O (NOVO) REGIME DA DIVISÃO (ARTIFICIOSA) DE CONTRATOS EM LOTES SEPARADOS, CONSTANTE DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS
O (NOVO) REGIME DA DIVISÃO (ARTIFICIOSA) DE CONTRATOS EM LOTES SEPARADOS, CONSTANTE DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS
Xxxx Xxxxx Xxxxxxx
Advogado (*)
O (novo) regime da divisão (artificiosa) de contratos em lotes separados, constante do código dos contratos públicos
Excepto quando são aplicáveis critérios materiais específicos, os órgãos decisores das entidades adjudicantes, na escolha do procedi- mento pré-contratual adequado às necessidades das suas compras públicas, estão condicionados pelo valor do contrato a celebrar. Com efeito, para contratos de pequena monta, a lei permite a utilização de procedimentos de ajuste directo. Já para contratos acima de um determinado valor, apenas são admitidos procedimentos com publici- dade e apelo à concorrência de mercado, sendo que acima de um montante tido como de interesse para o mercado interno da União Europeia, o lançamento de um procedimento pré-contratual carece de publicidade internacional no Jornal Oficial da União Europeia. Neste artigo, o autor procura reflectir sobre a problemática da divi- são (artificiosa) de contratos em lotes separados levada a cabo pelos órgãos decisores das entidades adjudicantes com vista a furtarem-se à aplicação das regras da escolha do procedimento em função do valor do contrato, dedicando especial atenção à valoração e concreti- zação de conceitos vagos e indeterminados constantes do (novo) regi- me previsto no artigo 22.º do Código dos Contratos Públicos e à sua articulação sistemática com o restante Código.
The (new) regime of (artificial) splitting of contracts in separate lots, foresseen in the portuguese public contracts’ code
Except when material criteria are applicable, the selection, by the competent bodies of the awarding entities, of public tendering proce- dures adequate to their necessities is limited by the value of the con- tracts to be concluded. In fact, concerning low value contracts, the Portuguese law allows the selection of direct awarding procedures (ajuste directo). However, regarding contracts with values higher than certain thresholds, only publicised tendering procedures open to mar- ket competition are legally allowed. Furthermore, above certain thresholds considered to be of interest to the European Union internal market, the launching of a public tendering procedure requires inter- national publicity in the European Union Official Journal. In this article, the author reflects on the subject of artificial splitting of con- tracts carried out by the bodies of awarding entities in order to avoid compliance with the binding rules of selection of tendering procedures according to the criteria of the value of the contract. Special attention is given to the assessment and determination of the vague and inde- terminate concepts established in the (new) regime foreseen in article 22 of the Portuguese Public Contracts Code and its relation to the remaining sections of the Code.
1 · INTRODUÇÃO
Considere-se a seguinte situação: uma empresa pública, sujeita ao âmbito de aplicação do Código dos Contratos Públicos 1 (doravante, «CCP»), deci- de lançar um programa de modernização de vários edifícios públicos localizados na área metropolitana de Lisboa e, para tal, decide contratar, em simultâ- neo, diversos empreiteiros através de distintos pro- cedimentos de ajuste directo 2. Será válida a decisão de dividir este programa em vários contratos, de valor reduzido, um por edifício ou um por tipolo- gia de trabalho, e, consequentemente, será válida a decisão de seleccionar vários empreiteiros através
* Advogado do Departamento de Direito Público da Uría Menéndez - Proença de Carvalho (Lisboa).
1 Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro.
2 A situação é apresentada no pressuposto de que o valor de cada empreitada é inferior ao limite máximo para a escolha do procedimento de ajuste directo em função do critério do valor do contrato, nos termos do disposto no artigo 17.º e seguintes do CCP, e de que não estão em causa critérios materiais de ajuste directo, nos termos do disposto no artigo 23.º e seguintes do CCP.
de procedimentos de ajuste directo? No caso de o valor total do referido programa de modernização de edifícios superar o limiar de aplicação das direc- tivas da União Europeia sobre contratação pública, será ainda válida a decisão de escolha de um proce- dimento pré-contratual não concorrencial sem publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia (doravante, «JOUE»), em resultado da enunciada divisão?
Como é possível observar pela situação acima apre- sentada, o tema da divisão (artificiosa) de contratos em vários lotes, hoje tratado no ordenamento jurí- dico português no artigo 22.º (Divisão em lotes) do CCP, levanta múltiplas interrogações sistemáticas, particularmente complexas quando confrontamos o enunciado artigo com as regras de escolha do pro- cedimento pré-contratual em função do valor do contrato.
Não tendo sido substancialmente estudado pela doutrina portuguesa nem tão pouco abordado com relevância pelos nossos tribunais, e considerando, por outro lado, que o artigo 22.º do CCP é uma disposição de interpretação especialmente comple- xa que carece de um esforço de concretização, deci-
dimos reflectir sobre o enunciado tema da divisão de contratos em lotes separados, procurando dar resposta às várias questões que se colocam na inter- pretação do referido artigo, com especial enfoque na valoração e concretização de conceitos jurídicos indeterminados aí previstos e na sua articulação com o regime da escolha do procedimento pré- contratual em função do valor do contrato.
2 · EVOLUÇÃO HISTÓRICA E FUNDAMENTOS DA DIVISÃO EM LOTES
A problemática da divisão em lotes, no Direito da União Europeia, remonta ao n.º 2 do artigo 7.º da Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 19713, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de empreitadas de obras públicas. A referida disposição, de natureza proibitiva, preten- dia acautelar que, por meio de uma divisão artifi- ciosa de um projecto de empreitada em múltiplos lotes, as entidades adjudicantes se furtassem à apli- cação das regras previstas na Directiva —em espe- cial, a obrigatoriedade de publicidade internacional dos contratos—, já que esta apenas se aplicava a contratos acima de um determinado valor 4.
Posteriormente, a Directiva 77/62/CEE do Conse- lho, de 21 de Dezembro de 1976, relativa à coorde- nação dos processos de celebração de contratos de fornecimento de direito público, acrescentou à mera proibição de divisão artificiosa de contratos
3 O artigo 7.º da Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971 refere o seguinte:
«Artigo 7. º
1. As disposições dos títulos II , III e IV bem como as do artigo 9.º são aplicáveis, nas condições previstas no artigo 5.º, aos contratos de empreitada de obras públicas cujo montante previsto atinja ou exceda
1.000.000 de unidades de conta .
2. Nenhuma empreitada pode ser dividida com vista a subtraí-la à aplicação do presente artigo».
4 A Directiva 70/32/CEE da Comissão, de 17 de Dezembro de
1969, relativa aos fornecimentos de produtos aos Estados, colectividades territoriais e outras pessoas colectivas de direito público (considerada como a primeira directiva sobre contrata- ção pública) e, posteriormente, a Directiva 71/304/CEE do Con- selho, de 26 de Julho de 1971, relativa à supressão de restrições à livre prestação de serviços no domínio dos contratos de empreitada de obras públicas e à adjudicação de empreitadas de obras públicas por intermédio de agências ou sucursais, não continham regras procedimentais ou de publicidade comunitá- ria obrigatória mas, tão só, normas que visavam abolir as restri- ções discriminatórias em razão da nacionalidade existentes a nível legal, administrativo ou regulamentar nos Estados Mem- bros. Não existindo um limiar de aplicação definido pelo valor do contrato, não era assim necessária qualquer norma relativa à divisão em lotes.
em lotes separados uma disposição de concretiza- ção objectiva (o n.º 3 do artigo 5.º 5) que previa a obrigatoriedade de consideração de todos os lotes
—num projecto de aquisição de fornecimentos homogéneos— para efeitos de cálculo do valor do fornecimento. Com esta disposição, o legislador comunitário veio não só tornar mais claro o regime então em vigor como também reconhecer que a divisão de contratos em lotes separados —desde que cumpridas as regras de publicidade, quando aplicáveis, e, nessa medida, garantido o convite à concorrência de mercado—, constitui uma legítima opção das entidades adjudicantes, já que a sua uti- lização pode ter por fundamento a própria promo- ção da concorrência, o favorecimento de pequenas e médias empresas, o favorecimento de empresas regionais ou locais 6 ou a própria racionalidade ou exequibilidade de um projecto 7 e 8.
5 O artigo 5.º da Directiva 77/62/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1976 dispõe o seguinte:
«Artigo 5.º
1. a) Os títulos II , III e IV bem como o artigo 6.º são aplicados de acordo com o preceituado no artigo 4.º, aos contratos de fornecimen- to de direito público cujo montante estimado líquido do IVA é igual ou ultrapasse 200.000 unidades de conta europeias; (...)
3. Ǫuando uma projectada aquisição de fornecimentos homogéneos puder levar a que sejam adjudicados, simultaneamente, fornecimen- tos por lotes separados, o valor estimado da totalidade desses lotes deve ser tomado como base para a aplicação do n.º 1.
4. Nenhum projecto de aquisição de uma certa quantidade a fornecer pode ser cindido tendo em vista subtraí-la à aplicação do presente artigo».
6 Considere-se o seguinte exemplo: o Estado Português lança
um programa de reabilitação de edifícios públicos do seu domí- nio privado. Se na configuração do programa o Estado decidir contratar apenas uma entidade, estará a favorecer exclusiva- mente grandes empresas, pois apenas estas terão a dimensão e a capacidade técnica e financeira para suportar várias obras a decorrer em simultâneo, espalhadas por diversos pontos do país. Já se o Estado dividir a empreitada por lotes, um por cada imóvel ou por regiões, estará a possibilitar a participação de empresas locais ou regionais, de menor dimensão, permitindo assim uma melhor repartição dos benefícios económicos da sua despesa.
7 Em determinados projectos de infra-estruturas de grande complexidade que envolvem, normalmente, fortes componen- tes tecnológicas e grande capacidade de investimento e absor- ção de risco pelos operadores privados, a divisão em lotes pode ser a única forma de a entidade adjudicante despertar o interes- se do mercado, já que o fraccionamento pode ajudar a mitigar os riscos dos projectos.
8 O Code des Marchés Publics prevê, no seu artigo 10.º (L’Allotissement), uma disposição específica a habilitar as entida- des adjudicantes a determinarem livremente o número de lotes num projecto de compras públicas, afim de suscitar maior con- corrência de mercado. Vide, com anotações específicas ao arti- go 10.º, LLORENZ, Xxxxxxxx, e XXXXX-XXXXXXXX, Pierre: Code des Marchés Publics. Litec, 2010. Vide, igualmente em anotação ao artigo 10.º, MÉNÉMÉNIS, Xxxxx: Code des Marchés et autres contracts. Dalloz, 2010.
Por fim, foi com a Directiva 89/440/CEE do Conse- lho, de 18 de Junho —que procedeu à alteração da referida Directiva 71/305/CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971—, que se delineou a arquitectura do regime da divisão em lotes que perdurou até aos dias de hoje —constando ainda das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março (doravan- te, «Directiva 2004/17/CE» e «Directiva 2004/18/ CE»), respectivamente, nos artigos 17.º e 9.º.
A Directiva 89/440/CEE, revogando o referido arti- go 7.º da Directiva 71/305/CEE e aditando um arti- go 4.ºA 9, veio não só estabelecer a proibição da divisão fraudulenta e a obrigatoriedade da conside- ração de todos os lotes para efeito de cálculo do valor da empreitada, nos termos das referidas Directivas 71/305/CEE e 77/62/CEE, como, tam- bém, introduzir um elemento de flexibilização. As entidades adjudicantes passaram assim a estar dis- pensadas de aplicar a Directiva relativamente a vin- te por cento do total dos lotes respeitantes ao mes- mo projecto de empreitada, desde que o valor de cada lote calculado sem IVA, dentro dos referidos vinte por cento, fosse inferior a um milhão de ecus 10.
Poderá então concluir-se que, a nível da União Europeia, o regime jurídico da divisão em lotes resulta, do ponto de vista prático, da necessidade de garantir a aplicabilidade das próprias directivas sobre contratação pública. Já do ponto de vista dos princípios, tal regime, ao assegurar a publicidade internacional no JOUE para contratos acima de
9 O artigo 4.º-A, introduzido na redacção da Directiva 71/305/ CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971 pela Directiva 89/440/ CEE do Conselho, de 18 de Junho, refere o seguinte:
«Artigo 4.ºA
1. O disposto na presente directiva é aplicável aos contratos de emprei- tada de obras públicas cujo montante, calculado sem IVA, seja igual ou superior a 5.000.000 de ecus. (...)
3. Ǫuando uma obra se encontrar dividida em vários lotes, sendo cada um deles objecto de um contrato, o valor de cada lote deverá ser tido em consideração na avaliação do montante referido no n.º 1. Ǫuando o valor cumulativo dos lotes igualar ou ultrapassar o montante indica- do no n.º 1, o disposto nesse número aplica-se a todos os lotes. As entidades adjudicantes podem derrogar a aplicação do n.º 1 para os lotes cujo valor calculado sem IVA seja inferior a 1.000.000 de ecus, desde que o montante cumulativo desses lotes não exceda 20% do valor cumulativo dos lotes.
4. As obras e os contratos não podem ser divididos no propósito de os subtrair à aplicação dos números precedentes (...)».
10 Este elemento de flexibilização só poderá traduzir, quanto a
nós, uma válvula de escape criada pelo legislador da União Europeia para os Estados Membros favorecerem as suas empre- sas nacionais ou locais.
determinado valor, procura salvaguardar as liberda- des de prestação de serviços e estabelecimento e, simultaneamente, o princípio da não discriminação entre proponentes de diferentes Estados-Membros. Conclui-se também que, consciente da limitação provocada aos Estados-Membros com esta opção, o legislador comunitário permitiu alguma flexibilida- de dentro do instituto da divisão em lotes.
Já no direito nacional, não diferindo muito quanto aos princípios que visa salvaguardar, a norma da divisão em lotes surgiu, do ponto de vista prático, associada aos regimes da escolha de procedimentos contratuais em função do critério do valor do con- trato 11 e ao regime de autorização de despesa pública 12.
No que diz respeito à transposição para a ordem jurídica portuguesa do supra mencionado regime da União Europeia de divisão em lotes, esta ocor- reu, primeiramente, com o Decreto-lei n.º 396/90, de 11 de Dezembro, respeitante às empreitadas de obras públicas, e consistiu numa mera transposição literal do referido artigo 4.º-A da Directiva 71/305/ CEE do Conselho, de 26 de Julho de 1971. Já quanto aos fornecimentos e aquisições de serviços, a transposição só veio a ocorrer com o artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março.
Em síntese, poderíamos dizer que o regime da divi- são em lotes, hoje disposto no artigo 22.º do CCP, resulta da transposição de normas das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE e do esforço de codifica- ção do legislador português, nomeadamente, na unificação dos vários regimes de empreitada de obras públicas, de fornecimentos e de prestação de serviços, e visa, por um lado, assegurar a aplicabili- dade das directivas da União Europeia, promoven- do a publicidade internacional dos contratos e, nes- sa medida, a transparência e as liberdades de prestação de serviços e de estabelecimento no mer- cado único de compras públicas, e, por outro lado,
11 Cfr. os artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 48 234, de 31 de Janeiro de 1968, os artigos 4.º e 5.º do Decreto-Lei n.º 211/79, de 12 de Julho, o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março, os artigos 80.º e 81.º do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho, e o artigo 48.º do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março.
12 Os sucessivos regimes de realização de despesa pública (Decreto-Lei n.º 41 375, de 19 de Novembro de 1957, Decreto- Lei n.º 211/79, de 12 de Junho, o Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março e o Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho) sempre previram o princípio do não fraccionamento ou da unidade da despesa. A propósito do princípio do não fraccionamento ou da unidade da despesa, vide o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03-11-2005, Processo 01377/03.
assegurar o cumprimento do princípio da unidade da despesa pública e das regras internas da escolha do procedimento em função do valor do contrato.
3 · DIVISÃO EM LOTES NO CCP
3.1 · Do princípio subjacente à norma da divisão em lotes
O princípio subjacente ao artigo 22.º do CCP determina que na presença de vários lotes susceptí- veis de constituírem objecto de um único contrato deverá aplicar-se a cada um o procedimento que
—pelas regras da escolha do procedimento em fun- ção do valor— resultar da soma do valor de todos os lotes 13. Assim, cabe, antes de mais, compreender em que circunstâncias vários lotes são susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato para podermos então determinar a amplitude do soma- tório que nos levará à escolha do procedimento legalmente possível face à pretensão contratual da entidade adjudicante.
Dada a complexidade que envolve a interpretação do artigo 22.º do CCP, tendo por base uma interpre- tação conforme 14 às Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE e a jurisprudência do Tribunal de Jus- tiça da União Europeia (doravante, «TJUE»), procu- raremos de seguida, com a objectividade possível, valorar e concretizar os conceitos indeterminados constantes do referido artigo 15.
3.2 · Dos elementos interpretativos objectivos do n.º 1 do artigo 22.º do CCP
Como ponto prévio, refira-se que estão excluídos do escopo do artigo 22.º do CCP todos os lotes que sejam susceptíveis de ser adjudicados no âmbito de um procedimento escolhido em função de critérios
13 Cfr. XXXXXXX XX XXXXX, Xxxxx: Código dos Contratos Públi- cos - Comentado e anotado. Xxxxxxxx, 0000, ponto 2, p. 117. Cfr., igualmente, XXXXXX XXXXXXX, Xxxxxxx, e XXXXXXXX XXXXX, Nuno: Código dos Contratos Públicos, Regime da Contra- tação Pública - Comentado. Almedina, 2009, ponto I, p. 155.
14 Sobre a interpretação conforme ao Direito da União Euro- peia, vide QUADROS, Fausto de: O Direito da União Europeia. Almedina, 2004, p.488. Cfr., igualmente, XXXXXX XXXXXXXXX, Xxxxxx: Direito Comunitário. Almedina, 2001, p. 207.
15 A propósito da valoração e concretização de conceitos vagos e indeterminados, vide, XXXXX XX XXXXX, Xxxxxxxx: O (défice de) controlo judicial da margem de livre decisão administrativa. Lex, Lisboa 2008, p. 150 e seguintes.
materiais. Atendendo ao que acima se referiu quan- to aos fundamentos do regime da divisão em lotes, a ratio do artigo 22.º do CCP fica esvaziada se na base da escolha do procedimento estiver um crité- rio material. De resto, é já a solução que resulta do disposto no próprio artigo 18.º do CCP ao sobre- por os critérios materiais de escolha de procedi- mentos pré-contratuais ao critério do valor do con- trato.
Analisemos então os dois conceitos vagos e indeter- minados fundamentais deixados pelo legislador interno no artigo 22.º do CCP 16:
(i) «prestações do mesmo tipo»; e
(ii) «susceptíveis de serem objecto de um único contrato».
Desde logo, cabe concretizar o que se entende por
«prestações do mesmo tipo». A correcta interpreta- ção, quanto a nós, é a que determina o conceito
«prestações do mesmo tipo» por referência ao tipo- contratual. Se, ao invés, se atender à natureza concreta das prestações dentro do tipo contratual
—numa interpretação meramente literal do n.º 1 do artigo 22.º do CCP—, estaremos a incorrer numa interpretação desconforme às Directivas, senão vejamos.
O n.º 5 do artigo 9.º da Directiva 2004/18/CE e o n.º 6 do artigo 17.º da Directiva 2004/17/CE refe- rem-se, expressamente, a tipos contratuais:
(i) «uma obra prevista»; ou
(ii) «um projecto de aquisição de serviços»; ou
(iii) «uma proposta para a aquisição de forneci- mentos similares».
Por outro lado, atender à natureza concreta de cada prestação, implicaria limitar o escopo de previsão do artigo 22.º do CCP. Note-se que dentro de cada tipo contratual podemos ter prestações de diferente natureza. O tipo contratual empreitada de obras públicas, habitualmente, inclui prestações de empreitada, em sentido estrito, mas também de for- necimento e de prestação de serviços. Uma inter- pretação meramente literal do conceito «prestações
16 Note-se que os conceitos vagos e indeterminados utilizados pelo legislador nacional, «prestações do mesmo tipo» e «suscep- tíveis de serem objecto de um único contrato», não são, como veremos, semelhantes aos conceitos utilizados no n.º 6 do arti- go 17.º da Directiva 2004/17/CE e n.º 5 do artigo 9.º da Directi- va 2004/18/CE.
do mesmo tipo» permitiria à entidade adjudicante, no limite, fraccionar o tipo contratual em função da natureza concreta de cada uma das prestações, o que levaria, por exemplo, a que num projecto de empreitada a entidade adjudicante não consideras- se o valor dos fornecimentos para o somatório do valor do contrato 17. Esta solução seria, ainda mais, contrária ao artigo 17.º n.º 3 do CCP que dispõe, precisamente, que o valor dos contratos de emprei- tada de obras públicas incluem os bens móveis necessários à sua execução e os bens que entidade adjudicante ponha à disposição do adjudicatário.
Conclui-se, assim, que —sendo por demais eviden- te—, o conceito de «prestações do mesmo tipo» refere-se a prestações do mesmo tipo contratual.
De seguida, devemos concretizar o que, objectiva- mente, se entende por «susceptibilidade de consti- tuir objecto de um único contrato». Perante a difi- culdade de interpretação deste conceito vago e indeterminado, devemos desde logo, procurar fazer uma interpretação conforme ao Direito da União Europeia.
Ora, para o legislador da União Europeia, o critério base para o cálculo do valor relevante para efeitos de aplicação das Directivas, no caso de divisão em lotes, é o critério funcional, por referência à defini- ção do tipo contratual em causa 18. Já o legislador nacional criou uma norma abstracta, aplicável a todos os tipos contratuais. Vejamos então as nor- mas previstas nas Directivas.
No caso das empreitadas de obras públicas, o legis- lador comunitário preenche o critério funcional, por referência à seguinte definição de «obra» 19: «Por obra entende-se o resultado de um conjunto de tra-
17 Sobre o conceito de empreitada, vide o Acórdão do TJUE de 18 de Janeiro de 2007, «Xxxx Xxxxxx e outros contra Comune de Roanne», Processo C-220/05.
18 Cfr. Acórdão do TJUE, de 5 de Outubro de 2000, «Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa», Proces- so C-16/98: «a fim de decidir da existência de uma cisão artificial entre contratos de uma obra única, na acepção do artigo 14.º n.º 13 da Directiva 93/38/CEE, relativa à coordenação dos processos de celebração de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações, essa disposição deve ser tomada em consideração conjuntamente com a do n.º 10, pri- meiro parágrafo, deste artigo. A este propósito, resulta da defi- nição de obra que figura no artigo 14.º n.º 10, primeiro parágra- fo, segundo período, da Directiva 93/98, que a existência de uma obra deve ser apreciada relativamente às funções económica e técnica do resultado dos trabalhos em causa».
19 Cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º das Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE.
balhos de construção ou engenharia civil destinado a desempenhar, por si só, uma função económica e técnica». Ou seja, nas empreitadas de obras públi- cas, existindo uma divisão em lotes, o relevante para efectuar o somatório que vai determinar a aplicação da Directiva, é saber se os vários lotes desempe- nham a mesma função económica e técnica20.
20 Neste sentido, vide o Acórdão do TJUE, de 5 de Outubro de 2000, «Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa», Processo C-16/98. Neste Xxxxxxx, estava em causa um conjunto de trinta e sete contratos de obras públicas relati- vos a trabalhos de electrificação e iluminação pública, a realizar ao longo de um período de três anos no departamento francês de Vendeia. Dos trinta e sete contratos —a que correspondiam diversas entidades locais— de valor total de 609.000.000 FRF, 483.000.000 FRF diziam respeito às empreitadas de electrifi- cação e 126.000.000 FRF às empreitadas de iluminação públi- ca. Todo o processo foi promovido e coordenado pelo Syndicat départemental d’électrification de la Vendeé ou SYDEV, organis- mo que reúne, a nível departamental, os diferentes serviços intercomunais de electrificação.
O SYDEV enviou para publicação no Bulletin officiel des annonces des marchés publics ou BOAMP anúncios relativos aos trinta e sete pro- cedimentos, todavia, para o Jornal Oficial das Comunidades Euro- peias enviou apenas seis anúncios relativos às maiores empreitadas de electrificação. «A Comissão Europeia considerou que as trinta e sete empreitadas constituíam lotes de uma única obra, cuja iniciativa pertencia a uma única entidade adjudicante, isto é, o SYDEV, e que deveriam ter sido globalmente submetidos, e não apenas os seis prin- cipais, às regras da directiva. Consequentemente, enviou às autorida- des francesas, em 17 de Janeiro de 1996, uma notificação de incum- primento, na qual punha em causa a cisão dos lotes em empreitadas diferentes, a falta de publicação comunitária em relação a dois terços dos lotes e a utilização de uma fórmula derivada do processo de aber- tura permanente à concorrência em relação ao qual a Comissão já tinha desencadeado outro processo de infracção».
O TJUE considerou, in casu, o seguinte: «uma rede de distribuição de electricidade destina-se, do ponto de vista técnico, a transportar a electricidade produzida por um fornecedor ao consumidor final; este último é, no plano económico, obrigado a pagar ao fornecedor em função do seu consumo. Em contrapartida, uma rede de iluminação pública destina-se, do ponto de vista técnico, a iluminar locais públicos utilizando, para o efeito, a energia eléctrica facultada pela rede de distribuição de electricidade. A autoridade assegura a iluminação jun- to da população beneficiada, sem calcular os montantes exigidos em função da utilidade que o serviço apresenta para as pessoas em causa. Daqui resulta que uma rede de distribuição de electricidade e uma rede de iluminação pública tem funções económicas e técnicas dife- rentes (...) e que os trabalhos relativos a tais redes não podem ser considerados lotes de uma obra única cindida artificialmente em infracção aos artigos 14.º n.º 10 primeiro parágrafo, e n.º 13 da direc- tiva».
Já quanto à cisão da obra no que respeita concretamente aos trabal-
hos de electrificação, o Tribunal de Justiça considerou o seguinte: existiam «elementos importantes, como a simultaneidade do lança- mento das empreitadas controvertidas, a semelhança entre os anún- cios de concurso, a unidade do quadro geográfico no interior do qual essas empreitadas foram lançadas e a coordenação assegurada pelo SYDEV, organismo que reúne os serviços intercomunais de electrifi- cação a nível departamental, que militam a favor do agrupamento das referidas empreitadas a este nível». Assim, o Tribunal decidiu acolher a acusação da Comissão Europeia baseada na cisão artificial das empreitadas de electrificação.
No caso dos contratos de fornecimento, o legisla- dor comunitário refere-se a «fornecimentos similares» 21, reportando-se à seguinte definição:
«são contratos públicos que não os abrangidos pela alínea b) 22, que têm por objecto a compra, a loca- ção financeira, a locação ou a locação-venda, com ou sem opção de compra, de produtos».
Já os contratos públicos de serviços são definidos pela negativa e por remissão para os anexos das directivas, designadamente, no caso da Directiva 2004/18CE 23: «Contratos Públicos de serviços são contratos públicos que não sejam contratos de empreitada de obras públicas ou contratos públicos de fornecimento, relativos à prestação de serviços mencionados no anexo II». Neste caso, para aferir se estamos perante serviços susceptíveis de consti- tuir objecto de um único contrato, devemos repor- tar-nos às categorias de serviços referidas no Anexo II da Directiva 2004/18/CE e no Anexo XVII da Directiva 2004/17/CE. Será difícil prever uma cir- cunstância em que contratos que caiam em catego- rias diferentes dos referidos anexos possam ser agregados num mesmo contrato 24.
Assim, do nosso ponto de vista, fazendo uma inter- pretação conforme ao Direito da União Europeia, no âmbito do artigo 22.º do CCP, são susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato:
(i) As obras que desempenhem a mesma «fun- ção técnica e económica»;
(ii) Os «fornecimentos similares»;
(iii) As prestações de serviços referentes à mes- ma categoria.
Sendo o elemento funcional, quanto a nós, o mais importante na valoração e concretização do concei- to vago e indeterminado «susceptibilidade de serem objecto de um único contrato», cumpre sublinhar que a sua consideração isolada torna a interpretação insuficiente pois poderá ceder peran- te uma análise conjunta com outros elementos objectivos de apreciação casuística, nomeadamente,
21 Cfr. alínea b) do n.º 5 do artigo 9.º da Directiva 2004/18/CE e alínea b) do n.º 6 do artigo 17.º da Directiva 2004/17/CE.
22 A alínea b) refere-se a contratos de empreitada de obras públicas.
23 Cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 1.º das Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE, em tudo semelhantes, excepto na referência ao anexo.
24 Neste sentido, XXXXX, Xxxxxx: Getting to the grips with aggregation under the E.C. public procurement rules, Public Pro- curement Law Review. 1993, p. 5 e seguintes.
a área geográfica em causa e a sua influência nos agentes do mercado e / ou a interdependência25 dos lotes, ou mesmo perante elementos subjectivos.
3.3 · Dos elementos interpretativos subjectivos do n.º 1 do artigo 22.º do CCP
Aparentemente, poderia afirmar-se que seriam sus- ceptíveis de constituir objecto de um único contra- to os projectos de obra ou aquisição de serviços ou fornecimentos que resultassem da iniciativa da mesma entidade adjudicante —desde que verifica- dos os enunciados elementos objectivos de inter- pretação. Todavia, quanto a nós, tal não se afigura adequado.
Desde logo, no Estado, os ministérios e respectivas secretarias-gerais, as direcções-gerais ou serviços com autonomia administrativa e financeira podem fazer, de forma independente, as suas aquisições de obras, de fornecimentos e serviços. O mesmo pode suceder no interior de qualquer outra entidade adjudicante. Como tal, quanto a nós, o elemento subjectivo base que determina a extensão do referi- do somatório deverá ser, não o conceito de entida- de adjudicante, mas sim —partindo de um patamar inferior— o conceito de órgão com competência para a escolha do procedimento, nos termos do artigo 38.º do CCP 26. Não faria sentido que a deci- são sobre o procedimento a adoptar numa direc- ção-geral de um determinado ministério tivesse de ter em conta as adjudicações ou procedimentos em curso em todos os outros ministérios do Estado, só por estar em causa a mesma entidade adjudicante.
25 O TJUE, referiu o seguinte nos pontos 69 e 70 do citado Acórdão de 5 de Outubro de 2000, «Comissão das Comunida- des Europeias contra República Francesa», Processo C-16/98:
«69. Importa sublinhar, a este propósito, que, diversamente de uma rede de distribuição de electricidade, as redes de iluminação pública não são, do ponto de vista técnico, necessariamente interdependentes, uma vez que podem ser limitadas às zonas construídas e que não se impõe a existência de uma interconexão entre elas. Do mesmo modo, no plano económico, é possível que cada uma das entidades locais em causa suporte o encargo financeiro que resulta da exploração de tal rede. Tendo em conta estes elementos, cabia à Comissão demonstrar que, dos pontos de vista técnico e económico, as redes de iluminação pública em causa revestiam carácter unitário a nível departamental. Ora, a Comissão não apresentou nenhum elemento nesse sentido.
70. Daqui decorre que, mesmo se as funções económica e técnica de cada rede de iluminação pública são as mesmas que as de todas as outras no departamento de Vendeia, não é possível considerar que todas essas redes formam um conjunto com funções económicas e técnicas únicas a nível departamental».
26 Cfr., a este propósito, XXXXX, Xxxxxx, op. cit., ponto 4 (b),
p. 7 e 8.
Não obstante, cumpre salientar que este critério é falível pois não pode ser visto de forma isolada. Considere-se o caso de várias empreitadas de obras públicas lançadas em simultâneo por vários servi- ços do mesmo ministério, cujas obras têm mesma função técnica e económica. Pode vir a considerar- se que estas empreitadas correspondem a uma úni- ca «obra», e, consequentemente, que o valor rele- vante para a escolha do procedimento é o da soma de todas elas 27. Quanto a nós, estando em causa um projecto de compras públicas com envolvimen- to de várias entidades adjudicantes ou vários órgãos decisores da mesma entidade adjudicante, o aspec- to determinante para aferir, in casu, se estamos pe- rante uma divisão artificiosa de um contrato —veri- ficados os enunciados elementos objectivos— é a existência de uma iniciativa a nível superior ou de uma coordenação entre entidades 28.
De outro passo, na interpretação do conceito «sus- ceptibilidade de vários lotes serem objecto de um único contrato» não podem deixar de ser tidos em conta elementos sobre a intencionalidade da con- duta do agente decisor 29.
27 Cfr. pontos 39 a 46 do Acórdão do TJUE, de 5 de Outubro de 2000, «Comissão das Comunidades Europeias contra Repú- blica Francesa», Processo C-16/98. No ponto 45, o Tribunal refere o seguinte: «é concebível que, por motivos de natureza administrativa ou outra, um programa de trabalhos destinado à realização de uma obra na acepção da directiva possa ser objecto de diversos procedimentos de concurso, cuja iniciativa caiba a diferentes entidades adjudicantes. Tal poderia ser o caso, por exemplo, da construção de uma estrada que atravessasse o terri- tório de várias autarquias locais, cabendo a cada uma a respon- sabilidade administrativa sobre uma parte da estrada. Em tal hipótese, o objecto acima mencionado não seria alcançado se a aplicação da directiva fosse excluída com o fundamento de que o valor calculado de cada parte da obra é inferior ao limiar de
5.000.000 de ecus».
28 Como «iniciativa a nível superior» poderá considerar-se uma determinação ou orientação decorrente do exercício de um poder hierárquico ou de superintendência. Como «coordenação entre entidades» poderá considerar-se um contrato entre enti- dades adjudicantes ou um protocolo celebrado entre serviços da mesma entidade adjudicante —por exemplo, um protocolo entre diversos Ministérios ou direcções gerais.
29 Nos pontos 36 e 37 das Conclusões do Advogado-geral Jacobs, apresentadas em 24 de Fevereiro de 2000, respeitantes ao Processo, C-16/98 «Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa», refere-se o seguinte:
«36. O artigo 14.º n.º 10, apresenta critérios puramente objectivos, com base nos quais a aplicabilidade da directiva poder ser determi- nante. A noção de «obra» é definida e, é o valor total dessa obra, obtida, se for caso disso, somando o valor de cada lote resultante da eventual divisão da obra, que determina a obrigação de sujeição às disposições da directiva.
37. O artigo 14.º n.º 13, introduz, por sua vez, um elemento subjectivo. Refere o facto de «subtrair-se» à aplicação da directiva através de cer- tos meios, concretamente, cindindo os contratos ou utilizando regras
Por fim, outro possível elemento subjectivo de con- cretização consiste na capacidade de resposta dos operadores de mercado às solicitações contratuais das entidades adjudicantes. Isto é, poderá questio- nar-se se vários lotes funcionalmente ligados são susceptíveis —todos juntos num único contrato— de despertar o interesse de um operador económico privado, em termos de dimensão e risco. Este crité- rio é, quanto a nós, de duvidosa utilidade e aplica- ção já que radica numa apreciação meramente sub- jectiva pela entidade adjudicante sobre a capacidade dos operadores de mercado. Ainda que a jusante da adjudicação este critério possa constituir um indício de que numa situação concreta não existiu uma cisão fraudulenta de um projecto de obra ou aquisi- ção de fornecimentos ou serviços, a montante nun- ca poderá, isoladamente, ser considerado como fundamento razoável para a entidade adjudicante se furtar à utilização de procedimentos concorrenciais ou à publicação de um anúncio no JOUE 30.
3.4 · Elementos temporais na interpretação do artigo 22.º do CCP
Compreendidos os dois pontos anteriores, é já pos- sível definir em que circunstâncias «prestações do mesmo tipo» são «susceptíveis de constituírem objecto de um único contrato». Resta-nos assim compreender o espaço temporal que baliza o soma- tório dos preços contratuais. Resulta da interpreta- ção das alíneas a) e b) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 22.º do CCP, que o período de referência máximo
especiais de cálculo do valor dos contratos. Essa redacção implica um grau de intenção na conduta seguida. Subtrair-se, tal como os concei- tos equivalentes utilizados nas outras versões linguísticas, pressupõe uma conduta deliberada, mais do que uma evasiva fortuita. A cisão dos contratos, tal como a utilização de regras especiais de cálculo, necessita de uma certa intenção por parte da pessoa que assim proce- de».
30 O próprio Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 5 de Outu-
bro de 2000, «Comissão das Comunidades Europeias contra República Francesa», Processo C-16/98, colocou em descrédito este critério, ao referir, no já mencionado ponto 42: «Deve sublinhar-se que, embora a existência de uma única entidade adjudicante e a possibilidade de uma empresa da Comunidade realizar o conjunto dos trabalhos abrangidos pelas empreitadas em causa, possam, consoante as circunstâncias, constituir indícios que comprovam a existência de uma obra na acepção da directi- va, não podem, porém constituir critérios determinantes para este efeito. Assim, a pluralidade de entidades adjudicantes e a impos- sibilidade de realização do conjunto dos trabalhos por uma única empresa não são susceptíveis de pôr em causa a existência de uma obra quando esta conclusão se impõe em aplicação dos cri- térios funcionais definidos no artigo 14.º n.º 10, primeiro pará- grafo, segundo período da directiva».
para o somatório dos preços contratuais é um ano, incluindo os contratos já celebrados, os procedi- mentos em curso e as meras previsões de preços de contratos a celebrar 31. Assim, por exemplo, se a entidade adjudicante quiser lançar um procedi- mento para a aquisição de um determinado equipa- mento, a escolha do procedimento segundo o crité- rio do valor do contrato deverá atender ao valor de todos os contratos de fornecimento similares já celebrados, em curso ou a celebrar, tudo num perí- odo de referência máximo de um ano.
Mais uma vez, quanto a nós, o somatório deverá apenas cingir-se ao âmbito do órgão competente para a escolha do procedimento, nos termos do artigo 38.º do CCP, a não ser que exista uma inicia- tiva a nível superior ou uma coordenação entre entidades.
4 · O ELEMENTO DE FLEXIBILIZAÇÃO DO ARTIGO N.º 3 DO ARTIGO 22.º DO CCP
O n.º 3 do artigo 22.º do CCP 32 prevê um elemento de flexibilização face às regras do n.º 1 e n.º 2 do mesmo artigo. Esta disposição, como referido no ponto 2 supra, resulta da transposição para o orde- namento jurídico português do n.º 6 do artigo 17.º da Directiva 2004/17/CE e do n.º 5 do artigo 9.º da Directiva 2004/18/CE 33.
31 As previsões sobre a aquisição de fornecimentos, serviços ou obras devem ser baseadas, quanto a nós, nos instrumentos de planeamento do serviço público em causa. Em especial, deve atender-se ao orçamento do serviço, ao plano de actividades ou ao Quadro de Avaliação e Responsabilização ou QUAR. Salien- te-se que, o período de referência, ainda que sejam considera- dos no somatório —para efeitos do n.º 1 do artigo 22.º do CCP— contratos já celebrados e previsões de preços de contra- tos a celebrar, nunca pode ser superior a um ano.
32 O n.º 3 do artigo 22.º do CCP refere o seguinte: «No caso de contratos de empreitadas de obras públicas, de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis ou de contratos de aqui- sição de serviços, a escolha, nos termos do disposto nos artigos anteriores, do ajuste directo, bem como do concurso público ou do concurso limitado por prévia qualificação cujo anúncio não seja publicado no Jornal Oficial da União Europeia, permite a cele- bração dos contratos relativos a lotes em que o preço base fixado no caderno de encargos seja inferior a €1.000.000, no caso de empreitadas de obras públicas, ou a €80.000, no caso de bens móveis ou serviços, ainda que os somatórios referidos nos núme- ros anteriores sejam iguais ou superiores aos valores menciona- dos, respectivamente, e consoante os casos, nos artigos 19.º e 20.º, desde que o valor cumulado dos preços base dos procedi- mentos de formação dos contratos relativos a lotes cuja celebração é permitida neste número não exceda 20 % daqueles somatórios». 33 Sendo semelhante ao artigo 17.º n.º 6 da Directiva 2004/17/ CE, o n.º 5 do artigo 9.º da Directiva 2004/18/CE prevê o
De facto, por força do n.º 3 do artigo 22.º do CCP, permite-se que para lotes com valor até €80.000, no caso de contratos de locação ou aquisição de bens móveis ou de aquisição de serviços, e até
€1.000.000, no caso de empreitadas de obras públicas, os órgãos competentes para a escolha do procedimento possam livremente seleccionar um procedimento pré-contratual, nos termos do dis- posto nos artigos 19.º e 20.º do CCP, contanto que o montante total destes lotes não ultrapasse 20% do valor total dos lotes calculado nos termos do disposto no n.º 1 e n.º 2 do artigo 22.º do CCP.
Cabe salientar que os enunciados limites de
€80.000, para os lotes referentes a contratos de locação e aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, e de €1.000.000, para os lotes referen- tes a contratos de empreitadas de obras públicas, foram estabelecidos pelo legislador da União Euro- peia e, nessa medida, não coincidem com os limites estabelecidos para a escolha dos procedimentos em função do valor do contrato estabelecidos pelo legislador português nos artigos 19.º e 20.º do CCP.
Esta discordância entre valores provoca, desde logo, múltiplas dúvidas de interpretação sistemáti- ca. Pergunta-se assim: poderá o Estado, adjudicar ao abrigo do n.º 3 do artigo 22.º do CCP uma empreitada por ajuste directo acima do limite de
€150.000 previsto na alínea a) do artigo 19.º do CCP? Aparentemente, e numa interpretação mera- mente literal, desde que os somatórios do n.º 1 ou n.º 2 do artigo 22.º do CCP sejam iguais ou supe- riores a €750.000,00, já será permitido ao Estado, ao abrigo do n.º 3 do artigo 22.º do CCP, fazer uma
seguinte: «a) Sempre que uma obra prevista ou um projecto de aquisição de serviços possa ocasionar a adjudicação simultânea de contratos por lotes separados, deve ser tido em conta o valor total estimado da totalidade desses lotes. Sempre que o valor cumulado dos lotes for igual ou superior ao limiar estabelecido no artigo 7.º, a presente directiva aplica-se à adjudicação de cada lote. Todavia, as entidades adjudicantes podem derrogar esta aplicação para lotes cujo valor estimado, sem IVA, seja inferior a 80 mil euros, no caso dos serviços, e a 1 milhão de euros, no caso das empreitadas de obras, desde que o valor cumulado desses lotes não exceda 20% do valor cumulado da totalidade dos lotes;
b) Sempre que uma proposta para a aquisição de fornecimentos simi- lares possa ocasionar a adjudicação simultânea de contratos por lotes separados, deve ser tido em conta o valor total estimado da totalidade desses lotes para a aplicação das alíneas a) e b) do artigo 7.º. Sempre que o valor cumulado dos lotes seja igual ou superior ao limiar esta- belecido no artigo 7.º, a presente directiva aplica-se à adjudicação de cada lote. Contudo, as entidades adjudicantes podem derrogar esta aplicação para lotes cujo valor estimado, sem IVA, seja inferior a
80.000 euros, desde que o valor cumulado desses lotes não exceda 20% do valor cumulado da totalidade dos lotes».
adjudicação por ajuste directo acima do limiar esta- belecido na alínea a) do artigo 19.º do CCP. A outro tempo, mesmo considerando que dentro dos vinte por cento de flexibilidade, as entidades adjudican- tes ainda estão vinculadas aos limites dos artigos 19.º e 20.º do CCP, poderá o Estado adjudicar, por exemplo, duas empreitadas por ajuste directo no valor de €130.000 cada uma, totalizando um valor de €260.000, tratando-se de uma única «obra»?
Procurando sistematizar as questões suscitadas, é axial esclarecer se, a um tempo, os órgãos compe- tentes para a escolha do procedimento, benefician- do da flexibilidade prevista no n.º 3 do artigo 22.º do CCP, são livres de cumprir os limites estabeleci- dos nos artigos 19.º e 20.º do CCP, e se, a outro tempo, no caso de uma resposta afirmativa, o res- peito pelos limites se reporta ao valor individual de cada lote permitido dentro dos vinte por cento ou ao somatório do valor dos lotes, até ao limite de cada procedimento, nos termos do disposto nos artigos 19.º e 20.º do CCP.
Quanto a nós, existem três vias de resposta. A pri- meira via, mais aproximada da letra da lei, mais fle- xível e mais próxima da interpretação das próprias Directivas 2004/18/CE e 2004/17/CE, mas mais iso- lada do espírito do CCP, é a que considera que os órgãos competentes para a escolha do procedimen- to, quando se encontram no âmbito do n.º 3 do artigo 22.º do CCP, não estão vinculados, na escolha do procedimento, a respeitar, dentro dos vinte por cento de flexibilidade, os limiares dos artigos 19.º e 20.º do CCP e tão só os limiares de €1.000.000 para empreitadas e €80.000 para a locação e aqui- sição de serviços ou bens móveis, tal como previs- tos no próprio n.º 3 do artigo 22.º do CCP.
A segunda via, um pouco menos flexível, mas mais conforme ao espírito do CCP e ao fundamento nacional da divisão em lotes, é a que considera que os órgãos competentes para a escolha do procedi- mento, quando se encontram dentro dos vinte por cento de flexibilidade previstos no n.º 3 do artigo 22.º do CCP, estão vinculados, na escolha do pro- cedimento aplicável a cada lote, ao cumprimento do menor dos valores entre os limiares previstos nos artigos 19.º e 20.º do CCP e no n.º 3 do artigo 22.º do CCP.
Por fim, a terceira via, bastante menos flexível, fruto de uma interpretação mais sistemática do n.º 3 do artigo 22.º do CCP e mais próxima do fundamento nacional da divisão em lotes, é a que considera que os órgãos competentes para a escolha do procedi- mento, quando se encontram dentro dos vinte por
cento de flexibilidade previstos no n.º 3 do artigo 22.º do CCP, estão vinculados não apenas em cada lote, mas também no somatório dos lotes por pro- cedimento seleccionado, ao cumprimento do menor dos valores entre os limiares previstos nos artigos 19.º e 20.º e no n.º 3 do artigo 22.º do CCP.
Quanto a nós, não se vislumbra —numa óptica de coerência interna do CCP— uma razão atendível para abrir uma excepção aos limites previstos nos artigos 19.º e 20.º do CCP, face, por exemplo, à existência de critérios materiais de ajuste directo.
Assim, em suma, entendemos que é a terceira via a que confere maior coerência ao sistema dos crité- rios de escolha do procedimento em função do valor do contrato.
5 · CONCLUSÃO
Em face do que se expôs nos pontos 2 a 4 supra, dir-se-ia que na decisão de escolha do procedimen- to, o órgão competente deve sempre proceder ao somatório —no caso de escolha do procedimento com base no critério do valor do contrato— dos contratos do mesmo tipo já celebrados, a adjudicar simultaneamente ou previstos, todos no período de referência máximo de um ano, apenas no âmbito do seu serviço (excepto se existiram iniciativas a nível superior ou uma coordenação entre entida- des), desde que,
(i) Tratando-se de uma empreitada de obra pú- blica, estejam em causa objectos contratuais com a mesma função técnica e económica,
(ii) No caso de contratos de fornecimento, este- jam em causa objectos contratuais similares, e
(iii) No caso de prestações de serviços, esteja em causa a mesma categoria,
analisando-se, em todo o caso, a interdependência entre os objectos contratuais e a área geográfica abrangida.
Por último, os órgãos competentes para a escolha do procedimento pré-contratual, quando se encon- tram ao abrigo dos vinte por cento de flexibilidade previstos no n.º 3 do artigo 22.º do CCP, estão vin- culados não apenas em cada lote, mas também no somatório dos lotes por procedimento, ao cumpri- mento do menor dos valores entre os limiares pre- vistos nos artigos 19.º e 20.º e no n.º 3 do artigo 22.º do CCP.