sistema (falsamente ternário) em que: 1) as modificações por razões de interesse público se desencadeiam por iniciativa do contraente público; 2) as modificações decorrentes de alterações “anormais e imprevisíveis” promovidas por decisão do contraente público mas alheias ao seu poder de conformação da relação contratual, que se repercutam especificamente na esfera do co-contraente, são identicamente promovidas pelo contraente público; e 3) as restantes “alterações anormais e imprevisíveis” poderão ser invocadas por qualquer um dos contraentes, embora o artigo 311º/2 leve a crer que a modificação unilateral é a única forma de alteração invocável pelo contraente público (ou, noutra perspectiva, que a alteração de circunstâncias aí se reconduz).
Esta corrupção da figura da alteração anormal e imprevisível através da sua aplicação a modificações previsíveis, porque imputáveis a decisão do contraente público — ainda que abstractamente determinadas —, parece-nos perniciosa e evitável. O legislador poderia ter identificado a situação da alínea a) do artigo 314º através da expressão “modificação em virtude de alteração do enquadramento normativo relativo à categoria contratual em causa” ou, pelo menos, ter evitado a qualificação da alteração como adveniente de cicunstâncias “anormais e imprevisíveis”.
Não é apenas em nome da pureza dos conceitos que nos insurgimos contra esta terminologia pouco feliz. Note-se que, mais adiante, em sede indemnizatória, o legislador reconhece direito à compensação por parte do contraente sujeito a uma alteração deste tipo caso o contrato deva ser resolvido, em termos idênticos à hipótese de indemnização por resolução unilateral baseada em motivos de interesse público (artigo 335º/2), enquanto a resolução por alteração anormal e imprevisível típica, quando admissível, não confere qualquer direito a indemnização — uma vez que a causa de rescisão é totalmente alheia ao contraente público e, não podendo manter-se o contrato, não existe qualquer base justificativa da actuação de um mecanismo de repartição do risco como a “indemnização de imprevisão”.
2.3.3. As consequências da modificação do contrato
Alterar unilateralmente as condições de cumprimento de um contrato no decurso da sua execução constituirá, sempre, uma perturbação das expectativas da contraparte e, a maioria das vezes, uma violação do equilíbrio contratual. O CCP não podia alhear-se de regular as
47 Xxxxx XXXXXXXXX, A relação..., cit., p. 41.
consequências da modificação, pelo menos quando ela não resulta de acordo entre as partes. Foi o que fez no artigo 314º48, ainda que em termos menos felizes, como acabámos de observar. Esta disposição determina, no nº 1, os efeitos da modificação unilateral por motivos de interesse público49, abstracta e concretamente configurados — alíneas a) e b), respectivamente; no nº 2, os efeitos da incidência de uma alteração anormal e imprevisível das circunstâncias sobre o contrato. O CCP distingue as duas situações, não só dedicando-lhes sedes diferentes (nºs 1 e 2), como utilizando uma diferente terminologia quanto ao ressarcimento de prejuízos
— "reposição do equilíbrio financeiro", no nº 1; "compensação financeira, segundo critérios de equidade" (a "indemnização por imprevisão"), no nº 2. Estas disparidades — insistimos — encontram o seu fundamento na causa que determina a alteração do contrato: uma razão subjectiva, expressão da vontade funcional da entidade adjudicante, no primeiro caso, com cujas consequências lesivas acarreta — é o "preço" da melhoria da prossecução do interesse público que obterá pela via da modificação contratual unilateralmente imposta; uma razão objectiva, alheia à vontade das partes, no segundo caso, cujas consequências lesivas não devem, nem ser exclusivamente suportadas pela entidade adjudicante (que não concorreu para elas), nem pelo adjudicatário (que vê o risco do negócio consideravelmente agravado) — o "custo extraordinário" da continuidade de prossecução do interesse público tem que ser rateado, de acordo com critérios de equidade.
Mas o desdobramento de fundamentos de modificação imputáveis ao contraente público, presente nas duas alíneas do nº 1 obriga ainda a uma segunda distinção:
i) modificação unilateral stricto sensu (alínea b)): da iniciativa do contraente público; gera a manutenção do contrato com alterações; confere ao contraente particular o direito à reposição do equilíbrio financeiro;
ii) modificação unilateral lato sensu (alínea a)): da iniciativa do contraente público; gera a manutenção do contrato com alterações ou a sua resolução, por iniciativa do contraente público; se o contrato se mantiver, dá direito à reposição do equilíbrio financeiro, se o contrato se resolver, dá direito a indemnização por danos emergentes e lucros cessante, descontado o benefício da antecipação dos ganhos, a favor do co-contraente;
iii) modificação por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias (nº 2 — todas as soluções que não se reconduzam ao nº 1): da iniciativa do contraente particular ou, apesar da ambiguidade da lei, do contraente público; gera ou a manutenção do contrato com direito a compensação nos termos da equidade, ou a manutenção do contrato apesar da excessiva onerosidade para a contraparte privada (hipótese em que o CCP parece admitir, a fim de evitar
48 Vejam-se também os artigos 292º/4 (adiantamentos) e 295º/1 (liberação da caução).
49 Cfr. um caso de modificação unilateral de um contrato de uso privativo do domínio público para exploração de um parque de estacionamento, o Acórdão do STA de 22 de Outubro de 1996, in ApDR de 15 de Abril de 1999, pp. 7008 segs.
a resolução, que a compensação do co-contraente possa ir além dos termos da equidade: cfr. o artigo 332º/2, 2ª parte); ou ainda a resolução do contrato, nos termos do artigo 332º/1/a) e nº 2, 1ª parte, que tendencialmente excluirá a indemnização50.
Em última análise, as situações ganham autonomia: 1) em razão da iniciativa: exclusiva do contraente público, nos dois primeiros casos; alternativa do contraente público ou do co- contraente privado, em todos os terceiros; e 2) em razão do quantum indemnizatório: reposição do equilíbrio financeiro, nos dois primeiros casos; compensação equitativa (ou outra, excepcional), nos terceiros.
O CCP avança, no artigo 282º, três modalidades de concretização da reposição do equilíbrio financeiro do contrato51: a prorrogação do prazo de execução das prestações ou de vigência do contrato; a revisão de preços52; e a assunção do dever de prestar à contraparte o valor correspondente ao decréscimo das receitas esperadas ou ao agravamento dos encargos previstos com a execução do contrato (artigo 282º/3, numa enumeração em que a ordem dos factores parece não ser arbitrária). Sublinhe-se que "o co-contratante só tem direito à reposição do equilíbrio financeiro quando, tendo em conta a repartição do risco entre as partes, o facto invocado como fundamento desse direito altere os pressupostos nos quais o co-contratante determinou o valor das prestações a que se obrigou, desde que o contraente público conhecesse ou não devesse ignorar esses pressupostos" (artigo 282º/2). Em caso algum a reposição do equilíbrio financeiro pode colocar qualquer das partes em situação mais favorável do que a que, para elas, resultava do quadro inicialmente estabelecido, não podendo cobrir eventuais perdas já verificadas apesar do equilíbrio previsto ou que eram inerentes ao risco próprio do contrato (artigo 282º/6).
Repare-se que a opção do legislador (plasmada no artigo 314º) foi no sentido de reconduzir a alteração provocada pela emissão de medidas por entidade diversa da adjudicante aos "demais casos de alteração anormal e imprevisível das circunstâncias”, quer estas medidas tenham origem na função administrativa, quer na função legislativa. A associação, presente no artigo 314º/1/a), entre a decisão imputável ao contraente público e a alteração anormal e
50 Esta isenção do direito a indemnização faz pleno sentido nos termos contratuais, dado que o facto superveniente que inviabiliza o cumprimento funciona como um "act of God", pelo qual nenhuma das partes pode ser considerada responsável. O que o artigo 332º/2, 2ª parte pretende é forçar a modificação, excluindo-a apenas quando a resolução não provocar grave prejuízo para o interesse público ou, existindo este, quando a manutenção do contrato puser em causa a viabilidade económico-financeira do co- contratante ou se revelar excessivamente onerosa. No limite, o apelo à ponderação de interesses que a parte final contempla — relacionado com a excessiva onerosidade que a manutenção envolveria — parece traduzir-se numa hipótese de viabilização da manutenção do contrato, embora com uma “indemnização” superior à que derivaria da aplicação de um critério de equidade pura mas inferior à decorrente da reposição do equilíbrio financeiro (por um lado, em atenção ao elevado interesse público que a continuidade da relação contratual oferece e, por outro lado, ao esforço económico que o contraente será forçado a desenvolver com vista à sua manutenção).
51 Cfr. um caso de reposição do equilíbrio financeiro do contrato no Acórdão do XXX xx 00 xx Xxxxxxxx
xx 0000 (xxxx. 01407/03).
52 A especialidade desta revisão de preços não deve confundir-se com a revisão ordinária prevista em sede de contrato de empreitada — cfr. o artigo 382º.
imprevisível das circunstâncias deixa-nos, todavia, na dúvida sobre as reais intenções do CCP: quererá significar que as modificações induzidas, promovidas por entidades externas ao contrato (daí imprevisíveis) que o adjudicante se veja forçado a incorporar neste (logo, não auto-exequíveis) são equiparadas a uma opção livre e determinada pela reponderação do interesse público casuisticamente orientada (solução mais vantajosa para o co-contratante, pois dá-lhe direito à reposição do equilíbrio financeiro)?
Ou, de forma diversa (e que abriria uma quarta via) pretenderá acentuar a autonomia decisória do contraente público na emissão de medidas gerais que virão a reflectir-se sobre o contrato, fruto de ponderações exclusivas e livres de interferência externa, remetendo todas as modificações induzidas para a “alteração anormal e imprevisível” do nº 2 (solução menos vantajosa para o co-contratante, uma vez que fica sujeito a critérios de equidade)? Pensamos que a segunda hipótese, embora menos garantista, é a que melhor quadra com a natureza subjectiva do poder de modificação unilateral, bem assim como com o princípio geral de imputação subjacente ao mecanismo da responsabilidade (ainda que numa dimensão especial da responsabilidade por facto lícito53). Mas fica a dúvida.
2.4. Poder de sancionamento
O poder de aplicar sanções, previsto no artigo 302º/d), traduz-se na prática de actos administrativos que visam compelir o co-contratante à boa execução das obrigações contratuais ou, no limite, resolver o contrato. O CCP deixa claro, no artigo 307º/2/c), que se trata de actos administrativos — facto que releva, não só para efeitos de impugnação judicial, como também para a determinação de formalidades procedimentais.
Com efeito, por um lado, estas decisões são atacáveis pela via da acção administrativa especial de impugnação da validade de actos administrativos (artigos 50º segs do CPTA), destacando-se de outros actos praticados no âmbito da execução do contrato que, se não identificados no lote do nº 2 do artigo 307º, deverão ser questionados pela via da acção administrativa comum (artigo 37º do CPTA). Por outro lado, a intensidade do poder de ingerência que os actos sancionatórios implicam levou o legislador do CCP — desde logo por influência constitucional (cfr. o artigo 32º/10 da CRP) — a exigir, em regra, a audiência prévia do co-contratante, nos termos do CPA (nomeadamente, dos artigos 100º e segs) — artigo 308º/
2. A audiência poderá ser dispensada — e esta constitui uma especialidade relativamente ao
53 Por facto lícito, porque se presume a funcionalidade da modificação ao incremento da forma de prossecução do interesse público subjacente ao contrato. Especial em face do regime previsto no artigo 16º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, na medida em que o co-contratante não tem que demonstrar um dano especial e anormal, presumindo-se o dever de reposição do equilíbrio contratual por parte da Administração independentemente desta prova. E especial ainda por não se tratar, em rigor, de responsabilidade contratual, por incumprimento total ou deficiente.
disposto no artigo 103º/2 do CPA — "se a sanção a aplicar tiver natureza pecuniária e se encontrar caucionada por garantia bancária à primeira solicitação ou por instrumento equivalente, havendo fundado receio da mesma se frustrar por virtude daquela audiência" (artigo 308º/3).
A redacção do artigo 302º/d) provoca uma certa hesitação quanto à abrangência deste poder, na medida em que se refere às sanções "previstas para a inexecução do contrato"54. Quererá isto dizer que o exercício do poder de aplicar sanções não se basta com a habilitação deste dispositivo, necessitando de uma concretização suplementar, em lei avulsa e/ou no contrato? Cremos que o CCP alinha pela corrente maioritária que, já na vigência do CPA, não aceitava a existência do poder de aplicar sanções como inerente ao estatuto da Administração no contrato administrativo55. A lei é aqui mera fonte mediata do poder de aplicar sanções contratuais56. Por outras palavras, no que tange à aplicação de sanções, a previsão deste poder e a configuração concreta daquelas deverão constar de lei aplicável à categoria de contratos em causa, ou do próprio contrato, em homenagem a um princípio de tipicidade inarredável neste domínio57.
O exercício do poder sancionatório pode redundar na resolução do contrato — v. infra,
2.5.1. — ou na aplicação de sanções de natureza pecuniária. Nesta hipótese, o artigo 329º dispõe, no seu nº 2, que o "respectivo valor acumulado não pode exceder 20% do preço contratual, sem prejuízo da possibilidade de resolução unilateral do contrato". Note-se, todavia, que se a ponderação do interesse público for no sentido da não resolução do contrato, este limite é elevado para 30% (artigo 329º/3).
2.5. Poder de resolução unilateral
A possibilidade de resolução unilateral do contrato não é exclusiva do contrato administrativo
54 Fórmula, de resto, idêntica à que constava da alínea e) do artigo 180º do CPA.
55 Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX, Código...,
cit., p. 827. Questão diversa era a de apurar a natureza do acto que decreta a resolução-sanção — cfr. Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, O acto..., cit., pp. 15-16.
56 Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo..., cit., pp. 106 e 111.
57 Cfr., por exemplo, o artigo 403º/1, relativo às sanções aplicáveis no contexto do contrato de empreitada.
58 Reconhecendo residir aqui a "exorbitância", Xxxxx XXXX XXXXXXXXXX, Requiem..., cit., p. 130 — embora a Autora "desmistifique" a qualidade deste poder, que "não resulta do contrato, mas sim da própria posição jurídica geral da Administração, de natureza extracontratual" (p. 145).
Há duas hipóteses que podem redundar na resolução do contrato administrativo: por um lado, a inexecução do contrato ou a violação grave de deveres contratuais; por outro lado, a superveniência de um motivo de interesse público que obriga à cessação do vínculo contratual. Observêmo-las mais de perto.
2.5.1. A resolução-sanção
O CCP denota, quanto à resolução-sanção, uma orientação clarificadora e potenciadora do poder de conformação da Administração. Veja-se que, ao contrário do CPA, o artigo 302º/1/e), ao mencionar a resolução unilateral do contrato, não restringe esta hipótese à resolução por imperativo de interesse público — abrindo o seu âmbito, portanto, à rescisão-sanção. O facto de este poder não ter que estar previsto no instrumento contratual — por estar ancorado na lei geral que agora é o CCP — não desobriga a Administração do respeito por dois princípios "de contrapeso": a legalidade e a proporcionalidade.
Com efeito, por um lado, os fundamentos de exercício do poder de resolução-sanção, ao contrário da faculdade de resolução por imperativo de interesse público, são vinculados: cfr. as várias alíneas do artigo 333º/1. Por outro lado, o legislador preocupou-se em balizar este poder de acordo com cânones de proporcionalidade — facto compreensível, dada a lesividade em que se traduz o seu exercício, quer para o adjudicatário, quer para o adjudicante60. A resolução- sanção deve ser precedida de uma notificação do contraente público ao co-contratante no sentido de este cumprir as obrigações em falta, em prazo razoável (artigo 325º/1). Não surtindo efeitos esta notificação, então o contraente público pode ainda optar pela efectivação das prestações fungíveis em falta, por si ou por terceiro — facto que não exime o co-contratante da responsabilidade pelo atraso no cumprimento (artigo 325º/4) —, ou por resolver o contrato (artigo 325º/2). A estas iniciativas junta-se — ou seja, não tolhem — a aplicação de sanções previstas no contrato para o caso de incumprimento (artigo 325º/5).
59 Não excluindo a possibilidade de responsabilização do co-contratante por danos resultantes da necessidade de promover novo procedimento concursal — artigo 333º/2.
60 Diogo FREITAS DO AMARAL (Curso..., cit., p. 647) sublinha o carácter excepcional desta sanção, considerando que a sua aplicação deve constituir uma medida de ultima ratio.
Deve mencionar-se também o disposto no artigo 322º/2. Este preceito admite, em casos de incumprimento grave por parte do co-contratante, a intervenção das entidades financiadoras, mediante autorização (convite?) do contraente público, com vista a assegurar a continuidade das prestações contratuais. Parece ser mais uma expressão do princípio da subsidiariedade da resolução (cfr. o paralelo da subsidiariedade da execução coerciva, presente no artigo 151º/2 do CPA, corolário da lógica de proporcionalidade que envolve a matéria e que, por maioria de razão — dupla dimensão dos interesses em jogo — também se verifica em sede de execução do contrato administrativo).
2.5.2. A resolução por razões de interesse público
Resolver um contrato com base num fundamento discricionário, traduzido na reavaliação de prioridades de interesse público e/ou das formas da sua prossecução constitui — como, de resto, embora em menor medida, modificar os termos do seu cumprimento através do poder de modificação — um atentado ao princípio de que os "contratos devem ser cumpridos". No entanto, como assinala XXXXX XXXXXXXXX, "a cega exigência de cumprimento pontual do contrato (pacta sunt servanda) traduzir-se-ia, no fim de contas, na inversão de toda a lógica do direito público, dando prevalência ao contrato (e aos interesses do particular contratante na manutenção do vínculo contratual) sobre o interesse público"61. Este poder constitui, assim, uma verdadeira "reserva de interesse público"62.
Desta feita, compreende-se que, além da resolução sancionatória, por incumprimento de deveres contratuais, a Administração goze também do poder de pôr fim ao contrato, independentemente do seu fiel cumprimento, por "razões de interesse público", devidamente fundamentado, e mediante o pagamento ao co-contratante de justa indemnização" (artigo 334º/1). Esta compensação cobre, nos termos do artigo 334º/2, danos emergentes e lucros cessantes, deduzindo-se destes o benefício que resulte da antecipação de ganhos previstos.
61 Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo..., cit., p. 104.
62 Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX, Código...,
cit., p. 826.
63 Chamando identicamente a atenção para a existência de limites ao exercício deste poder, Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX, Código..., cit., p. 826 (a existência de um motivo imperioso e a adstrição ao objecto do contrato).
ii.) A resolução por motivo de interesse público não deve ser utilizada como forma de mascarar o incumprimento da entidade adjudicante65. O respeito pelo fim da competência — a prossecução do interesse público — deve ser observado, sob pena de desvio de poder;
iii.) O exercício do poder de resolução unilateral encontra-se subordinado ao princípio da proporcionalidade, na vertente do equilíbrio: se a Administração puder modificar, não deve resolver o contrato (até porque o quantum indemnizatório é tendencialmente equivalente em ambos os casos)66;
A questão que resta é a de saber o que sucede na hipótese de o co-contratante decidir impugnar o acto que determina a resolução por motivos de interesse público68. Sendo certo que a justiça administrativa oferecerá decerto forte resistência à anulação de um acto com conteúdo tão fortemente discricionário — mas com elementos vinculados, como vimos —, não é menos verdade que, através da suspensão jurisdicional da eficácia e da intimação do co-contratante para continuar a receber as prestações, se concedidas as providências, o autor conseguirá travar a atitude de incumprimento da Administração até à prolação da decisão final69. Não logrando
64 Cfr. Xxxxxx XXXXX XX XXXXXXX, Le pouvoir de décision unilatérale. Étude de Droit comparé interne, Paris, 2006, p. 80, nota 29.
65 De alguma maneira, a exigência de respeito pelo princípio da boa-fé, na alínea d) do nº 1 do artigo 332º, constitui uma refracção desta ideia.
66 A modificação unilateral por razões de interesse público estreitamente relacionadas com a reponderação dos objectivos do contrato gera o dever de reposição do equilíbrio financeiro, o qual, nos termos do artigo 282º/3, redunda, no limite, na reparação de danos emergentes e compensação de lucros cessantes (“...dever de prestar à contraparte o valor correspondente ao decréscimo das receitas esperadas ou ao agravamento dos encargos previstos com a execução do contrato”); já a resolução por razões de interesse público redunda, de acordo com o nº 2 do artigo 334º, no dever de indemnizar por danos emergentes e lucros cessantes, devendo, quanto a estes, ser deduzido o benefício que resulte da antecipação dos ganhos previstos.
67 Embora, na hipótese sub judice, tenhamos sérias dúvidas sobre a legitimidade — rectius, o interesse
— de outros sujeitos que não o co-contratante para lutar contra a causa de resolução unilateral decretada pela Administração. Por outras palavras, admitimos a sua presença em juízo, no âmbito da acção administrativa especial de impugnação da validade do acto, como co-autores/assistentes, mas sempre na presença obrigatória do co-contratante, que é quem decide sobre se pretende continuar a cumprir — apesar do desinteresse da Administração — ou não.
68 A audiência prévia do co-contratante parece estar excluída por força do disposto no nº 1 do artigo 308º
69 Para uma análise da situação no Direito Administrativo francês — hoje sensivelmente alterada em virtude do surgimento do référé-suspension —, Xxxxxx XXXXX DE BOULOIS, Le pouvoir..., cit., pp. 92 segs.
sucesso no processo cautelar, é duvidoso que, por força do decurso do tempo, lhe reste outra via que não a indemnizatória — por facto ilícito, consubstanciado na ilegítima invocação de causa de resolução por imperativo de interesse público.
Uma última nota para referir que o CCP associa — na sequência da opção a que procede no artigo 314º/1 — resolução por motivos de interesse público relacionados com intervenções específicas no contrato, e resolução por superveniência de alterações motivadas por reconsiderações do interesse público abstractamente determinadas e incidentes sobre toda uma categoria de contratos. Trata-se de alterações promovidas por razões subjectivas, o que justifica a identidade de consequências. Com efeito, o artigo 335º confere ao ente público a faculdade de resolver o contrato caso este sofra uma alteração reflexa motivada por decisão sua, tomada fora do âmbito do exercício de poderes de conformação da relação contratual. A consequência é a mesma que a do exercício do poder de resolução unilateral stricto sensu: a indemnização por danos emergentes e lucros cessantes, descontado o ganho em virtude da antecipação do benefício (artigo 335º/2 por remissão para o nº 2 do artigo 334º). É uma solução perfeitamente compreensível à luz da previsibilidade desta alteração, no confronto com a típica alteração “anormal e imprevisível de circunstâncias”, de carácter objectivo e não imputável ao contraente público.
3. A natureza dos actos de conformação da relação contratual
Do artigo 307º resulta uma opção clarificadora no sentido da qualificação dos impropriamente chamados "actos destacáveis" praticados pela Administração no âmbito da execução do contrato. A vaexata questio de saber se são actos negociais ou actos administrativos70 — neste último caso, com as características de imperatividade e eventual executividade (se lei habilitante lha reconhecer) — está hoje tendencialmente ultrapassada, remetendo-se o co- contratante para a acção administrativa comum caso o acto emitido pela Administração se não reconduza a uma das categorias desenhadas no nº 2 do preceito citado (nomeadamente, ao pedido interpretativo da validade ou do sentido da declaração emitida, ou mesmo dos seus efeitos no plano da execução do contrato, nos termos da alínea h) do nº 2 do artigo 37º do CPTA)71.
Esta fórmula permite afirmar que, no domínio dos actos administrativos de execução do contrato, há tipicidade. Por outras palavras, no âmbito da execução do contrato administrativo, os actos praticados pela Administração que se reconduzam a:
70 Sobre os termos da controvérsia, Xxxxx XXXXXXXXX, O contrato administrativo..., cit., pp. 113 segs.
71 Para uma síntese das consequências práticas da qualificação dos actos como actos administrativos ou declarações negociais, v. Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, O acto administrativo..., cit., pp. 6-7.
- ordens, directivas ou instruções;
- actos determinativos da modificação unilateral do contrato por razões de interesse público, através de medidas individuais ou gerais;
- actos sancionatórios, de natureza pecuniária ou que envolvam a resolução do contrato; e
- actos que consubstanciem a vontade de resolver unilateralmente o contrato por motivo de imperativo interesse público,
revestem a natureza de actos administrativos, devendo ser atacados através da acção administrativa especial de impugnação da validade do acto e, sobretudo, da providência cautelar da suspensão da sua eficácia, uma vez que, em regra, constituem título executivo e, sempre que se traduzam na resolução do contrato72, são exequíveis independentemente do recurso (pela Administração) à via judicial73.
Esta opção acantona a administratividade dos actos no núcleo dos poderes de ingerência mais intensos ao dispor do contraente público (embora esta exorbitância seja seguramente mais palpável no que concerne ao poder de modificação e ao poder de resolução por razões de interesse público). Contemplando a lei processual administrativa vias de sindicância, quer de declarações negociais, quer de actos administrativos, com idêntico grau de efectividade de tutela do autor da acção e de terceiros, tudo reside em saber, na prática, que acréscimo traduz a natureza de acto administrativo e se tal acréscimo se justifica em nome da função do contrato.
Ao conferir auto-executividade apenas aos actos que determinam a resolução do contrato, o sequestro e o resgate de concessões (e outros aos quais a lei expressamente conceda tal virtualidade74-75), o CCP realizou uma ponderação adequada entre os valores da autonomia e da autoridade. Os actos aos quais se reconhece administratividade são apenas e só aqueles cuja funcionalização à realização do interesse público, com continuidade e qualidade, se revele inquestionável. Na síntese de R. XXXXXXX XX XXXXXXXX, "a actuação por acto administrativo deve existir (e estar legalmente prevista) para assegurar a permanente e eficaz disponibilidade administrativa do interesse público contratualizado (é para isso que servem os
72 Sublinhe-se a oscilação da jurisprudência relativamente à qualificação do acto que determina a resolução do contrato por incumprimento como acto administrativo — cfr. Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, O acto administrativo..., cit., pp. 15-16 —, que o CCP vem afastar.
73 A ausência de regulação específica da acção executiva de actos administrativos torna-se bem patente nesta sede. Repare-se que a acção executiva do CPTA está pensada para ser esgrimida por particulares contra a Administração — daí que o CPTA tenha remetido para o CPC os termos da execução contra particulares. Porém, num caso em que a Administração detenha o título executivo/acto administrativo e o queira executar contra o co-contratante, este, se pretender sindicar a validade do acto, terá que suscitar um incidente no processo executivo que deverá sustar a instância até que o juiz avalie da conformidade do acto com o bloco legal (e contratual) aplicável — o qual, em princípio, não poderá ser deduzido caso sobre a notificação do acto ao co-contratante já tenham decorrido mais de três meses (prazo de impugnação do acto administrativo, nos termos do artigo 58º/2/b) do CPTA).
74 Como é o caso do acto que determina a execução da caução, “sem necessidade de prévia decisão
judicial ou arbitral”, nos termos do artigo 296º/1.
75 Esta abertura, algo camuflada, constitui uma brecha na enumeração taxativa do nº 2 do artigo 307º. Porém, como se trata de remissão para disposição legal expressa, pensamos que não compromete os objectivos do preceito.
poderes de modificação unilateral, de direcção, de rescisão-sancionatória e de rescisão por imperativo de interesse público) e, embora aqui a questão não se coloque num plano tão fundamental, mas ainda assim útil e justificado, nas garantias de supervisão e controlo (poder de direcção) e de contínua compulsão (em regra, por via das multas contratuais ou similares), rapidamente efectiváveis. É essa a razão de ser da autoridade no contrato administrativo"76.
Naturalmente que, do ponto de vista axiológico, se pode contestar — como faz XXXXX XX XXXXXXX — a “subjugação dos particulares”77 no âmbito do contrato administrativo, ancorada numa suposta lógica autoritária (que nem no Estado Novo se vislumbrava, segundo o Autor), a qual perpetuaria arcaicamente uma posição de supremacia do contraente público e uma atitude reverencial dos contraentes particulares. Esta opção seria sobretudo controversa “atenta a definição ampla e heterogéna de contrato administrativo de que parte o Código, que, muito para além do círculo limitado dos referidos tipos contratuais emblemáticos, implica (...), que, em última análise, para que um contrato seja administrativo, basta que as partes entendam estipular que assim é (ou seja, que o contraente público faça prever que assim é), sem que o Código estabeleça, entretanto, quaisquer parâmetros conformadores do poder que, deste modo, confere aos contraentes públicos de fazerem qualificar como administrativo todo e qualquer contrato que celebrem, independentemente do seu objecto ou causa-função”78.
Todavia, e salvo o devido respeito, julgamos que não deve tomar-se o todo pela parte. Por um lado, a excessiva abertura do critério da administratividade do contrato não pode ser argumento para esvaziar da marca de autoridade os contratos administrativos típicos. Por outro lado, ao legislador cumpre a tarefa indeclinável de salvaguarda do interesse público através da consignação de poderes que se exprimem com uma autoridade própria, que lhes imprime eficácia mas nem por isso desguarnece a posição do co-contraente. Acresce que:
- o facto de a Administração deter os poderes não implica o seu exercício, muito menos arbitrário — embora lhe esteja vedada a renúncia ao exercício;
- o investimento de um particular na possibilidade de colaborar com a Administração através da celebração de um contrato administrativo abre-lhe perspectivas de lucro que, em, regra, não obteria no tráfico privado. Essa mais-valia tem que ter um preço, mais a mais estando em causa a realização do interesse público, e não a pura e simples obtenção de lucro;
- as utilizações mais agressivas dos poderes exorbitantes — modificação e resolução por motivos de interesse público — geram para o particular direito a indemnização plena dos prejuízos.
Enfim, cremos que o CCP salvaguardou a autonomia com equilíbrio, ao reservar a um núcleo de actos a característica da administratividade e ao fazer dessa especificidade a imagem
76 Xxxxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, O acto administrativo..., cit., p. 17.
77 Xxxxx XXXXX XX XXXXXXX, Contratos administrativos..., cit., p. 12.
78 Xxxxx XXXXX XX XXXXXXX, Contratos administrativos..., cit., pp. 13-14.
de marca do contrato administrativo. A presunção de natureza negocial de todos os actos de execução do contrato que se não reconduzam ao elenco do nº 2 do artigo 307º justifica a qualificação de XXXXX XX XXXXXXX relativamente ao acto do contraente público que, por resolução fundamentada, se oponha à excepção de não cumprimento invocada pelo co- contratante, como declaração negocial. Não só a não recondução a nenhum dos “tipos” do nº 2 a essa conclusão conduz, como a intervenção necessária do tribunal para “ponderar os interesses públicos e privados em presença” reforça o argumento.
3.1. Os acordos endocontratuais
Na lógica da consensualização da actuação administrativa, a figura dos acordos endocontratuais, já vulgarizada no plano do procedimento administrativo80, entra agora no âmbito da execução do contrato administrativo. É uma forma pactícia de promoção da execução, que pode ser utilizada sempre que dos efeitos pretendidos nada resulte em contrário e que deve obedecer à forma escrita (artigo 310º/1). No que respeita ao exercício do poder de modificação unilateral, os pressupostos destes acordos são agravados: a forma escrita a que se reporta o artigo 310º/1 deve traduzir um instrumento de solenidade não inferior ao contrato [cfr. o artigo 311º/1/a)]; o acordo não pode implicar a alteração do objecto do contrato, nem restringir ou falsear a concorrência desenhada no período de formação do contrato, salvo se o decurso do tempo justificar solução diversa (artigo 313º/1 e 2); o acordo de modificação há-de contemplar a reposição do equilíbrio financeiro, nos termos do artigo 314º/1 e 282º.
4. A executividade dos actos de conformação da relação contratual
Da versão inicial do CPA resultava que a entidade adjudicante deveria socorrer-se do poder judicial para obter a condenação do co-contraente no cumprimento de prestações em falta, executando depois a respectiva sentença através de acto "definitivo e executório". Com a
79 Xxxxx XXXXX XX XXXXXXX, Contratos administrativos..., cit., pp. 14-16.
80 Cfr. Xxxxx XXXXXXXXXXXX, Modelos de simplificação administrativa, Porto, 2002, pp. 145 segs.
O CCP procede a um desdobramento: por um lado, os actos de execução que se reconduzam ao elenco do nº 2 do artigo 307º são considerados actos administrativos e títulos executivos — artigo 309º/1. Por outro lado, aqueles que escapem a esta inclusão traduzem declarações negociais (artigo 307º/1), cuja execução pressupõe uma prévia explicitação do seu sentido, se não unívoco para as partes. Finalmente, os actos que configurem sequestro e resgate de concessões82 e, em geral, exprimam o poder de resolução unilateral, são coercivamente executáveis pela Administração (tanto os que configurem resolução-sanção quanto os que traduzam uma intenção de resolução por imperativo de interesse público)83 — artigo 309º/2, 2ª parte. Ou seja, enquanto os primeiros são directamente executáveis pela via da acção executiva (na modalidade de execução para prestação de facto — artigos 162º segs do CPTA); os segundos necessitam de passar pela acção administrativa comum (cfr. o artigo 37º/2/a), 2ª parte do CPTA) e só em função do resultado desta poderão transitar para o momento executivo84; e os últimos não necessitam da exequibilidade promovida pela via judicial (impondo ao co- contratante o ónus de impugnação).
Note-se que estes processos executivos se regem pelo CPC, e não pelo CPTA (artigo 157º/2 deste Código) — e isto apesar de o executado estar investido em funções materialmente administrativas. Conforme esclarecem XXXXX XX XXXXXXX e XXXXXXXXX XXXXXXX, "os processos executivos regulados neste Título não se aplicam apenas a execuções movidas contra pessoas colectivas de direito público, estendendo-se também a execuções movidas contra pessoas colectivas de direito privado, mas em relação às quais se coloquem as mesmas necessidades que justificam a instituição de mecanismos específicos de execução contra entidades públicas"85. Ora, "as necessidades" que movem a execução de um acto administrativo
81 Para Xxxxx XXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxxx XXXXXXXXX e Xxxx XXXXXXX XX XXXXXX (Código..., cit., p. 855), esta alteração (de duvidoso alcance) deveria redundar na necessidade de a Administração recorrer ao poder judicial quer quanto à constatação da verificação da situação de incumprimento, quer quanto à execução da respectiva sentença.
82 Cfr. os artigos 421º e 422º, respectivamente.
83 Neste ponto, no confronto com a anterior regulação insíta no CPA, a Administração vê alargados os seus poderes de autotutela executiva.
84 Segundo Xxxxxxxxx XXXXXX (sessão de 5 de Dezembro de 2007 da Pós-Graduação em Direito da Contratação Pública realizada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, cit.), a dilucidação da validade e sentido de declarações negociais emitidas no âmbito de um contrato administrativo constitui reserva da jurisdisção administrativa. Contudo, não deixa de assinalar que o adjudicante pode, através de ordens e instruções, esclarecer aspectos omissos ou menos claros no contrato, no que traduzirá o exercício de uma autotutela declarativa implícita — a qual, em nossa opinião, não deve, por razões formais, ser desafectada do escrutínio judicial em fase declarativa, por recurso a acção administrativa especial de impugnação da validade destes actos.
85 Xxxxx XXXXX XX XXXXXXX e Xxxxxx XXXXXXXXX XXXXXXX, Comentário ao Código do Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, p. 781.
emanado ao abrigo de poderes exorbitantes contra o co-contratante não se coadunam com a aplicação de um diploma (o CPTA) que tem uma especialidade face ao CPC tão relevante quanto a possibilidade de invocação de causa legítima de inexecução. Não se compreenderia, na realidade, reconhecer esta prerrogativa a um co-contratante em face do adjudicante, primeiro responsável pela satisfação do interesse público perante a comunidade.
Conforme já sublinhámos em 3., estes actos devem ser impugnados através da acção administrativa especial de impugnação por parte do co-contratante, e a suspensão da sua eficácia deve ser solicitada, uma vez que consubstanciam títulos executivos e mesmo, no caso de actos que determinem a resolução do contrato, imediatamente exequíveis pela Administração sem recurso aos tribunais. Uma vez perdido o prazo inscrito no artigo 58º/2/b) do CPTA, só a invocação de justo impedimento ou erro desculpável poderá evitar a caducidade do direito de acção (artigo 89º/1/h do CPTA) e constituir motivo de oposição à execução.
5. Em jeito de balanço: contrato administrativo ou pacto...xxxxxxx?
Depois deste breve percurso pelas normas disciplinadoras dos poderes de conformação do contrato administrativo pela entidade administrativa adjudicante, fica-nos a ideia de que o CCP resguardou adequadamente o princípio do equilíbrio entre as partes, apesar da concessão/reconhecimento de determinadas prerrogativas à Administração, justificadas pelo fim de interesse público que o contrato prossegue. As competências de conformação da relação contratual estão funcionalizadas aos objectivos cuja prossecução a Administração propôs aos co-contratantes, não devendo exorbitar tal finalidade.
As "especialidades" que o estatuto da Administração traz para o contrato administrativo visam apenas garantir a prossecução eficaz do interesse público — tendo nesse objectivo o seu fundamento mas também o seu limite. O seu maior expoente é, porventura, o carácter imediatamente exequível de alguns actos de execução do contrato, facto que investe o co- contratante num ónus de impugnação sob pena de se ver adstrito ao seu cumprimento, ainda que inválidos. Fora esse "pormaior", os poderes de conformação revelam uma supremacia relativa da Administração:
- no plano do exercício dos poderes de direcção e fiscalização, a Administração pode emanar ordens e instruções, mas com respeito pela autonomia do co-contratante e dentro de parâmetros de adequação e necessidade (artigo 303º);
- no plano do exercício do poder de modificação unilateral, a Administração enfrenta o princípio da intangibilidade do objecto do contrato e sujeita-se à obrigação de reposição do equilíbrio financeiro caso pretenda impor alteração ao clausulado inicial (artigo 314º/1);
- no plano do exercício do poder de resolução unilateral, a Administração está vinculada a limites materiais e procedimentais, devendo indemnizar o contraente de forma integral (artigo 334º/1 e 2);
- no plano do exercício do poder de resolução-sanção, os fundamentos encontram-se descritos no CCP (artigo 333º/1). Além disso, e em contrapartida, é reconhecido ao co- contratante o direito de invocar a excepção de não cumprimento (nos apertados termos do artigo 327º) e o direito de retenção (artigo 328º), bem como de resolver o contrato, de acordo com os pressupostos do artigo 332º.
Acresce a este quadro a possibilidade, generosamente reconhecida pelo artigo 40º/2 do CPTA (bem como do artigo 51º/1 do CPTA), a terceiros — utentes; autores populares em defesa de bens de fruição colectiva; Ministério Público — de sindicarem o modo de exercício dos poderes de conformação por parte da Administração. Para a efectividade deste controlo, muito contribui o dever de fundamentação dos actos administrativos — e das declarações negociais? — de execução (desde logo por força da determinação do artigo 124º do CPA), bem assim como o processo urgente de consulta de documentos e prestação de informações previsto nos artigos 104º segs do CPTA.
Em suma:
O contrato é administrativo mas é contrato. É lex inter partes, estabelecendo relações de cooperação recíproca. O seu conteúdo é fruto de um consenso cuja alteração ou mesmo resolução, por motivos de interesse público, obriga a Administração a responder integralmente pelos danos causados ao contraente. A "relação especial de poder" que se constata no seio do contrato administrativo não vai sem contrapartidas ao co-contratante, e esse reequilíbrio é essencial à própria existência prática do contrato e à colaboração indispensável que promove entre particulares e Administração com vista ao desenvolvimento de objectivos de interesse geral. É que, sem os "contrapesos" dos "poderes exorbitantes", quem arriscaria contratar com a Administração, quem se prestaria a fazê-lo se não tivesse asseguradas as garantias básicas do seu investimento?
Lisboa, Março de 2008
Xxxxx Xxxxx Xxxxx
Profª Auxiliar da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa