O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NAS RELAÇÕES ENTRE EMPRESAS REGIDAS POR CONTRATOS DE ADESÃO.
O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NAS RELAÇÕES ENTRE EMPRESAS REGIDAS POR CONTRATOS DE ADESÃO.
PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO CONTRATUAL
SÃO PAULO 2022
O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NAS RELAÇÕES ENTRE EMPRESAS REGIDAS POR CONTRATOS DE ADESÃO.
Trabalho de conclusão de curso de pós graduação apresentado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Contratual, sob a orientação do Professor Xxxxxx Xxxxxx.
PÓS GRADUAÇÃO EM DIREITO CONTRATUAL
SÃO PAULO 2022
O VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM NAS RELAÇÕES ENTRE EMPRESAS REGIDAS POR CONTRATOS DE ADESÃO.
Trabalho de conclusão de curso de pós graduação apresentado à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Contratual, sob a orientação do Professor Xxxxxx Xxxxxx.
Prof. Xxxxxx Xxxxxx Orientador
Prof(a).
Prof(a).
SÃO PAULO 2022
O presente trabalho tem como objetivo analisar a legalidade de determinados atos praticados pelas pessoas jurídicas que estejam envolvidas em uma relação contratual regida por um contrato de adesão que tenha perdido o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes a ele sujeitas, em busca do reestabelecimento do equilíbrio contratual. Com esta análise, espera-se determinar qual é a melhor maneira de conciliar os interesses das partes envolvidas na relação contratual sem infringir regras gerais e princípios contratuais.
Palavras-chave: Contrato; Adesão; Consumidor; Venire Contra Factum Proprium.
This study aims to analyze the legal validity of certain acts practiced by private legal entities that are involved in a contractual relationship governed by a subscription contract that has lost the balance between the rights and duties of the parties within, in order to re-establish the contractual equilibrium. The purpose of this analysis is to determine what is the best way to accommodate the interests of the parties involved in the contractual relationship without infringing general rules and contractual principles.
Keywords: Contract; Subscription; Consumer; Venire Contra Factum Proprium.
SUMÁRIO
2. DIREITOS DO CONSUMIDOR E A RELAÇÃO DE CONSUMO 7
2.2. Previsões do Código de Defesa do Consumidor 9
2.3. Diferenças entre a relação civil entre pessoas jurídicas e a relação de consumo. 11
3.1. Princípios contratuais 15
3.2.1. Contratos por adesão e Contratos de adesão 20
3.2.2. Previsões Protetivas dos Contratos de Adesão 21
4.2. Hipóteses autorizadoras do comportamento contraditório 25
5. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM 27
5.2. O Venire Contra Factum Proprium e a Boa-fé 29
6.1. Teoria da Imprevisão e Pacta Sunt Servanda 35
6.2. As relações contratuais em um momento de crise econômica nacional.38
6.3. Os meios adequados para garantir a executabilidade dos contratos desproporcionais 40
1. IMPORTÂNCIA DO TEMA
A evolução da sociedade de consumo em um momento histórico de intenso desenvolvimento tecnológico e de expansão das relações comerciais impulsiona o proporcional desenvolvimento das relações contratuais.
Um exemplo deste desenvolvimento é a crescente aplicação dos contratos de adesão nas relações civis e comerciais entre empresas que tenham como objeto a compra e venda de produtos ou a prestação de serviços. Isso ocorre na medida em que a demanda pela formalização de instrumentos contratuais para regular estas relações comerciais se torna excessiva, fazendo-se necessária a otimização do processo de contratações, passando-se a adotar contratos padrão, que podem ser rapidamente emitidos e cumpridos.
Apesar das facilidades trazidas por este tipo de contratação, por ser um contrato redigido por apenas uma das partes e que não permite discussão de seu conteúdo, muitas vezes o aderente se depara com situações desfavoráveis que podem lhe causar grandes prejuízos.
Isso ocorre especialmente em momentos de crise econômica como a vivida atualmente no Brasil, em que a instabilidade da economia pode trazer profundos impactos no equilíbrio da relação contratual, na medida em que o contrato foi proposto e aceito considerando um cenário que sofrerá alterações em um curto período de tempo, alterando, portanto, a proporcionalidade dos direitos e obrigações contratuais.
Diante deste cenário, muitas empresas buscam artifícios para se eximirem de suas obrigações contratuais, como, por exemplo, a busca pela declaração judicial de invalidade de determinada cláusula contratual contida em um contrato de adesão com fundamento na equiparação de sua condição a condição de consumidor em razão de eventual hipossuficiência, obtendo-se, desta forma, o tratamento protetivo conferido pelo sistema jurídico aos consumidores.
O presente trabalho orientar-se-á no sentido de analisar a legitimidade do uso deste artifício e seu eventual conflito com outros institutos legais e princípios do direito, bem analisar como os meios adequados para a busca do reequilíbrio das relações contratuais nestas situações.
2. DIREITOS DO CONSUMIDOR E A RELAÇÃO DE CONSUMO
2.1. Contexto Histórico
Previamente ao surgimento dos contratos, já se podia observar uma necessidade de regulamentar certas situações fáticas preexistentes às relações contratuais como são hoje concebidas, presente no dia a dia de diversos povos durante centenas de anos, uma relação de intercâmbio de bens e serviços entre as pessoas.
O comércio passou a ser utilizado por diversos povos como forma de subsistência, permitindo que as pessoas trocassem, vendessem ou comprassem produtos que não tinham à sua disposição de pessoas que a tinham em excesso.
Diante desta dinâmica de oferta e demanda a posição daquele que dispunha dos produtos ofertados muitas vezes se revelava mais favorável do que a de quem necessitava deles, vez que o primeiro, unilateralmente, definia os termos e condições em que desejava realizar a transação comercial.
Ao comprador, restava aceitar as condições que tinha possibilidade de se submeter, e tentar dissuadir o vendedor, por meio da negociação, daquelas que não tinha, sendo que, ao final de eventuais negociações, a vontade do vendedor prevalecia, por não ser este obrigado a vender seus produtos contra a sua vontade.
Este fortalecimento de uma das partes contratantes e o consequente enfraquecimento da outra levou ao surgimento de diversos conflitos nas relações comerciais, em especial, diante de um cenário de uma sociedade capitalista com um Estado liberal, no qual o Estado intervém nas relações particulares o mínimo possível, dando grande ênfase à autonomia de vontade dos particulares.
Neste período, o negócio livremente contratado nos termos e condições aceitos pelas partes constituía a vontade soberana dos envolvidos em determinada relação contratual, que não poderia ser extinta ou alterada por terceiros estranhos à relação contratual, nem por uma das partes de maneira unilateral.
A este respeito, Humberto Theodoro Júnior1:
1 XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. Direitos do Consumidor. 7º Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2011. p 7.
(...) Se o homem se torna obrigado em virtude de um contrato, “é porque assim o quis, pois assim como o contrato marca o começo da vida jurídica, a vontade individual é o princípio do contrato”.
Para o Estado liberal, o problema da justiça comutativa das obrigações contratuais diz respeito às partes e não à ordem jurídica. Consagra-se, assim, a preeminência do valor segurança sobre o da justiça contratual, fazendo-se absorver a questão da equidade do contrato pela proclamação da ampla liberdade dos contratantes, que seriam os únicos avaliadores da conveniência e justiça dos termos do ajuste.
A ideia da soberania da vontade das partes contratantes é um conceito aparentemente objetivo e prático, na medida em que se consideram as partes contratantes como partes em igualdade de condições, sejam estas econômicas, jurídicas, sociais, técnicas, morais, etc., entretanto, a igualdade plena entre as partes é quase uma utopia, não se revelando factível diante da realidade prática das relações contratuais.
Exemplos desta dinâmica comumente camuflada nas relações contratuais podem ser observados em diversos ramos do Direito, no âmbito trabalhista, há contratos impostos por empregadores sobre seus empregados; no âmbito administrativo, há contratos impostos pelo Estado sobre prestadores de serviço; no âmbito civil, há contratos impostos por fornecedores sobre seus clientes, contratos impostos por locadores sobre seus inquilinos; no geral, contratos impostos por estipulantes sobre seus aderentes.
Tendo isso em vista, e considerando a mudança do cenário político- econômico que se revelou por meio da substituição gradual do Estado liberal por um Estado Social, que passou a se preocupar em promover garantias mínimas à sociedade como um todo, além da promoção da liberdade como princípio fundamental no desenvolvimento econômico, político e social, surgiu a tendência motivada pela necessidade de uma parcela de intervenção Estatal nas liberdades individuais, visando impedir a supressão de determinados direitos de alguém em razão da possibilidade e conveniência de outrem, circunstancialmente favorecido em determinado aspecto.
É importante ressaltar que esta intervenção não contrariava a ideia da liberdade individual sendo exercida nas relações jurídicas entre particulares, mas buscava complementá-la, na medida em que se estabeleciam determinados parâmetros de igualdade que, quando não atingidos, autorizavam a busca de maior proteção à parte mais frágil da relação.
Desta forma, eventuais fragilidades das partes poderiam ser suprimidas pela existência de uma limitação na liberdade contratual que, à primeira vista, parece privilegiar uma dar partes em detrimento da outra, mas que, na realidade, devolve
àquela relação uma ideia inicial de equilíbrio e igualdade entre os contratantes, permitindo, assim, que estes possam exercer sua autonomia de vontade por meio da livre contratação.
Estas limitações às relações contratuais foram, então, desenvolvidas e impostas pelo Estado, por meio da criação, por exemplo, dos Direitos do Consumidor, legislação voltada à regulamentação das relações de consumo e proteção da parte mais frágil da relação.
No Brasil, até 1990, ano em que foi colocado em vigor o Código de Defesa do Consumidor, havia apenas legislações esparsas que tratavam de temas específicos englobados nas relações de consumo, como o Decreto-Lei 22.626 de 1933, conhecido como a Lei da Usura; e o Decreto-Lei 869 de 1938, que trata de crimes contra a economia popular.
A Constituição Federal de 1988 trouxe no corpo do seu texto disposições esparsas que trouxeram ainda mais força a esta matéria, inclusive, incluindo-a no rol de cláusulas pétreas do artigo 5º, por meio do inciso XXXII, que determina “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”; além de trazer a defesa dos direitos do consumidor como um princípio que deve ser seguido pela ordem econômica, conforme disposição do artigo 170.
Além disso, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previu ainda a necessidade da criação de um código específico para tratar desta matéria, em seu artigo 48, que dispõe: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.”.
Diante disso, em 11 de setembro de 1990 entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, causando significativo impacto na forma como eram vistas as relações de consumo até então.
2.2. Previsões do Código de Defesa do Consumidor
O Código de Defesa do Consumidor visa acabar ou minimizar as desproporções existentes nas relações entre consumidor e fornecedor, por meio de previsões protetivas àqueles.
De início, é importante ressaltar a forma como o Código de Defesa do Consumidor conceitua estas duas figuras. O artigo 2º determina que o consumidor “é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, além disso, é considerada também neste conceito de consumidor a “coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. O artigo 17 prevê que serão equiparadas aos consumidores todas as vítimas dos eventos listados na Seção III – Da Responsabilidade pelo Fato
do Produto e do Serviço. Por fim, o artigo 29 deste mesmo Código ainda traz a figura do consumidor equiparado, que são aquelas pessoas determináveis ou não, expostas às práticas comerciais previstas no Capítulo V – Das Práticas Comerciais.
Ainda a respeito do consumidor, o inciso I do artigo 4º traz como princípio que deve ser observado pela Política Nacional das Relações de Consumo o reconhecimento de sua vulnerabilidade. Esta vulnerabilidade pode se apresentar em diversos aspectos: vulnerabilidade técnica, refletida pela ausência do conhecimento específico a respeito do funcionamento do produto ou serviço que é oferecido ao consumidor; vulnerabilidade jurídica (ou científica), que é o desconhecimento pelo consumidor de ciências que podem interferir na relação de consumo, como o direito, por exemplo; vulnerabilidade informacional, e a vulnerabilidade econômica.
Já o fornecedor, a outra parte desta relação de consumo, é definido pelo artigo 3º como “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.
Aos consumidores são atribuídos direitos básicos, como por exemplo, o direito à proteção da vida, saúde e segurança; direito à informação a respeito dos produtos ou serviços, proteção contra práticas comerciais abusivas ou desleais, prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, acesso á justiça, facilitação de defesa de seus direitos, e, o mais importante para a discussão trazida no presente trabalho, o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Outro importante aspecto do Código de Defesa do Consumidor refere-se à responsabilidade civil do fornecedor. Atualmente, de acordo com o Código Civil, a responsabilização civil por danos causados se dá de forma subjetiva, ou seja, é necessário que haja dolo ou culpa do causador do dano para que haja a obrigatoriedade de indenizar quem sofreu o dano.
Esta regra tem suas exceções, ou seja, casos em que se aplica a responsabilidade objetiva (havendo obrigação de indenizar pelo dano causado ainda que não tenha havido dolo ou culpa) previstas no parágrafo único do artigo 927, que prevê: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
O Código de Defesa do Consumidor é um claro exemplo de exceção à regra da responsabilidade subjetiva por previsão legal, vez que, em seus artigos 12 e 14, afirma que os fornecedores “respondem, independentemente da existência de culpa” por danos causados pelos defeitos relativos à prestação de serviços ou do produto, bem como pela ausência de informações suficientes e adequadas a respeito de sua
utilização e riscos. Esta previsão se faz muito importante na medida em que desobriga à prova da culpa ou do dolo por quem sofreu o dano e o deseja ter reparado, prova esta que é difícil ou quase impossível de ser feita em muitos casos, obstando a justa reparação de um dano efetivamente causado.
O Capítulo VI do Código de Defesa do Consumidor trata da proteção contratual ao consumidor. São diversos os mecanismos protetivos estipulados a respeito deste tema. O artigo 46, por exemplo, afirma que os consumidores não estarão obrigados a cumprir os contratos que assinam se não tiverem conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se o contrato foi redigido de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.
Este dispositivo busca inibir eventuais prejuízos que possam ser sofridos pelo consumidor que assina um contrato que não entenda, ou que não tenha tido a possibilidade de analisar, evitando, assim, que o consumidor desavisado e desinformado assuma obrigações extremamente onerosas a ele.
O artigo 47 determina que “as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor”. Este dispositivo evita que os fornecedores que redigem os contratos, se valham de redações confusas e ambíguas para enganar o consumidor, induzi-lo a erro.
Outra importante disposição é trazida pelo artigo 51 Código de Defesa do Consumidor, que trata da nulidade das cláusulas abusivas, ou seja, determina que ainda que estejam presentes em um contrato, não terão validade as disposições que, por exemplo, impliquem em renúncia de direitos do consumidor, estabeleçam a inversão do ônus da prova, determinem a utilização compulsória da arbitragem, dentre outros.
Novamente, revela-se a intenção do legislador de proteger o consumidor que não entende, não conhece ou não pode modificar as condições estabelecidas no contrato que está assinando.
Além destas, muitas são as disposições trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor que visam colocar em igualdade de condições o consumidor e o fornecedor, muito embora, na realidade prática das relações contratuais isso possa não se revelar eficiente para tal fim, muitas vezes apenas reduzindo o abismo existente entre estas partes de uma mesma relação contratual.
2.3. Diferenças entre a relação civil entre pessoas jurídicas e a relação de consumo.
Conforme já explicitado, o Código de Defesa do Consumidor conceituou o consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto ou serviço como destinatário final. A partir desta definição, fica claro que a finalidade é
um requisito para a caracterização do consumidor, ou seja, é necessário que os produtos ou serviços adquiridos por ele se prestem ao atendimento de uma necessidade própria, e não para atender a uma finalidade comercial destinada a terceiros.
Diante disso, surgiu uma discussão a respeito da abrangência que pode ou não ser dada à interpretação do termo “destinatário final”. A doutrina brasileira se divide, basicamente, em três posições: a teoria finalista (ou subjetiva), a teoria maximalista e a teoria finalista mitigada, segundo Erika Cordeiro de Albuquerque dos Santos Silva Lima2.
De acordo com a teoria maximalista, seguida por Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, apenas se deve levar em consideração para a caracterização do conceito de destinatário final a realidade fática, objetiva, ou seja, bastaria retirar do mercado e consumir o produto ou usufruir do serviço em questão.
Esta teoria permite uma extensão indevida do conceito, garantindo o benefício da proteção adicional garantida pela lei a sujeitos que dela não necessitam, vez que coloca em patamar de igualdade a pessoa física que adquire um produto ou serviço de uma grande empresa a uma grande empresa, sem qualquer espécie de vulnerabilidade, que adquire um produto de uma microempresa.
Para os adeptos da teoria finalista ou subjetiva, como Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx X. Benjamim, além do caráter objetivo, deve ser analisado o caráter econômico da relação em questão, ou seja, é preciso fazer uma análise a respeito da destinação econômica dada a determinado produto ou serviço. Neste sentido, somente poderia ser considerado destinatário final aquele que adquire um produto para uso próprio, para satisfazer uma necessidade pessoal.
Por fim, a teoria finalista mitigada, a teoria mais aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça, combina o caráter fático da destinação com a existência de algum tipo de vulnerabilidade do destinatário, ou seja, neste caso, será considerado destinatário final aquele que adquira determinado bem ou contrate determinado serviço e que tenha, em algum aspecto, uma vulnerabilidade frente ao fornecedor, sem que haja necessidade de se analisar o caráter econômico da relação, incluindo, portanto, aqueles que utilizarem o produto ou serviço para fins econômicos, mas que não estejam em igualdade de condições frente ao fornecedor.
Um exemplo desta aplicação é a seguinte decisão do Superior Tribunal de
Justiça:
2 XXXX, Xxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxx. Teorias acerca do conceito de consumidor e sua aplicação na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4153, 14 nov. 2014. Disponível em:
<xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxxxxx/00000>. Acesso em: 9 dez. 2018.
DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. CONCEITO DE CONSUMIDOR. CRITÉRIO SUBJETIVO OU FINALISTA. MITIGAÇÃO. PESSOA JURÍDICA. EXCEPCIONALIDADE. VULNERABILIDADE. CONSTATAÇÃO NA HIPÓTESE DOS AUTOS. PRÁTICA ABUSIVA. OFERTA INADEQUADA. CARACTERÍSTICA, QUANTIDADE E COMPOSIÇÃO DO PRODUTO. EQUIPARAÇÃO
(ART. 29). Decadência. Inexistência. Relação jurídica sob a premissa de tratos sucessivos. Renovação do compromisso. Vício oculto. A relação jurídica qualificada por ser "de consumo" não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus polos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado (consumidor), e de um fornecedor, de outro. Mesmo nas relações entre pessoas jurídicas, se da análise da hipótese concreta decorrer inegável vulnerabilidade entre a pessoa-jurídica consumidora e a fornecedora, deve-se aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. Ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, a jurisprudência deste STJ também reconhece a necessidade de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e consumidores-empresários em que fique evidenciada a relação de consumo. São equiparáveis a consumidor todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais abusivas. Não se conhece de matéria levantada em sede de embargos de declaração, fora dos limites da lide (inovação recursal). Recurso especial não conhecido. Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, não conhecer do recurso especial. (Terceira Turma- Recurso Especial 476428 SC 2002/0145624-5, Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Julgamento em 19 de abril de 2005).
Neste julgado, a Relatora Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, apesar de reconhecer o recorrente uso do critério finalista para interpretação do conceito de consumidor, revela a preocupação dos Tribunais em proteger a realidade fática das relações contratuais, abrindo-se mão da aplicação de regras gerais em razão da defesa dos interesses das pessoas vulneráveis, sejam elas físicas ou jurídicas, afirmando que a constatação da existência de vulnerabilidade de uma das partes na relação contratual é suficiente para a caracterização da figura de consumidor, e, consequentemente, da aplicação de toda a proteção a ele garantida.
Diante disso, entende-se que, atualmente, a posição mais adequada a fim de garantir segurança jurídica às relações civis e comerciais e garantir também o tratamento desigual apenas às partes desiguais, é a posição adotada pelos adeptos da teoria finalista mitigada, vez que a teoria finalista deixaria de garantir a proteção dada pelo Código de Defesa do Consumidor às partes que dela necessitam, como
por exemplo, pequenas empresas que adquirem equipamentos eletrônicos que viabilizam sua operação comercial, e que a teoria maximalista poderia garantir essa mesma proteção às partes que dela não necessitam, como por exemplo, as grandes empresas de grande poder econômico e conhecimento técnico elevado que adquirem produtos de empresas menores e com maior vulnerabilidade para incorporar à sua atividade comercial.
Logo, percebe-se que não se pode determinar uma regra geral de caracterização ou não de uma pessoa jurídica como consumidor, vez que esta poderá ser consumidora em uma relação em que tenha vulnerabilidade frente à outra parte, mas não ser consumidora em outra relação quando tratar com outra parte em situação de quase igualdade de condições.
Logo, é necessário que cada caso seja analisado com cautela, levando-se em consideração as particularidades de cada relação contratual, para que, dessa forma, se possa garantir a aplicação da justiça por meio do tratamento igualitário para as partes iguais e o tratamento desigual para as partes desiguais.
3. CONTRATOS
3.1. Princípios contratuais
As relações contratuais devem ser pautadas por alguns princípios, que visam norteá-las de forma a garantir certa segurança jurídica aos contratantes.
Um destes princípios é o princípio da autonomia da vontade, que, de acordo com Maria Helena Diniz3, significa que as partes contratantes têm liberdade para escolher se querem contratar, quem querem contratar, e o que querem contratar. Ou seja, de acordo com este princípio, ninguém pode estar obrigado a celebrar um contrato contra a sua vontade.
O consensualismo, de acordo com Maria Helena Diniz4 também é um princípio que deve ser observado nas relações contratuais, e significa que simples acordo de vontade entre as partes é suficiente para que se aperfeiçoe um contrato, ainda que dependam de algum requisito formal exigido por lei para produzir seus efeitos.
Outro princípio muito importante adotado pelo Direito brasileiro é o princípio da obrigatoriedade dos contratos, que, de acordo com Xxxxx Xxxxxx Diniz5 significa que, caso alguém opte por celebrar determinado contrato, estará obrigado a cumpri- lo fielmente.
Este princípio encontra exceções em hipóteses taxativas autorizadas pelo Código Civil Brasileiro, por exemplo, a arguição de caso fortuito ou força maior. De acordo com Carlos Roberto Gonçalves6:
O aludido princípio tem por fundamentos: a) a necessidade de segurança nos negócios, que deixaria de existir se os contratantes pudessem não cumprir a palavra empenhada, gerando a balbúrdia e o caos; b) a intangibilidade ou imutabilidade do contrato, decorrente
3 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro: Volume 3, Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. 29ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013, p. 41.
4 Id. Ibid., p. 47.
5 Id. Ibid.
6 GONÇALVE/S, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013. p. 49.
da convicção de que o acordo e vontades faz lei entre as partes, personificada pela máxima pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos), não podendo ser alterado nem pelo juiz. Qualquer modificação ou revogação terá de ser, também, bilateral. O ser inadimplemento confere à parte lesada o direito de fazer uso dos instrumentos judiciários para obrigar a outra a cumpri-lo, ou a indenizar pelas perdas e danos, sob pena de execução patrimonial (CC, art. 389).
Há, ainda, o princípio da onerosidade excessiva, que permite uma alteração nas obrigações contratadas determinada judicialmente diante da ocorrência de situação que leve à oneração excessiva a uma das partes. Carlos Roberto Gonçalves7, afirma que:
A teoria recebe o nome de rebuc sic stantibus e consiste basicamente em presumir, nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida a existência implícita (não expressa) de uma cláusula, pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe a inalterabilidade da situação de fato. Se esta, no entanto, modificar-se, em razão de acontecimentos extraordinários (...), que tornem excessivamente oneroso para o devedor o seu adimplemento, poderá este requerer ao juiz que o isente da obrigação, parcial ou totalmente.
Um dos princípios mais importantes trazidos pelo Código Civil Brasileiro é, na verdade, uma cláusula geral, que, segundo Judith Martins Costa8, é uma “técnica legislativa pela qual são conformados modelos jurídicos abertos, isto é: aqueles expressos mediante uma estrutura normativa concreta cuja finalidade é modular, nas leis, soluções que deixam margem ao juiz e à doutrina, fazendo apelo, para tal fim, a conceitos integradores da compreensão ética”. Trata-se da boa-fé, que, segundo Xxxxxx xx Xxxxx Venosa9, “se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta, eticamente aceita, antes, durante e depois do contrato (...)”.
Este princípio trás consigo dois diferentes aspectos: a boa-fé subjetiva, normalmente utilizada nos direitos reais, que tem um caráter psicológico, ou seja, traduz o estado psicológico do agente de convicção na relação jurídica, a intenção íntima do agente em agir de forma leal; e também a boa-fé objetiva, ligada
7 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013. p.51.
8 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo. Editora Xxxxxxx Xxxx. 2015, p. 45
9 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 12ª Edição. São Paulo. Editora Atlas. 2012. p. 272.
especialmente aos direitos pessoais, que é uma norma de comportamento, o que significa a obrigação que o sujeito tem de agir de acordo com um padrão de conduta aceito pela sociedade naquele momento, considerando os interesses da outra parte, por exemplo, não omitindo informações relevantes à celebração no negócio jurídico.
A boa-fé objetiva é tão importante atualmente, que, segundo Carlos Roberto Gonçalves10:
A boa-fé objetiva enseja, também, a caracterização de inadimplemento mesmo quando não haja mora ou inadimplemento absoluto do contrato. É o que a doutrina moderna denomina violação positiva da obrigação ou do contrato. Desse modo, quando o contratante deixa de cumprir alguns deveres anexos, por exemplo, esse comportamento ofende a boa-fé objetiva e, por isso, caracteriza o inadimplemento do contrato.
Na prática, a boa-fé objetiva é discutida com frequência em ações judiciais. A respeito da obrigação de manter a boa-fé objetiva mesmo após a conclusão da relação contratual, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou favorável:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA. VÍCIOS DE CONTRUÇÃO (VÍCIOS OCULTOS). AMEAÇA DE DESMORONAMENTO. CONHECIMENTO APÓS A EXTINÇÃO DO CONTRATO. BOA-FÉ OBJETIVA PÓS-CONTRATUAL.
JULGAMENTO: CPC/15. Ação de indenização securitária proposta em 21/07/2009, de que foi extraído o presente recurso especial, interposto em 06/07/2016 e concluso ao gabinete em 06/02/2017. O propósito recursal consiste em decidir se a quitação do contrato de mútuo para aquisição de imóvel extingue a obrigação da seguradora de indenizar os adquirentes-segurados por vícios de construção (vícios ocultos) que implicam ameaça de desmoronamento. A par da regra geral do art. 422 do CC/02, o art. 765 do mesmo diploma legal prevê, especificamente, que o contrato de seguro, tanto na conclusão como na execução, está fundado na boa-fé dos contratantes, no comportamento de lealdade e confiança recíprocos, sendo qualificado pela doutrina como um verdadeiro "contrato de boa-fé". De um lado, a boa-fé objetiva impõe ao segurador, na fase pré- contratual, o dever, dentre outros, de dar informações claras e objetivas sobre o contrato para que o segurado compreenda, com exatidão, o alcance da garantia contratada; de outro, obriga-o, na fase de execução e também na pós-contratual, a evitar subterfúgios para tentar se eximir de sua responsabilidade com relação aos riscos
10 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013. p. 59.
previamente cobertos pela garantia. O seguro habitacional tem conformação diferenciada, uma vez que integra a política nacional de habitação, destinada a facilitar a aquisição da casa própria, especialmente pelas classes de menor renda da população. Trata-se, pois, de contrato obrigatório que visa à proteção da família, em caso de morte ou invalidez do segurado, e à salvaguarda do imóvel que garante o respectivo financiamento, resguardando, assim, os recursos públicos direcionados à manutenção do sistema. À luz dos parâmetros da boa-fé objetiva e da proteção contratual do consumidor, conclui-se que os vícios estruturais de construção estão acobertados pelo seguro habitacional, cujos efeitos devem se prolongar no tempo, mesmo após a extinção do contrato, para acobertar o sinistro concomitante à vigência deste, ainda que só se revele depois de sua conclusão (vício oculto). Constatada a existência de vícios estruturais acobertados pelo seguro habitacional e coexistentes à vigência do contrato, hão de ser os recorrentes devidamente indenizados pelos prejuízos sofridos, nos moldes estabelecidos na apólice. Recurso especial conhecido e provido. (Terceira Turma- REsp. 1717112 RN 2017/0006022-0, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Julgamento em 25 de setembro de 2018).
3.2. Contratos de Adesão
Superado o aspecto da existência ou ausência de igualdade entre as partes contratantes, ainda há que se falar em outras circunstâncias que, após uma análise crítica da realidade podem ser facilmente percebidas como empecilhos à contratação baseada na autonomia de vontade das partes, na liberdade, na mutualidade, e outros princípios contratuais fundamentais.
A necessidade de celebração de contratos em grande quantidade ou em massa é um dos grandes fatores impeditivos atualmente enfrentados pelos contratos negociados, ou seja, pelos contratos discutidos pelas partes, com redação elaborada para o atendimento de cada situação em particular, cujos ônus e bônus tenham sido analisados e aprovados por todos os envolvidos na relação contratual.
Carlos Roberto Gonçalves11 conceitua esta modalidade de contratação:
Contratos paritários são aqueles do tipo tradicional, em que as partes discutem livremente as condições, porque se encontram em situação de igualdade (par a par). Nessa modalidade há uma fase de
11 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013. p. 99.
negociações preliminares, na qual as partes, encontrando-se em pé de igualdade, discutem as cláusulas e condições do negócio.
Este fenômeno é uma consequência da evolução das relações comerciais, observada a partir da Revolução Industrial. Diante da aceleração do consumismo da sociedade como um todo, faz-se presente o aumento exponencial da quantidade de relações comerciais firmadas diariamente, e consequentemente, da celebração de contratos para regê-las.
A este respeito, Custodio da Piedade Ubaldino Miranda12 afirma que “Esta nova realidade não podia deixar de gerar novas formas de contratação, sendo os contratos padronizados uma contraface da produção em massa (...)”.
Por sua vez, Xxxxxx Xxxx Junior13 revela:
Com o crescimento da sociedade de consumo, que teve início marcante no começo do século XX, surgiu a necessidade de contratação em massa, por meio de formulários com cláusulas preestabelecidas, de sorte a agilizar o comércio jurídico. Neste contexto não há mais lugar para as tratativas contratuais, em que as partes discutiam tópico por tópico do contrato que viria a ser formado por elas.
Fica claro, então, que realizar a negociação e elaboração conjunta da redação de cada contrato utilizado atualmente revela-se inviável, considerada a dinamicidade das relações comerciais rotineiras. Diante disso, novas modalidades de contratação foram criadas, permitindo que a face jurídica destas relações comerciais acompanhe sua realidade fática.
A figura do contrato de adesão tem ganhado cada vez mais força, exatamente por permitir a rápida celebração, por meio da aceitação, pelo aderente, das condições pré-estabelecidas nas cláusulas previamente redigidas pela outra parte.
Para Carlos Roberto Gonçalves14:
12 XXXXXXX, Custodio da Piedade Xxxxxxxx. Contrato de Adesão. São Paulo. Editora Atlas S.A., 2002. p. 16.
13 XXXX XX., X. et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 10ª Edição. Rio de Janeiro. Editora forense, 2011. p. 528.
Contratos de adesão são os que não permitem essa liberdade, devido à preponderância da vontade de um dos contratantes, que elabora todas as cláusulas. O outro adere ao modelo de contrato previamente confeccionado, não podendo modificá-las: aceita-as ou rejeita-as, de forma pura e simples, e em bloco, afastada qualquer alternativa de discussão. São exemplos dessa espécie, dentre outros, os contratos de seguro, de consórcio, de transporte, e os celebrados com as concessionárias de serviços públicos (fornecedoras de água, energia elétrica etc.).
Já para Custodio da Piedade Ubaldino Miranda15:
Nessa modalidade de contrato, o que se observa (...) é a pré- formulação de cláusulas que caracterizam certo tipo contratual e disciplinam de modo uniforme e de forma mais ou menos exaustiva a relação jurídica que, com base nesse tipo, irá estabelecer entre os contratantes. Um deles, o formulador do contrato, é em regra uma empresa ou um grupo de empresas de porte, assessorado por um corpo de profissionais de alta competência, que têm a responsabilidade de forjar o conteúdo contratual; uma vez fixado esse conteúdo, o instrumento contratual fica à disposição de quem quer que deseje contratar. (...) a propósito da formação do contrato, dir-se-ia que é uma proposta contratual, contida em um formulário padronizado, dirigida ao público em geral ou a determinada categoria de pessoas, para que, quem quer que esteja interessado em aferir a essa proposta, o faça, aceitando toda a matéria contratual exposta, sem possibilidade de alterar, por sua vontade, no que for relevante, o conteúdo contratual apresentado. Aquele que assim aderir à proposta, manifestando o seu consentimento validamente, contribuirá para que seja firmado o contrato.
3.2.1. Contratos por adesão e Contratos de adesão
Não obstante à compreensão da importância dos contratos de adesão nas relações contratuais modernas, faz-se, ainda, indispensável a compreensão das diferenças existentes entre os contratos de adesão e outra figura jurídica semelhante, os contratos por adesão.
Conforme explicita o jurista Orlando Gomes16:
14 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2013. p. 99.
15 XXXXXXX, Custodio da Piedade Xxxxxxxx. Contrato de Adesão. São Paulo. Editora Atlas S.A., 2002. p. 18.
16 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 26ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2009. p.161.
Sempre que uma parte se encontra em relação à outra numa posição de superioridade, ou, ao menos, mais favorável, é normal que queira impor sua vontade, estabelecendo as condições do contrato. A cada momento isso se verifica, sem que o fato desperte a atenção dos juristas, justo porque essa adesão se dá sem qualquer constrangimento se a parte pode dispensar o contrato. O que caracteriza o contrato de adesão propriamente dito é a circunstância de que aquele a quem é proposto não pode deixar de contratar, porque tem necessidade de satisfazer a um interesse que, por outro modo, não pode ser atendido.
Entende-se, então, que a configuração efetiva dos contratos de adesão extrapola as características internas do instituto, envolvendo também aspectos da realidade em que está inserido, ou seja, o contexto fático e econômico de sua constituição. Sendo assim, para que se esteja diante de contratação de adesão, além das características já mencionadas, a saber, a elaboração unilateral e impositiva das condições contratuais, é necessária a existência de monopólio do objeto contratual em questão, ou seja, é necessário que a parte aderente não tenha opção senão a contratação nos moldes propostos pelo proponente do contrato; do contrário, o aderente se insere em contratação por adesão.
Nesse sentido, Orlando Gomes17 sintetiza: “É pressuposto, pois, do contrato de adesão o monopólio de fato, ou de direito, de uma das partes que elimina a concorrência para realizar o negócio jurídico. Se a situação não se configura desse modo, poderá haver contrato por adesão, jamais contrato de adesão.”.
3.2.2. Previsões Protetivas dos Contratos de Adesão
O ordenamento jurídico brasileiro, ao recepcionar esta modalidade de contratação, limitou-a em alguns aspectos, visando dar certa proteção à parte aderente, considerando que esta não teve a oportunidade de discutir e negociar aquele contrato previamente. Desta forma, evita-se que sejam inseridas no corpo do contrato determinadas disposições extremamente desfavoráveis ao aderente, que este aceitaria apenas pela necessidade da celebração do negócio jurídico.
A respeito das relações civis, o artigo 424 do Código Civil brasileiro determina: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio. ”, desta
17 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 26ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2009. p.162.
forma, evita-se que, pela ausência da possibilidade discussão e negociação, uma das partes acabe renunciando a um direito inerente ao negócio que será celebrado.
Além disso, o artigo 423 do Código Civil brasileiro prevê, ainda, que “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”, ou seja, a inclusão, pela parte que formula o contrato de adesão, de determinada disposição que não seja inequívoca ao estabelecer direitos ou obrigações das partes, seja por uma imprecisão técnica no momento da redação ou por má-fé, visando ludibriar a parte aderente, fazendo com que aceite o contrato por ignorar condição que, se conhecida, poderia potencialmente obstar a celebração do contrato.
Neste sentido, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná corrobora:
APELAÇÃO CÍVEL - CONTRATO DE SEGURO EMPRESARIAL - COBERTURA DOS DANOS CAUSADOS À VEÍCULOS DE TERCEIROS DURANTE O PERCURSO ENTRE O ESTABELECIMENTO E O ESTACIONAMENTO - CLÁUSULAS AMBÍGUAS E CONTRADITÓRIAS - INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA E FAVORÁVEL AO ADERENTE - INTELIGÊNCIA DO ART. 423, DO CÓDIGO CIVIL - CONDUTOR, ADEMAIS, FUNCIONÁRIO DE EMPRESA DO MESMO 2 GRUPO ECONÔMICO - INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA DEVIDA - ABATIMENTO DA FRANQUIA DEVIDA - PREVISÃO CONTRATUAL
- JUROS DE MORA - TERMO INICIAL. RECURSO PARCIALMENTE
PROVIDO. Considerando que a cláusula que prevê a cobertura dos danos ocorridos durante o percurso entre o estabelecimento segurado e o respectivo local destinado para estacionamento, não impõe qualquer restrição quanto ao condutor do veículo, não cabe à seguradora ou ao interprete fazê-lo, mesmo porque todas as cláusulas dúbias e/ou contraditórias devem ser interpretadas restritivamente, e em favor do aderente, ex vi do art. 423, do Código Civil. De mais a mais, ainda que, por hipótese, fosse o caso de se aplicar a restrição constante na alínea b, da 3 Cláusula 2ª, restou plenamente demonstrado que o condutor do veículo era funcionário de empresa localizada no mesmo espaço físico do estabelecimento segurado, e pertencentes ao mesmo grupo econômico, com sócios em comum, e ainda, que o condutor do veículo já foi funcionário do estabelecimento segurado, exercendo a função de motorista, donde sob a ótica dos princípios da probidade e da boa-fé, que norteiam os contratos (art. 422, do Código Civil), não haveria razão para a recusa no pagamento da indenização securitária. Estando a franquia prevista na apólice e nas condições gerais, imperioso se faz o seu abatimento quando do pagamento do seguro. Os juros devem incidir a partir da data em que a seguradora deveria ter efetuado o pagamento da indenização, ou seja, após decorridos 30 (trinta) dias
do aviso de sinistro. Contudo, na falta do Aviso de Sinistro, estes devem incidir da data da recusa definitiva da seguradora em efetuar o pagamento da indenização securitária. ACORDAM OS DESEMBARGADORES INTEGRANTES DA DÉCIMA CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ, POR UNANIMIDADE DE VOTOS, EM DAR PARCIAL PROVIMENTO
AO RECURSO. (10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná- Apelação Cível 6604055 PR 0660405-5, Rel. Xxxx Xxxxx, Julgamento em 1º de julho de 2010).
Diante do julgado acima, entende-se que a proteção dada à parte aderente prevista em lei e efetivada pelo Poder Judiciário, evitando o abuso de poder pela parte proponente, que, no caso em tela, tentava dar à determinada cláusula contratual interpretação extensiva a fim de restringir direito da parte aderente.
Pelo exposto, entende-se que, salvo situações em que haja abusividade de poder do proponente, os contratos de adesão são válidos e devem ser cumpridos, fazendo lei entre as partes, vez que seguem o princípio geral da obrigatoriedade dos contratos, ou seja, uma vez que uma pessoa física ou jurídica opta por ingressar em uma relação contratual regida por um contrato de adesão, deverá cumpri-lo nos termos, condições e pelo prazo avençado.
4. ABUSO DO DIREITO
4.1. Conceito
O abuso do direito é teoria positivada em nossa legislação pelo artigo 187 de Código Civil, que determina: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”.
Entende-se, a partir disso, que o abuso do direito revela superação do exercício de um direito legítimo para além de seus limites razoáveis, implicando em prejuízo a outrem. Nesse sentido, Francisco Amaral18 afirma:
O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentre do seu direito a ninguém prejudica (neminemlaeditquiiure suo utitur). No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano.
O abuso de direito pode se revelar através de diversas situações, que podem ser categorizadas de acordo com aspectos de sua configuração, tal como:
a) Venire contra factum proprium, que reflete a vedação do comportamento contraditório, conforme se detalhará no presente trabalho;
b) Surrectio, em que se frustra a legítima expectativa de direito que surge da reiterada prática de determinado ato;
c) Supressio, que constitui a perda de um direito pelo seu não exercício no tempo adequado; e
d) Tu quoque, que reflete a vedação à alegação de determinada norma por quem a tenha infringido anteriormente.
Pelo exposto, entende-se que o abuso do direito pode ocorrer em diferentes situações, em decorrência de ações e omissões da parte contratante, que, para o jurista Cláudio Levada19, configuram o abuso, na medida em que são “ultrapassados os limites impostos ao direito subjetivo do titular, cuja conduta em excesso determinará ao juiz o reconhecimento da abusividade e dos efeitos decorrentes,
18 XXXXXX, Xxxxxxxxx. Direito Civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 550.
19 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx. O Abuso e o Novo Direito Civil Brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005, p. 68.
independente – repise-se- da conduta culposa ou não do agente, por se tratar de ilícito de natureza objetiva de violação à boa-fé objetiva.”.
4.2. Hipóteses autorizadoras do comportamento contraditório
Para fins de caracterização do abuso do direito, conforme explanado acima, não pode ser considerada a conduta ou ato inicial nulo ou anulável, sem a real intenção do autor em praticá-lo ou sem que haja o preenchimento de seus requisitos de validade, o que possibilitaria que tal ato inicial fosse contrariado de maneira lícita e legítima.
O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 171, determina em quais situações há possibilidade da anulação do negócio jurídico sem que isso constitua um comportamento contraditório, em razão da existência de vício de vontade do agente. São eles:
a) Xxxx, que, de acordo com de acordo com Orlando Gomes20, reflete falsa noção da realidade que não tenha sido causada intencionalmente por alguém. Esta noção falsa influencia diretamente a vontade do agente, na medida em que, caso o agente tivesse exato e completo conhecimento da realidade, agiria de forma diversa. Este erro deve ser escusável, ou seja, deve ser revestido de boa-fé do agente; e essencial, pois deve recair na substância do ato;
b) Xxxx, que reflete falsa noção da realidade intencionalmente causada por alguém a fim obter uma declaração de vontade que não seria emitida se o declarante não fosse enganado, conforme ressalta Orlando Gomes21. É importante ressaltar que a intenção de enganar é requisito essencial para a configuração do dolo. Além disso, o meio utilizado para a obtenção desta finalidade não deve ser grosseiro, ou seja, a atenção que normalmente se emprega na celebração de negócios jurídicos não deve ser suficiente para a descoberta do artifício.
c) Coação, que, de acordo com Orlando Gomes22, é uma ameaça capaz de
20 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito Civil. 20ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2010. p. 325.
21 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito Civil. 20ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2010. p. 327.
22 Id. Ibid., p.329.
causar temor real de dano grave causado à própria pessoa, a seus bens ou a sua família. A ameaça, para configurar este instituto deve ser injusta, uma vez que a ameaça de exercício regular de direito não caracteriza coação;
d) Estado de perigo, que, de acordo com Flávio Tartuce23, ocorre se alguém, diante de grave necessidade realiza negócio jurídico com outrem, conhecedor deste estado, em condições excessivamente onerosas;
e) Xxxxx, que, de acordo com Flávio Tartuce24, se configura a partir da existência de premente necessidade ou inexperiência da parte, resultando em onerosidade excessiva a este agente;
f) Fraude contra credores, que, de acordo com Orlando Gomes25, é a diminuição maliciosa do patrimônio, ou seja, prática de negócio jurídico que importe em diminuição do patrimônio de um devedor insolvente com a finalidade de frustrar o direito de seus credores, ou;
g) Simulação, que é, de acordo com Orlando Gomes26, a existência de intencional divergência entre a vontade real e a declarada pelas partes, com a intenção de enganar terceiros.
Além disso, o artigo 166 do Código Civil brasileiro trata das situações em que um negócio jurídico será considerado nulo, em razão da ausência de determinados requisitos de validade. Neste caso, também será possível contrariar esta conduta sem que haja responsabilidade pelo potencial dano causado pela frustração da justa expectativa de outrem.
São elas, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves27, a celebração por
23 TARTUCE, Xxxxxx. Direito Civil 1: Lei de Introdução e Parte Geral. 8ª Edição. São Paulo. Editora Método, 2012.p. 372.
24 Id. Ibid., p. 376.
25 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao Direito Civil. 20ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Forense. 2010. p. 333.
26 Id. Ibid., p. 331.
27 XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro, Volume 1: Parte Geral, de acordo com a Lei nº12.874/2013. 10ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2014. p. 475.
pessoa absolutamente incapaz, a celebração de negócios jurídicos que tenham objeto ilícito, impossível ou indeterminável, considerando que a impossibilidade pode ser física ou jurídica; a celebração por motivo ilícito de ambas as partes, a ausência de forma prescrita em lei ou de alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade, a celebração de negócio que tenha por objetivo fraudar lei imperativa, ou a celebração de negócio jurídico que a lei taxativamente declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
5. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
5.1. Origem
Superadas as situações em que o abuso de direito não se configura em razão da positivação da possibilidade do comportamento contraditório, é possível examinar de forma assertiva o instituto venire contra factum proprium, que traduz uma norma de vedação ao comportamento contraditório essencial para a proteção da segurança jurídica, desde sua aplicação pelo direito romano.
De acordo com os ensinamentos de Anderson Schreiber28, o direito romano era essencialmente pensado em um cenário de solução de problemas concretos, sendo assim, o fruto da necessidade de solução destes casos concretos, problemas cotidianos enfrentados pelos julgadores da época, os pretores. Ou seja, diante do surgimento de determinado conflito, as partes confiavam a um terceiro o poder de decidir sobre a situação, e, com isso, criava-se uma espécie de jurisprudência, que seria utilizada futuramente para a solução de casos semelhantes.
Sendo assim, a jurisprudência romana pôde identificar a recorrência de situações em que a liberdade da vontade era utilizada em lesão à boa-fé, por meio de comportamentos contraditórios potencialmente danosos a terceiros, e tendo em vista a busca pela justiça, fez-se necessária a proibição de tal conduta.
Um dos grandes exemplos trazidos por Xxxxxx Xxxx Xxxxx xx Xxxxx que reflete29 esta preocupação com a vedação do comportamento contraditório pelos
28 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. A proibição de Comportamento Contraditório: Tutela de confiança e venire contra factum proprium. 2ª Edição. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 2007. p. 18.
29 XXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxx de. A Teoria dos Atos Próprios: da Proibição de Venire Contra Factum Proprium. Salvador. Editora JusPodivm, 2008. p. 26
romanos é uma passagem de Ulpiano registrada no Corpus Iuris Civilis. Neste caso, determinou-se que não deveria ser válida a pretensão do pater famílias que tinha uma filha emancipada buscar a impugnação da emancipação depois da morte desta filha, objetivando atingir a validade do testamento feito por ela no qual instituiu seus herdeiros.
Esta conduta revelava inicialmente a intenção do pater famílias de isentar-se das responsabilidades essenciais ligados ao pátrio poder, e, posteriormente, quando se cessam eventuais ônus e restam apenas os bônus, ou seja, a herança da filha emancipada, a intenção de reverter esta situação, buscando a obtenção deste bônus para si próprio, excluindo os herdeiros instituídos no testamento da filha.
Esta conduta revela claramente a intenção de obter benefícios a partir da frustração de legítima expectativa de outrem, por meio da contradição de um ato por outro posterior em sentido oposto.
Outro exemplo encontrado no direito romano e citado por Wagner Mota Alves de Souza30 trata da revogação do consentimento previamente concedido por um coproprietário à servidão de passagem no imóvel.
Isso ocorre, pois, uma vez que determinado imóvel possui diversos proprietários, é necessário que se obtenha o consentimento de todos eles para que seja instituída uma servidão de passagem, que produz efeitos no bem como um todo, não podendo dissociar a produção de efeitos para que atinja apenas o coproprietário que já manifestou sua vontade em sentido favorável à sua concessão.
Sendo assim, ainda que a servidão de passagem não tenha sido de fato instituída pela ausência de concordância de todos os condôminos, aquele que já concordara não poderia, sem justo motivo, rejeitar esta autorização posteriormente, vez que isso poderia causar danos, frustrando a justa expectativa de quem seria beneficiado pela servidão e dos outros condôminos.
30 XXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxx de. A Teoria dos Atos Próprios: da Proibição de Venire Contra Factum Proprium. Salvador. Editora JusPodivm, 2008. p. 27
5.2. O Venire Contra Factum Proprium e a Boa-fé
Conforme já explanado no presente trabalho, o princípio da boa-fé é essencial para a formação e execução de um contrato, considerando que o artigo 113 do Código Civil brasileiro determina que todos os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, ou seja, independentemente da natureza do negócio jurídico em questão, devem ser observadas e seguidas as regras de conduta correspondentes aos padrões éticos e morais do meio em será celebrado.
Esta previsão trazida pelo legislador traduz o que se denomina cláusula geral, que, segundo Humberto Theodoro Júnior31 indica “preceitos genéricos ou abertos, cujo conteúdo haverá de ser completado e definido casuisticamente pelo juiz. Mais do que normas definidoras de conduta, as cláusulas legais da espécie se endereçam ao juiz, exigindo-lhe um trabalho de adaptação a ser cumprido por meio da hermenêutica, da interpretação.”.
Mais especificamente no que concerne às relações contratuais, o Código Civil Brasileiro determina, em seu artigo 422, que as partes envolvidas em um contrato têm a obrigação de guardar os princípios de probidade e boa-fé na conclusão do contrato e em sua execução. Ou seja, durante toda a relação contratual, as partes devem seguir o que a doutrina considera como um dever acessório, que normalmente não se encontra expresso no pacto firmado, mas que acompanha as obrigações principais de um contrato desde sua celebração até o término da produção de seus efeitos.
Novamente tem-se a adoção de uma cláusula geral, permitindo que sua interpretação seja adaptada conforme os usos do local e tempo em que determinado contrato está inserido.
O venire contra factum proprium pode ser considerado como um desdobramento do princípio da boa-fé, considerando que é o instituto que proíbe que determinada parte da relação contratual se valha de má-fé para, por meio de
31 XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. O Contrato e sua Função Social. Rio de Janeiro. Editora Forense, 2008. p. 19.
seu comportamento, frustrar legítima expectativa de outrem.
O venire contra factum proprium traduz uma somatória de um ato lícito que gere ou tenha possibilidade de gerar uma justa expectativa em alguém, com um ato posterior em sentido contrário, de forma a frustrar a expectativa anteriormente gerada a partir da boa-fé, sendo, desta vez, não necessariamente ilícito, mas com potencial de gerar dano a quem previamente havia confiado no resultado esperado a partir do primeiro ato.
Em suma, este instituto trata do comportamento contraditório potencialmente lesivo a uma das partes envolvidas em determinado negócio jurídico frente à causadora deste dano, que resulta na ruptura do estado de confiança que anteriormente pautava determinada relação jurídica.
Neste sentido, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul se manifestou, elencando alguns dos institutos jurídicos que podem ser feridos por esta conduta:
APELAÇÃO CIVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. DECLARAÇÃO DE QUITAÇÃO DO CONTRATO. EXTINÇÃO. Em nosso
ordenamento jurídico é vedado aos contratantes o comportamento contraditório - nemo potest venire contra factum proprium - por ferir os princípios da lealdade, confiança e boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil). Comportamento da instituição financeira mostrou-se contraditório ao pedir a extinção da revisional apensa face à quitação integral do contrato e ao mesmo tempo requerer o prosseguimento da ação de busca e apreensão. Manutenção da extinção da ação de busca e apreensão. RECURSO IMPROVIDO. (Décima Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 70071241772, Relatora Xxxxxx X. Xxxxxxxxx. Julgamento em 28 de junho de 2018).
Para Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxxx Xxxx Junior32:
O preceito que proíbe o comportamento contraditório decorre da cláusula geral de boa-fé e também da proteção da confiança legítima. Essa confiança legítima e a boa-fé, contudo, têm a ver com a obrigação assumida pela parte no contrato e a expectativa que o comportamento anterior gerou na contraparte contratual. Daí afirmar- se que o venire, o comportamento contraditório em si mesmo não é proibido; o que se coíbe é o comportamento contraditório desleal, que viola a confiança criada na outra parte.
Nota-se que a boa-fé da parte potencialmente lesada desempenha importante
32 XXXX XX., Xxxxxx; XXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxxxx Xxxx. Instituições de Direito Civil: Volume III, contratos. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 127.
função para a constituição do venire contra factum proprium, considerando que sem sua presença, não haveria que se falar em expectativa de direito a ser frustrada pela conduta contraditória de outrem. Afinal, o ordenamento jurídico brasileiro foi desenvolvido de forma a buscar efetivar a justiça, o que significa dizer que as leis civis brasileiras não buscam proteger àqueles que agem de má-fé.
Grande exemplo da intenção do legislador, no tocante ao Código Civil brasileiro, de socorrer àqueles que agem de boa-fé em detrimento daqueles que agem de má-fé é a disposição contida no artigo 187 deste código, que determina que o titular de um direito que o exercer de maneira a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes cometerá ato ilícito.
Em resumo, ainda que alguém esteja exercendo um direito legítimo e incontestável, se assim o fizer sem respeitar princípios como a boa-fé, poderá ser sancionado com as mesmas consequências atribuídas àqueles que cometem atos ilícitos, como, por exemplo, a obrigação de indenizar eventual dano proveniente deste ato, conforme previsto no artigo 927 do Código Civil Brasileiro.
Corroborando com este entendimento, o Tribunal de Justiça de Pernambuco proferiu sentença de condenação de indenização por danos morais pela incidência do venire contra factum proprium:
APELAÇÃO CÍVEL. CONSUMIDOR. CONFIGURAÇÃO. RESCISÃO CONTRATUAL. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. OCORRÊNCIA.
DANOS MORAIS. CABIMENTO. Destinatário final é aquele que usa o bem em benefício próprio, independentemente de servir diretamente a uma atividade profissional. A vulnerabilidade ou hipossuficiência do adquirente do produto deve ser considerada para decidir sobre a abrangência do conceito de consumidor. Apesar de defender que optou por rescindir o contrato devido ao fato de a autora/apelada ter omitido a sua real atividade empresária, a rescisão se deu por outro fundamento, completamente estranho ao argumento relacionado ao nicho de atividade desenvolvido pela empresa apelada. Não deve ser acolhido o argumento da empresa apelante, no sentido de que cancelou o contrato porque não mais possuía interesse em contratar com a apelada, em razão do ramo de atuação, que contribuía à exploração sexual de pessoas. O ordenamento jurídico brasileiro veda o venire contra factum proprium, teoria segundo a qual à parte não é dado beneficiar-se de um comportamento contraditório. A rescisão imotivada do contrato, em especial quando efetivada por meio de conduta desleal e abusiva - violadora dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da responsabilidade pós-contratual - confere à parte prejudicada o direito à indenização por danos morais. Recurso de apelação a que se nega provimento, com a manutenção da sentença recorrida. (2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Apelação 0043040-30.2013.8.17.0001. Relator Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, Data de Julgamento: 27/09/2017).
Há uma discussão sobre o elemento pessoal que envolve a regra venire contra factum proprium. Alguns doutrinadores afirmam que este seria um conceito subjetivo, dependendo da vontade do agente, ensejando aferimento de sua culpa no dano para a constituição do instituto; para outros, a culpa do agente é indiferente, não sendo necessária a intenção de causar dano por meio do comportamento contraditório.
A análise do venire contra factum proprium deve ser feita de acordo com esta segunda posição, de maneira objetivista, considerando que, de outra maneira, seria quase impossível a aplicação desta vedação, e, consequentemente, a proteção das relações civis, vez que dependeria da prova de algo que está no âmbito íntimo do agente, dificilmente comprovável.
5.3. Finalidade
Pode-se perceber que o venire contra factum proprium não é uma regra geral que pode ser aplicada genericamente a partir de qualquer situação concreta do dia- a-dia das relações jurídicas, mas sim uma regra que pode ser aplicada em certas situações para que se possa evitar um abuso de direito que resulte em prejuízo a outrem, titular de legítima expectativa em determinado negócio jurídico, uma vez que não é qualquer conduta contraditória com conduta anterior que pode ser invalidada com base neste instituto, conforme demonstrado anteriormente.
Neste sentido, Wagner Mota Alves de Souza33 sintetiza:
É exatamente por não dispor de uma validade geral intrínseca que a mencionada regra precisa, mais que qualquer outra, de uma teorização. Assim, é a investigação doutrinária orientada a delinear os precisos contornos da regra venire contra factum que poderá outorgar-lhe uma validade geral a partir da revelação de elementos fundamentais que distingam o comportamento contraditório lesivo (alvo da regra venire contra factum) do comportamento contraditório
33 XXXXX, Xxxxxx Xxxx Xxxxx de. A Teoria dos Atos Próprio: da Proibição de Venire Contra Factum Proprium. Salvador. Editora JusPodivm, 2008. p.79.
e a pretensão açodada de aplicação do venire contra factum, sem qualquer lastro teórico, pode parecer temerária. Apenas o aprofundamento doutrinário nos permitirá observar que ao lado da nota da contradição existe a nota da lesividade – e é esta a palavra- chave-, juntamente com outras, como o estado de confiança, me certa medida, a identidade de sujeitos, licitude das condutas isoladamente consideradas; o dano efetivo ou potencial. São esses elementos distintivos, que a teoria dos atos próprios nos fornece, que outorgam validade geral à regra venire contra factum, não como um princípio puro e simples de proibição de comportamentos contraditórios, mas como um princípio de proibição de comportamento contraditório lesivo à boa-fé e confiança legitimamente despertadas. Assim, estes elementos conceituais, até certo ponto gerais, operam de modo a articular uma sistematização interna da referida regra, permitindo ao jurista lidar com situações de modo genérico, ressaltando-se, todavia, que os elementos fáticos, que constituem a hipótese de incidência da referida regra, adquirem, na sua aplicação, especial importância.
A atuação jurisprudencial se revela de suma importância nestes casos, considerando-se que somente desta forma, diante de um caso concreto, se pode analisar a presença ou a ausência dos requisitos básicos necessários para a incidência da regra venire contra factum proprium, para, assim, garantir segurança jurídica às relações jurídicas, para evitar a perda da função social dos contratos, para evitar, por fim, que o direito seja usado como ferramenta para a consecução de finalidades deturpadas dos negócios jurídicos que, tão comumente praticados, normalmente são dotados de um estado de confiança intrínseco, de boa-fé.
Pode-se exemplificar esta análise jurisprudencial do caso concreto a partir do julgamento do Tribunal de Justiça de Pernambuco, ao determinar a aplicação do venire contra factum proprium em desfavor de uma seguradora que se recusava a adimplir sua obrigação contratual:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. SEGURO AUTOMOTIVO. PRELIMINAR DE AFRONTA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE REJEITADA. FURTO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA CONCESSIONÁRIA PELA MORA DA SEGURADORA NO PAGAMENTO DA INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA. SEGURO CONTRATADO COM O VEÍCULO EM NOME DO PROPRIETÁRIO ANTERIOR. INCABÍVEL A NEGATIVA DE COBERTURA PELO MESMO MOTIVO. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. CONTRATO SINALAGMÁTICO. A OBRIGAÇÃO DE A SEGURADA ENTREGAR A DOCUMENTAÇÃO EXIGIDA NÃO SE CONFUNDE COM A DA SEGURADORA DE INDENIZAR A CONSUMIDORA. OBRIGAÇÕES DISTINTAS QUE DEVEM SER CUMPRIDAS PELAS PARTES DE FORMA INDEPENDENTE. IMPOSSIBILIDADE DE VINCULAR O PAGAMENTO DA
INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA A TRASNFERÊNCIA DE EVENTUAIS SALVADOS. DANOS MATERIAIS E MORAIS NÃO CONFIGURADOS. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. Preliminar
de afronta ao Princípio da Dialeticidade rejeitada. O fato de o apelo reproduzir os argumentos da exordial não implica necessariamente em desrespeito aos ditames do art. 514 do CPC quando, mesmo que pela via oblíqua, a peça recursal ataca os fundamentos da sentença. Automóvel furtado apenas 08 (oito) dias após a compra, obstando a transferência de titularidade em virtude do gravame inserido no sistema informatizado do departamento de trânsito estadual. Ausência de responsabilidade da revenda de veículos apelada pela mora da Seguradora. É lícito a seguradora exigir do segurado os documentos pertinentes à liquidação do seguro, entretanto, dadas as peculiaridades do caso em tela, é indevida a vinculação do pagamento da indenização a transferência da titularidade dos salvados para a seguradora. Obrigações que subsistem independentemente e devem ser cumpridas pelas partes. Aceitar o seguro quando o veículo ainda encontrava-se em nome do antigo proprietário para, apenas oito dias depois, negar o pagamento da indenização com base neste mesmo fato é venire contra factum proprium, conduta vedada em nosso ordenamento jurídico. A indenização devida deve ser integralmente paga à Segurada levando-se em o valor do veículo à época do furto, montante a ser devidamente corrigido a partir do efetivo prejuízo e acrescido de juros de mora, no percentual de 1% ao mês, a contar da citação válida. A Apelante ainda não cumpriu integralmente as exigências contratuais relativas ao seguro razão pela qual descabem os pedidos de indenização por danos morais e materiais. - Recurso provido para condenar a seguradora ao pagamento da indenização securitária nos moldes já descritos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, ACORDAM os Desembargadores integrantes deste órgão fracionário, por maioria de votos, em REJEITAR A PREFACIAL e, no mérito, DAR PARCIAL PROVIMENTO À
APELAÇÃO, de conformidade com o Termo de Julgamento e votos que integram o julgado. Sala de Sessões, em Des. Xxxxxxx X X Xxxxxxx xx Xxxxxx Relator. (Segunda Câmara Cível – Apelação 0022598-43.2013.8.17.0001, Relator Xxxxxxx Xxxx xx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx, Julgamento em 15 de junho de 2016).
6. RISCO DO NEGÓCIO
6.1. Teoria da Imprevisão e Pacta Sunt Servanda
Conforme já explicitado, o princípio da obrigatoriedade dos contratos, também conhecido como pact sunt servanda tem extrema relevância para a garantia da segurança jurídica nas relações contratuais, vez que traduz a ideia de que, uma vez firmado, o contrato torna-se obrigatório entre as partes, devendo cumprir suas regras cumpridas rigorosamente conforme estabelecido.
Entretanto, este princípio perde a sua força na medida em que a realidade fática na qual está inserida determinada relação contratual passa a revelar instabilidade das condições que afetam direta ou indiretamente a proporcionalidade das prestações ajustadas no contrato inicial.
Nestas situações, revela-se adequada a aplicação da chamada Teoria da Imprevisão, que, segundo Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Rodolfo Pamplona Filho34, consiste no “reconhecimento de que a ocorrência de acontecimentos novos, imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis, com impacto sobre a base econômica ou a execução do contrato, admitiria a sua resolução ou revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes.”, uma vez que, com a adoção desta teoria, relativizam-se os efeitos do pacta sunt servanda diante da alteração imprevisível e superveniente do cenário econômico, podendo as partes revisar e até mesmo resolver o contrato por este motivo.
Esta teoria é considerada como uma modernização da cláusula Rebus Sic Stantibus, que surgiu no Direito Romano e é utilizada há vários séculos por todo o mundo. De acordo com Renato José de Moraes35:
(...) A noção rebus sic stantibus significa que os vários atos jurídicos, nos quais se incluem os contratos, têm sua eficácia subordinada a que as coisas permaneçam como estavam no momento em que
34 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo curso de Direito Civil, Contratos: Teoria Geral. 7ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2011. p. 311.
35 XXXXXX, Xxxxxx Xxxx xx. Cláusula Rebuc Sic Stantibus. São Paulo. Editora Saraiva, 2001. P. 29.
foram formados. Não é essencial, nessa concepção mais larga, a existência de uma onerosidade excessiva ou da imprevisibilidade de um gato que cause um desequilíbrio; basta o advento de uma mudança substancial no estado em que a coisas estavam para se justificar a mudança na execução do ato jurídico.
Para que possa ser aplicada a teoria da imprevisão, a doutrina considera indispensável à existência de determinados requisitos cumulativos que devem, obrigatoriamente, ser observados no caso concreto.
O primeiro destes requisitos é que a relação contratual seja de execução periódica, diferida ou continuada.
Além disso, é preciso que haja superveniência de circunstância imprevisível, vez que, de outra forma, a aplicação deste instituto violaria a autonomia de vontade da parte que tenha conscientemente celebrado um contrato conhecendo a possibilidade de alteração do cenário em que está inserido.
É necessário, ainda, que haja alteração da base econômica objetiva do contrato, pois a simples alteração de cenário econômico, individualmente considerada, não pode ser causa da aplicação do instituto, para tanto, é necessário que esta alteração interfira, de fato, nas bases em que o contrato foi pensado e desenvolvido.
Por fim, o mais controverso dos requisitos, a onerosidade excessiva. Muito se discute a respeito da extensão deste conceito. Para alguns, a onerosidade excessiva pode ser experimentada por somente uma ou por todas as partes envolvidas na relação contratual, não sendo necessária, portanto, a presença do enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da perda da outra, uma vez que a deterioração das bases econômicas do contrato pode resultar em prejuízos mútuos, que podem ser reduzidos ou suprimidos completamente por meio da revisão ou resolução contratual.
Entretanto, para parte da doutrina e da jurisprudência, o enriquecimento sem causa para uma parte em detrimento da outra é necessário para a configuração da onerosidade excessiva. Este último posicionamento se baseia no conceito trazido pelo Código Civil em sua seção que trata da resolução contratual por onerosidade excessiva, mais especificamente, em seu artigo 478: “Nos contratos de execução
continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.”.
É importante ressaltar, ainda, que a boa-fé das partes contratantes desempenha importante função para a aplicação desta teoria, vez que é necessário que a alteração das condições que ensejará a revisão ou resolução do contrato não lhes pode ser imputável, ou seja, este fato superveniente não poderá ser causado pelos contratantes com a finalidade de repelir suas obrigações ou eventual direito da outra parte por disposição contratual.
Neste sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça se manifestou em 07 de março de 2017:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. TEORIA DA IMPREVISÃO E TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. HIPÓTESES DE CABIMENTO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO- FINANCEIRO NO INSTRUMENTO CONTRATUAL. SÚMULA 7 DO
STJ. 1. Esta Corte Superior sufragou o entendimento de que a intervenção do Poder Judiciário nos contratos, à luz da teoria da imprevisão ou da teoria da onerosidade excessiva, exige a demonstração de mudanças supervenientes nas circunstâncias iniciais vigentes à época da realização do negócio, oriundas de evento imprevisível (teoria da imprevisão) ou de evento imprevisível e extraordinário (teoria da onerosidade excessiva). 2. Na hipótese vertente, o Tribunal a quo ressaltou, explicitamente, que não pode ser reconhecida a imprevisão na hipótese vertente, em virtude de o recorrente ter pleno conhecimento do cenário da economia nacional, tendo, inclusive, subscrito diversos aditivos contratuais após os momentos de crise financeira, razão pela qual não seria possível propugnar pelo imprevisto desequilíbrio econômico- financeiro. 3. Nesse diapasão, o acolhimento da pretensão recursal, no sentido de reconhecer eventual onerosidade excessiva ou imprevisão, com o consequente desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, demandaria a alteração das premissas fático- probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas carreadas aos autos, o que é vedado em sede de recurso especial, nos termos do enunciado da Súmula 7 do STJ. 4. Agravo interno não provido. (Quarta Turma – Agravo Interno em Recurso Especial 1316595 SP 2012/0062578-7, Relator Ministro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Julgamento em 07 de março de 2017).
Percebe-se, diante disso, que a mera possibilidade de se prever a alteração nas bases econômicas em que um contrato foi formulado por meio do conhecimento da economia nacional e sua própria imprevisibilidade é suficiente para que deixe de
ser aplicado o instituto em questão.
Este posicionamento induz as partes a realizarem um cuidadoso estudo de viabilidade econômica com base em projeções financeiras, inclusive considerando o cenário macroeconômico do país, previamente à celebração de determinado contrato, visando garantir sua viabilidade por todo o seu período de vigência.
Além disso, como efeito desta indução à cautela, protegem-se tanto as relações contratuais individualmente consideradas, quanto à segurança jurídica considerada como um todo.
6.2. As relações contratuais em um momento de crise econômica nacional
No sistema capitalista, a economia tem um caráter cíclico, ou seja, por sua própria natureza, a economia passará, inevitavelmente, por alguns momentos de expansão seguidos de momentos de queda de sua atividade. A depender de sua causa e intensidade, alguns setores serão mais ou menos afetados por períodos de tempo variados.
Em países em desenvolvimento como o Brasil, é comum que se observe frequentes variações no cenário econômico nacional, que podem ser causadas por diversos motivos, como o descontrole inflacionário e a redução ou o aumento de investimentos do mercado internacional.
Momentos de declínio da atividade econômica nacional, mais comumente conhecidos como crises econômicas, impactam tanto o dia-a-dia da população com o aumento das taxas de desemprego e a consequente redução do poder aquisitivo da sociedade como um todo, quanto à “saúde” das operações de empresas, pequenas ou grandes, por meio da diminuição da sua taxa de lucro e do aumento dos gastos intrínsecos à sua atividade.
Visando a manutenção da viabilidade financeira de sua atividade, as empresas, em momentos de crise, muitas vezes traçam planos de redução de gastos baseados na reformulação de suas relações contratuais, sejam elas de compra e venda de produtos, ou contratação de serviços. Isso importa dizer que os contratos de execução continuada celebrados em condições econômicas mais
vantajosas que eventualmente tenham perdido, em todo ou em parte, seu proveito à empresa, seja por aumento de seus encargos ou pela redução de sua lucratividade, serão objeto de tentativas de revisão ou extinção.
É, entretanto, importante considerar-se como obstáculo a esta pretensão (i) a vontade da outra parte da relação contratual, que pode ser dela dependente ou que pode ter nela grande proveito econômico, e (ii) a obrigatoriedade dos contratos, que tem força de lei sobre seus signatários, conforme anteriormente exposto.
Outro obstáculo frequentemente encontrado nestas situações está contido no próprio instrumento do qual se objetiva a revisão ou extinção. Trata-se das disposições que preveem multas e penalidades no geral em caso de rescisão unilateral do contrato, ou até mesmo, disposições que impedem esta modalidade de extinção, permitindo a posterior determinação judicial de execução forçada ou indenização a quem não deu causa ao evento.
Diante da recusa da outra parte da relação contratual em renegociar os termos do contrato ou abandoná-lo de vez ou a impossibilidade jurídica destas medidas, muitos se valem de subterfúgios ardilosos para conseguir atingir seu objetivo, em clara afronta ao princípio da boa-fé que deve reger as relações contratuais.
Um grande exemplo desta conduta é a alegação da própria hipossuficiência frente à outra parte com o objetivo de garantir a declaração judicial da nulidade de parte ou de todo o instrumento contratual que tenha sido formulado nos moldes de um contrato de adesão.
Isso se faz possível na medida em que a pessoa jurídica, por exemplo, é equiparada a um consumidor, desde que devidamente preenchidos os requisitos já destrinchados no presente trabalho.
Desta forma, aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor a uma relação primariamente civil, é possível que seja dado a esta relação um tratamento desigual, protetivo e favorável àquele que busca, com esta manobra, esquivar-se de suas obrigações contratuais.
É notório o fato de que a existência desta possibilidade a favor daqueles que
agem de má-fé acaba resultando na difusão da instabilidade da ordem jurídica, da insegurança jurídica acerca das relações contratuais, colocando em dúvida a força de princípios como a obrigatoriedade dos contratos, a autonomia de vontade e a própria boa-fé contratual.
6.3. Os meios adequados para garantir a executabilidade dos contratos desproporcionais.
Apesar do disposto no item anterior acerca da utilização do Poder Judiciário com a finalidade de se obter vantagem indevida a partir da revisão ou anulação de parte ou de todo um contrato, não se pode ignorar o fato de que, muitas vezes, contratos de adesão de execução continuada podem, efetivamente, tornar-se excessivamente oneroso a uma das partes da relação, podendo, inclusive, tornar impossível a sua execução.
Diante da ocorrência deste cenário, a parte realmente prejudicada não pode ser ignorada pelo sistema jurídico e condenada a permanecer em uma situação economicamente insustentável que poderá levá-la à falência, o que, por sua vez, resulta em uma série de impactos negativos à sociedade como um todo, afetando, inclusive, a própria segurança jurídica.
Para conciliar os interesses da sociedade, do sistema jurídico e econômico como um todo, e da empresa signatária de um contrato de adesão excessivamente oneroso, o ordenamento jurídico prevê a possibilidade de se buscar o reequilibro da relação sem que seja necessária a declaração de nulidade de um instrumento jurídico válido.
A revisão contratual é o mecanismo que menos parece apresentar o risco de estremecer as relações jurídicas baseadas na confiança, na segurança e na boa-fé, ao passo que viabiliza a execução do contrato de forma a cumprir sua função social, evitando, assim, que estas relações sejam extintas.
Nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho36:
De fato, se entre a celebração e a execução do contrato nenhuma mudança significativa de caráter geral ou particular surpreende os contratantes, não há motivo para poupar qualquer um deles da obrigação contratada ou das consequências do inadimplemento. Se, contudo, alterações substanciais na condição individual do contratante – por razões gerais ou especificas, mas sempre externas à sua vontade – colhem-no de surpresa no sentido de tornarem demasiadamente custoso o cumprimento da obrigação contratada, nunca pareceu justo constrangê-lo à execução forcada do acordo.
Por meio deste mecanismo, as partes podem, de comum acordo, analisar eventuais mudanças nas bases econômicas do contrato e adequar as prestações devidas por uma ou ambas, de forma a reequilibrar os ônus e bônus advindos da relação contratual, e assim, possibilitar a sua manutenção.
Entretanto, justamente por privilegiar o princípio da autonomia de vontade, esta medida só é possível se houver acordo de todas as partes envolvidas, o que, na prática, é algo difícil de obter.
Desta forma, e ainda evitando recorrer à extinção do contrato, é possível que se busque a revisão judicial do contrato, possibilitada a partir de uma análise conjunta dos artigos 317 e 478 do Código Civil.
O artigo 478, conforme previamente observado, trata da possibilidade resolução do contrato por onerosidade excessiva. Buscando-se evitar esta medida extrema, o artigo subsequente, ainda prevê: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”.
O problema destas disposições, novamente, é depender da anuência da outra parte, no caso, o réu, para que se efetive o reequilibro da relação em benefício do autor, o que se mostra como um grande obstáculo para a efetivação desta medida. A este respeito, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx e Rodolfo Pamplona Filho37 afirmam:
A negativa dessa via – deferida exatamente à parte que, em geral,
36 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de direito Civil: Volume 3, Contratos. 5ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2012. p.118.
37 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx; PAMPLONA FILHO, Xxxxxxx. Novo curso de Direito Civil, Contratos: Teoria Geral. 7ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2011. p. 323.
goza de maior poder econômico – pode significar, na prática, que ao autor da ação (devedor onerado pelo evento imprevisível) caiba, apenas, pleitear a resolução do contrato, ou seja, a dissolução do negócio, o que poderá não lhe interessar, ou, até mesmo, ser-lhe ainda mais prejudicial. Por isso, sustentamos a inegável possibilidade, à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana (do devedor) e da efetividade do processo, de o juiz, sem pretender substituir-se à vontade das partes, prolatar sentença revisional, corretiva das bases econômicas do negócio, mesmo com a oposição do réu (credor). Aliás, podendo-se o mais (a resolução), pode-se o menos (a revisão), por inegável razão de justiça.
Sendo assim, para amparar a possibilidade de revisão judicial em casos de onerosidade excessiva, é preciso recorrer, ainda, ao artigo 317, que prevê: “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”.
A aplicação da revisão judicial dos contratos possui alguns requisitos, que, segundo Fábio Ulhoa Coelho38, são:
No negócio contratual sujeito aos regimes civil ou comercial, para o contratante ter direito à revisão judicial, é necessária a confluência dos seguintes pressupostos: 1º) o contrato deve ser de execução instantânea diferida ou continuada, já que, nos instantâneos de execução imediata, a coincidência entre os momentos de constituição e execução do contrato descarta a hipótese de superveniência de fato imprevisível; 2º) entre a constituição do vínculo contratual e o vencimento da obrigação deve sobrevir extraordinária mudança nas condições econômicas do contratante, seja ela motivada por eventos de alcance geral (atos de terrorismo, catástrofes naturais de grandes proporções etc.) ou particular (perda de emprego, gastos vultosos inadiáveis com tratamento de saúde, etc.), mas necessariamente externos à vontade dos contratantes, e, por consequência, independentes de qualquer conduta culposa deles; 3º) a radical mudança nas condições econômicas do contratante deve tornar excessivamente onerosa a prestação a que se obrigara, mesmo que não se verifique a contrapartida da vantagem extrema para o outro contratante; 4º) a alteração profunda nas condições econômicas deve ser imprevisível, visto que não tem direito à revisão o contratante afetado pela álea normalmente associada ao contrato em questão; 5º) a parte que pleiteia a revisão não pode estar em mora no cumprimento de suas obrigações, porque o dever geral de boa-fé a obriga a advertir o outro contratante da dificuldade com que se depara, tão logo a tenha notado, e apenas se socorrer do Judiciário na hipótese de ele, avisado, não se mostrar razoavelmente predisposto a renegociar o contrato.
38 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de direito Civil: Volume 3, Contratos. 5ª Edição. São Paulo. Editora Saraiva, 2012. p.120.
É importante ressaltar, ainda, que a imprevisibilidade trazida como requisito à aplicação da revisão judicial em determinados instrumentos contratuais não diz respeito apenas à imprevisibilidade da ocorrência de determinado fato em si, mas também da imprevisibilidade da produção dos efeitos de determinado fato, previsível ou não.
Este entendimento é corroborado pelo Enunciado 175 da III Jornada de Direito Civil, cujo enunciado preconiza: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às consequências que ele produz.”.
Novamente apoiando-se em princípios do Direito como a boa-fé e a legalidade, é indubitável que, sem a presença dos requisitos apontados, a parte não poderá valer-se desta medida de busca do reequilibro contratual. Neste sentido, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo se manifestou, em 26 de fevereiro de 2008:
ACÓRDÃO DIREITO CIVIL. AÇAO DE REVISAO CONTRATUAL. ARTS. 317 E 478, DO CC. REQUISITOS PARA A REVISAO. EVENTO EXTRAORDINÁRIO E IMPREVISÍVEL. EXCESSIVA ONEROSIDADE. NAO DEMONSTRADOS. APELAÇAO CONHECIDA. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. 1. O Código
Civil brasileiro, ao mesmo tempo em que prevê a possibilidade de revisão contratual, prescreve alguns requisitos imprescindíveis para seu exercício, dentre os quais se encarta a superveniência de uma excessiva onerosidade decorrente de um acontecimento extraordinário e imprevisível. 2. Não há como aplicar a revisão contratual no caso vertente, notadamente porque, a alteração na situação financeira da apelante não se enquadra no conceito de um evento extraordinário e imprevisível. Além disso, os juros aplicados in casu não estão eivados de abusividade, e não há que se falar, portanto, em onerosidade excessiva. 3. Apelação conhecida, para negar-lhe provimento. Xxxxxxx à unanimidade, negar provimento ao recurso. (Apelação Cível 35050078274, Relator Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxxx, Julgamento em 26 de fevereiro de 2008).
Por fim, é importante ressaltar o caráter excepcional da busca pela revisão judicial dos contratos, que só deve ser utilizada pela parte como último recurso a fim de evitar medida ainda mais radical, qual seja, a extinção da relação contratual, uma vez que mesmo a revisão contratual em juízo tem como efeito colateral o
desprestígio da autonomia de vontade das partes, ainda que em benefício da busca pela função social do contrato.
Desta forma, a maneira mais adequada para se agir nesta situação de prejuízo em uma relação contratual em razão de alteração das bases econômicas do contrato por fato superveniente e imprevisível seria, inicialmente, a busca por meios de se mitigar o prejuízo sem alterar as condições preestabelecidas para a prestação objeto do instrumento contratual; caso se mostre ineficaz, recorre-se à revisão contratual de comum acordo realizada pelas próprias partes; caso ainda não se concretize o reequilíbrio da relação contratual, o pedido de revisão judicial; e por fim, e apenas se nenhuma destas medidas se revelar suficiente, a extinção do contrato.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o desenvolvimento do presente trabalho, pôde-se perceber a fragilidade inerente às relações de consumo decorrente da disparidade entre a figura do consumidor e do fornecedor que, muitas vezes, age de maneira abusiva, valendo-se de sua posição privilegiada de detentor de um produto ou serviço para obter vantagens excessivas sobre o consumidor que deles necessita.
Com a substituição de um Estado Liberal, que não intervinha nas relações jurídicas das quais não fosse parte; por um Estado Social, que se preocupa em garantir direitos mínimos à sociedade como um todo, entendeu-se necessário dar ao consumidor uma proteção legal da qual não goza o fornecedor, visando colocá-los em um patamar de igualdade.
Esta proteção se revela por meio de disposições como, por exemplo, a previsão de direitos mínimos que devem ser garantidos ao consumidor em qualquer relação de consumo, a facilidade de obter-se reparação de danos por meio da responsabilização civil em caráter objetivo, e, o aspecto mais importante para a consecução da presente análise: as proteções contratuais do consumidor. Estas, por sua vez, se revelam por disposições como a do artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor, que determina que o consumidor não se obriga pela assinatura de um contrato do qual não tenha tido conhecimento prévio acerca do conteúdo ou que tenha sido redigido de modo a dificultar sua compreensão. Além disso, há ainda a obrigatoriedade de se interpretar estes contratos de maneira mais favorável ao consumidor e a possibilidade de invalidação de cláusulas abusivas.
Este caráter protetivo da lei consumerista faz com que o enquadramento de uma pessoa, seja física ou jurídica, nesta categoria se torne extremamente vantajoso em oposição à relação puramente civil. A caracterização da pessoa jurídica como consumidor encontra diversas críticas na doutrina e na jurisprudência, que se dividem em três correntes acerca da abrangência do conceito de “destinatário final”: a maximalista, que acredita que, para ser consumidor, basta retirar do mercado de consumo determinado bem ou serviço; a finalista, que acredita que só deve ser considerado como consumidor aquele que adquire produto para uso próprio; e, por fim, há a teoria mais adotada atualmente, a finalista mitigada, que considera como consumidor quem adquira determinado bem ou serviço do mercado
de consumo e que, cumulativamente, tenha certa vulnerabilidade frente ao fornecedor.
O contrato é um acordo de vontades capaz de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas. A esta espécie de negócio jurídico são aplicáveis diversos princípios e regras gerais, independente de tratar-se de relação entre consumidor e fornecedor ou de relação puramente civil.
Exemplos destes princípios e regras gerais são a autonomia de vontade, que garante que ninguém pode ser obrigado a celebrar um contrato contra a sua vontade; o consensualismo, que garante que o contrato se aperfeiçoa pelo simples acordo de vontade entre as partes; e a boa-fé, que revela a obrigação que as partes tem de agir de forma leal e correta na formação e execução dos contratos.
Uma modalidade de contrato que tem sido cada vez mais utilizada atualmente é o contrato de adesão, que, em suma, é um contrato elaborado unilateralmente, disponibilizado pelo proponente ao aderente, que deverá aceita-lo ou não como um todo, sem que haja possibilidade de negociação ou revisão de seu conteúdo. Esta modalidade de contratação permite maior agilidade na emissão dos contratos e formalização dos negócios jurídicos, o que é de extrema necessidade para que o direito acompanhe a crescente dinamicidade das relações comerciais.
Apesar de seus benefícios, a contratação por meio de contratos de adesão sofre críticas, na medida em que não é dada ao aderente a oportunidade de insurgir- se contra determina condição que lhe seja desfavorável ou de tentar negociá-la, cabendo-lhe, apenas, a aceitar o instrumento como um todo caso queira ou necessite realizar o negócio jurídico em questão, resultando, muitas vezes, na aceitação de condições extremamente desfavoráveis, seja pela sua ignorância ou pela necessidade da contratação.
Buscando evitar estas situações, o ordenamento jurídico possui algumas previsões de caráter protetivo ao aderente. No Código Civil brasileiro, por exemplo, o artigo 424 garante que serão nulas as cláusulas que estipulem renúncia antecipada do aderente a direito inerente ao negócio, enquanto o artigo 423 garante que, em caso de ambiguidade ou contradição na redação do contrato, este deverá ser interpretado de maneira favorável ao aderente. Desta forma, busca-se reestabelecer
a equidade entre proponente e aderente, garantindo que ambos os lados tenham benefícios e malefícios de mesma proporção.
Não obstante o quanto disposto acima, ainda visando proteger a força dos contratos e fortalecer sua segurança jurídica, o ordenamento jurídico brasileiro veda expressamente o abuso do direito, configurado como superação do exercício de um direito legítimo para além de seus limites razoáveis, implicando em prejuízo a outrem. O abuso do direito, por sua vez, pode se revelar a partir de diversas situações, através da configuração de institutos como o venire contra factum proprium, surrectio, supressio, tu quoque, dentre outros
O instituto do venire contra factum proprium, especificamente, é amplamente experimentado frente à execução dos contratos de adesão. Este instituto, que proíbe que determinada parte da relação contratual, de má-fé, frustre a legítima expectativa de outrem por meio da adoção de comportamentos contraditórios ao longo da relação, é extremamente lesivo ao ordenamento jurídico como um todo, uma vez que viola pilares essenciais às relações contratuais, como o princípio da boa-fé.
É importante ressaltar, entretanto, que existem hipóteses em que o comportamento contraditório não é vedado, possibilitando a lícita busca pela anulação de determinado negócio jurídico. Isso ocorre em casos em que estejam presentes defeitos dos negócios jurídicos, como o erro, dolo, coação, estado de perigo, etc.
Muito embora os princípios contratuais devam, em regra, ser aplicados em todas as relações desta natureza, a realidade fática de determinada relação pode ensejar a necessidade de se deixar de aplicar em todo ou em parte determinado princípio, como, por exemplo, o princípio da obrigatoriedade dos contratos.
Em um país cuja economia seja tão volátil como o Brasil, o princípio da obrigatoriedade dos contratos pode gerar claras situações de desequilíbrio e injustiça, como situações em que a formalização da relação contratual tenha ocorrido de forma justa e benéfica a ambas as partes da relação, mas, com o transcurso do tempo, a alteração das bases econômicas impacta na proporcionalidade das prestações avençadas, desequilibrando a execução do contrato, levando grande prejuízo a uma ou ambas as partes.
Diante disso, passou-se a adotar, ao invés do princípio supramencionado, a Teoria da Imprevisão, que consiste na possibilidade de revisão ou resolução contratual nos casos em que acontecimentos imprevisíveis e não causados pelas partes impactem a base econômica de contratos de execução continuada ou diferida, e consequentemente, gerem onerosidade excessiva para uma ou ambas as partes da relação.
Momentos de crise econômica nacional fazem com que as empresas busquem diversos meios para garantir sua viabilidade econômica, como, por exemplo, buscar reduzir os ônus e aumentar os lucros advindos de suas relações contratuais. Para tanto, é comum que se busque revisar ou extinguir contratos que não estejam tão vantajosos quanto se espera, entretanto, ao encontrar resistência da parte contrária ou até mesmo obstáculos nos próprios instrumentos, como altas multas rescisórias, é comum que, agindo de má-fé, estas empresas se valham de subterfúgios ardilosos para atingir seus objetivos.
Exemplo desta conduta é a busca, por pessoas jurídicas que estejam em uma relação civil regida por contrato de adesão, pela declaração judicial de seu enquadramento como consumidor, com o objetivo de obter todas as previsões protetivas anteriormente citadas que são dadas a este grupo, por fim, alcançando a anulação de determinadas disposições contratuais ou mesmo de um contrato como um todo por ser considerado “abusivo” frente à falsa vulnerabilidade do consumidor, que, na realidade, não existe no caso concreto. Esta conduta gera sérios impactos no ordenamento jurídico, uma vez que configura o instituto venire contra factum proprium e afronta diversos princípios contratuais, resultando em grande insegurança jurídica.
Apesar disso, não se pode ignorar a existência de situações em que, de fato, exista grande desequilíbrio na relação contratual, e que esta possa, inclusive, levar o empresário à falência, por obrigá-lo a prestações extremamente onerosas. Conclui- se, então, que não se pode entender, de plano, a alegação de vulnerabilidade ou de prejuízo como venire contra factum proprium, uma vez que pode haver a ocorrência de fato superveniente e imprevisível às partes resulte em onerosidade excessiva a elas, incidindo, então a teoria da imprevisão, que permite que as partes busquem a resolução do contrato. Fato é que a resolução das relações contratuais nestas
hipóteses pode causar ainda mais prejuízos à sociedade como um todo, uma vez que também afeta princípios basilares do ordenamento jurídico, como a segurança jurídica e a autonomia de vontade.
Diante deste cenário, a revisão contratual se mostra medida potencialmente eficaz para cessar ou mitigar os prejuízos advindos da relação contratual sem que se causem os prejuízos jurídicos e até mesmo econômicos da radical medida de extinguir os contratos.
Esta revisão contratual deve ser, preferencialmente, realizada de forma amigável entre as partes, para que, apenas em caso de impossibilidade da adoção da medida, se recorra ao Poder Judiciário para buscar esta revisão. Desta forma, protegem-se tanto os interesses particulares dos envolvidos na relação contratual quanto os interesses da sociedade, que pode ser profundamente impactada pelo desrespeito à princípios e regras do ordenamento jurídico.
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