SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
Processo
563/2001.S1
Data do documento
20 de outubro de 2009
Relator
Xxxxxxx Xx Xxxxxxxxxxx
DESCRITORES
Acção de preferência > Direito de preferência > Contrato de arrendamento > Arrendamento para habitação > Arrendatário > Comunicação do projecto de venda > Contrato-promessa de compra e venda > Procuração irrevogável > Negócio consigo
mesmo > Pagamento > Preço > Nulidade do contrato > Simulação de contrato > Fraude à lei
SUMÁRIO
I - A arrendatária habitacional de parte de um prédio urbano [não subordinado ao regime da propriedade horizontal] pode exercer preferência legal, nos termos do art. 47.º do RAU, em caso de venda do prédio.
II - A celebração de um contrato-promessa de compra e venda, com integral quitação do preço, investidura na posse do prédio arrendado pela promitente-compradora e outorga de uma procuração irrevogável da dona do prédio a favor desta para a venda a si própria do dito prédio, não preenche os pressupostos do exercício do direito de preferência da arrendatária habitacional.
III - Como decorre do n.º 1 do preceito em causa, o qual dispõe que o arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano, a preferência não pode ser feita valer quando o prédio for objecto de outro contrato.
IV - O exercício do direito de preferência ou prelação, através da acção prevista no art. 1410.º do CC, pressupõe a violação da obrigação de preferência, pela consumação da alienação (mediante a venda ou em dação em cumprimento) sem satisfação do dever de comunicação do projecto respectivo e cláusulas relevantes do contrato ou por irregular cumprimento desse dever (art. 416.º do CC).
V - O direito de preferência surge no âmbito de tal acção como o de obter a substituição coerciva da posição do comprador no contrato celebrado com o terceiro adquirente, com violação dos pressupostos legais condicionantes do seu nascimento e que, no quadro legal do arrendamento urbano (e não só nesta modalidade de arrendamento), se prevê em abstracto como a ele associado, desde que existente há mais de um ano, havendo violação da obrigação de comunicação por parte do respectivo sujeito passivo, ou seja, o titular da propriedade do prédio arrendado.
VI - Existindo um simples contrato-promessa de alienação de prédio a terceiro, tal não traduz violação da obrigação de preferência, quando muito representando uma ameaça de incumprimento.
VII - Tratando-se ou podendo tratar-se o contrato de expediente visando impedir o exercício da preferência, por concerto entre as partes envolvidas, tal, quando muito, poderia ser determinante da sua nulidade, ou por não passar de contrato simulado, nos termos do art. 240.º do CC, visto as partes terem, de facto, querido celebrar um contrato de compra e venda, sem a observância da forma legal imperativa, ou por visarem, com ele, contornar os contraentes os condicionamentos para o exercício da preferência, ou seja, celebrando um contrato com fraude à lei, nos termos gerais do art. 281.º do mesmo código.
VIII - É de rejeitar a consideração da procuração dita irrevogável como forma de transmissão da posição jurídica do mandante para o procurador e dissociada do contrato em que ela se inseria.
IX - Mesmo supondo ter existido um vício no contrato-promessa, consistente em fraude ou simulação – o que, com base nos factos que foram dados por provados, não se pode concluir –, em nada isso poderá favorecer a pretensão da recorrente de ver declarado, com recurso à acção própria do art. 1410.º do CC, o seu direito de preferência, dado que este pressupõe, necessariamente, uma válida transmissão do direito de propriedade do imóvel que se não operou, nem se poderia ter operado, mesmo admitindo estarmos em presença de contrato dissimulado, através do mero escrito particular que os recorridos firmaram, tendo em vista o disposto no art. 241.º, n.º 2, do CC, o qual prescreve que, sendo o negócio dissimulado de natureza formal, este só será válido se tiver sido observada a forma legal.
TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- AA, falecida na pendência da acção, tendo sido habilitados como seus herdeiros para prosseguir na acção, BB e CC, moveu acção declarativa com processo ordinário contra a DD, CRL e EE e FF, alegando que é arrendatária de um prédio urbano, sito em Sto Estêvão, Benavente e que a 1ª R e a 2ª R FF celebraram entre si em 28/07/1997, um contrato promessa de compra e venda do mesmo, sem que lhe tivessem dado conhecimento da sua intenção de compra e das respectivas cláusulas, disso vindo a saber no decurso de uma providência cautelar, derivada da recusa de rendas da 1ª R, titular do prédio por o ter adquirido, em dação por pagamento aos anteriores proprietários e seus senhorios.
Alegou, ainda, que a 1ª R. na mesma data subscreveu a favor da promitente compradora uma procuração irrevogável, conferindo-lhe poderes para esta última vender, mesmo a si própria e que, ainda na mesma data, a promitente compradora tomou posse do mesmo e pagou a totalidade do preço ajustado.
Peticionou o reconhecimento do seu direito de preferência na aquisição do prédio arrendado, devendo ser declarados nulos e de nenhum efeito, o contrato-promessa e a procuração e ordenado o cancelamento do
registo de aquisição do imóvel, caso se verifique ter sido já efectuado.
Os RR contestaram, dizendo que não tendo sido celebrada ainda a compra e venda do imóvel, a pretensão da A era injustificada e que esta não podia exercer a preferência visto ser arrendatária de uma pequena casa de habitação e logradouro e não da totalidade do prédio prometido vender.
E deduziram reconvenção para que a A. lhes pagasse as despesas com o mandatário e as custas, por ter incorrido em má fé.
Replicou a A. para sustentar que lhe assistia o direito, mesmo que arrendatária de parte do prédio e que os RR ao não celebrarem a escritura do contrato definitivo, agiram de forma a impedi-la de exercer o seu direito, entre si conluiados, não podendo ela aguardar indefinidamente pela outorga da escritura da parte dos 2ºs RR, quando na prática actuam estes como se donos fossem do imóvel
Houve, entretanto, um despacho de indeferimento liminar da petição que foi revogado pela Relação de Lisboa, mediante recurso de agravo, sendo ordenado o prosseguimento dos autos.
De seguida em sede de saneador e conhecendo do fundo da causa, decidiu o Senhor Xxxx do Tribunal de Benavente julgar a acção improcedente, não só por a A não poder exercer a preferência sobre todo o prédio, como não ter ela cabimento, por ainda não ter sido celebrado o contrato prometido, não tendo o contrato promessa virtualidade para lesar aquele hipotético direito da A. e não haver fundamento para se declarar nulo o contrato–promessa e a procuração irrevogável
2 - A A., ou melhor, os habilitados herdeiros apelaram da dita decisão para a Relação de Lisboa, produzindo extensas alegações em que invocaram na parte concernente ao contrato promessa que os factos dados por provados inculcavam a intenção das RR de não facultar o exercício da preferência, com o intuito de enganarem a falecida e que mesmo que assim não fosse, sempre seria de admitir poder o contrato- promessa ser objecto da acção de preferência e que seria eticamente injusta premiar o artifício dos recorridos.
Não obstante, a Relação por acórdão de fls e com um voto de vencido, confirmou a sentença, com fundamento em a A. não ser titular de um direito de preferência enquanto arrendatária apenas de parte do prédio prometido vender à 2ª R posto que adiantando não constituir este contrato (contrato–promessa) obstáculo ao exercício da acção de preferência, por estarem reunidos na esfera jurídica da promitente compradora todos os elementos para concretizar a venda.
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Os AA recorreram de revista e nas respectivas conclusões vêm atacar o acórdão, por não considerar terem os mesmos, na dita qualidade de sucessores da falecida AA, direito à preferência legal a esta conferida como arrendatária habitacional de parte do imóvel prometido vender, no mais sustentando a posição assumida quanto à viabilidade da acção, mesmo à luz do contrato-promessa.
Não houve contra alegação.
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3 - Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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4 - São questões a decidir no presente recurso:
- Saber se a falecida A como arrendatária habitacional de parte do prédio urbano objecto do contrato celebrado entre as RR podia exercer a preferência legal nos termos previstos no artº 47º do RAU;
- E saber se apenas com base no contrato promessa de compra e venda celebrado com pagamento na mesma data da totalidade do preço ajustado implicando esta a investidura na posse do prédio arrendado pela promitente compradora e com a outorga, ainda, na mesma data de uma procuração irrevogável da dona do prédio a favor desta para a venda a si própria do dito prédio, podia a A fazer valer o direito de preferência e obter a declaração de nulidade daquele contrato e da procuração com base nele emitida.
Com efeito e nesta parte, irreleva a apreciação feita pelo acórdão, já que prejudicada pela decisão proferida quanto à inexistência de qualquer direito de preferência, mesmo no quadro de uma suposta violação deste através do falado contrato promessa de compra e venda
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4 -São os seguintes os factos apurados:
A – Encontra-se inscrita na Conservatória de Registo Predial de Benavente a favor da R DD o prédio descrito sob o nº ... do Livro B-7 da freguesia de Sto Estêvão, por dação em pagamento feito por GG e mulher HH;
B – Tal prédio é constituído por três habitações de r/c, com as áreas cobertas de 241m2, 70m2 e 46m2 e logradouro, sendo a área coberta total de 664m2 e a descoberta de 2.555 m2.
C – Há cerca de 50 anos, por acordo verbal, GG e sua mulher HH, cederam a utilização de uma parte do prédio supra – uma casa e um logradouro- para habitação mediante o pagamento de uma renda a AA e a seu marido BB ;
D – Por acordo reduzido a escrito, datado de 28 de Julho de 1997 que denominaram de contrato–promessa de compra e venda, a R DD prometeu vender à R FF, livre de ónus e encargos e esta prometeu comprar o prédio supra ;
E – Acordaram os RR no preço de 15.000.000$00;
F – Mais acordaram que o pagamento do preço seria feito nas seguintes condições:
- Esc 1.000.000$00 com a assinatura do contrato-promessa;
- Esc 14.000.000$00 com a tomada de posse do prédio pela 2ª outorgante;
G – Acordaram, ainda, que a escritura de compra e venda seria celebrada quando a 2ª outorgante o entender;
H – Convencionaram, igualmente, que a R. promitente compradora entrava na posse do prédio logo que comunicasse por escrito à R promitente vendedora essa pretensão, sem necessidade de outras formalidades;
I – Pelo referido contrato, foi acordado que a R FF liquidava a totalidade do preço com a tomada de posse do prédio nessa data a R DD subscreveria a favor daquela uma procuração irrevogável, dando –lhe poderes para vender a si própria o prédio;
J – Acordaram, ainda, que o incumprimento de qualquer das obrigações assumidas conferia ao outorgante
não faltoso o direito de recorrer á execução específica.
K - Acordaram ainda as RR que a contribuição autárquica referente ao prédio identificado e relativa ao ano de 1998 e seguintes era da conta da R. FF;
L – No (mesmo) dia 28/07/1997, no Cartório Notarial de Alenquer, II e XX, na qualidade de directores e em representação da R. DD constituíram procuradora desta última, a R FF à qual conferiram poderes para vender a si própria, mandatária, pelo preço de quinze milhões de escudos o prédio urbano referido em A), outorgando na respectiva escritura de compra e venda;
M – Mediante aquele, aqueles II e XX conferiam à R. FF poderes para proceder a quaisquer actos de registo predial em relação ao mesmo prédio, provisórios ou definitivos, quer quanto à descrição ou inscrições, incluindo anexações, desanexações ou averbamentos e fazer declarações, participações ou requerimentos em Repartições de Finanças, mesmo para a matriz, a qualquer título com o objectivo de rentabilizar o referido prédio, incluindo administrá-lo e requerer o que entender junto de qualquer serviço ou instituto publico e de Câmaras Municipais, para qualquer fim, com o aludido objectivo;
N – Declararam, ainda, aqueles II a XX, expressamente, que a procuração é irrevogável, por ser subscrita no interesse da mandatária, conforme o dito contrato promessa de compra e venda celebrado em 28/07/1997 (por lapso consta da sentença da 1ª instância para que remeteu o acórdão, 1998) e por a R DD já ter recebido o preço de venda;
O – Por escrito particular, datado de 28/07/1997, a R FF comunicou à outra R que “ nos termos da cláusula 6ª do contrato promessa celebrado nesta data entre mim e VºExcias, venho comunicar que pretendo assumir de imediato a posse do prédio objecto do mesmo contrato, para que simultaneamente proceda ao pagamento do remanescente do preço de venda “;
P – A R DD não deu conhecimento àquela AA da intenção de vender o prédio, nem do projecto de venda e das cláusulas do supra referido contrato:
Q – Os RR FF e marido não comunicaram à A que pretendiam celebrar o acordo supra referido;
R - A primitiva A AA procedeu ao depósito de Esc. 15.000.000$00 correspondente ao preço do imóvel objecto do contrato–promessa.
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5 - Vejamos, agora, o direito.
5. 1- No que concerne à questão tratada no acórdão e que determinou a que este confirmasse a decisão da 1ª instância por a A. não poder beneficiar da preferência conferida pelo artº 47º do RAU (Regime do Arrendamento Urbano) diploma em vigor à data em que foi celebrado o contrato promessa de compra e venda do prédio de que era arrendatária por o ser de uma parte do mesmo, teremos que dizer que assiste razão à recorrente.
O artº 47º do diploma citado dispõe, com efeito, no seu nº1 que o arrendatário do prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano e no nº2 que, sendo dois ou mais os preferentes, se abre entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.
Não se ignora que alguma doutrina, caso de Oliveira Ascensão, no estudo publicado na ROA, Ano 51º,
1991, 68, sobre os direitos de preferência do então novo regime do arrendamento urbano, e também, de Xxxxxxxx Xxxxx in “Arrendamentos Comerciais” 2ªed., 203/204, defende que o objecto da preferência, suposto o preenchimento das demais condições para o exercício da acção respectiva - que segue a matriz indicada no artº 1410º do CCivil, para que remete o artº 49º do RAU - em caso de venda do prédio não submetido ao regime da propriedade horizontal, se circunscreve aos limites da parte arrendada, em função da precisão do termo usado “ local arrendado”, por cotejo com a anterior redacção dos arts 1117ºdo CCivil e 1º da Lei nº 63/77.
Ou seja, o legislador ao explicitar que a preferência se exerceria a favor do arrendatário no tocante ao “local arrendado”, tinha em vista justamente circunscrever o âmbito do direito aos limites materiais do prédio ou da parte do prédio arrendada pelo que ou ela se podia exercer apenas em relação a esse local, o que supunha a possibilidade da sua autonomização jurídica ou o seu exercício era impossível.
No entanto, tal interpretação não corresponde à orientação dominante, tanto na jurisprudência (v. ac.s deste Supremo de 31/05/2007 proc. nº 07B15542 e de 4/07/2006, ambos na internet) como na doutrina, podendo desde logo trazer-se à liça o entendimento consonante de P. de Lima e A. Xxxxxx “CCivil Anotado”, Vol II, 4ª ed. 568, de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, “Direito das Obrigações”, 266 e Xxxxx Xxxxxx Xxxx “ Arrendamento Urbano”,7ª ed.327.
E a razão parece-nos estar do lado desta corrente, doutra forma não se compreenderia que no nº2 do preceito se preveja a licitação entre preferentes, o que pressupõe a existência de uma pluralidade de arrendatários, sendo absurdo admitir-se que o legislador estivesse a pensar na hipótese de um co- arrendamento do mesmo local, dada a extrema raridade prática desta situação locativa.
Como dito em parecer do Prof. Xxxxxxxx Xxxxxxxx, transcrito no acórdão citado de 4/07/2006 “ O artº 47,nº1 do RAU não quis modificar, quanto ao objecto material da preferência, o regime do direito anterior, devendo, por conseguinte, entender-se que o arrendatário de parte de um prédio urbano em qualquer dos arrendamentos sujeitos ao regime vinculístico, tem o direito de preferir na venda de todo o prédio, sempre que este se não encontre subordinado ao regime de propriedade horizontal”.
Segue-se, portanto, que o decidido pela Relação, não pode manter-se no que respeita ao conteúdo do direito de preferência conferido pelo RAU ao titular de arrendamento vinculístico.
5. 2 - Resolvida esta questão, importa apurar se estavam reunidas as condições legais para a A poder exercer a preferência, quando é certo que as RR não celebraram ou não celebraram ainda nenhum contrato de alienação do imóvel arrendado, mas um mero contrato-promessa de compra e venda com integral quitação do preço e outorga à promitente compradora de uma procuração “irrevogável” com poderes para em seu nome vender a si própria o prédio em causa.
Na verdade, foi a título meramente opinativo que o acórdão abordou a questão desse outro pressuposto nuclear para o exercício da preferência, por isso dizendo que ele irrelevava para a sorte do recurso, logo não vinculando este tribunal.
De harmonia com o disposto no artº 715º nº2 do CPCivil, aplicável subsidiariamente ao recurso de revista ( cfr Xxxxxxx Xxxxxxxx, Manual dos Recursos em Processo Civil, 7ª ed. 277) sempre que o tribunal deixe de se
pronunciar sobre qualquer questão, por prejudicada pela solução dada ao litígio, se entender que o recurso procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhecerá no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
De contrário, terá de ordenar a baixa do processo para que a Relação as conheça.
Na primeira hipótese haveria, assim, que mandar notificar as partes, o que nos parece dispensável, visto a recorrente se ter pronunciado exaustivamente sobre a viabilidade da preferência perante o contrato – promessa nas alegações do seu recurso de apelação e as RR não terem contra alegado em ambos os recursos.
Mas vejamos.
No caso vertente o que está em causa é saber se a acção de preferência podia ser intentada, perante um mero contrato promessa de compra e venda do prédio arrendado, em vista de nele se ter consignado que com o pagamento do preço na totalidade, entrava a promitente compradora na sua posse e ficando na exclusiva disponibilidade desta a marcação e outorga da escritura, com a emissão de uma procuração irrevogável.
No fundamental, invocou-se no acórdão que embora não tivesse o prédio sido vendido, quando a acção foi intentada, estavam reunidos na esfera jurídica da promitente compradora todos os elementos para ela outorgar a escritura definitiva do contrato, pois havia na mesma data da celebração do contrato – promessa, pago a totalidade do preço ajustado, assumido a posse do prédio e obtido uma procuração irrevogável para realizar consigo mesmo a venda prometida, sendo certo que um tal procedimento abria caminho a uma total subversão dos requisitos exigíveis por lei, podendo o prédio vir a ser adquirido através do instituto da usucapião.
Mas não é assim.
Como decorre do preceito em causa, o qual dispõe no seu nº1 que o arrendatário de prédio urbano ou de uma sua fracção autónoma tem o direito de preferência na venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano, ela não pode ser feita valer quando o prédio for objecto de outro contrato, como decidiram os ac.s deste Supremo de 19/06/1986 in BMJ 358º,518, de 7/07/1994, CJ/S, Ano II, TºII, 49 e, posteriormente, o de 5/03/1996, BMJ 455º, 389, justamente tratando de um caso de um contrato– promessa de compra e venda, por este não ter eficácia transmissiva da propriedade, antes, visar uma prestação de facto que pode não ser cumprida.
De facto este consiste “na convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”( artº 410º, nº1 do C.Civil) e a prestação devida consiste, pois, na emissão de uma declaração de vontade negocial destinada a celebrar o contrato prometido.
Considerou-se no derradeiro aresto da listagem supra que quer se considere o direito de preferência, designadamente a preferência legal, um jus in re, integrado na categoria dos direitos reais de aquisição, com abono na doutrina tradicional, defendida entre outros, por Xxxxxx xx Xxxxxxx “Teoria Geral da Relação Jurídica” , Vol II, 53, nota 1, Xxxxxxx Xxxxxx , RLJ ,103º, 471, Xxxxxxxx Ascensão “Direito Civil - Direitos Reais”, 5ªed., 574, quer como uma relação jurídica complexa, integrada por direitos de crédito e direitos potestativos que visam proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na
aquisição por via negocial de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o exercício da prelação, como sustentado por H. Mesquita,“ Obrigações Reais e Ónus Reais”, 225 e ss, sempre este ficaria sujeito às condições constantes do artº 1410º do C.Civil que é o preceito de referência das chamadas acções de preferência, posto que inserido na regulamentação do direito de preferência conferido aos comproprietários, para ele remetendo expressamente o artº 49º do RAU.
Ou seja, a exercitabilidade do direito de preferência ou prelacção através da acção prevista naquele preceito, pressupõe a violação da obrigação de preferência, pela consumação da alienação (mediante a venda ou em dação em cumprimento) sem satisfação do dever de comunicação do projecto respectivo e cláusulas relevantes do contrato ou por irregular cumprimento desse dever (artº 416º do C.Civil).
E o direito de preferência surge no âmbito de tal acção como o de obter a substituição coerciva da posição do comprador no contrato celebrado com o terceiro adquirente, com violação dos pressupostos legais condicionantes do seu nascimento e que no quadro legal do arrendamento urbano (e não só nesta modalidade de arrendamento) se prevê em abstracto como a ele associado, desde que existente há mais de um ano, havendo violação da obrigação de comunicação por parte do respectivo sujeito passivo, ou seja, o titular da propriedade do prédio arrendado.
Esta posição foi reafirmada em aresto mais recente de 2/03/2004 in CJ/S, Ano XII, Tº1, 90 a 93 em que justamente estava em causa o exercício de uma preferência legal (nos termos do artº 1380º do CCivil) por efeito de um contrato-promessa de compra e venda com quitação da totalidade do preço e com outorga, igualmente, de uma procuração irrevogável a favor do promitente comprador.
Aí se disse que há que distinguir duas fases distintas no desenvolvimento da relação de preferência.
Na primeira fase, ela integra direitos de crédito e potestativos que visam assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição por via negocial do direito, fase que, seguindo de perto os ensinamentos de Xxxxxxxx Xxxxxxxx na obra supra, se inicia no momento em que o obrigado à preferência decide realizar o negócio de alienação, e se desenvolve até à respectiva realização, e em que sucessivamente, o preferente goza de um direito creditório à notificação do negócio projectado, do direito já então potestativo de declarar preferir e do direito creditório de exigir que consigo seja realizado o negócio.
Na segunda fase e que se verifica quando o obrigado à preferência, estando decidido o negócio, omite avisar o preferente, então a lei atribui a este o direito potestativo de, através da acção de preferência, se substituir ou subrogar ao adquirente no contrato que este celebre com o obrigado à prelação, mas direito que não incide sobre o bem, mas sobre o contrato, como adverte aquele autor.
Situação esta que levou o dito acórdão a concluir que enquanto o obrigado não efectuar a notificação para preferir e enquanto o negócio de venda ou dação em cumprimento (haja ou não haja contrato –promessa, com pagamento mesmo, nesta última hipótese da totalidade do preço, tradição do prédio e entrega de uma procuração irrevogável ) se não efectuar, está impedido o preferente legal de invocar ou exercitar aquele direito, apenas sendo titular de uma mera expectativa.
Ou dito de outra forma, o direito radica-se na pessoa do preferente, para efeitos do exercício da acção respectiva, quando ocorra a alienação do direito, sem o cumprimento dos deveres de aviso, (denuntiatio) permitindo em caso de procedência que o autor se substitua ao adquirente no contrato celebrado, desde
que por via de depósito, previsto no dito artº 1410º, garanta a este o recebimento do preço pago.
Doutrina esta também aceite por Lacerda Barata “ Da Obrigação de Preferência”, 152 o qual defende que a acção de preferência depende da celebração do contrato preferível em detrimento do direito do preferente, tanto no âmbito da preferência convencional, como na de base legal, logo sendo a transmissão da propriedade da coisa, em sede de direito processual, a verdadeira causa de pedir na acção de preferência. Portanto, teremos de convir que no caso vertente, por existir justamente um simples contrato–promessa de alienação de prédio a terceiro, não traduzia o mesmo nenhuma violação da obrigação de preferência, quando muito representando uma ameaça de incumprimento, ou seja, podia, sem dúvida, criar um obstáculo perdurável no tempo ao preenchimento das condições que fariam nascer o direito, por não ter sido marcado prazo para a celebração da escritura.
Situação essa que, no limite, podia levar a própria promitente compradora a arrastar a realização da escritura e, mesmo, a não efectivá-la, não obstante possuir o prédio como futura adquirente e dispôr dos amplos poderes que lhe foram conferidos pela sua ainda proprietária através da procuração documentada nos autos.
Mas a ser assim e tratando-se ou podendo tratar-se o contrato de expediente visando, no fim de contas, impedir o exercício da preferência por concerto entre as partes envolvidas, tal, quando muito poderia ser determinante da sua nulidade, ou por não passar de contrato simulado, nos termos do artº 240º do CCivil, visto as partes terem, de facto, querido celebrar um contrato de compra e venda, (o que não decorre, com clareza dos factos articulados na réplica) sem a observância da forma legal imperativa ou por visarem com ele, contornar os contraentes os condicionamentos para o exercício da preferência, ou seja, celebrando um contrato com fraude à lei, nos termos gerais do artº 281º do mesmo CCivil.
Acontece que este tribunal, só com base nos factos que foram dados por provados, não pode concluir nem que eles comportem o entendimento de estarem preenchidos os requisitos para o exercício da preferência, por via da suposta eficácia transmissiva da procuração irrevogável ou da consideração do contrato promessa implicar por si mesmo, uma violação da obrigação de preferência, podendo esta ser instaurada com base apenas no contrato promessa e antes da celebração do contrato prometido, promessa a que, anote-se, não foi atribuída eficácia real, nos termos previstos no artº 413º do CCivil ou admitir integrarem eles, um negócio simulado ou com fraude à lei, posto que constituindo estes vícios, nulidades de conhecimento oficioso.
Valem para aqui as razões e argumentos explanados no citado acórdão de 2/04/ 2004 para rejeitar a consideração da procuração dita irrevogável como forma de transmissão da posição jurídica do mandante para o procurador e dissociada do contrato em que ela se inseria a que aderimos por inteiro e não vamos, por economia, aqui reproduzir ou o pagamento do preço e a tradição do prédio envolverem, por si mesmo, consequências relevantes para o atendimento da pretensão formulada pela autora, ou seja, substituir-se à promitente adquirente, quanto à faculdade de execução específica da promessa, por analogia com o disposto no artº 830º do CCivil.
Esta seria apenas viável se, comunicada à autora a intenção de venda, ela fizesse valer mas no âmbito da 1ª fase e com a aceitação do que poderia ser qualificada como proposta contratual, o seu direito à celebração do contrato definitivo, com aplicação do mecanismo da execução específica, solução que aceita
com dúvidas, o Prof. Xxxxxxx Xxxxxx na RLJ 100º, 226 e a que também aderem Xxx Xxxxx “ O Contrato – Promessa e o seu Regime Civil” 389 a 394 e M. Xxxxxxxx Xxxxxxxx na op. cit., 210 a 213.
Por sua vez, não pode este tribunal extrair ilações da matéria de facto provada para que remeteu o acórdão, o que lhe é, em absoluto, vedado enquanto tribunal de revista e não de 3ª instância (v. os Acs deste Supremo de 11/05/2006, procº nº 06B869 e de 24/11/2007, procº nº07A979, ambos em xxxx.Xxx) Quando muito poderia, sim, mandar baixar os autos para alargamento da base instrutória, nos termos do artº 729º, nº3 do CPC se tivesse sido articulada a pertinente factualidade ausente da petição inicial e apenas trazida à réplica, mas de forma a viabilizar o exercício da preferência.
Só que mesmo supondo ter existido um vício no contrato promessa, consistente em fraude ou simulação, questão não equacionada na sentença, por considerar-se a mesma irrelevante, em nada isso poderá favorecer a pretensão da recorrente de ver declarado, com recurso à acção própria do artº 1410º do CCivil, o seu direito de preferência.
De facto, este pressupõe, necessariamente, uma válida transmissão do direito de propriedade do imóvel que se não operou, nem se poderia ter operado, mesmo admitindo estarmos em presença de contrato dissimulado, através do mero escrito particular que os recorridos firmaram, tendo em vista o disposto no artº 241,nº2 do C.Civil, o qual prescreve que sendo o negócio dissimulado de natureza formal, este só será válido, se tiver sido observada a forma legal.
E foi nestes exactos termos que, em situação em tudo similar, se pronunciou aquele acórdão, o qual na parte final, adverte: « (…) no caso “sub judicio”não está em causa, desde logo por falta da alegação dos respectivos factos, apesar de matéria de conhecimento oficioso a nulidade do negócio –que, de resto, também não aproveitaria ao êxito da acção, por não conduzir a uma transmissão válida do imóvel para o promitente vendedor- donde que na aludida manutenção da posição jurídica dos promitentes vendedores, tem de haver-se o prédio na sua titularidade».
Os recorrentes ainda convocaram na apelação em derradeiro esforço, o instituto do abuso de direito (artº 334º do C.Civil) por o contrato-promessa traduzir, na sua perspectiva uma forma artificiosa de obstaculizar o exercício da preferência; diremos apenas que essa questão não se coloca, se os recorridos celebraram aquele contrato com a finalidade exclusiva de defraudar o direito, sempre haveria de se declarar a sua nulidade,”tout court”, por si mesmo impeditiva dos efeitos jurídicos concretamente visados com a presente acção.
Como explanado pelo Prof. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx,“ Estudos sobre Simulação”,101,102 e em “Teoria Geral do Direito Civil”, II, 300 e referindo-se à posição dos preferentes quando pretendam valer-se da nulidade por simulação, nenhum interesse eles terão, na declaração de nulidade na simulação absoluta pois que destruído o negócio simulado, nenhum outro resta em relação ao qual possam exercer o invocado direito e no caso de simulação relativa, apenas os aproveitaria o negócio simulado se este tivesse sido validamente celebrado.
O que não é o caso, como vimos.
6 – Dito isto, segue-se que o recurso não pode proceder ainda que não pelo fundamento do acórdão recorrido por não se não preencherem os pressupostos do exercício do direito de preferência da falecida A.
Nestes termos, decide-se negar a revista e condenam-se os recorrentes nas custas.
Lisboa, 20 de Outubro de 2009
Xxxxxxx xx Xxxxxxxxxxx (Relator) Xxxxxxx Xxxxxxxx
Xxxxxxx Xxxxx