SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
Processo
4118/17.2T8GMR-A.G1.S2
Data do documento
7 de novembro de 2019
Relator
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx
DESCRITORES
Seguro de vida > Invalidez > Incapacidade permanente parcial > Inexigibilidade > Abuso de direito > Defesa por excepção > Defesa por exceção > Oposição à execução > Boa
fé > Execução hipotecária > Contrato de mútuo
SUMÁRIO
I - Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.
II - O abuso de direito constitui matéria de excepção susceptível de ser alegada como defesa em processo de declaração, por isso igualmente viável no âmbito da oposição à execução não baseada em sentença - artigo 731º do Código de Processo Civil.
III - Concluindo-se pelo abuso de direito, o crédito exequendo surge como inexigível e, por isso, torna a execução inviável, o que implica que se ordene a sua extinção.
IV - Age com abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa fé, o exequente que, num contrato de mútuo com hipoteca, garantido ainda com “Seguro de Vida Grupo” dos mutuários a seu favor, com cobertura de invalidez e morte, sendo informado da incapacidade permanente global de 73% atribuída à executada, move execução contra os mutuários, invocando falta de pagamento das prestações, sem se dirigir primeiro à seguradora.
TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - RELATÓRIO
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, que lhes move a CAIXA AA, S.A., os executados BB e CC deduziram embargos de executado, pedindo que seja declarada a inexigibilidade da obrigação exequenda em virtude do alegado abuso do direito.
Alegaram, em síntese, que celebraram os contratos de mútuo com hipoteca dados à execução, celebrando também os seguros de vida que lhes foram impostos como condição da celebração dos contratos, com a DD - Companhia de Seguros, S.A., sendo tomador a exequente e pagando os respectivos prémios.
Mais alegaram que têm uma incapacidade superior a 70%, muito embora só a executada mulher pode beneficiar das garantias da apólice, atenta a idade inferior a 60 anos, à data da verificação da incapacidade, o que foi comunicado à Exequente.
A Seguradora incumpriu os contratos de seguro, discordando do grau de incapacidade fixada, recusando-se a pagar o valor mutuado e seguro, ficando os executados surpreendidos com a instauração desta execução, uma vez que esperavam que a exequente intentasse a acção contra a seguradora.
Por fim, alegaram que encetaram diligências com a exequente para reestruturar o empréstimo não garantido pelo seguro, não tendo tal negociação sido dada como encerrada, agindo a exequente com abuso de direito, sendo ilegítima a exigência da obrigação exequenda.
Contestou a exequente/embargada, alegando que instaurou a execução apensa para cobrança de três financiamentos, sendo que as últimas prestações pagas remontam aos anos de 2012 e 2013. Mais alegou que os executados são devedores solidários das quantias exequendas, nada impedindo a exequente de os demandar, uma vez que possui título executivo contra os mesmos, o que não se verifica com a Seguradora, não existindo qualquer obrigação de demandar esta.
Foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento da execução.
Os embargantes interpuseram recurso de apelação e a Relação, por acórdão de 02.05.2019, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Os embargantes interpuseram recurso de revista excepcional, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
I – Vem o presente recurso interposto do Acórdão da Relação de Xxxxxxxxx, que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida, que julgou totalmente improcedente a oposição à execução
mediante embargos de executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da instância da acção executiva apensa.
II – O inconformismo dos recorrentes relativamente ao decidido em primeira e segunda instância prende- se, essencialmente, com o erro na aplicação do direito, no que tange ao invocado abuso do direito, instituto previsto no artigo 334º do Código Civil.
III – Os embargantes, no seu requerimento inicial de oposição à execução, entendem que é inexigível a obrigação exequenda, porque ilegítima, por via do alegado abuso de direito, atenta a celebração de um contrato de seguro para os dois primeiros empréstimos e a situação de invalidez da executada mulher, alegando, quanto ao terceiro crédito, que encetaram negociações com a exequente, para o reestruturar, que não foram encerradas.
IV – Ora, conforme se irá demonstrar ao longo das presentes alegações, o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Xxxxxxxxx violou o instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334º do C. Civil, considerando que a exequente/embargada celebrou com os executados/embargantes três contratos de mútuo garantido por hipoteca, dois dos quais com um seguro de vida associado que impôs aos executados como condição do mútuo, seguro de que a exequente é beneficiária, tendo sido informada do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, e accionou os mutuários/segurados, em vez de accionar directamente a seguradora, quando estava a ser renegociada a reestruturação do valor da dívida não coberto pelo seguro.
V – Face à factualidade que consideraram provada, ambas as instâncias decidiram que não constitui abuso de direito instaurar uma execução para cobrar créditos, emergentes de três contratos de mútuo, em dívida há pelo menos quatro anos, quando a seguradora já declinou efectuar o pagamento das quantias em dívida relativamente a dois desses contratos garantidos por seguro, sendo que a exequente não está obrigada a negociar a restruturação do terceiro crédito não objecto de contrato de seguro.
VI – Na esteira da lição do Conselheiro Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, página 285, não obstante a modificação da decisão da matéria de facto, operada pelo Tribunal da Relação recorrido, designadamente no que concerne à aditada sob os números 21 e 22, tal não será relevante para se considerar “fundamentação essencialmente diferente”, porquanto não implicou uma modificação essencial da motivação jurídica, só esta servindo de elemento aferidor da diversidade ou da conformidade das decisões, só aquela justificando o recurso de revista normal.
VII – A opção pelo recurso à revista excepcional não obstará a que a Formação ainda possa decidir a admissibilidade da revista nos termos gerais, por força do disposto no número 5 do artigo 672º do C. P. Civil.
VIII – Como supra se referiu, no requerimento de recurso, o presente recurso de revista excepcional baseia- se nas alíneas a), b) ec) do número 1 do artigo 672º do C. P. Civil.
IX – No que concerne à alínea a), entendemos estar em causa no presente recurso de revista excepcional “uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
X – Como bem acentua o acórdão recorrido, “a controvérsia dos autos emerge do facto de os executados, em 31.08.2004, terem subscrito junto da DD - Companhia de Seguros, S.A., um contrato de seguro, denominado “Seguro de Vida Grupo”, para garantia do valor mutuado através dos dois primeiros contratos (empréstimos das quantias de €75.000,00 e de €50.000,00), ou seja, os aludidos em 3) e 7), com a cobertura de invalidez e morte”, pelo que “os embargantes entendem, por um lado, que a obrigação exequenda não é exigível, atenta a celebração do contrato de seguro para os dois primeiros empréstimos e a situação de invalidez da executada mulher e, por outro, quanto ao terceiro empréstimo, por terem encetado negociações com a exequente, para o reestruturar, que não foram encerradas”.
XI – Na verdade, no caso dos autos, está em causa a aplicabilidade ou a inaplicabilidade do instituto “abuso do direito”, objectivamente consagrado no artigo 334º do C. Civil, no caso de o banco mutuante accionar os mutuários, em vez de accionar directamente a companhia seguradora, do mesmo grupo financeiro, provando-se, por documento autêntico, a ocorrência de um sinistro, que ao banco mutuante foi comunicado, ao abrigo de um contrato de seguro de vida associado ao crédito que o banco mutuante impôs aos mutuários como condição de concessão do crédito, de que o banco exequente/embargado é beneficiário, o que sucede no caso dos dois primeiros empréstimos, sendo que o caso do terceiro empréstimo, também concedido para habitação própria, foi renegociado com os demais, com vista à sua restruturação, estando todos em incumprimentos há cerca de quatro anos, tendo sido executado, logo que ocorreu o sinistro, pelo que não sendo abrangido pelo seguro, estava garantido por hipoteca, e, sendo assim, se fosse accionado o seguro, facilmente seria feita a sua restruturação.
XII – A questão jurídica em análise é controversa, sobretudo na Jurisprudência, por ser bastante complexa, o que deriva da natureza do referido instituto, enquanto válvula de escape do exercício legítimo dos direitos, e da natureza inovadora da sua aplicação a casos como o dos autos, designadamente no caso do mútuo coberto por seguro, o que justifica a intervenção do STJ, para evitar dissonâncias interpretativas, que ponham em causa a boa aplicação do direito, desde logo pelas dificuldades exegéticas que suscitam e que demandam a sua resolução unívoca por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
XIII – Já quanto ao fundamento da alínea b), entendemos estar em causa no presente recurso “interesses de particular relevância social”.
XIV – Com efeito, o acórdão recorrido, além de prejudicar os interesses dos recorrentes, põe em causa
interesses mais vastos, de particular relevo social, atinentes sobretudo ao direito de habitação, constitucionalmente consagrado no artigo 65º do CRP, onde se centra a estrutura familiar dos executados, que têm de ser preservado dos ataques dos Bancos mutuantes, contra os mutuários sinistrados, cobertos por seguros de vida de que os mesmos bancos são beneficiários, os quais concedem o crédito à habitação na dependência do seguro associado, contratado por seguradora do mesmo grupo financeiro do banco mutuante, pondo fim à negociação da restruturação de todos os créditos, depois de lhe ter sido comunicado o sinistro relativamente a dois empréstimos, sendo então fácil restruturar o terceiro, que, não estando coberto por seguro de vida, estava garantido por xxxxxxxx, que antes garantia os três empréstimos.
XV – Finalmente, no que respeita à alínea c), entendemos que o acórdão recorrido, no caso dos dois empréstimos concedidos com seguro de vida associado, o que já não sucede no caso do terceiro empréstimo, sem cobertura do seguro de vida, está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 24/11/2016, relativo ao processo número 7531/12.8TBMTS-A.P1.S1, de que foi relator o Exmo Conselheiro Xxxxxxx xx Xxxxx, cuja certidão ora se junta.
XVI – No nosso entender, ambos os acórdãos incidem sobre a mesma questão fundamental de direito, precisamente a aplicabilidade/inaplicabilidade do instituto “abuso do direito” do artigo 334º do C. Civil na cobrança de créditos garantidos por seguro de vida, de que é beneficiário o banco mutuante, que, depois de informado do sinistro, accionou o mutuário/segurado, em vez da seguradora, tendo celebrado com os executados um contrato de mútuo garantido por hipoteca e com um seguro de vida de seguradora do mesmo grupo financeiro que impôs ao segurado como condição do mútuo.
XVII – Quanto a nós, existe contradição entre a resposta dada à controvérsia essencial da referida questão de direito pelo acórdão recorrido e pelo acórdão referido deste Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado.
XVIII – Em suma, seja pelo via da execução embargada em causa no Acórdão recorrido, seja por via da reclamação de créditos em causa no referido acórdão do STJ, já transitado em julgado, a controvérsia incide sobre a questão essencial de direito de saber se constitui ou não abuso do direito a cobrança do mútuo pelo banco mutuante directamente do mutuário/segurado, depois de informado do sinistro coberto por contrato de seguro de vida que aos mutuários impôs como condição do mútuo.
XIX – A divergência em causa ocorre a propósito da aplicação do artigo 334º do C. Civil, que tem uma redacção que mantém inalterado o quadro normativo que subjaz ao Acórdão recorrido e ao invocado acórdão do STJ, inexistindo acórdão de uniformização sobre a questão jurídica em causa.
XX – Verifica-se assim cada um e todos os requisitos de admissibilidade do presente recurso de revista excepcional, enunciados sob as alíneas a), b) e c) do artigo 672º do C. P. Civil.
Atenta a matéria de facto provada e a que foi aditada pelo Acórdão recorrido, sob o ponto 21, atinente aos dois empréstimos garantidos por seguro de vida, e sob o ponto 22, com interesse para o terceiro empréstimo, susceptível de reestruturação isolada, com garantia da hipoteca, haverá sempre que enquadrar a actuação da exequente no instituto do abuso de direito, previsto no artigo 334º do C. Civil, por a mesma, em vez de accionar o seguro de vida, com vista à satisfação dos dois créditos seguros, contratados a seu favor, por contrato válido e em vigor à data do sinistro, que lhe foi comunicado pelos executados, ter accionado os segurados, que sabiam fragilizados e estavam a diligenciar com a Xxxxx exequente para reestruturar o terceiro crédito, também executado, não garantido pelo seguro de vida, para evitar a venda do bem hipotecado, que os embargantes destinam a sua habitação própria e permanente.
XXII – A jurisprudência dominante, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, em casos idênticos, tem vindo a entender que, tendo o banco credor celebrado com os executados um contrato de mútuo garantido por hipoteca e com seguro de vida que impôs aos executados como condição do mútuo, seguro esse de que é benificiário o banco mutuante, tendo este sido informado do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, quando, em vez de accionar directamente a seguradora, com vista à satisfação do seu crédito, exige antes dos executados o pagamento dos créditos concedidos, por via de execução, o que configura o exercício ilegítimo do direito enquadrável na previsão do artigo 334º do C. civil – cfr. acórdão do STJ, proferido no processo 7531/12.8TBMTS-AP1, S1.
XXIII – No caso dos autos, existe um documento emitido pela Administração Regional de Saúde do ... IP Ministério de Saúde denominado “ Atestado Médico de Incapacidade Multiuso“, documento esse subscrito e assinado pelo Presidente da Junta Médica, datado de 11.01.2017, onde se atesta que a executada apresenta deficiências conforme o quadro seguinte que de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo DL 352/2007 de 23/10 lhe conferem uma incapacidade permanente global de 74%.
XXIV – Estamos perante um documento autêntico (art. 369º do C. Civil), que faz prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial respectivo, assim como os factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (art. 371 do C. Civil), força probatória esta que só pode ser ilidida pela via da falsidade, o que, aqui, manifestamente não se verificou. (art. 372 nº 1 do C. Civil).
XXV – A exequente, ao exigir dos executados/mutuários a satisfação dos dois primeiros créditos, em vez de accionar o seguro de vida, com vista à sua liquidação junto da seguradora, teve um procedimento censurável, pois é chocante que, para além da hipoteca da casa de habitação dos executados, ainda tem o crédito garantido por uma seguradora, contratada obrigatoriamente por aqueles, forçando (bem contra o espírito da lei 58/2012, de 9/11) a venda da casa de habitação dos executados, em vez, de simplesmente,
exigir da seguradora o pagamento dos referidos créditos. Isto, não obstante a seguradora invocar, sem razão, perante os segurados, a falta de verificação do risco coberto, contrariando a incapacidade de 74%, comprovada por documento autêntico, sendo de considerar que a possibilidade de os executados ficarem sem a casa nunca será verdadeiramente compensada com o exercício futuro do direito de regresso contra a seguradora.
XXVI - Sendo que os seguros de vida aos embargantes foram impostos pela exequente, com vista a acautelar a perda de rendimentos dos mutuários, celebrados com a DD - Companhia de Seguros, S.A., do mesmo grupo financeiro, por contratos preenchidos pelo funcionário da exequente e assinados pelos executados, aos balcões da mesma, sem que alguém lhes explicasse, oralmente ou por escrito, o seu teor.
XXVII – Quanto ao referido terceiro crédito, no valor inicial de €60.000,00, não garantido por seguro de vida dos mutuários, o alegado abuso de direito tem como fundamento a matéria de facto alegada aditada sob o ponto 22 pelo acórdão recorrido.
XXVIII – Os executados estiveram sempre convencidos de que a exequente exigiria a activação dos direitos dos executados decorrentes do sinistro seguro, para cobrança do valor remanescente dos créditos mutuados, por força do disposto nas cláusula 12ª, alínea b) e 16ª, alínea b), respectivamente, dos documentos complementares números 1 e 2 juntos com o requerimento executivo, reestruturando o remanescente dos três referidos créditos, sempre negociados em conjunto.
XXIX – A este propósito, é de referir a circunstância de os três referidos créditos, não obstante dois estarem cobertos pelo seguro de vida e o terceiro não, terem tido sempre o mesmo tratamento negocial, estão todos garantidos ainda por hipoteca do prédio urbano, que sempre garantiria o valor residual dos três créditos.
XXX – Conclui-se assim que a exequente, não obstante o crédito não coberto pelo seguro estar em incumprimento, desde Agosto de 2012, e os dois cobertos por contrato de seguro de vida, desde Abril de 2013 e Julho de 2013, o certo é que a exequente os executou, em conjunto, em 13 de Julho de 2017, sensivelmente 5 anos depois, surpreendentemente após ter sido atribuída à executada, em 11.01.2017, a incapacidade permanente global de 74%, que esta comunicou à exequente, via-mail, em 18 de Janeiro de 2017, que veio a declinar a sua responsabilidade contratual, só em 11.07.2017, dois dias antes de dar entrada à execução.
XXXI – Com a execução, a exequente excedeu assim manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico desse direito, seguramente no caso dos créditos que resultam dos empréstimos números 03... 7085, no valor inicial de €75.000,00, e 0…9085, no valor de €50.000,00, ambos objecto de seguro de vida, com o capital seguro, em 1/1/17, de €39.552,82 e €25.470,24 (cfr. doc.s 2 e 3 juntos com a oposição), respectivamente, titulados pelas apólices 15…8 e 15…7, e também no caso do crédito que resulta do
empréstimo número 0…2185, no valor inicial de €60.000,00, não coberto por seguro de vida, neste caso com fundamentação diversa, consubstanciando a actuação da exequente, nos três casos referidos, manifesto abuso de direito, instituto que se invoca, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334º do C. Civil, o que torna ilegítimo o seu exercício, com a consequente neutralização da acção executiva, por via da inexigibilidade do crédito exequendo.
XXXII – O douto acórdão recorrido viola, assim, além do mais, o disposto no artigo 65º da Constituição da República e os artigos 334º, 369º, 371º e 372º, número 1, todos do C. Civil.
Terminam, pedindo que o recurso seja julgado procedente, e, por via disso, seja revogado o acórdão recorrido, julgando-se os embargos totalmente procedentes.
A exequente Caixa AA não apresentou contra-alegações.
Por acórdão de 19.09.2019, a FORMAÇÃO a que alude o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil, admitiu a revista excepcional, com os seguintes argumentos:
“ Vem de muito longe a dúvida sobre, havendo seguro, ao segurado pode ser exigida – mormente em processo executivo – a quantia em dívida. Não veio a lume muita jurisprudência porque as seguradoras, quando reconheciam o seguro válido e eficaz, efectuavam o pagamento e tudo ficava “resolvido”.
Relativamente aos acidentes de viação a lei veio tomar posição, isentando, por regra, os tidos como responsáveis pelo acidente, sequer, de serem demandados em acção declarativa.
O direito dos seguros foi evoluindo imenso, mas continua muito pouco clara a posição a tomar, nomeadamente, quando a seguradora se recusa a pagar. Fica a pergunta sobre se a rigidez emergente da responsabilidade solidária pode ser ou não quebrada nalguns casos.
Sendo certo que estas situações se podem repetir com frequência no dia-a-dia como no comum dos empréstimos à habitação.
Cremos que aqui se justifica a intervenção clarificadora deste Supremo Tribunal justificando-se a admissão com base na invocada alínea a) do nº 1 do artigo 672º e ficando prejudicada a admissibilidade face às demais alíneas”.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1º - A exequente, Caixa AA, S.A., intentou a execução com o nº 4118/17.2T8GMR, a que o presente está apenso, contra os executados BB e CC, para cobrança da quantia de € 124.345,12, acrescida de juros vencidos após a propositura da execução, até efectivo e integral pagamento.
2º - A exequente deu à execução:
3º - a) Cópia certificada de fls. e seguintes dos autos principais, respeitante ao contrato compra e venda e mútuo com hipoteca, celebrado no dia 31.08.2004, no Cartório Notarial de …, onde figuram, como parte credora, a Caixa AA, S.A., e, como parte compradora e mutuária, os aqui executados, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4º - Consta do documento mencionado em 3º, Anexo I, que a quantia foi entregue à parte devedora através de crédito lançado na conta de depósitos à ordem em nome da executada, destinando-se a investimentos em bens imóveis.
5º - Consta do documento mencionado em 3º que os embargantes/executados declararam que se confessam e constituem devedores à embargada/exequente da importância de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), que esta lhes emprestou e que se obrigam a restituir no prazo de dezasseis anos, a contar da celebração do contrato, o qual será amortizado em prestações mensais, de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da data da celebração do contrato e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, com juro e demais condições aí expressamente previstas.
6º - Consta, também, do documento referido em 3º que «A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente, incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contraentes de qualquer obrigação decorrente deste contrato».
7º - b) Cópia certificada de fls. e seguintes dos autos principais, respeitante ao contrato de mútuo com hipoteca, celebrado no dia 31.08.2004, no Cartório Notarial de Fafe, onde figuram, como parte credora, a Caixa AA, S.A., e, como parte compradora e mutuária, os aqui executados, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8º - Consta do documento mencionado em 7º, Anexo I, que a quantia foi entregue à parte devedora através de crédito lançado na conta de depósitos à ordem em nome da executada, destinando-se a transferência de crédito com garantia de imóvel.
9º - Consta do documento mencionado em 3º que os embargantes/executados declararam que se confessam e constituem devedores à embargada/exequente da importância de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), que esta lhes emprestou e que se obrigam a restituir no prazo de dezasseis anos, a contar da celebração do contrato, o qual será amortizado em prestações mensais, de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da data da celebração do contrato e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, com juro e demais condições aí expressamente previstas.
10º - Consta, também, do documento referido em 7º que «A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente, incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contraentes de qualquer obrigação decorrente deste contrato».
11º - c) Cópia certificada de fls. e seguintes dos autos principais, respeitante ao contrato de compra de mútuo com hipoteca, celebrado no dia 21.11.2007, no Cartório Notarial de …, onde figuram, como parte credora, a Caixa AA, S.A., e, como parte compradora e mutuária, os aqui executados, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12º - Consta do documento mencionado em 11º, Anexo I, que a quantia foi entregue à parte devedora através de crédito lançado na conta de depósitos à ordem em nome da Executada, destinando-se a investimentos em bens imóveis.
13º - Consta do documento mencionado em 11º que os embargantes/executados declararam que se confessam e constituem devedores à embargada/exequente da importância de € 60.000,00 (sessenta mil euros), que esta lhes emprestou e que se obrigam a restituir no prazo de dezasseis anos, a contar da celebração do contrato, o qual será amortizado em prestações mensais, de capital e juros, vencendo-se a primeira no correspondente dia do mês seguinte ao da data da celebração do contrato e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, com juro e demais condições aí expressamente previstas.
14º - Consta, também, do documento referido em 3º que “A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o seu imediato pagamento no caso de, designadamente, incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contraentes de qualquer obrigação decorrente deste contrato.
15º - Em 31.08.2004, os executados subscreveram junto da DD - Companhia de Seguros, S.A., o documento denominado “Seguro de Vida Grupo” para garantia do valor mutuado através do contrato aludido em 3º e 7º, e com a cobertura de invalidez e morte, conforme documentos juntos a fls. 7v a 12 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
16º - Consta das comunicações juntas a fls. 7/10 dos presentes autos, enviada pela DD - Companhia de Seguros, S.A., ao executado que a modalidade Adesão Vida Grupo garante à Caixa AA a liquidação do capital em dívida no correspondente contrato de crédito à habitação se, em caso de doença ou acidente, o associado vier a falecer ou ficar com um grau de invalidez permanente superior a 66%, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17º - Os executados deixaram de pagar pontualmente as prestações acordadas nos contratos aludidos em 2º, em Abril de 2013, 7º, em Julho de 2013, e 11º, em Agosto de 2012.
18º - Em 11.01.2017, foi atribuída à executada mulher uma incapacidade permanente global de 73,85%, conforme documento junto a fls. 18v, cujo teor se dá como integralmente reproduzido.
19º - Em 11.07.2017, a DD - Companhia de Seguros, S.A., remeteu à executada mulher a comunicação junta a fls. 19, na qual lhe comunica «após reanálise de toda a documentação em nosso poder, continua a não ser possível proceder ao pagamento das indemnizações solicitadas, uma vez que a invalidez participada não preenche os requisitos exigidos pelas condições contratuais (…)», e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
20º - A execução apensa deu entrada em Juízo em 13.07.2017, conforme certificação digital constante de fls. da execução apensa.
A Relação aditou os nºs 21º e 22º, com a seguinte redacção:[1]
21º Por e-mail de 18 de Janeiro de 2017, dirigido a EE (XX@xxx.xx), funcionário da Caixa AA, responsável pelo processo de crédito, a executada CC, comunicou-lhe “Peço a Vossa atenção para os documentos em anexo», juntando um documento em formato PDF, consistente em cópia de uma carta dirigida à DD - Companhia de Seguros, SA, na qual a mesma executada dizia «participar a V/Exªs que em consequência de invalidez por doença, em consequência de invalidez por doença com deferimento pela Segurança Social em 23/04/2014 e Atestado Médico de Incapacidade Multiuso de 11/01/2017, com incapacidade de 74% definitivo, solicitar a activação das seguintes apólices, das quais é titular, para liquidação do crédito à habitação na Caixa AA.
Nº de Apólice 50…0 Nº de Adesão 10…37
Nº de Apólice 50…0 Nº de Adesão 10…38
Junto anexo:
Declaração da Segurança Social
Atestado Médico de Incapacidade Multiuso”.
22º - Os executados encetaram diligências com a Caixa exequente, através do seu referido funcionário, para reestruturar o empréstimo número 00…2185, também executado, não garantido pelos referidos seguros de vida, para evitar a venda do bem hipotecado, que ficaria a garantir apenas o pagamento do valor remanescente deste empréstimo.
B) Fundamentação de direito
A questão a decidir na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o “thema decidendum” do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, consiste em saber se o Banco exequente, ao executar os mutuários com fundamento em três contratos de mútuo com hipoteca, estando associados apenas a dois, em seu benefício, um “Seguro de Vida Grupo” dos mutuários, age em abuso de direito, competindo-lhe apenas cobrar os respectivos créditos da seguradora em relação a esses dois contratos.
Cumpre proceder à análise do aspecto jurídico da causa, começando por referir que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva – nº 5 do artigo 10º do Código de Processo Civil.
Nenhuma dúvida se suscita, no caso, sobre a validade dos títulos dados à execução, nem sobre a dívida reclamada.
Isto não significa a necessária viabilidade da pretensão executiva, pois pode ocorrer circunstância impeditiva, modificativa ou extintiva do dever de prestar, não sendo inatacável o direito que o título confere.
Como título executivo, a exequente deu à execução três contratos de mútuo celebrados, cada um deles, por escrituras públicas de 31.08.2004[2] e de 21.11.2007[3], pelos quais emprestou aos executados as quantias, respectivamente, de € 75.000,00, € 50.000,00 e € 60.000,00.
Tendo-lhes sido entregues tais quantias, os executados obrigaram-se a amortizar os financiamentos no prazo de 16 anos, em prestações mensais de capital e juros. Para garantia das obrigações decorrentes dos contratos, os executados constituíram três hipotecas sobre um imóvel que lhes pertence.
Não há dúvida que a instituição bancária (exequente), dispondo de título executivo, pode instaurar
execução contra os devedores mutuários com vista ao pagamento coercivo das quantias em dívida por via dos contratos de mútuo.
Mas resulta provado que, além dos mútuos bancários e hipotecários, foi celebrado em 31.08.2004, um conexo contrato de seguro, denominado “Seguro de Vida Grupo” - sendo a seguradora a “DD- Companhia de Seguros S.A.”, o tomador do seguro a Caixa AA, S.A. - para garantia do valor mutuado através do contrato aludido em 3º e 7º, e com a cobertura de invalidez e morte, conforme documentos juntos a fls. 7v a 12 - (Facto provado sob o nº 15º).
Ora, a questão central das conclusões dos recorrentes respeita à actuação da exequente com abuso de direito e tem dois fundamentos distintos.
Quanto aos dois primeiros contratos de mútuo com hipoteca - escrituras públicas de 31.08.2004 - sustentam os embargantes e ora recorrentes que não recai sobre si o dever de cumprir por existir um contrato de seguro que garante o cumprimento da obrigação de restituição dos montantes em dívida, uma vez que recai sobre a seguradora, por se ter verificado o sinistro, esse dever de prestação. A exequente deveria accionar directamente a seguradora e não exigir dos embargantes as quantias em dívida.
No que respeita ao terceiro contrato de mútuo com hipoteca - escritura pública de 21.11.2007 - não garantido por contrato de seguro, o abuso do direito resulta de terem solicitado à exequente a reestruturação do empréstimo e esta ter admitido essa possibilidade, sem que essa negociação tenha sido dada como encerrada.
Vejamos se ocorreu o alegado abuso de direito por parte da exequente em relação aos dois primeiros contratos de mútuo.
- Os dois primeiros mútuos com hipoteca estão garantidos pelo “Seguro de Vida Grupo”, com a cobertura de invalidez e morte – Cfr facto provado sob o nº 15º.
- Consta das comunicações juntas a fls. 7/10 dos presentes autos, enviada pela DD - Companhia de Seguros, S.A., ao executado que a modalidade Adesão Vida Grupo garante à Caixa AA a liquidação do capital em dívida no correspondente contrato de crédito à habitação se, em caso de doença ou acidente, o associado vier a falecer ou ficar com um grau de invalidez permanente superior a 66%, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – Facto provado 16º.
- Os dois primeiros empréstimos estão em dívida desde, respectivamente, Abril de 2013 e Julho de 2013 – facto provado nº 17º.
- A recorrente CC viu ser-lhe reconhecida, formalmente em 11.01.2017, por Junta Médica da Administração
Regional de Saúde do … – Ministério da Saúde, uma incapacidade permanente global definitiva de 74%, nos termos que se podem ver no “atestado médico de incapacidade multiuso” junto a fls. 18 vº - facto provado nº 18º.
- Em 18.01.2017, a recorrente participou tal facto à seguradora, solicitando a “activação” do respectivo contrato de seguro “para liquidação do crédito à habitação na Caixa AA” - doc fls 17.
- Em 18.01.2017 enviou um email à Caixa AA, com cópia do documento de fls 17, conforme melhor consta do facto provado nº 21º.
- Em 11.07.2017, a seguradora recusou o “pagamento das indemnizações”, sustentando que “a desvalorização final [é] de 54,25%, inferior portanto aos 2/3 (66,6%) estipulados nas condições contratuais” – Facto provado nº 19º.
- Nessa sequência, em 13.07.2017, a recorrida instaurou a presente execução – Facto provado nº 20º.
Delineada a questão atinente ao abuso de direito e o seu suporte factual, importa saber, sendo a exequente beneficiária de seguro que cobre o pagamento dos mútuos hipotecários, se, verificado o sinistro seguro, a exequente tem o direito de exigir dos executados o cumprimento dos créditos mutuários.
Os recorrentes invocam a figura do abuso de direito, face ao que fica mencionado.
Na verdade, nos termos nos termos do artigo 334º do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
E não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, bastando que os limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, não obstante serem relevantes os factores subjectivos.
O legislador sufragou a concepção objectivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no artigo 334º sejam alheios factores subjectivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido”[4].
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida.
Serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Como refere Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx[5], “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
A boa fé apresenta-se aqui como um princípio normativo da acção de cada uma das partes contratantes, no sentido de agirem correctamente em cada momento e no sentido daquilo que cada um espera legitimamente do outro.
“A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente do exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[6].
Ora a actuação do banco que fica descrita configura uma actuação que se integra na figura do “venire contra factum proprium” e preenche, efectivamente, a previsão do mencionado artigo 334º do Código Civil.
No que respeita ao quadrante próprio da proibição do venire contra factum proprium no âmbito do abuso de direito (artº 334º do CC), parece-nos que tal proibição corresponde àquela parte da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito, " quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé”.
Efectivamente, analisando os factos acima assinalados, na sua globalidade e cronologia, impõe-se concluir que o comportamento da exequente Caixa AA não é adequado aos princípios da boa fé.
Na verdade, não demandou os executados, quando estes deixaram de cumprir pontualmente as prestações acordadas nos contratos desde 2012 e 2013 (Facto provado nº 17º), que corresponde ao alegado no artigo 7º da contestação aos embargos.
Só considerou vencida toda a dívida e exigiu o seu imediato pagamento quando intentou a acção executiva
– Cfr artigos 8º, 9º e 10º da contestação aos embargos.
Teve conhecimento do email que lhe foi dirigido pela executada CC em 18.01.2017 (Facto provado nº 21) e só intentou a execução em 13.07.2017 (Facto provado nº 20º), após a comunicação de 11.07.2017 pela DD
- Companhia de Seguros, SA à executada, recusando o pagamento das indemnizações solicitadas (Facto provado nº 19º).
Em situações como a dos autos, cada vez mais frequentes no âmbito dos contratos de seguro e da prática bancária, a omissão da Caixa AA foi susceptível de gerar a crença e confiança na recorrente de que se não tinha de preocupar com os pagamentos, que estariam garantidos pelo contrato de seguro que estabeleceu com a DD.
Ora, a Caixa AA não podia alterar posteriormente o seu comportamento de forma unilateral e sem aviso prévio instaurando uma execução destinada a obter a totalidade da dívida por falta do mencionado pagamento.
Tal confiança gerada pela Caixa AA implicava que esta, antes de avançar para a acção executiva, tivesse exposto à recorrente a situação real em que se encontravam os contratos de mútuo e de seguro, dando-lhe oportunidade para liquidar a dívida relativa aos mútuos, mantendo estes contratos.
Ao não ter dado este passo prévio e ter avançado logo para a acção executiva, o banco agiu com abuso de direito.
Efectivamente, a embargante/recorrente, mutuária e segurada, passou a padecer do grau de incapacidade permanente global de 73,85% que o seguro cobre num grau de desvalorização igual ou superior à percentagem definida na apólice de 66% (Cfr artº 3º nº 2 das Condições Particulares – fls 8.
Quando comunica tal situação à Caixa AA por e-mail de 18.01.2017 o que se exige e espera é que lhe sejam dadas todas as informações e esclarecimentos, tendo em vista o efectivo funcionamento do seguro, tendo em vista a concretização da vantagem/benefício anunciado aquando da contratação do seguro.
Ora a actuação da Caixa AA faz convocar o disposto no artigo 74º do Regime Geral das Instituições de Crédito (Decreto Lei nº 298/92, de 31.12.) que dispõe:
“Os administradores e os empregados das instituições de crédito devem proceder, tanto nas relações com os clientes como nas relações com outras instituições, com diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”.
Por conseguinte, “o critério de diligência, aparentemente orientado para os administradores e para o pessoal dirigente mas, no fundo, destinado ao próprio banqueiro, enquanto instituição, aponta para a bitola do banqueiro criterioso e ordenado. Trata-se da recuperação, com fins bancários, da figura do bonus pater familias, prudente, ordenado e dedicado”[7].
Finalmente, uma breve alusão à jurisprudência deste Supremo Tribunal.
O ac. STJ de 26.06.2014, num caso em que a oposição à execução, com fundamento em abuso do direito, foi julgada procedente, declarando extinta a execução, repôs a decisão da primeira instância, mostrando-se assim sumariado:
“Age em abuso do direito, por violação manifestamente excessiva do princípio da boa fé, o banco que, num mútuo para habitação, garantido com seguro de vida do mutuário a seu favor, hipoteca, fiança com a cláusula de “principais pagadores” e seguro do imóvel, sendo informado da morte do devedor, move execução ao mesmo mutuário – com habilitação posterior dos herdeiros – e aos fiadores, invocando falta de pagamento das prestações, sem se dirigir primeiro àquela seguradora”[8].
Em caso semelhante este entendimento foi sufragado no acórdão do STJ de 24.11.2016, cujo sumário é o seguinte:
“A impugnação que o executado faz no sentido de ser accionado o seguro de vida, com vista à satisfação do crédito pelo reclamante, por considerar que ao não o fazer incorre numa situação de abuso de direito, (artº 334 do C. Civil) por ter ocorrido o sinistro que o seguro pretendia cobrir, configura um fundamento ao abrigo do nº 4 do artº 789 do CPC e, como tal, é licita a impugnação nessa base.
Tendo o banco celebrado com os executados um contrato de mútuo garantido por hipoteca e com um seguro de vida que impôs aos executados como condição do mútuo, seguro esse de que é beneficiário o Banco EE/ AA e tendo sido informado do sinistro coberto pelo referido contrato de seguro, excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, quando em vez de accionar directamente a seguradora com vista à satisfação do seu crédito, exige antes dos executados o pagamento do crédito numa execução pela via da reclamação de créditos, o que configura o exercício ilegítimo do direito enquadrável na previsão do artº 334 do C Civil”[9].
Finalmente, diremos que o abuso de direito constitui matéria de excepção susceptível de ser alegada como defesa em processo de declaração, por isso igualmente viável no âmbito da oposição à execução não baseada em sentença - artigo 731º do Código de Processo Civil.
A sanção para as situações de abuso de direito depende da especificidade de cada caso.
No caso, os recorrentes têm uma dívida emergente de dois contratos de mútuo celebrados por duas escrituras de 31.08.2004 (Factos provados sob os nºs 3º e 7º), não sendo exigível nos termos em que se encontra definida na petição executiva.
No caso sub judice, a sanção para o abuso de direito consiste apenas na neutralização da presente acção
executiva.
Efectivamente, concluindo-se pelo abuso de direito, como se conclui, o crédito invocado pela exequente surge como inexigível e, por isso, torna a presente execução inviável, o que implica que se ordene a sua extinção relativamente àqueles dois contratos de mútuo.
**
Resta analisar a invocação pelos recorrentes do abuso de direito relativamente ao terceiro contrato de mútuo com hipoteca celebrado por escritura de 21.11.2007 – Facto provado nº 11º.
Esta matéria foi alegada pelos embargantes nos artigos 24º e 25º da petição inicial para sustentar o abuso de direito nos seguintes termos:
“24º
Os executados encetaram diligências com a Caixa exequente, através do seu referido funcionário, para reestruturar o empréstimo número 00…2185, também executado, não garantido pelos referidos seguros de vida, para evitar a venda do bem hipotecado, que ficaria a garantir apenas o pagamento do valor remanescente deste empréstimo;
25º
Possibilidade essa admitida pela exequente, em geral, e no caso dos autos, em particular, nunca tendo essa negociação sido dada como encerrada”.
No acórdão da Relação foi aditado o ponto nº 22º da matéria de facto que corresponde na sua totalidade ao sobredito artigo 24º (Cfr fls 136, in fine).
Alegam os recorrentes nas conclusões 26ª a 32ª que a matéria aditada pela Relação no ponto nº 22º da matéria de facto é fundamento para o abuso de direito.
Quanto à matéria do artigo 25º da petição inicial dos embargos foi considerada irrelevante para fundamentar o alegado abuso de direito, como melhor consta do acórdão da Relação (fls 136 vº), o que não foi sequer posto em causa nas alegações de revista.
Nenhuma dúvida se nos suscita, neste caso do terceiro contrato de mútuo, sobre a validade do título dado em execução, nem sobre a dívida reclamada.
Isto não significa, naturalmente, a necessária viabilidade da pretensão executiva, pois pode acontecer que a defesa dos executados venha a proceder se estes invocassem facto justificativo da inexequibilidade da pretensão exequenda, alegando, designadamente, o abuso de direito.
Ora, perante o nº 22º da matéria de facto, ocorre, à semelhança do primeiro e segundo contratos de mútuo, o alegado abuso de direito por parte da exequente?
Nesta parte acompanhamos o que foi decidido pela Relação, sendo relevante que:
i) O terceiro contrato, referido no nº 11º da Fundamentação de facto, não está garantido por contrato de seguro;
ii) Os executados deixaram de pagar as prestações desse contrato - referido em 11 - em Agosto de 2012 (Facto provado nº 17º);
iii) A execução apensa deu entrada em Juízo em 13.07.2017 (Facto provado nº 20º).
A exequente vem exigir pela via executiva, para obter o correspondente pagamento coercivo, o que lhe é devido relativamente a esse contrato.
Ao instaurar a presente execução, no circunstancialismo descrito no nº 22º dos factos provados, não verificamos que ocorra qualquer circunstância impeditiva, modificativa ou extintiva do dever de prestar, não sendo inatacável o direito que o título confere.
Ao exercer o direito, a exequente não excedeu manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – artigo 334º do Código Civil.
Deste modo, em relação ao terceiro contrato, é manifesto que os executados careciam de fundamento bastante para deduzir oposição, justificando-se, por isso, nesta parte a improcedência da revista.
Nesta conformidade, procedem as conclusões XXVII a XXX.
III - DECISÃO
Atento o exposto, concede-se provimento parcial à revista, e assim:
a) Revoga-se o acórdão recorrido relativamente ao primeiro e segundo contrato de mútuo com hipoteca, ordenando-se a extinção da execução relativamente àqueles dois contratos;
b) Confirma-se o acórdão recorrido no tocante ao terceiro contrato de mútuo com hipoteca, negando-se provimento à revista, prosseguindo a execução os seus termos normais em relação a este contrato.
Custas pelos recorrentes e recorrida na respectiva proporção.
Lisboa, 07 de Novembro de 2019
Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx (Relator)
Xxxx Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
[1] Fls 135 vº e 136.
[2] Factos provados 3º e 5º, 7º e 9º.
[3] Factos provados 11º e 13º.
[4] Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx, in Código Civil Anotado, Vol. I – 2ª ed., pág. 277.
[5] Do Abuso de Direito, pág. 43
[6] Xxxxxxxx xx Xxxxx, ob cit, pág. 55
[7] Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 5.ª ed., pág. 346.
[8] Procº nº 3220/07.3TBGDM-A.P1.S1, in xxx.xxxx.xx/xxxx
[9] Procº nº 7531/12.8TBMTS-A.P1.S1, in xxx.xxxx.xx/xxxx