O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ª VARA DE FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DA CAPITAL
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, através da 5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa do Consumidor e do Contribuinte, com sede na Av. Marechal Câmara, n. 000, Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, inscrito no CNPJ sob n. 28.305.936/0001-40, presentado pelo Promotor de Justiça que ao final subscreve, e a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO, através do seu Núcleo de Defesa do Consumidor, com endereço na xxx Xxx Xxxx 00, 00x xxxxx, Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, XXX 00.000-000, inscrita no CNPJ 31.443.526/0001-70, presentada pelos Defensores Públicos subscritores, propõem a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
com pedido de tutela de urgência antecipada
em face da SUPERVIA – CONCESSIONÁRIA DE TRANSPORTE
FERROVIÁRIO, pessoa jurídica de direito privado, com sede na Xxx xx Xxxxxxx, x.x 000, Xxxxx Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx/XX – XXX 00.000-000, inscrita no CNPJ sob o n° 02.735.385/0001-60 e ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pessoa jurídica de direito público, representado por sua Procuradoria Geral do Estado, situado na Xxx xx Xxxxx, x.x 00, Xxxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, XXX 00.000-020, pelas razões que passa a expor:
I) DA LEGITIMIDADE ATIVA:
A Defensoria Pública1 e o Ministério Púbico estão legitimados para defender em juízo os interesses coletivos, no caso o direito individual homogêneo, e o direito coletivo aplicáveis na hipótese, na forma como descrito no art. 5o, I e II da Lei 7.347/85 - Lei de Ação Civil Pública e no próprio Código de Defesa do Consumidor, arts. 81 e 82. Vejamos:
Art. 5o da Lei de Ação Civil Pública.
Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I – o Ministério Público; II - a Defensoria Pública;
L. 8078/90:
"Art. 81 do CDC. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Art. 82 do CDC. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008 , de 21.3.1995)
I – Ministério Público
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 601 prevendo que:
1 art. 134 da Constituição Federal, ante a nova redação dada pela Emenda Constitucional n. 80 de 4 de junho de 2014; arts. 1°; 4º, VII, VIII, X, XI; 106-A da Lei Complementar nº 80/94, com redação dada pela Lei Complementar n. 132/2009; ADI 3943 do STF, e Embargos de Divergência no RESP n. 1.192.577 do STJ.
O Ministério Público tem legitimidade ativa para atuar na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores, ainda que decorrentes da prestação de serviço.
Assim, diante do disposto na lei e tendo sido declarada a Constitucionalidade do inciso II do art. 5º da Lei 7.347/85 pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.943, de relatoria da Eminente Ministra Carmem Lúcia, a Defensoria Pública e o Ministério Público têm legitimidade para a propositura desta ação civil pública.
II) DOS FATOS:
A primeira ré é prestadora do serviço de transporte ferroviário de passageiros na região metropolitana do Rio de Janeiro, através de contrato de concessão de serviço público outorgado pelo segundo demandado.
Trata-se de serviço utilizado diariamente por grande quantitativo de passageiros que veem necessidade deste deslocamento diário para trabalho e estudo, principalmente nas regiões mais centrais da cidade.
Dentro desse quantitativo de passageiros diário, há grande quantidade de pessoas hipossuficientes, as quais necessitam do transporte de trem para suas atividades de subsistência.
Por outro lado, como é público e notório, vivemos em um momento de excepcionalidade, em razão da pandemia do coronavírus que vem provocando desde o ano passado sérios impactos sanitários, mas também sociais e econômicos em parcelas significativas da população, especialmente aqueles de baixa renda, onde tais impactos mostram-se ainda mais graves, com a elevação na taxa de desemprego e falta de trabalho em serviços informais, provocando uma perda de renda significativa para a
população mais humilde, inclusive aquela que se utiliza diariamente do serviço de transporte de trem urbano.
Apesar de todo este cenário excepcional e de grande dificuldade econômica e social, foram os usuários do serviço de transporte ferroviário surpreendidos pela informação divulgada em janeiro de 2021 quanto a aplicação de um reajuste na passagem de transporte ferroviário no patamar de 25%, a incidir a partir de 2 de fevereiro de 20212.
2 xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/0000/00/00/xxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxxxxx-xx-xxxxxx-xx-xxxxxxxx-xxxx-x- 590-e-reajusta-passagens-das-barcas/ - consulta em 21/06/2021
Com isso, a passagem que era no valor de R$ 4,70 (quatro reais e setenta centavos) saltaria para exorbitantes R$ 5,90 (cinco reais e noventa centavos).
Tal percentual de reajuste certamente impacta de forma drástica a vida dos usuários do serviço, muitos deles pessoas hipossuficientes que já vem sofrendo de forma direta e indireta os impactos da pandemia do coronavírus, com redução de sua capacidade financeira.
Fundamentam os demandados o reajuste com base em previsão contratual de revisão anual da tarifa a partir do índice do IGPM, o qual no último ano apresentou um aumento totalmente desproporcional e distante dos demais indicadores.
Ao tomar conhecimento desses fatos, foi instaurado no âmbito do Ministério Público o inquérito civil n° 009/2021 (em anexo) para apurar suposta abusividade no reajuste tarifário de 25% mencionado.
Paralelamente a isto, a Defensoria Pública do Estado e o Ministério Público expediram RECOMENDAÇÃO, através do Oficio conjunto n.º 15/2021 e 16/2021 de 26 de janeiro de 2021, para ambos os demandados recomendando a imediata reavaliação quanto ao reajuste aplicado na tarifa do transporte de trem urbano, para atentar ao momento de excepcionalidade e realidade social-financeira enfrentada pelos usuários do referido serviço de transporte, sob pena de afronta aos princípios da modicidade das tarifas, continuidade e eficiência do serviço, bem como aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade.
Buscaram os demandantes demonstrar, através da referida recomendação, que tal reajuste poderá se mostrar exorbitante e impactar de forma direta no acesso ao serviço público essencial de transporte para a população da região metropolitana, causando prejuízos a milhares de consumidores do serviço de trem.
Além disso, o aumento realizado, comparativamente ao aumento do salário mínimo de 2020 para 2021 (R$ 1.045,00 para R$1.100,00 - 5%) e da inflação média (IPCA - 4%), representa uma elevação de 385% maior do que o salário mínimo e 480% maior que a inflação média, além da elevação da taxa de desemprego e redução da renda média da população neste momento.
Com efeito, após o recebimento da recomendação, a Secretaria Estadual de Transportes encaminhou resposta aos demandantes informando que estava em tratativas com a Concessionária Supervia, visando à redução do valor da tarifa homologada pela Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (AGETRANSP), de modo a mitigar os efeitos indesejáveis nos usuários do transporte ferroviário e, ainda, resguardar o princípio da modicidade tarifária.
Num primeiro momento inclusive restou adiado o início da aplicação do reajuste tarifário por 20 dias, na tentativa de uma solução para o caso.3
3 xxxxx://x0.xxxxx.xxx/xx/xxx-xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xxxxxxx-xx-xxxxxxxx-xx-xxxxx-xx-xxxxxxxx- sera-adiado-por-pelo-menos-20-dias.ghtml - consulta em 21.06.2021
Após o adiamento inicial, foi informado pelos demandados que conseguiram chegar a um acordo quanto ao valor do reajuste a ser operado para o ano de 2021, com a sua fixação em R$ 5,00 (cinco reais).
Tal informação tanto foi divulgada pela mídia, como também informado aos próprios autores através do Oficio enviado pela Secretaria de Transportes, conforme termos em anexo4.
4 xxxxx://x0.xxxxx.xxx/xx/xxx-xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/00/xx-x-xxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxx-xxx-xxxxxxx- menor-e-preco-da-passagem-de-trem-subira-para-r-5-a-partir-de-terca.ghtml - consulta em 21.06.2021
Acreditava-se assim ter sido possível às partes entabularem acordo para que não fosse aplicado o percentual de reajuste exorbitante previsto inicialmente, o qual entrou em vigor em 23 de fevereiro de 2021.
No entanto, passados cerca de 3 meses do referido ajuste, foram os demandantes novamente surpreendidos com a informação do retorno do valor da tarifa para o patamar de R$ 5,90 (cinco reais e noventa centavos) a partir de 01 de julho de 20215.
5 xxxxx://xxxxxxxx.x0.xxx/xxx-xx-xxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxxx-xxxxxxx-xx-xxxxxx-xx-xxxxx-xxxx-x-000-xx-xxxxx-
01062021 - consulta em 21.06.2021
Desta forma, apesar de todas as tratativas e ajustes realizados entre os demandados (o que, por certo, demonstrava a abusividade do valor inicialmente previsto para o reajuste tarifário anual), retorna-se ao cenário anterior de um aumento em 25% da tarifa de transporte ferroviário, totalmente incompatível com o momento de excepcionalidade vivido e diversos princípios que devem reger a concessão de serviços públicos e de defesa do consumidor.
Não restam dúvidas sobre o impacto da pandemia para os serviços em geral, porém mostra-se inviável transferir a carga desse fato externo e excepcional em prejuízo do usuário, através de um aumento desproporcional da tarifa, quebrando totalmente a base objetiva dessa relação de consumo.
Trata-se, sem dúvida, de uma relação triangular (concessionária – Estado concedente – e usuário), porém não se pode pensar unicamente num equilíbrio contratual entre os dois primeiros e
esquecer-se da parte mais frágil e vulnerável dessa relação que é sem dúvida o consumidor-usuário do serviço.
Além disso, a elevação em 25% da tarifa em um momento de excepcionalidade econômica e social como a presente representa flagrante ofensa ao princípio da modicidade da tarifa e proporcionalidade, até mesmo comparativamente a outros índices como INPC, IPCA e reajuste do salário mínimo do período.
Ademais, contrasta com a perda de renda da população em geral, especialmente pessoas hipossuficientes que utilizam o transporte de trem urbano diariamente para seu deslocamento para o trabalho, impactando ainda mais em sua perda de renda, num momento de elevação do desemprego, dificuldade financeira da população e restrições sociais que dificultam ainda mais novas fontes de renda.
Destaca-se ainda, como será abaixo demonstrado, que a não observância do princípio da modicidade da tarifa, configura, em última análise, a própria sonegação em si de um serviço essencial, já que a elevação da tarifa em patamares exorbitantes ensejará a negativa de acesso àqueles que, em razão da dificuldade financeira de momento pela pandemia, não conseguirão continuar a adimplir com os novos valores cobrados, configurando violação constitucional.
Observa-se que diferentemente do ocorrido aqui no Rio, no Estado de São Paulo, em situação semelhante, frente ao momento de excepcionalidade vivida, não foi efetivado qualquer aumento na tarifa de transporte, conforme reportagem abaixo6:
6 xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/0000/00/00/xxxxxxxx-0000-xx/ - consulta em 21.06.2021
O mesmo veio a ocorrer em outros Estados e Municípios, dentre eles o Município de Curitiba, conforme reportagem em anexo, onde não haverá reajuste no transporte de ônibus em razão da pandemia.
Observa-se ainda que tal desproporcionalidade foi ainda alvo de Carta Pública pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, conforme documento em anexo, que expressamente manifestou-se
contrariamente a aplicação desse reajuste nesse momento, conforme suas razões que reforçam os fundamentos da presente demanda.
Deste modo, diante do contexto fático e probatório, não restou alternativa a não ser o ajuizamento de ação coletiva para a revisão do percentual de incidência do reajuste tarifário, de modo a atender ao momento de excepcionalidade e realidade social-financeira enfrentada pelos usuários do referido serviço de transporte, sob pena de afronta aos princípios da modicidade das tarifas, continuidade e eficiência do serviço, bem como aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade como se passa a demonstrar.
III) DOS FUNDAMENTOS:
a) DA RELAÇÃO DE CONSUMO:
Para determinar o âmbito de aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) é necessário averiguar a presença dos elementos da relação de consumo.
A relação de consumo pode ser caracterizada por seus elementos, a saber, (i) elementos subjetivos, os consumidores e os fornecedores e (ii) elemento objetivo, a prestação de produto ou serviço. Como estes elementos são interdependentes, a ausência de quaisquer deles descaracteriza a relação jurídica de consumo, afastando a aplicação do CDC.
Em seguida, cumpre analisar ambos os elementos.
O art. 2º, caput, do CDC, traz a definição de consumidor:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
12
Assim, consumidor é toda pessoa física ou jurídica que, ao adquirir ou utilizar produto ou serviço, o faz como destinatário final ou fático, isto é, de forma a retirar o produto ou serviço do mercado de consumo, usufruindo de modo definitivo de sua utilidade.
Em interpretação da legislação consumerista, que pretende a proteção da parte vulnerável, conclui-se também que o consumidor há de ser não profissional, ou seja, ser o destinatário econômico do produto ou serviço, de forma a não reempregá-lo no mercado de consumo com objetivo de lucro.
Esse conceito de consumidor vai ser complementado, ampliando-se de forma a prever a noção de consumidor equiparado, tal como é o caso do parágrafo único do art. 2º do CDC, que vai trazer o conjunto de consumidores de produtos ou serviços figurando como elemento da relação jurídica:
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
A finalidade dessa equiparação é ampliar o âmbito de incidência do CDC, possibilitando a tutela coletiva dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (art. 81, CDC). Portanto, considera-se como consumidor a “coletividade de pessoas (...) que haja intervindo nas relações de consumo”, referindo-se não apenas os consumidores que tenham adquirido ou utilizado o produto ou serviço, mas a todos aqueles que estejam expostos às práticas dos fornecedores no mercado de consumo.
Da leitura do caput do artigo 3º, do CDC, depreende-se que fornecedor é todo aquele que pratica as atividades ali descritas, inclusive as pessoas de direito público, ali mencionadas. Vejamos:
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
Assim, o fornecedor de serviços é aquele que executa “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração”. Refere-se o §2º ao serviço oferecido no mercado em decorrência da atividade econômica do fornecedor, tendo como objeto da relação de consumo o serviço remunerado. Inclui-se, aqui, aquele que é prestado pelo poder público ou pela empresa concessionária, desde que este seja pago pelo consumidor, tal como o que ora ocorre.
A seguir, o Código de Defesa do Consumidor estabelece como princípio da Política Nacional das Relações de Consumo a “melhoria dos serviços públicos” (art. 4º, VII), ao mesmo tempo em que consagra como direito básico do consumidor sua adequada e eficaz proteção (art. 6º, X). Por fim, no artigo 22, o CDC estabelece expressamente uma série de deveres aos fornecedores de serviços públicos: “os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, o fornecimento de serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos”.
Indubitável que o serviço prestado pela concessionária ao usuário, devidamente outorgada pelo Poder Concedente – segundo réu – se insere no conceito de relação de consumo.
No caso em apreço, o aumento tarifário do trem urbano de R$ 4,70 (quatro reais e setenta centavos) para R$ 5,90 (cinco reais e noventa
centavos), reajuste de 25%, afronta os princípios da modicidade tarifária, continuidade e eficiência do serviço e os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, lesando milhares de consumidores que necessitam do transporte público para a sua locomoção no Município do Rio de Janeiro. Portanto, a coletividade é consumidora na relação de consumo em tela.
Dessa forma, não restam dúvidas quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso em tela.
b) DA PROTEÇÃO CONTRA PRÁTICAS E CLÁUSULAS ABUSIVAS:
O Código de Defesa do Consumidor, ao mesmo tempo em que institui direitos ao consumidor, impõe deveres aos fornecedores de produtos e serviços, buscando promover o equilíbrio contratual nas relações de consumo.
No bojo do princípio do equilíbrio contratual, a sistemática da legislação consumerista objetiva coibir práticas e cláusulas abusivas que possam vir a ser realizadas em detrimento do consumidor.
Desse modo, o CDC preceitua como direito básico do consumidor, conforme o inciso IV do art. 6º, “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços”.
Preleciona Xxxxx Xxxxxxx que as cláusulas abusivas “decorrem da posição dominante do fornecedor em relação ao consumidor, que permite a imposição unilateral de condições contratuais prejudiciais aos interesses legítimos dos consumidores”7. Ou seja, cláusulas abusivas nada mais são do que aquelas que comprometem “o
7 XXXXXXX, Xxxxx. Curso de Direito do Consumidor. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. Pp. 217.
equilíbrio contratual, em desfavor do consumidor, porque seu conteúdo, desde logo, apresenta vantagem exagerada em benefício do fornecedor”8.
Já as práticas abusivas englobam, para o autor, “toda a atuação do fornecedor no mercado de consumo, que caracterize o desrespeito a padrões de conduta negociais regularmente estabelecidos, tanto na oferta de produtos e serviços, quanto na execução de contratos de consumo, assim como na fase pós-contratual”9. Conclui-se, dessa forma, que as condutas das partes devem se orientar pela boa-fé objetiva todos em os momentos da relação contratual.
Ademais, a legislação consumerista prevê que a Política Nacional das Relações de Consumo deve ser executada consoante alguns princípios, estabelecidos especialmente no art. 4º, CDC, dentre os quais a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
C.1) DA ONEROSIDADE EXCESSIVA:
O Código de Defesa do Consumidor manifesta clara aversão à vantagem excessiva que possa ser concretizada em desfavor dos consumidores. Tal é o reconhecimento desse fenômeno, que a norma consumerista conferiu-o status de prática abusiva, consoante art. 39, inciso V:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
8 Idem.
9 Idem
V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva
Ensina Xxxxx Xxxxxxx que a norma “contempla a vedação de conduta do fornecedor visando à obtenção de vantagem que venha a dar causa ao desequilíbrio da relação jurídica de consumo. Note-se que não há necessidade de existir o contrato, senão o mero ato do fornecedor postulando o recebimento de vantagem”10.
Todavia, o dispositivo legal supramencionado não é elucidativo quanto à abrangência da expressão “vantagem excessiva”, de forma que se mostra necessário um trabalho hermenêutico para se extrair um sentido prático. Nesse sentido, esclarece Xxxxxxx Xxxxxx X. Xxxxxxxx:
“Mas o que vem a ser a vantagem excessiva? O critério para o seu julgamento é o mesmo da vantagem exagerada (art. 51, §1º). Aliás, os dois termos não são apenas próximos – são sinônimos.”11
Portanto, encontra-se na seção de cláusulas contratuais abusivas uma maior precisão para o entendimento do que venha a ser a vantagem excessiva, aqui tratada como vantagem exagerada, nos moldes do art. 51, §1º, que dispõe:
Art. 51. (...)
§1º. Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
10 XXXXXXX, Xxxxx. Curso de Direito do Consumidor. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 321.
11 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx X., Manual de Direito do Consumidor/Xxxxxxx Xxxxxx X. Xxxxxxxx, Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx – 2. Ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 223
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. Grifo nosso
Infere-se que a vantagem excessiva pode ser verificada em situações de significativa onerosidade ao consumidor. Assim, flagrante é a afronta às normas consumeristas no caso em tela.
O artigo 39, V deve ser integrado com o artigo 51, X do Código de Defesa do Consumidor, que considera nulas as cláusulas que permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, a variação do preço de maneira unilateral, desequilibrando as prestações dos contratantes, em ofensa ao princípio da boa-fé objetiva.
Com efeito, não remanescem dúvidas de que toda a sociedade se defronta com uma circunstância absolutamente excepcional e superveniente, que, na conjuntura exposta, um reajuste como pretendido pelos réus, com base em uma alegada previsão contratual pelo IGPM - acarreta, neste momento, em onerosidade excessiva a ser suportada pelos consumidores.
C.2) DA ELEVAÇÃO DA TARIFA DA SUPERVIA e DO PRINCÍPIO DA MODICIDADE DAS TARIFAS
Conforme narrado no capítulo dos fatos, decidiram os réus efetuar o reajuste de tarifa de trem urbano para que, a partir do dia 02/07/2021, o valor da passagem fosse reajustado de R$ 4,70 (quatro reais e setenta centavos) para R$ 5,90 (cinco reais e noventa centavos) para a região metropolitana do Rio de Janeiro.
Ocorre que o aumento da tarifa no atual cenário pandêmico se mostra excessivamente oneroso ao consumidor, visto que a população vive um momento de excepcionalidade, o que tem desencadeado grandes problemas sociais e econômicos, com o aumento da taxa de desemprego e, consequentemente, impactando na renda familiar da população em geral, especialmente nas camadas mais humildes e aquelas que exercem atividades informais. São essas pessoas que mais dependem do transporte público para se locomoverem, como no caso do transporte ferroviário.
O art. 51, §1º, III, da Lei nº 8.078/90 estabelece que “se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”.
Nessa toada, uma das premissas do CDC, estabelecida no art. 6.º, já acima apontado como direito básico do consumidor, consiste na modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais, gerando desequilíbrio contratual ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Confira- se:
Art. 6º, CDC. São direitos básicos do consumidor: […] V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
Da mesma forma, o próprio Código Civil, através da conhecida teoria do Diálogo das Fontes, ratifica a normativa acima, ao definir, em seus art. 478, 479 e 480, a possibilidade de modificação equitativa das condições do contrato, em situações extraordinárias, que tornem o cumprimento das obrigações contratuais extremamente oneroso para uma das partes e vantajoso para outra. In verbis:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
Deve-se recobrar, nesse diapasão, que a Política Nacional de Relações de Consumo consagra, como vetor fundamental, a proteção dos interesses econômicos, atendido o princípio da harmonização dos interesses dos participantes das relações consumeristas. Veja-se:
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: […]
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo.
Insta observar que o aumento realizado, comparativamente ao aumento do salário mínimo de 2020 para 2021 (R$ 1.045,00 para R$ 1.100,00 – 5%) e da inflação média (IPCA – 4,52%), representa uma
elevação astronômica em relação ao ganho da população e à inflação oficial brasileira.
Assim, o reajuste aplicado se mostra exorbitante e impacta de forma direta no acesso ao serviço público essencial de transporte da população, gerando prejuízos a milhões de consumidores.
O serviço público prestado direta ou indiretamente, de acordo como o conceito jurídico indeterminado constitucional para ser considerado adequado deve satisfazer as seguintes condições: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade de tarifas.
A concepção de prestação de serviço público está ligada à satisfação do interesse público, ou seja, das necessidades da coletividade como um todo.
Assim sendo, o próprio ordenamento jurídico vigente instituiu o princípio da modicidade das tarifas, o qual exige a cobrança de menores tarifas possíveis. Eis o ensinamento de Xxxxxxxx Xxxxxxxx:
Esse princípio decorre de um raciocínio simples: o Brasil é um país relativamente pobre, tendo o serviço público que atingir e satisfazer os diversos grupos sociais na persecução do bem comum. Sendo assim, quando esse serviço depender de uma cobrança, ela deve ser condizente com as possibilidades econômicas do povo brasileiro, ou seja, a mais baixa possível.
A importância deste princípio também foi enfatizada por Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, ao afirmar que “tal modicidade, registre-se, é um dos mais relevantes direitos do usuário, pois, se for desrespeitada, o próprio serviço terminará por ser inconstitucionalmente sonegado”.
Deste modo, é de se reconhecer que a aplicação da modicidade tarifária deve ser visualizada sob o contexto da necessidade da cobrança para prestação de alguns serviços públicos pelo Estado e do outro lado, da obrigação deste garantir acesso ao serviço à coletividade como um todo, de forma isonômica, com continuidade, mediante a cobrança de tarifa módica, de modo a assegurar ao indivíduo o direito de acesso ao serviço público.
Logo, de acordo com Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, as tarifas devem ser módicas, impedindo, assim, sua excessiva oneração, de modo a assegurar acessível a todos os usuários, uma vez que “o serviço público, por definição, corresponde à satisfação de uma necessidade ou conveniência básica dos membros da sociedade”.
A elevação da tarifa da Supervia num patamar de 25% (de R$ 4,70 para R$ 5,90) não se mostra razoável e proporcional no atual cenário pandêmico, ainda que haja previsão contratual de reajuste pelo IGP-M. Isso porque este percentual de reajuste, repisa-se, contrasta com a perda de renda da população em geral, especialmente das pessoas hipossuficientes que utilizam o transporte público ferroviário diariamente.
Com efeito, destaca-se a obrigatoriedade, pelos concessionários, da prestação de serviço adequado, assim considerado como aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, efetividade, segurança, atualidade, generalidade, transparência, cortesia na sua prestação e modicidade tarifária devidamente estatuída na Constituição da República (art.175, p.u., III e IV) e delineada nos arts. 6º e 7º da Lei nº 8.987/1995, art. 4 e 6º do Código de Defesa do Consumidor.
Lei 8.987/95
Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
Neste ponto, o princípio da modicidade das tarifas funciona como mecanismo para se evitar a sobreposição do interesse do ente público ou concessionária prestadora do serviço em detrimento do usuário/consumidor.
O princípio da modicidade pode ser conceituado como a determinação da lei para que as tarifas pagas pelo usuário apresentem valores reduzidos ou equilibrados, que possibilitem que todos os consumidores, independente de uma condição financeira mais favorável, possam usufruir do serviço. Neste sentido, o princípio da modicidade da tarifa seria uma consequência lógica do princípio da generalidade e da universalização dos serviços públicos.
Sendo assim, é de reconhecer que a aplicação da modicidade tarifária deve ser visualizada sob o contexto da necessidade da cobrança para prestação de alguns serviços públicos pelo Estado e do outro lado, da obrigação deste garantir acesso ao serviço à coletividade como um todo, de forma isonômica, com continuidade, mediante a cobrança de tarifa módica, de modo a assegurar ao indivíduo o direito de acesso ao serviço público.
Da mesma forma, a recente Lei n.º 13.460/2017, de Defesa dos Direitos do Usuário, a que se subsumem os contratos de concessão, estabelece como diretrizes a serem observadas por agentes ou prestadores de serviço a publicidade e a observância de horários e normas compatíveis com o bom atendimento ao usuário (art. 5º, inciso VII), bem como direito do usuário a obtenção de informações precisas e de fácil acesso sobre o valor das tarifas cobradas pela prestação do serviço.
No caso, a não observância do princípio da modicidade da tarifa, configura, em última análise, como dito, a própria sonegação em si de um serviço essencial, já que a elevação da tarifa em patamares exorbitantes ensejará a negativa de acesso àqueles que, em razão da dificuldade financeira de momento pela pandemia, não conseguirão continuar a adimplir com os novos valores cobrados, configurando violação constitucional.
Assim, deve-se sempre ter em mente o princípio da razoabilidade e proporcionalidade na análise dos atos em gerais, em especial de atos e contratos administrativos, não se mostrando razoável e proporcional em um momento de excepcionalidade como o presente a elevação do valor da passagem, ainda que haja previsão de reajuste pelo IGP-M, no patamar de 25%, contrastando com a perda de renda da população em geral, especialmente pessoas hipossuficientes que utilizam o transporte de trem diariamente para seu deslocamento para o trabalho, impactando ainda mais em sua perda de renda, num momento de elevação do desemprego, dificuldade financeira da população e restrições sociais que dificultam ainda mais novas fontes de renda.
Posto isso, se mostra necessária a atuação do Poder Judiciário, no presente caso, com vistas a adequar o percentual do reajuste tarifário aplicado, de modo a impactar infimamente o usuário/consumidor que depende do transporte para a sua locomoção.
C.3) DA APLICAÇÃO DO INDÍCE INFLACIONÁRIO DO IPCA
Conforme apontado anteriormente, apesar de haver previsão contratual de reajuste da tarifa do trem urbano pelo IPG-M, no atual cenário vivenciado pela população em geral, principalmente das pessoas de baixa renda, não se mostra razoável e proporcional um aumento de 25% no valor da passagem.
Claramente o IGP-M no último ano apresentou uma variação desproporcional e excessiva, quebrando qualquer parâmetro de razoabilidade e equilíbrio para sua aplicação ao caso.
Conforme já exposto acima, por diversas vezes, a variação anual do IGP-M é totalmente dissonante dos demais índices de reajuste, como o INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) e o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), este o índice de inflação oficial do país, parâmetros inclusive comumente utilizados em contratos de concessão similares ao celebrado com a SuperVia.
Observamos que no último ano, a variação do IPCA foi de 4,52%, enquanto o INPC foi de 5,45%. Já o IGP-M teve variação de aproximadamente 25%. Se observado a variação de 2018 até 2020, o IGP- M é o índice com maior percentual de variação no período analisado, tendo acumulado variação de 37,98%, enquanto o INPC e o IPCA, respectivamente, apresentaram variação de 13,36% e 12,58%.
No caso, o que se pretende é única e exclusivamente afastar que recaia sobre os consumidores todo o ônus dessa variação desproporcional do IGP-M, subjugando o interesse da população.
Deve o Poder Judiciário, neste caso, se imiscuir, com o objetivo de encontrar um equilíbrio na relação contratual. Deste modo, considerando o grande impacto da pandemia do coronavírus na vida da
população, com o aumento em massa do desemprego e a queda da arrecadação, nada mais razoável e proporcional que a aplicação do reajuste da tarifa do trem urbano com base no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que acumulou uma alta de 4,52% em 2020, buscando um maior equilíbrio nessa relação de consumo.
Como já mencionado, trata-se, sem dúvida, de uma relação triangular (concessionária – Estado concedente – e usuário), porém não se pode pensar unicamente num equilíbrio contratual entre os dois primeiros e esquecer-se da parte mais frágil e vulnerável dessa relação que é sem dúvida o consumidor-usuário do serviço.
Em se tratando de relação de consumo, o art. 6º, V, da Lei nº 8.078/90 prevê como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Portanto, por essa norma, que pode atingir até mesmo fatos previsíveis, a lei possibilita a recomposição da justiça contratual e a efetividade do equilíbrio das prestações, revitalizando a importância da comutatividade das prestações, reprimindo excessos próprios do individualismo e procurando a justa proporcionalidade de direitos e deveres, de conduta e de prestação nos contratos. Isso porque, em razão da presunção de vulnerabilidade do consumidor, princípio basilar da Lei nº 8.078/90, as relações de consumo encontram uma maior flexibilização nos pressupostos da revisão dos contratos.
Ademais, os bens de consumo, seja maior ou menor sua essencialidade, não poderão ter reajustes excessivos, sob pena de violar a legislação consumerista. No presente caso, trata-se de serviço público essencial, devendo satisfazer as seguintes condições: regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade de tarifas.
Frisa-se que a normatização do Código de Defesa do Consumidor é de ordem pública e de interesse social, de modo que seus comandos possuem natureza cogente.
Por fim, não restam dúvidas de que estamos diante de situação excepcional e sem precedentes recentes. A última pandemia com proporções mundiais como a presente pode ser apontada como a gripe espanhola entre os anos de 1918 e 1920. Assim, se afigura difícil se buscar entendimentos jurisprudenciais quanto a matéria.
Porém, há precedentes de decisões judiciais que com base em situações semelhantes, mesmo havendo cláusula contratual prevendo determinada forma de reajuste, em razão de fatos supervenientes decidiu-se pela repartição dos encargos da relação contratual.
Neste contexto, cite-se a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que, com base na teoria da onerosidade excessiva, determinou a repartição dos ônus de circunstância excepcional que, sem culpa de qualquer das partes, alterou a base objetiva do contrato, quando havia cláusula contratual de reajuste pelo dólar em contrato de leasing:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. CONTRATO BANCÁRIO. ARRENDAMENTO MERCANTIL. REAJUSTE. VARIAÇÃO CAMBIAL. RECURSOS NO EXTERIOR. PROVA DA CAPTAÇÃO. COMPROVAÇÃO ESPECÍFICA. DESNECESSIDADE. COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO. DISPOSITIVO LEGAL VIOLADO. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA Nº 284/STF. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO.
1. A desvalorização do real frente ao dólar norte- americano ocorrida em janeiro de 1999 representou fato imprevisível que redundou em excessiva onerosidade contratual, motivo pelo qual a jurisprudência desta Corte Superior pacificou-se no sentido de autorizar a repartição do ônus das diferenças resultantes da variação cambial do período entre o arrendatário e a instituição arrendante.
2. A prova da captação de recursos não deve ser exigida individualmente, para cada operação de arrendamento mercantil, pois, em regra, a tomada de recursos no exterior não ocorre de modo vinculado aos contratos celebrados no mercado nacional, o que dificultaria sobremaneira a comprovação desse fato.
3. Conquanto seja a captação de recursos no exterior requisito indispensável à contratação de reajuste vinculado à variação cambial, nos moldes exigidos pelo art. 6º da Lei nº 8.880/1994, é despicienda a sua prova em juízo, tendo em vista a fiscalização realizada pelo Banco Central do Brasil quanto à entrada de moeda estrangeira no País, utilizada para financiamentos em moeda nacional.
4. É válida a cláusula contratual que prevê a cobrança da comissão de permanência, calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, de acordo com a espécie da operação, tendo como limite máximo o percentual contratado, sendo admitida apenas no período de inadimplência, desde que pactuada e não cumulada com os encargos da normalidade (juros remuneratórios e correção monetária) e/ou com os encargos moratórios (juros moratórios e multa contratual).
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. (STJ – RESP 1.217.057- TO – Terceira Turma – julgamento: 19 de abril de 2016)
Da mesma forma, o tema da revisão do índice de reajuste durante a pandemia, capaz de provocar onerosidade excessiva, vem sendo objeto de análise pelos Tribunais de Justiça. Quanto a isto, válido o apontamento de que nos autos dos Agravos de Instrumento nº 2298701- 80.2020.8.26.0000 (31ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO) e 2012910-
93.2021.8.26.0000 (32ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO), o Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo determinou a alteração do reajuste do IGP-M para o IPCA em contratos de aluguel comercial.
Processo nº 2012910-93.2021.8.26.0000 Relator(a): XXXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXX
Cuida-se de agravo de instrumento interposto por TL Faria Lima Comércio de Calçados Ltda. contra r. decisão aqui por cópia a fls. 42/43, fls. 54/55 dos originais, que, em autos de ação revisional de aluguel que move em face de Condomínio Shopping Center Iguatemi, indeferiu o pedido de tutela de urgência demandado pela agravante. (...) Apesar de não mais subsistir a determinação de fechamento dos shoppings centers, embora tenha restrição no seu funcionamento, a pandemia persiste, de modo que inegável os seus efeitos negativos junto ao comércio. Da mesma forma, é notório que houve forte alta no IGP-M no ano de 2020. Nesse cenário, defiro em parte o pedido de tutela de urgência para, temporariamente, autorizar a substituição do índice IGPM pelo IPC-A. (...) (TJSP – decisão de 12/02/2021)
Processo nº 2298701-80.2020.8.26.0000 Relator(a): XXXXXXXXX XXXXXX
(...)
5. Acerca da tutela provisória, vislumbra-se plausibilidade nas alegações, pois a crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19 atingiu o equilíbrio das obrigações contratuais. Assim, considerando o risco de inadimplência e a reversibilidade da medida, DEFIRO a tutela recursal de urgência para determinar que o 13º aluguel seja calculado com base na média dos locativos pagos durante o ano de 2020; bem como para substituir o IGP-M pelo IPCA, ad referendum da D. Turma Julgadora (...) – (TJSP – decisão de 18/12/2020)
Observa-se que esta última decisão nos autos do Agravo de Instrumento 2298701-80.2020.8.26.0000 veio a ser referendada pelo colegiado, conforme acórdão abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA DE URGÊNCIA.AÇÃO REVISIONAL. Decisão que
indeferiu tutela provisória de urgência, por meio da qual a autora pretendia rever valor do aluguel. Inconformismo. Acolhimento. Presença dos requisitos do art. 300 do CPC/15. PROBABILIDADE DO
DIREITOINVOCADO. Prima facie, a pandemia de COVID-19 se apresenta como fato imprevisível capaz de interferir no negóciojurídico e autorizar a revisão do contrato, com base na teoria da imprevisão. A conservação do negócio, ademais, atende à função social do contrato. Revisão cabível, nos termos do art.317 do Código Civil. PERIGO DE DANO. Inadimplemento dos locativos que pode fundamentar pedido de despejo e interromper as
atividades da agravante. Tutela de urgência concedida parcialmente. Valor do 13º aluguel calculado com base nos locativos pagos no ano de 2020. Substituição do IGP-M pelo IPCA. RECURSO PROVIDO EM PARTE (acórdão de 14/05/2021)
d) DO ACORDO FIRMADO ENTRE OS RÉUS:
Ressalta-se ainda que os réus chegaram a firmar acordo quando a aplicação de índice diverso de reajuste, reconhecendo que o percentual aplicado inicialmente impactava diretamente e de forma desproporcional aos consumidores.
Inclusive, foi formalmente informado pelos demandados que conseguiram chegar a um acordo quanto ao valor do reajuste a ser operado para o ano de 2021, com a sua fixação em R$ 5,00 (cinco reais), tendo tal informação sido divulgada pela mídia, como aos próprios autores através do Oficio enviado pela Secretaria de Transportes, já anexado à presente inicial (fls. 08 da inicial).
É de se destacar que os próprios termos do Décimo Primeiro Aditivo do contrato que reviu o reajuste em 2021, expressamente atestava o momento de excepcionalidade vivido, os impactos sociais e econômicos que o reajuste iriam provocar, a ensejar a aplicação de índice diverso:
Assim, os próprios réus atestam a necessidade de revisão do índice contratualmente previsto no momento de excepcionalidade presente, a corroborar a necessidade de procedência da presente demanda.
Infelizmente, o termo de compromisso firmado entre as partes deixou de produzir efeitos, tendo sido os autores surpreendidos com a informação de aplicação do reajuste anteriormente previsto de 25% a partir de julho de 2021, apesar de sua revisão administrativa anterior.
e) DOS DANOS MATERIAIS E MORAIS CAUSADOS AOS CONSUMIDORES CONSIDERADOS INDIVIDUALMENTE
Fica claro, após todo o exposto, que as condutas dos réus têm potencial para gerar danos materiais e morais aos consumidores
individualmente considerados, sendo certo que, para que haja condenação indenizatória, não é necessário que o autor da ação civil pública demonstre a ocorrência dos prejuízos individualmente sofridos pelos consumidores.
Porém, mostra-se evidente que com a eventual entrada em vigor a nova tarifa, resta evidente os danos e prejuízos que poderão incidir sobre os consumidores, cobrados por valores acima do realmente justo, como pleiteado no presente feito, podendo os réus serem condenados à devolução dos valores cobrados a maior, caso haja a entrada em vigor da nova tarifa.
Em sede de ação civil pública, deve o réu ser condenado ao ressarcimento dos consumidores, vez que o CDC expressamente prevê que, na ação coletiva visando a responsabilidade civil por danos causados aos consumidores individualmente considerados, deve ser prolatada sentença genérica, verbis:
Art. 91. Os legitimados de que trata o art. 82 poderão propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos seguintes.
Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.
A comprovação do prejuízo individual deve ser realizada em fase de liquidação de sentença, conforme previsto no art. 97 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.
Conclui-se que o diploma consumerista exige que o autor da ação civil pública demonstre apenas a potencialidade lesiva da conduta perpetrada pela ré e, no caso em tela, inegável a possibilidade de sofrimento de prejuízos de ordem moral e material, por parte dos consumidores em decorrência da abusividade que constitui a causa de pedir da presente ação.
Verifica-se, assim, que restou demonstrada a potencialidade lesiva da conduta perpetrada pela demandada, devendo a comprovação do prejuízo individual ser realizada na fase de liquidação de sentença, na forma do art. 97 do Código de Defesa do Consumidor.
f) DOS DANOS MORAIS E MATERIAIS CAUSADOS AOS CONSUMIDORES CONSIDERADOS DE FORMA COLETIVA
Em face das irregularidades narradas na presente, deve, ainda, a ré ser condenada a ressarcir da forma mais ampla possível os consumidores, coletivamente considerados, pela violação ao Código de Defesa do Consumidor.
Em um primeiro momento, é importante frisar, com relação ao dano moral coletivo, a sua previsão expressa no nosso ordenamento jurídico nos art. 6º, incisos VI e VII do CDC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: VI - a efetiva proteção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
No mesmo sentido, o art. 1º da Lei nº. 7.347/85:
Art. 1º Regem-se pelas disposições desta lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (grifou-se). I – ao meio ambiente; II – ao consumidor; III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; IV – a qualquer outro interesse difuso ou coletivo; V – por infração da ordem econômica e da economia popular; VI – à ordem urbanística.
Assim, como afirma Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, em artigo dedicado especificamente ao tema, “além de condenação pelos danos materiais causados ao meio ambiente, consumidor ou a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, destacou, a nova redação do art. 1º, a responsabilidade por dano moral em decorrência de violação de tais direitos, tudo com o propósito de conferir-lhes proteção diferenciada”12.
De acordo com o autor, a concepção do dano moral coletivo não pode estar mais presa ao modelo teórico da responsabilidade civil privada, de relações intersubjetivas unipessoais.
Trata-se, para Antonio Junqueira de Azevedo13, que prefere a expressão dano social, “de um ato que atinge a toda a sociedade, num
12 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. Dano moral coletivo. In Revista de Direito do Consumidor nº 59/2006.
13 Por uma nova categoria de dano na reponsabilidade civil: o dano social. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v.19, p.215, jul./set. 2004. Emblemático o seguinte acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que julgou procedente o pedido em ação civil pública movida pelo Ministério Público, reconhecendo o dano moral coletivo: “Ação civil pública. Dano moral coletivo. Ocorrência. Indenização. Necessidade. Presença dos requisitos para a aplicação de punição pela publicação de imagens e reportagem obscena, contrária à moral pública. Veiculação televisiva de inúmeras pessoas nuas filmadas no Parque do Ibirapuera em São Paulo, tanto por tomadas aéreas quanto terrestres, além de comentários jocosos e inadequados para o público, no horário em que foi exibido o programa Domingo Legal. Comprovação, através de documentação farta acostada à inicial, trazendo o teor obsceno das fotografias de nudez completa e detalhada, bem como dos comentários lascivos de pessoas localizadas no palco ao lado do apresentador. Entendimento de que a violação a direitos difusos não é, via de regra, patrimonial, mas sim moral, por atuar na esfera das convicções e impressões subjetivas de um número determinável de pessoas acerca dos fatos. Constatação de que a coletividade foi prejudicada por meio de veiculação de publicação obscena, gerando, portanto, o dano difuso a ser indenizado” (TJ-SP, Câmara Especial, Apelação Cível 000-000-0/5, rel.Des.Xxxxxx Xxxxxxxx, x.11.6.2007).
Vale mencionar, em matéria de improbidade administrativa, em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro para averiguar as irregularidades no empreendimento Cidade da Música, o seguinte acórdão, da Desembargadora Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO COLETIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA
rebaixamento imediato do nível de vida da população (...) Isto é particularmente evidente quando se trata da segurança, que traz diminuição da tranquilidade social, ou de quebra de confiança, em situações contratuais ou extracontratuais, que acarreta redução da qualidade coletiva de vida”.
Tratamos, nesse momento, de uma nova gama de direitos, difusos e coletivos, necessitando-se, pois, de uma nova forma de sua tutela. E essa nova proteção, com base no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, se sobressai, sobretudo, no aspecto preventivo da lesão. Por isso, são cogentes meios idôneos a punir o comportamento que ofenda (ou ameace) direitos transindividuais.
Ainda para Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “em face da exagerada simplicidade com que o tema foi tratado legalmente, a par da ausência de modelo teórico próprio e sedimentado para atender aos conflitos transindividuais, faz-se necessário construir soluções que vão se utilizar, a um só tempo, de algumas noções extraídas da responsabilidade civil, bem como de perspectiva própria do direito penal”14.
Portanto, a par dessas premissas, vemos que a função do dano moral coletivo é homenagear os princípios da prevenção e precaução, com o intuito de propiciar uma tutela mais efetiva aos direitos difusos e coletivos, como no caso em tela.
Menciona, inclusive, Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx que “como reforço de argumento para conclusão relativa ao caráter punitivo do dano
POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DANO MORAL COLETIVO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DAS HIPÓTESES LEGAIS DE INDEFERIMENTO DA INICIAL. RECEBIMENTO DA PEÇA INAUGURAL E REGULAR. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO
COLETIVA. (...)2-O dano moral pleiteado pelo parquet, em nome da sociedade, é legítimo e pode ser perseguido através de ação civil pública por ato de improbidade administrativa. Honra do grupo social(sic) que não pode ficar sem reparação moral. Lei da Ação Civil Pública que prevê ressarcimento integral do dano causado à coletividade, não restringindo o dano moral coletivo. A ratio legis engloba o dano moral coletivo, sendo inegável a possibilidade de o Ministério Público persegui-lo em sede de ação civil pública referente á prática de ato de improbidade administrativa pelas partes envolvidas no processo. Interesse de agir presente”(TJ-RJ, 20ª CC, agravo de instrumento 0063854-51.2009.8.19.0000, j.04.08.2010, rel.Des.Xxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx).
14 XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx. Dano moral coletivo. In Revista de Direito do Consumidor nº 59/2006
moral coletivo, é importante ressaltar a aceitação da sua função punitiva até mesmo nas relações privadas individuais”.15
Ou seja, o caráter punitivo do dano moral sempre esteve presente, até mesmo nas relações de cunho privado e intersubjetivas. É o que se vislumbra da fixação de astreintes e de cláusula penal compensatória, a qual tem o objetivo de pré-liquidação das perdas e danos e de coerção ao cumprimento da obrigação.
Ademais, a função punitiva do dano moral individual é amplamente aceita na doutrina e na jurisprudência. Tem-se, portanto, um caráter dúplice do dano moral: indenizatório e punitivo.
É o mesmo se aplica, nessa esteira, ao dano moral coletivo.
Em resumo, mais uma vez se utilizando do brilhante artigo produzido por Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, “a dor psíquica ou, de modo mais genérico, a afetação da integridade psicofísica da pessoa ou da coletividade não é pressuposto para caracterização do dano moral coletivo. Não há que se falar nem mesmo em “sentimento de desapreço e de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade” (Xxxxx Xxxxxxxx Xxxxx) “diminuição da estima, infligidos e apreendidos em dimensão coletiva” ou “modificação desvaliosa do espírito coletivo” (Xxxxx Xxxxx). Embora a afetação negativa do estado anímico (individual ou coletivo) possa ocorrer, em face dos mais diversos meios de ofensa a direitos difusos e coletivos, a configuração do denominado dano moral coletivo é absolutamente independente desse pressuposto”16.
Constitui-se, portanto, o dano moral coletivo de uma função punitiva em virtude da violação de direito transindividual, sendo devidos, de forma clara, na hipótese dos autos.
15 Dano moral coletivo. In Revista de Direito do Consumidor nº 59/2006.
16 Dano moral coletivo. In Revista de Direito do Consumidor nº 59/2006
A abusividade no reajuste da tarifa da Supervia, conforme todo conjunto probatório acostado aos autos, viola o Código de Defesa do Consumidor. É necessário, pois, que o ordenamento jurídico crie sanções a essa atitude, a par da cessação da prática, sendo esta a função do dano moral coletivo.
Nesse sentido a jurisprudência, do STJ e TJ/RJ, com o reconhecimento do dano moral coletivo:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO DO CONSUMIDOR. TELEFONIA. VENDA CASADA. SERVIÇO E APARELHO. OCORRÊNCIA. DANO MORAL COLETIVO. CABIMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. Trata-se de ação civil pública apresentada ao fundamento de que a empresa de telefonia estaria efetuando venda casada, consistente em impor a aquisição de aparelho telefônico aos consumidores que demonstrassem interesse em adquirir o serviço de telefonia.
(...)
7. A possibilidade de indenização por dano moral está prevista no art. 5º, inciso V, da Constituição Federal, não havendo restrição da violação à esfera individual. A evolução da sociedade e da legislação têm levado a doutrina e a jurisprudência a entender que, quando são atingidos valores e interesses fundamentais de um grupo, não há como negar a essa coletividade a defesa do seu patrimônio imaterial.
8. O dano moral coletivo é a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de direito transindividual de ordem coletiva, valores de uma sociedade atingidos do ponto de vista jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas qualquer abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na verdade, apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial de uma pessoa.
9. Há vários julgados desta Corte Superior de Justiça no sentido do cabimento da condenação por danos morais coletivos em sede de ação civil pública. Precedentes: EDcl no AgRg no AgRg no REsp 1440847/RJ, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 15/10/2014, REsp 1269494/MG, Rel. Ministra XXXXXX XXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013; REsp 1367923/RJ, Rel. Ministro XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 06/09/2013; REsp 1197654/MG, Rel. Ministro XXXXXX XXXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 08/03/2012.
10. Esta Corte já se manifestou no sentido de que "não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso, que dê ensanchas à responsabilidade civil. Ou seja, nem todo ato ilícito se revela como afronta aos valores de uma comunidade. Nessa medida, é preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. (REsp 1.221.756/RJ, Rel. Min. XXXXXXX XXXXX, DJe 10.02.2012).
11. A prática de venda casada por parte de operadora de telefonia é capaz de romper com os limites da tolerância. No momento em que oferece ao consumidor produto com significativas vantagens - no caso, o comércio de linha telefônica com valores mais interessantes do que a de seus concorrentes - e de outro, impõelhe a obrigação de aquisição de um aparelho telefônico por ela comercializado, realiza prática comercial apta a causar sensação de repulsa coletiva a ato intolerável, tanto intolerável que encontra proibição expressa em lei.
12. Afastar, da espécie, o dano moral difuso, é fazer tabula rasa da proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do consumidor.
13. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp 1397870/MG, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/12/2014, DJe 10/12/2014) – grifo nosso.
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - EMPRESA DE TELEFONIA - PLANO DE ADESÃO - LIG MIX - OMISSÃO DE INFORMAÇÕES RELEVANTES AOS CONSUMIDORES - DANO MORAL COLETIVO - RECONHECIMENTO - ARTIGO 6º, VI, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - PRECEDENTE DA TERCEIRA TURMA DESTA CORTE - OFENSA AOS DIREITOS ECONÔMICOS E MORAIS DOS CONSUMIDORES CONFIGURADA - DETERMINAÇÃO DE CUMPRIMENTO DO JULGADO NO TOCANTE AOS DANOS MATERIAIS E MORAIS INDIVIDUAIS MEDIANTE REPOSIÇÃO DIRETA NAS CONTAS TELEFÔNICAS FUTURAS - DESNECESSÁRIOS PROCESSOS JUDICIAIS DE EXECUÇÃO INDIVIDUAL - CONDENAÇÃO POR DANOS MORAIS DIFUSOS, IGUALMENTE CONFIGURADOS, MEDIANTE DEPÓSITO NO FUNDO ESTADUAL ADEQUADO.
1.- A indenização por danos morais aos consumidores, tanto de ordem individual quanto coletiva e difusa, tem seu fundamento no artigo 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor.
2.-Já realmente firmado que, não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso. É preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie. (REsp. 1221756/RJ, Rel. Ministro XXXXXXX XXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/02/2012, DJe 10/02/2012).
3.- No presente caso, contudo restou exaustivamente comprovado nos autos que a condenação à composição dos danos morais teve relevância social, de modo que, o
julgamento repara a lesão causada pela conduta abusiva da ora Recorrente, ao oferecer plano de telefonia sem, entretanto, alertar os consumidores acerca das limitações ao uso na referida adesão. O Tribunal de origem bem delineou o abalo à integridade psico-física da coletividade na medida em que foram lesados valores fundamentais compartilhados pela sociedade.
4.- Configurada ofensa à dignidade dos consumidores e aos interesses econômicos diante da inexistência de informação acerca do plano com redução de custo da assinatura básica, ao lado da condenação por danos materiais de rigor moral ou levados a condenação à indenização por danos morais coletivos e difusos.
5.- Determinação de cumprimento da sentença da ação civil pública, no tocante à lesão aos participantes do "LIG- MIX", pelo período de duração dos acréscimos indevidos:
a) por danos materiais, individuais por intermédio da devolução dos valores efetivamente cobrados em telefonemas interurbanos e a telefones celulares; b) por danos morais, individuais mediante o desconto de 5% em cada conta, já abatido o valor da devolução dos participantes de aludido plano, por período igual ao da duração da cobrança indevida em cada caso; c) por dano moral difuso mediante prestação ao Fundo de Reconstituição de Bens Lesados do Estado de Santa Catarina; d) realização de levantamento técnico dos consumidores e valores e à operacionalização dos descontos de ambas as naturezas; e) informação dos descontos, a título de indenização por danos materiais e morais, nas contas telefônicas.
6.- Recurso Especial improvido, com determinação (n. 5 supra). (REsp. 1291213/SC, Rel. Ministro XXXXXX XXXXXX, TERCEIRA TURMA, julgado em 30/08/2012, DJe
25/09/2012 – grifo nosso).
DOS REQUISITOS PARA O DEFERIMENTO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA:
O fumus boni iuris se encontra configurado pela demonstração de lesão ao direito dos consumidores, consistente no reajuste abusivo da tarifa do transporte de trem urbano de 25%, gerando prejuízo aos usuários.
O periculum in mora se prende à patente prática abusiva adotada pela ré em descumprimento às regras do Direito do Consumidor. É sabido que o julgamento definitivo da pretensão só pode ocorrer depois de percorrido o regular caminho procedimental, que consome vários meses e até mesmo anos. Ocorre que, caso não haja intervenção do Poder Judiciário, milhões de consumidores virão a ser lesados pela conduta abusiva perpetrada pela ré, qual seja, o reajuste abusivo da tarifa do transporte ferroviário de 25%, de maneira irrazoável e desproporcional.
A situação ainda é mais grave quando se sabe que a questão atinge uma quantidade significativa de consumidores, que tem dificuldade de fazer valer os seus direitos, já que a maioria dos usuários que dependem do serviço se trata de população de baixa renda, que estão sendo impactados significativamente pela pandemia da COVID-19 e economicamente pelo reajuste aplicado.
IV) DOS PEDIDOS:
DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA
Ante o exposto, os autores requerem, LIMINARMENTE E SEM A OITIVA DA PARTE CONTRÁRIA, que seja determinado initio litis que a ré, no prazo de 48 horas, aplique o reajuste da tarifa sob o percentual do índice inflacionário do IPCA, a saber, 4,52%, praticando-se o valor máximo da tarifa do trem urbano para R$ 4,95 (quatro reais e noventa e cinco centavos).
DA TUTELA DEFINITIVA
Requer ainda o Ministério Público e a Defensoria Pública:
a) Após apreciado liminarmente e deferido, seja confirmado o pleito formulado em caráter liminar;
b) A citação da ré para que, querendo, apresentar contestação, sob pena de revelia;
c) Xxxx a ré condenada, em definitivo, a aplicar o reajuste da tarifa sob o percentual do índice inflacionário do IPCA, a saber, 4,52%, praticando-se o valor máximo da tarifa do trem urbano para R$ 4,95 (quatro reais e noventa e cinco centavos), sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais);
d) Xxxx a ré condenada a indenizar, da forma mais ampla e completa possível, os danos materiais e morais de que tenham padecido os consumidores, individualmente considerados, especialmente com a devolução dos valores cobrados em caso de incidência da nova tarifa, em virtude dos fatos narrados, a ser apurado em liquidação;
e) A condenação da ré a reparar os danos morais coletivos causados aos consumidores, considerados em sentido coletivo, no valor mínimo de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), cujo valor reverterá ao Fundo de Reconstituição de Xxxx Xxxxxxx, mencionado no art. 13 da Lei n° 7.347/85;
f) A publicação do edital ao qual se refere o art. 94, do CDC;
g) Xxxx condenada a ré ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios, a serem revertidos para o CEJUR- DPGE e para o Fundo Especial do Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro, através de depósito em conta veiculada de cada órgão.
Nos termos do art. 334, §5° do Código de Processo Civil, os autores, desde já, não manifestam oposição à realização de audiência de conciliação.
Protestam, ainda, o Ministério Público e Defensoria Pública, pela produção de todas as provas em direito admissíveis, notadamente a documental, sem prejuízo da inversão do ônus da prova previsto no art. 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
Dá-se à causa, por força do disposto no artigo 291 do Código de Processo Civil, o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
Rio de Janeiro, 24 de junho de 2021.
XX XXXXX
Assinado de forma digital por XXXXXXXX XXXXXX XX XXXXX
VINICIUS WINTER
LIMA:074910757 LIMA:07491075703
03
Dados: 2021.06.24
10:58:04 -03'00'
XXXXXXXX XXXXXX XX XXXXX XXXX | XXXXXXX XXXX XX XXXXXXX | XXXXXX XXXXXXX |
PROMOTOR DE JUSTIÇA | TOSTES | DEFENSOR PÚBLICO |
5ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva | DEFENSOR PÚBLICO | SUBCOORDENADOR NUDECON |
de Defesa do Consumidor da Capital MAT. 3245 | COORDENADOR DO NUDECON MAT. 969.598-2 | MAT. 949.573-0 |