Memorando 16 de setembro de 2021
Memorando 16 de setembro de 2021
Para | Companhia Energética de Vila Rica |
De | Xxxxx Xxxxx, Xxxxx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxx |
Assunto | Contrato de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Livre - Cláusula de Take or Pay – Pandemia da COVID-19 |
Prezados(as),
Fomos consultados pela Companhia Energética de Vila Rica (“Cevica”), a respeito do objeto do procedimento arbitral CAMARB 00/21, promovido por Bacamaso Calçados Ltda. (“Bacamaso”) contra a Cevica e o Estado de Vila Rica (“Estado” – em conjunto, “Partes”), com base no Contrato de Compra e Venda de Energia Elétrica nº 00/2014 (“Contrato” – Anexo 5) e seu Aditivo Contratual nº 00/2019 (“Aditivo” - Anexo 11), assinados em 30 de agosto de 2014 e 18 de junho de 2019, respectivamente.
Conforme consulta que nos foi formulada, este Memorando compreende nossos entendimentos quanto às questões:
(i) A cobrança dos valores oriundos da cláusula de take or pay prevista no Contrato é exigível? Em caso positivo, o Tribunal Arbitral pode reduzir equitativamente o seu valor?
(ii) Restou configurada a existência de evento superveniente que autorize a revisão dos valores futuros e vincendos a título de take or pay previsto no Contrato?
A análise e conclusões preliminares apresentadas por meio deste Memorando são fundadas exclusivamente em (i) documentos apresentados pela Cevica ao Lefosse até a data deste Memorando1; (ii) nosso conhecimento de fatos e circunstâncias conforme reportadas pela Cevica
(iii) a lei aplicável, a doutrina e a jurisprudência que entendemos pertinentes para o caso sob análise.
1 As manifestações e documentos acostados ao procedimento arbitral CAMARB 00/21 até a data deste Memorando.
1 SUMÁRIO EXECUTIVO
1.1 Exigibilidade da cobrança de valores oriundos da cláusula de take or pay
2 Conforme será endereçado neste Memorando, concluímos que o surto da COVID-19, nos termos do art. 393 do Código Civil, não justifica o descumprimento das obrigações contratuais, particularmente considerando-se a dinâmica específica do setor de energia e o fluxo financeiro intrínseco de um Contrato de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Livre.
3 A obrigação do consumidor de energia em um Contrato de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Livre (de pagar o preço da energia) não se escusa pela mera existência do surto da COVID-19, que não se configura como um evento de caso fortuito/força maior nos termos do programa contratual estipulado no Contrato. Sendo assim, a obrigação de pagar continua a existir de forma plena e exigível.
4 Por fim, concluímos que o consumidor possui alternativas regulatórias para mitigar eventuais prejuízos – tais como a Cessão de Excedentes de Energia e a própria liquidação das sobras contratuais no Mercado de Curto Prazo (“MCP”) valorada ao Preço de Liquidação de Diferenças (“PLD”). Assim, deve agir em atenção ao dever de mitigação do dano, expressão do princípio da boa-fé contratual (art. 422 do Código Civil).
1.2 Inexistência de evento superveniente que autorize a revisão dos valores futuros e vincendos a título de take or pay
5 Conforme será explanado em detalhe adiante, concluímos que a teoria da imprevisão não poderá ser aplicada ao Contrato para fins de redução equitativa dos valores futuros e vincendos a título de take or pay, em razão da natureza jurídica e econômica do Contrato, que assume contornos de hedge.
2 CONTEXTO FÁTICO
6 Conforme informações prestadas pela Cevica, o lançamento do programa “Vila Cada Vez Mais Rica” do Governo do Estado de Vila Rica em 2013 levou a Bacamaso a analisar a realocação de sua fábrica para Cruzeiro do Norte. A Bacamaso teria o objetivo de participar do programa e, consequentemente, receber incentivos fiscais, além de condições específicas para a compra de energia elétrica da Cevica (a qual, até então, era uma empresa pública).
7 Nesse contexto, em 15 de fevereiro de 2013, foi firmado Termo de Compromisso (Anexo 2) pelo qual Xxxxxxxx se obrigou a mudar sua fábrica para Cruzeiro do Norte, ao passo que o Estado se obrigou a garantir, através da Cevica, um desconto tarifário de energia elétrica à Bacamaso enquanto sua fábrica permanecesse em Cruzeiro do Norte.
8 Através deste Termo de Compromisso, o Estado também se obrigou a construir um fundo de Emergência para fins Energéticos (“FEE”) para garantir que, em caso de descumprimento contratual pela Cevica, a Bacamaso seria devidamente indenizada. Assim, o Estado atuaria como garantidor da liquidez do FEE.
9 Na sequência, em 15 de abril de 2013, a então governadora do Estado sancionou a Lei Estadual nº 00/2013, constituindo a Cevica (Anexo 3). De acordo com referida Lei, a Cevica seria integralmente controlada pelo Estado e teria por objeto a geração, transmissão e comercialização de energia elétrica.
10 Em meados de 2014 (Caso, p. 2, §7), em período próximo ao encerramento da transferência de sua fábrica, a Bacamaso iniciou tratativas com o Estado e com a Cevica para a celebração do Contrato. Após diversas rodadas de negociação, o Contrato foi enfim assinado pelas Partes, dispondo que a Bacamaso adquiriria uma quantidade de energia mensal mínima da Cevica, a preço prefixado, pelo prazo mínimo de cinco anos.
11 Em março de 2017, a Xxxxxx iniciou seu processo de privatização, que veio a ser concluído em novembro de 2018 com a compra de seu controle pela Macalé Energética S.A.
12 No início de 2019, Bacamaso e Cevica iniciaram novas tratativas objetivando aumentar a carga energética contratada, bem como revisar o Contrato para que estivesse alinhado às melhores práticas do setor.
13 Para atender aos interesses da Xxxxxxxx, Xxxxxx propôs a repactuação de algumas cláusulas e a extinção do FEE. Tal proposta foi aceita pela Bacamaso, com a condicionante de que o Estado figurasse como garantidor das obrigações da Xxxxxx – o que restou aprovado através do Aditivo.
14 Entretanto, os primeiros casos de COVID-19 surgiram no Brasil em março de 2020. Posteriormente, houve declaração de estado de pandemia no Brasil.
15 A pandemia ocasionou o fechamento de grande parte do comércio do país. Contudo, Cruzeiro do Norte permaneceu com o comércio e atividade fabril abertos e funcionais até junho de 2020. Em 05 de junho de 2020 (Anexo 13), o prefeito da cidade decretou medidas restritivas ao funcionamento do comércio. O Estado também determinou o fechamento de suas fronteiras (Anexo 14).
16 A Bacamaso teve, então, queda em sua produção e, em 15 de agosto de 2020, encaminhou notificação à Cevica (Anexo 15). Por meio de tal notificação, pleiteou o afastamento do pagamento da cláusula de take or pay, sob o pretexto de força maior (art. 393 do Código Civil), bem como a revisão do Contrato sob a justificativa de ocorrência de desequilíbrio econômico-financeiro (art. 317 do Código Civil). Tal notificação também foi encaminhada ao Estado, uma vez que era garantidor do Contrato.
3 EXIGIBILIDADE DOS VALORES ORIUNDOS DA CLÁUSULA DE TAKE OR PAY
3.1 Esclarecimentos quanto aos impactos da COVID-19
17 Um dos questionamentos centrais que nos é formulado é se o impacto da COVID-19 pode ser considerado imprevisível e inevitável, e se se caracterizaria como evento de força maior – com a consequente incidência da regra geral do art. 393 do Código Civil, para que o devedor não responda pelos prejuízos resultantes da COVID-19.
18 É fato notório que a economia mundial vem sendo fortemente abalada desde março de 2020 pela crise da COVID-19. Não se questiona tal fato.
19 Em razão do elevado número de casos da doença e dos óbitos diários, a Organização Mundial da Saúde – OMS elevou o status da crise para “pandemia”. No âmbito nacional, para conter o avanço da disseminação da doença, Municípios e Estados da Federação determinaram a restrição de algumas atividades, especialmente das áreas do comércio, educação e entretenimento. A situação de disseminação da doença resultou na edição da Lei Federal nº 13.979/2020, subsequentemente alterada pela Medida Provisória nº 926/2020, e regulamentada pelo Decreto nº 10.282/2020. Ainda, foi editado o Decreto Legislativo nº 6/2020, reconhecendo o estado de calamidade pública ainda no início de 2020.
20 Juntamente com o fechamento recorrente do comércio e com a suspensão de atividades escolares, a recomendação de isolamento social à toda população (em que pese sensata) impactou duramente a circulação de mercadorias e o consumo de diferentes produtos, o que, por sua vez, afetou diretamente a economia do país.
21 Em vista deste cenário, cabe questionar se o impacto da COVID-19 pode ser caracterizado (em todos, alguns ou nenhum caso) como um evento imprevisível e inevitável. Mais especificamente, abordaremos abaixo se é possível à Bacamaso invocar o instituto jurídico da força maior para afastar eventual responsabilização pelo descumprimento de obrigações contratuais derivadas do Contrato.
3.2 Caracterização do caso fortuito/força maior na legislação – regra geral e exceções – Programa obrigacional do Contrato
22 Partimos dos conceitos de caso fortuito e força maior, disciplinados pelo artigo 393 do Código Civil2. Embora guardem suas diferenças conceituais3, seus efeitos jurídicos são os mesmos: a possibilidade de resolução/suspensão do contrato sem incidência de penalidades, não respondendo o devedor pelos prejuízos decorrentes do inadimplemento motivado por tais eventos inevitáveis, salvo se assumiu expressamente tal risco. Portanto, é indiferente indagar se a impossibilidade de o devedor cumprir a obrigação decorre de força maior ou de caso fortuito.
23 Por essa razão, o Código Civil reuniu os dois fatos na mesma definição: o caso fortuito ou de força maior são o fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir4. No entanto, cabe analisar as exceções à regra geral. Em particular, interessa a exceção contida no mesmo artigo 393 do Código Civil, que permite às partes alocarem a uma delas os ônus decorrentes de eventos de força maior, ou dividi-los desigualmente entre ambas.
24 Tal exceção decorre do princípio geral da autonomia da vontade, que se traduz na autorização legal para que as partes negociem, contratem e façam lei entre si5. Ressalta-se que
2 "Art. 393.O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir."
3 Elucida Clóvis Beviláqua que "conceitualmente o caso fortuito e a força maior se distinguem”. Segundo o autor, caso fortuito é "o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes". Já força maior é "o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer". (BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil Comentado, volume 4, edição Livraria Xxxxxxxxx Xxxxx, 1938, pág. 221).
4 Segundo Xxxxxx Xxxxxx, "força maior é o fato que resulta de situações independentes da vontade do homem (ex. xxxxxxxx, xxxxxxxxx, furacões, nevascas, etc.)” (Direito Civil, vol.II, Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos, pg. 230) e “surgem situações maiores que o deseja dos contratantes em cumprir a obrigações, o que validamente, com respaldo legal, autoriza a resolução, sem indenização. É o que sucede no caso fortuito ou força maior. [...] Nessas hipóteses, há uma causa superveniente ao contrato que inviabiliza seu cumprimento. A força maior ou o caso fortuito constituem causas objetivas a resolver o contrato. Essas causas podem obstar o cumprimento total ou parcial do negócio. Quando o contrato ainda pode ser cumprido parcialmente, pode o credor manter o interesse em que assim se faça. Não se confunde a impossibilidade superveniente com mera dificuldade de cumprimento. A impossibilidade deve ser examinada no caso concreto. A simples dificuldade é de cunho subjetivo e não serve de escudo para a parte deixar de cumprir o contratado. [...] A impossibilidade superveniente no cumprimento rege-se pelos princípios da cláusula resolutória expressa. Apenas há necessidade de sentença declaratória quando são almejados efeitos concretos. [...] pode haver cláusula, contudo, que responsabiliza expressamente o devedor, ainda que a impossibilidade advenha de caso fortuito ou força maior.” ( XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx, Direito Civil, vol.II, Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos 12ª.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2012. páginas 500-501)
5 Nas palavras do civilista italiano Xxxx Xxxxx "Uma tal posição de princípio é sancionada, no nosso sistema, pelo art. 1322.º c. 1 cód. civ., que oferece, assim, um importante elemento de resposta à questão ventilada supra: nos limites impostos pela lei, ‘as partes podem livremente determinar o conteúdo do contrato’. Esta é uma expressão – a mais significativa – do princípio da autonomia privada, ou autonomia contratual (justamente esta fórmula figura na epígrafe do art. 1322.º cód. civ.). Autonomia significa, etimologicamente, poder modelar por si – e não por imposição externa – as regras da sua própria conduta; e autonomia privada, ou autonomia contratual, significam liberdade dos sujeitos de determinar com a sua vontade, eventualmente aliada à vontade de uma contraparte no ‘consenso’ contratual, o conteúdo das obrigações
essa liberdade foi fortalecida com a recente introdução da Lei nº 13.874/19 (Lei da Liberdade Econômica), que acresceu disposições ao Código Civil para esclarecer que “a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada” nas relações contratuais privadas (art. 421- A, inc. II, do Código Civil).
25 Embora haja limites a esta liberdade (que não são pertinentes para a presente disputa), entende-se que se aplica amplamente aos contratos comerciais, entre partes equivalentes, sem hipossuficiência. Desde que o objeto contratado seja lícito, possível e determinável, as empresas serão livres para acordar diferentes matrizes de riscos e responsabilidades, e a presunção será de que as partes calcularam adequadamente os riscos envolvidos.
26 Ora, é pressuposto da sistemática contratual moderna que o contrato é a roupagem jurídica de uma operação econômica6. Em sendo o risco inerente e indissociável da própria atividade econômica, a conclusão lógica é que o contrato é, por excelência, o mecanismo de alocação de riscos da atividade econômica7. Dessa forma, dentro dos limites legais, as partes têm ampla margem para alocar os riscos de determinada atividade econômica – e muitos contratos têm como elemento essencial a distribuição desses riscos (usualmente atrelada a uma alocação financeira correspondente).
27 Alguns exemplos comuns são que um fornecedor se obrigue durante um certo período por prejuízos oriundos de determinados eventos imprevisíveis, precificando riscos; ou que em contratos de construção em regime de turn-key, o contratado se obrigue expressamente pelo risco de eventos geológicos, hídricos e climáticos que poderiam caracterizar força maior em outras contratações; ou ainda os contratos de seguro, cujo objeto principal é justamente a precificação e a respectiva cobertura, pela seguradora, do risco de um negócio. Ou seja, riscos são plenamente alocáveis entre partes contratantes, desde que respeitados os (poucos, mas relevantes) limites legais.
28 Com tais pressupostos em mente, faz-se necessária uma análise do Contrato firmado entre Cevica e Bacamaso para definir quais os riscos alocados entre as Partes. Quando se analisa a
que se pretende assumir, das modificações que se pretende introduzir no seu património. Em linha de princípio, portanto, os sujeitos privados são libres de obrigar-se como quiserem. Mas quando se obrigam, obrigam-se verdadeiramente; aquilo que livremente escolheram torna-se vínculo rigoroso dos seus comportamentos, e se violam a palavra dada, respondem por isso e sujeitam-se a sanções. É o nexo liberdade contratual – responsabilidade contratual (ou, dito de outra maneira, utilidade-risco) ao qual já fizemos referência e que encontra o seu pontual reflexo normativo na conexão ideal que se deve estabelecer entre o art. 1322.º c. 1 cód. civ. E o art. 1372.º c. 1 cód. civ., segundo o qual ‘o contrato tem força de lei entre as partes’”. (XXXXX, Xxxx. O Contrato. Almedina, 2020, p. 128).
6 “As situações, as relações, os interesses que constituem a substância real de qualquer contrato podem ser resumidos na ideia de operação económica. De facto, falar de contrato significa sempre remeter – explícita ou implicitamente, directa ou mediatamente – para a ideia de operação económica” (ROPPO, Xxxx. O Contrato. Almedina, 2020, p. 8).
7 XXXXXXXX, Xxxxx X. Contratos Empresariais: teoria geral e aplicação. 2ª edição. Editora Revista dos Tribunais, 2016, p.145.
redação original do Contrato (Anexo 5), identifica-se hipóteses que as Partes entenderam configurar caso fortuito e força maior (essencialmente aquelas listadas na Cláusula 10.1 e subitens8), bem como outras circunstâncias em que as Partes entenderam não se aplicar o conceito de caso fortuito/força maior (aquelas listadas na Cláusula 10.2 e subitens9).
29 Posteriormente, quando celebraram o Aditivo (Anexo 11), as Partes modificaram ligeiramente o panorama de risco do Contrato. Essencialmente (e com certa imprecisão técnica, admite-se), substituíram a Cláusula 10 do Contrato original (Anexo 5) por uma nova redação, estipulando algumas circunstâncias que se presumem como caso fortuito/força maior (Cláusula 10.1 do Contrato, após Aditivo, Anexo 11, p. 3910).
30 Com essa nova redação, as Partes somente dispuseram o que seria considerado caso fortuito/força maior, ignorando as demais circunstâncias que seriam automaticamente consideradas como insuficientes para aplicação da mecânica de caso fortuito/força maior (inicialmente previstas na Cláusula 10.2 do Contrato).
31 A despeito da pouca técnica da redação adotada no Aditivo (que carece, por vezes, até de coerência gramatical), a alocação inicial dos riscos entre as Partes permaneceu consistente. Denota-se da comparação entre a redação original da Cláusula 10.1 (Anexo 5) e da redação revisada da Cláusula 10.1 (Anexo 11), que materialmente as hipóteses são as mesmas (guerras, terrorismo, catástrofes naturais etc.).
8 “10.1. Serão entendidos como caso fortuito ou força maior eventos alheios à vontade das Partes, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir, e que impossibilitem o cumprimento total ou parcial de qualquer obrigação prevista neste Contrato, tais como: 10.1.1. Guerras, atividades militares (seja a guerra declarada ou não) e atos de invasão de inimigos estrangeiros; 10.1.2. Rebeliões, atos de terrorismo, revolução ou insurreição militar e guerra civil; 10.1.3. Catástrofes naturais, como terremotos, tsunamis, atividades vulcânicas e furacões”.
9 “10.2. Não serão considerados eventos de caso fortuito ou força maior, entre outros: 10.2.1. A ocorrência de greves e de quaisquer outras paralisações dos empregados de qualquer das Partes; 10.2.2. Variações cambiais; 10.2.3. Alterações legislativas ou regulatórias, bem como atos praticados pela Autoridade Competente; 10.2.4. Problemas e/ou dificuldades de ordem econômico-financeira, de qualquer das Partes;
10.2.5. Insolvência, liquidação, falência, recuperação judicial ou extrajudicial, reorganização, encerramento, término ou evento semelhante de qualquer das Partes”.
10 “10.1 Na ausência de prova em contrário, uma parte invocar as condições descritas nessa cláusula será dada como presumida na ocorrência de um ou mais dos seguintes eventos: a) guerra (declarada ou não), conflito armado ou grave ameaça do mesmo (incluindo, mas não se limitando a ataque hostil, bloqueio, embargo militar), hostilidades, invasão, ato de um inimigo estrangeiro, ampla mobilização militar; b) guerra civil, rebelião e revolução, poder militar ou usurpado, insurreição, comoção civil ou desordem, violência de turba, ato de desobediência civil; c) ato de terrorismo, sabotagem ou pirataria; d) desastre natural, incluindo, mas não limitado a tempestade violenta, ciclone, tufão, furacão, tornado, nevasca, terremoto, atividade vulcânica, deslizamento de terra, maremoto, tsunami, inundação, dano ou destruição por relâmpago, seca;
f) explosão, incêndio, destruição de máquinas, equipamentos, fábricas e de qualquer tipo de instalação, interrupção prolongada de transporte, telecomunicações ou corrente elétrica; g) perturbação geral do trabalho, como, mas não se limitando a boicote, greve e lock-out, go-slow, ocupação de fábricas e instalações”.
32 Não houve alteração relevante quanto às demais hipóteses previstas inicialmente na Cláusula 10.2 do Contrato (Anexo 5), a saber: variações cambiais (Cláusula 10.2.2); alterações normativas e fait du prince (Cláusula 10.2.3); hardship e outras circunstâncias de ordem econômico- financeira (Cláusula 10.2.4); e falência, insolvência ou recuperação (extra)judicial das Partes (Cláusula 10.2.5). A falta de tratamento posterior dessas questões no Aditivo corresponde a afirmar que as Partes não modificaram seu entendimento quanto a tais hipóteses – devendo qualquer intérprete as levar em consideração na interpretação das obrigações e parte a parte.
33 Consequentemente, a única divergência material na alocação de risco entre a redação original do Contrato (Anexo 5) e a redação do Aditivo (Anexo 11) diz respeito à singela distinção do tratamento das hipóteses de “perturbação geral do trabalho” (Cláusula 10.1.g), Anexo 11, p. 39). Na redação original do Contrato, as hipóteses de paralisações da força de trabalho eram expressamente consideradas como não sendo evento de caso fortuito/força maior (Cláusula 10.2.1, Anexo 5). Com a redação vigente do Contrato, cria-se uma presunção, “[n]a ausência de prova em contrário” (Cláusula 10.1, caput, Anexo 11), de que há caso fortuito e/ou força maior. Entretanto, como diz o próprio caput da referida Cláusula, trata-se de presunção relativa, que admite prova em sentido contrário.
34 Dessa forma, entendemos que a alocação de risco entre as Partes, nos termos do Contrato (e de seu Aditivo), permaneceu essencialmente inalterada, salvo pela criação de presunção relativa de ocorrência de caso fortuito/força maior em casos de perturbação geral do trabalho. Resta investigar qual o tratamento contratual dado para casos de pandemia (como a da COVID-19) no Contrato.
35 Dentre as hipóteses em que as Partes expressamente afastaram o regramento legal do caso fortuito/força maior, destacamos como relevantes para o caso os itens “variações cambiais” (Cláusula 10.2.2, Anexo 5), e “problemas e/ou dificuldades de ordem econômico-financeira” (Cláusula 10.2.4, Anexo 5). Tais aspectos foram cruciais no desenrolar da crise da COVID-19, e por muitas vezes a base de pleitos de exoneração de responsabilidade ou reequilíbrio de contratos durante a pandemia. Entretanto, como dito acima, tais exclusões servem de norte interpretativo para a real vontade das Partes quando da pactuação dos riscos do Contrato. Assim, entendemos que tais circunstâncias não podem ser evocadas para escusar o cumprimento das obrigações sob o Contrato.
36 No mesmo sentido, as Partes dispuseram no Contrato que tais “eventos listados nesta Cláusula deverão ser interpretados restritivamente, quando invocados por qualquer das Partes para se eximir de obrigação contraída neste Contrato” (Anexo 5, Cláusula 10.4). Novamente, apesar de não repetida esta disposição no Aditivo, deve ser considerada pelo intérprete quando da apreciação da real vontade das partes na alocação de risco do Contrato. Ou seja, não se admite que a
Bacamaso, agora, venha recorrer às disposições do Contrato (e do Aditivo) para não cumprir com suas obrigações.
37 Na gênese do Contrato, as Partes validamente excluíram a incidência de caso fortuito e/ou força maior em algumas circunstâncias (e limitaram numerus clausus a possibilidade de recorrer aos itens da Cláusula 10.1), exercendo sua autonomia privada para limitar as situações em que o descumprimento das obrigações contratuais seria tolerado. Não somente isso, mas expressamente excluíram diversas circunstâncias que poderiam ser consideradas como caso fortuito/força maior (a saber, aquelas circunstâncias da Cláusula 10.2 do Contrato, Anexo 5). Nenhuma das hipóteses descritas pela Bacamaso se enquadram nas exceções previstas no Contrato (Cláusula 10.1, Anexo 5 e Anexo 11), pelo que inaplicável o conceito de caso fortuito e/ou força maior nos termos contratuais.
3.3 A COVID-19 não se configura como caso fortuito/força maior em contratos firmados no ambiente de contratação livre
38 Para além da interpretação literal e sistêmica das disposições do Contrato, há que se investigar o contexto econômico em que se inserem as obrigações de parte a parte. Nesse sentido, considerando a dinâmica específica do setor de energia, aliada ao fluxo financeiro intrínseco de um contrato de comercialização de energia elétrica no ambiente de contratação livre (“ACL”), em nossa visão, o surto da COVID-19 não possui o condão de justificar o descumprimento de Contratos de Comercialização de Energia Elétrica no Ambiente Livre (“CCEAL”), como é o caso do Contrato, com base no artigo 393 do Código Civil.
39 Como se descreverá abaixo, a mera existência da pandemia (e de suas medidas de contenção) não basta para que se reconheça caso fortuito/força maior necessário para excluir as consequências de um inadimplemento contratual. Isto porque o evento externo deve gerar impactos diretamente sobre a prestação contratual devida, impossibilitando ou tornando desarrazoadamente oneroso o seu adimplemento.
40 Para que haja aplicação da mecânica de caso fortuito/força maior uma série de requisitos devem estar presentes – uma vez que a regra da relação contratual é o adimplemento, e a situação da excludente de responsabilidade é excepcional. Passaremos os requisitos um a um abaixo.
3.3.1 Impossibilidade do adimplemento
41 O primeiro passo para a caracterização do caso fortuito/força maior é verificar se o evento causou a impossibilidade ou onerosidade excessiva da prestação. No caso concreto, deve-se indagar se houve impossibilidade ou onerosidade excessiva de pagamento dos valores previstos pela cláusula de take or pay no Contrato.
42 De partida, esclarece-se que a obrigação de pagar (obrigação financeira) do consumidor de energia no CCEAL não é, geralmente, afastada por eventos como a COVID-19, uma vez que eventos desta sorte não causam impossibilidade fática de cumprimento da obrigação, que é meramente financeira (e não uma prestação de fazer ou similar, em outros tipos contratuais).
43 Apesar da gravidade da COVID-19 e das suas proporções relevantes, não há relação causal direta entre o fim do consumo de energia e a disseminação da pandemia, o que poderia ocorrer em outros setores, como o de produtos de luxo ou supérfluos.
44 Por definição da ANEEL, um CCEAL é um “contrato resultante da negociação, no âmbito do Ambiente de Contratação Livre (ACL), entre agentes da CCEE, tendo por objeto estabelecer prazos, volumes de energia e demais condições pertinentes às transações de compra e venda de energia elétrica”11. Assim, por definição, possuem natureza financeira, funcionando como um verdadeiro contrato de hedge para o comprador contra as variações do PLD.
45 Por sua vez, contratos de hedge são aqueles que “[têm] como pressuposto para sua celebração, o risco potencial da variação de preço inerente ao ativo-objeto contratado. Caso não existam riscos na pactuação do contrato, não há motivação jurídica para fazer hedging”12.
46 Para tais contratos, então, o risco é inerente à operação, de forma que a caracterização de eventos como caso fortuito/força maior não segue a “regra geral” dos demais contratos comerciais. Novamente, a operação econômica subjacente apresenta-se relevante para interpretação do negócio jurídico que a formaliza.
47 É interessante notar que, após as crises de volatilidade de preços ocorridas em 2008, 2010 e 2013, partes contratantes de CCEAL crescentemente tentaram recurso ao caso fortuito/força maior para escapar aos riscos assumidos. Com base nestas experiências, e para evitar que estes contratos fossem desnaturados, o Mercado de Energia passou a incluir dentre “excludentes de caso fortuito e força maior” eventos como (i) variações do PLD; (ii) oportunidades vantajosas de Mercado que venham a surgir para as partes durante a execução do CCEAL; (iii) restrições físicas de geração e/ou transmissão específicas, uma vez que o CCEAL não importa entrega efetiva de energia elétrica; e (iv) variações na carga do consumidor.
11 Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE. Glossário de Termos / Interpretações e Relação de Acrônimos (Anexo). Versão 2019.1.0. In: xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx-xxxxxxxx- antigas?p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=2&p_p_state=normal &p_p_mode=view&p_p_cacheability=cacheLevelPage&p_p_col_id=column- 2&p_p_col_pos=1&p_p_col_count=2&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideDocumen to=30460&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_tipoFaseReuniao=fase&_participacaopu blica_WAR_participacaopublicaportlet_jspPage=%2Fhtml%2Fpp%2Fvisualizar.jsp Acesso em 11/09/2021.
12 XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxx. A função social do contrato de Hedge. Revista de Direito Privado | vol. 43/2010 | p. 232 - 259 | Jul - Set / 2010 | DTR\2010\416
48 Portanto, para a realidade econômica de um CCEAL, situações atinentes à volatilidade do preço da energia elétrica não configuram evento de caso fortuito ou força maior. Tais hipóteses, inclusive, encontram eco no próprio Contrato (Cláusulas 10.2.2 e 10.2.4, Anexo 5)
3.3.2 Requisito da inevitabilidade – alternativas
49 O segundo passo para a caracterização do caso fortuito/força maior é verificar se o evento que se pretende caracterizar como caso fortuito/força maior realmente cria uma situação em que o inadimplemento é inevitável.
50 Verificamos que não é o caso para um contrato CCEAL. Além de a obrigação de pagar do consumidor no CCEAL (no caso, a Bacamaso) não ser impossibilitada, conforme explicado no tópico acima, o consumidor possui alternativas regulatórias para mitigar os impactos da redução da demanda, de forma que o evento e, em especial, suas consequências, não são inevitáveis. Trata- se dessas hipóteses nos itens abaixo.
(i) Cessão de Excedentes
51 A alternativa clássica para cenários similares é a Cessão de Excedentes. Trata-se de mecanismo criado nos termos da Portaria MME 185/2013 e regulado na Convenção de Comercialização de Energia Elétrica13 e no Submódulo 3.1 dos Procedimentos de Comercialização da CCEE.
52 Por meio da Cessão de Excedentes o consumidor de energia elétrica pode efetuar a cessão de suas sobras de “energia” para comercializadores, geradores e/ou outros consumidores, de maneira a equalizar a contratação à sua carga. A operacionalização da Cessão de Excedente ocorre da mesma forma que um CCEAL normal, ou seja, o consumidor pode registrar a cessão até o 6º dia útil posterior ao mês contabilizado.
53 Significa dizer que, tendo em vista que as medidas de restrição à atividade econômica foram impostas desde o mês de março/2020, os consumidores – incluindo a Bacamaso – tiveram prazo mais do que razoável para negociar cessões contratuais de seus possíveis excedentes.
54 Sobre a Cessão de Excedentes, resta dizer que existe uma real possibilidade de haver liquidez para tais operações, uma vez que há ramos/indústrias que, além de não terem parado suas atividades, tiveram aumento da demanda de energia no período da pandemia – como é o caso de rede de hospitais, indústria farmacêutica, indústria de materiais hospitalares, empresas de telecomunicações etc.
13 A Convenção de Comercialização de Energia Elétrica foi instituída por meio da Resolução Normativa ANEEL nº 109/2004.
(ii) Liquidação de excedentes no Mercado de Xxxxx Xxxxx (MCP) valorada ao PLD
55 Adicionalmente à Cessão de Excedentes, existe ainda um segundo mitigador para a hipótese de recontratação devido a uma possível redução do consumo de energia elétrica: a liquidação de tais excedentes no MCP, valorados ao PLD.
56 Em outras palavras, apesar de o surto da COVID-19 poder impactar (ainda que involuntariamente) o consumo de energia elétrica, o consumidor possui meios regulatórios para ceder a energia adquirida ou mesmo revendê-la no MCP, podendo, inclusive, obter ganhos com a cessão da “energia” não utilizada. Nesse sentido, a Bacamaso tinha meios regulatórios de mitigar a sua exposição e “revender” a energia a terceiros ou ao mercado, o que parece não ter feito.
57 Nesse ponto cabe destacar que a adesão de um consumidor ao Mercado Livre para a contratação de energia com terceiro que não seja a Concessionária de Distribuição de Energia possui como maior incentivo a redução do custo da energia e a previsibilidade. Todavia, existem ônus específicos e maior risco em comparação ao Mercado Regulado.
58 Enquanto no Mercado Regulado basta ao consumidor reduzir o seu consumo com a Distribuidora local para ter a parcela de sua Tarifa de Energia Reduzida, no Mercado Livre a redução de contratos (CCEAL) impacta diretamente o vendedor e indiretamente uma cadeia de contratação, uma vez que são contratos financeiros que devem, obrigatoriamente, estar lastreados por outros CCEAL ou Garantia Física de Usinas.
59 Partindo da premissa que a Cevica já firmou CCEAL com outros fornecedores de maneira a dar lastro contábil para os CCEAL firmados com seus compradores (consumidores, comercializadores e geradores), a natureza financeira do CCEAL faz com que eventual redução de consumo seja um risco a ser assumido pelo consumidor, que deve pagar o preço definido no instrumento contratual e valer-se dos mecanismos de mitigação citados anteriormente.
3.4 Análise de julgados sobre o tema
60 Passando para uma análise histórico-jurisprudencial do tema, vale citar que Tribunais Arbitrais e o Poder Judiciário já enfrentaram por diversas vezes a questão da caracterização de caso fortuito/força maior nos contratos de energia. Os dois grupos de disputa mais comuns e sobre os quais houve um direcionamento claro da jurisprudência serão tratados abaixo.
61 O primeiro deles diz respeito à questão se “variações abruptas do PLD seriam causa de aplicação da teoria da imprevisão ou da cláusula de caso fortuito ou força maior?” Essas demandas foram, em sua grande parte, apresentadas pelos vendedores de energia e o posicionamento dos Tribunais foi, quase que unanimemente, pelo indeferimento da tese, entendendo que as variações abruptas ou não do PLD seriam parte da álea contratual negociada e contratada pelas partes.
62 O segundo diz respeito à questão se “reduções inesperadas no consumo de energia por parte de consumidores seriam causa de caso fortuito ou força maior, bem como poderia ser aplicada a Teoria da Imprevisão?” Sobre essa questão, os precedentes arbitrais e judiciais também caminham no sentido igualmente de indeferimento da tese, pois tal fato é próprio do risco assumido pelo consumidor. Da mesma forma que o vendedor não pode alegar caso fortuito ou força maior decorrente de variações do PLD ou eventual dificuldade para adquirir energia, o consumidor também não poderia repassar o risco de seu negócio para o vendedor.
63 O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já reconheceu em diversas oportunidades que a variação do PLD não pode ser considerada como evento de força maior a justificar a resolução ou suspensão das obrigações contratuais, estando dentro da álea do contratante14.
64 Ainda, há decisões arbitrais em que se reconheceu a imprevisibilidade de eventos de volatilidade do preço da energia, porém decidiu-se pela insuficiência de tal fato para ensejar resolução por onerosidade excessiva15; bem como em que se decidiu que tais impactos não configuram evento de caso fortuito/força maior por não resultarem na impossibilidade do adimplemento16.
14 Cita-se, como exemplo, acórdão do TJSP com a seguinte ementa: “Venda de energia elétrica. Elevação do PLD - Preço de Liquidação de Diferenças - que não configura motivo de força maior. Inadimplemento não justificado. Revisão do termo inicial de incidência da multa contratual do PLD, com consequente alteração da indenização. Multa contratual reduzida proporcionalmente. Honorários advocatícios reduzidos. Recursos parcialmente providos, nos termos da fundamentação.” (TJSP, 36ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 0142446-08.2009.8.26.0100, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxxxx, x. 11.08.2016 – grifos nossos)
15 “EXTRATO DA SENTENÇA DO CASO DELTA vs. AES INFOENERGY. Sistema Elétrico Nacional SEN. Contrato Bilateral de Longo Prazo de Compra e Venda de Energia. Volatilidade na Cotação do Preço de Liquidação de Diferenças – PLD. Aumento do PLD em janeiro de 2008 por ocorrência de alegados Fatores Imprevisíveis. Imprevisibilidade reconhecida, mas insuficiente, por si só, para caracterizar a onerosidade excessiva. Extrema vantagem para a parte contrária não provada. Inteligência do artigo 478 do Código Civil. Improcedência do pedido de resolução contratual. Registro do Contrato Bilateral na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica - CCEE em base pelo menos mensal reconhecido como decisão empresarial do agente vendedor, assumindo os riscos inerentes à sua decisão. Afastada hipossuficiência de qualquer das partes em razão da posição simétrica ostentada por agentes da CCEE. Pedido de perdas e danos associados ao aumento do PLD nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2007 indeferido por inexistir inadimplemento da parte compradora. Inteligência do artigo 389 do Código Civil. Extinção de medida liminar concedida pelo Poder Judiciário antes do início do procedimento arbitral e mantida pelo Tribunal Arbitral até a decisão de mérito da controvérsia. Fixado o prazo de 30 dias para cumprimento da decisão arbitral. Sentença arbitral proferida pelo voto majoritário dos integrantes do Tribunal Arbitral, existindo voto divergente que aceitou a imprevisibilidade como causa de resolução do contrato bilateral e admitiu expressamente que o registro na CCEE dever ser feito mensalmente e não com periodicidade outra.” (grifos nossos) In: Extrato da Sentença Arbitral dos Procedimentos Arbitrais nº 08, 09 e 10/2008 da Câmara FGV de Arbitragem, acesso em 14.09.2021
16 “CÂMARA FGV DE CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM. PROCEDIMENTO ARBITRAL Nº 02/2008. EXTRATO DE SENTENÇA ARBITRAL. EMENTA: Contrato de Suprimento de Energia – Inadimplemento Parcial – Caso Fortuito e/ou Força Maior – Inocorrência – Existência de Energia – Possibilidade de Adimplemento Integral da Obrigação – Procedência do Pedido para Determinar Registro na CCEE. TRADENER LTDA requereu a instauração do procedimento arbitral em epígrafe contra AES URUGUAIANA EMPREENDIMENTOS S.A. tendo por objeto o reconhecimento de circunstâncias ensejadoras de caso fortuito e/ou força maior que teriam motivado o inadimplemento parcial de suprimento energético pela Tradener nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2008 [...]. As partes não alcançaram composição amigável, e diante das alegações de fato e de direito juntamente com as provas dos autos, o Tribunal
65 Embora as discussões judiciais e arbitrais especificamente sobre os impactos da pandemia da COVID-19 ainda estejam em trâmite, já existe relevante posicionamento firmado pelo Poder Judiciário sobre o assunto no sentido de impossibilidade de se reconhecer a COVID-19 como evento de força maior apto a alterar o cumprimento das obrigações no âmbito de um CCEAL17.
66 Portanto, concluímos que a dinâmica específica do setor de energia e a natureza jurídica do CCEAL impedem o reconhecimento dos impactos da pandemia da COVID-19 como eventos de caso fortuito/força maior a justificar o descumprimento do CCEAL pelo consumidor.
67 Também há que se ressaltar que o pedido da Xxxxxxxx se baseou no artigo 413 do Código Civil, inaplicável à cláusula de take or pay em questão. Entendemos inaplicável tal disposição legal pois esta se vincula intrinsecamente à existência do contrato, não se tratando de pacto acessório para reforçar a obrigação principal. A extração desta conclusão é direta: no caso discute-se o pagamento de preço contratual, não de uma penalidade imposta para inadimplemento. Trata-se da própria obrigação principal, razão pela qual é incabível a redução equitativa do montante.
68 Desse modo, em nossa visão jurídica, não restou configurada a existência de um evento superveniente que autorize a revisão dos valores futuros e vincendos a título de take or pay previsto no Contrato.
Xxxxxxxx decidiu que os eventos alegados não configuraram caso fortuito e/ou força maior uma vez que não impossibilitaram Tradener de cumprir os contratos uma vez que havia energia suficiente no mercado para tal. Por essas razões, o Tribunal Arbitral julgou improcedente o pedido de Tradener Ltda para determinar o registro definitivo perante a CCEE da energia elétrica contrata entre as partes nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2008.” (grifos nossos) In: Extrato da Sentença Arbitral do Procedimento Arbitral nº 02/2008 da Câmara FGV de Arbitragem, acesso em 14.09.2021
17 Um exemplo relevante é o caso Cambuci v. Comerc Comercializadora de Energia Elétrica, em que a autora pretendia o reconhecimento de caso fortuito ou força maior para declarar a rescisão do contrato sem ônus às partes. Registrou a decisão que “A questão está substancialmente relacionada à autonomia negocial das partes e à soberania do encontro de vontades, consoante o próprio teor do novel artigo 421, parágrafo único, do Código Civil, com redação dada pela Lei nº 13.874/2019. [...] No caso em tela, é inegável a obrigatoriedade do contrato, dado que não há qualquer arguição da ocorrência de vício capaz de infirmar a manifestação de vontade de ambas as partes. Ambas tinham plena consciência dos termos contratuais ajustados. [...] É inegável que em decorrência da pandemia Covid-19, a autora teve que paralisar completamente suas atividades econômicas, com redução de seu faturamento (condição essencial do contrato no momento de sua celebração). No entanto, é exigível da autora um mínimo esforço para manter a relação jurídica do que simplesmente propor a redução arbitrária do valor contratado, especialmente considerando-se que todos, ao final dessa pandemia, restaram prejudicados de alguma forma o impacto financeiro não é exclusividade da requerente. [...] Não se trata de uma pequena empresa desprovida de condições de enfrentar o mercado e, tampouco, trata-se de empresa que guarde relação de inferioridade em relação à ré. Nesse sentido, a pretensão da autora resvala em afronta ao princípio da boa-fé objetiva (artigo 422 do Código Civil) e está relacionado com os deveres anexos ou laterais de conduta. [...] Ante todo o exposto, com fincas no artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados. Pela sucumbência, arcará a autora com custas e despesas. Pela sucumbência, arcará a autora com custas, despesas e honorários, que fixo em 10% do valor atualizado da causa, n forma do §2º do artigo 85 do Código de Processo Civil.” (TJSP, 00x Xxxx Xxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx xx Xxx Xxxxx/XX, processo nº 1031176-73.2020.8.26.0100, j. 12.11.2020.)
4 DA (IM)POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO EQUITATIVA DO CCEAL
69 Além da questão da natureza do Contrato e a inaplicabilidade da COVID-19 como evento apto a ensejar a revisão das obrigações contratuais, outro ponto diz respeito à possibilidade de o Tribunal Arbitral reduzir equitativamente o valor das prestações contratuais. Entendemos que não seria possível utilizar os impactos da COVID-19 para a revisão do valor do Contrato em razão de potencial onerosidade excessiva.
70 A onerosidade excessiva reflete uma expressão do princípio da equivalência material (ou princípio do equilíbrio contratual), que “busca realizar e preservar o equilíbrio real de direito e deveres no contato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes [...]”18.
71 O desequilíbrio contratual abarca tanto a situação do contratante que sofre sacrifício em razão da desproporção entre o que deve prestar e o que deve receber (desequilíbrio vertical), mas também, o que é o caso aqui, a do contratante que sofre sacrifício econômico desproporcional ao assumido, porque verificado a partir do agravamento do sacrifício econômico que lhe é imposto no tempo, isto é, entre os momentos de formação e cumprimento do contrato19.
72 Esta concepção está calcada no princípio da conservação dos negócios jurídicos – dentre eles, dos contratos, que enuncia a preferência pela intervenção judicial que evite a extinção da relação, se for possível. A esse respeito, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx Xx. explica que “em lugar de resolver o negócio que provocar onerosidade excessiva a uma das partes, a decisão judicial deve preferir restabelecer o equilíbrio das prestações”20.
73 Importante ressalva, porém, acerca da onerosidade excessiva, diz respeito à sua interação com o elemento “risco”. A doutrina entende que não há lugar para aplicação da onerosidade excessiva – e a consequente redução equitativa da prestação – em contratos que pressupõem o risco. Neste sentido, entende-se que “[...] Em linha geral, não se aplica aos contratos aleatórios, porque envolvem um risco, sendo ínsita a eles a álea e a influência do acaso, salvo se o imprevisível decorrer de fatores estranhos ao risco do próprio contrato” 21.
18 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxx. Princípios contratuais. In: LÔBO, Xxxxx Xxxx Xxxxx e XXXX XX., Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx de. A teoria do contrato e o novo Código Civil. Recife: Nossa Livraria, 2003, p. 18.
19 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Equilíbrio contratual e dever de renegociar. 1ª ed., 2ª tiragem. São Paulo: Saraivajur, 2018, p. 56.
00 XXXXX XX., Xxxxx Xxxxx. Jurisdicionalização dos contratos. In: XXXXXXX XX., Xxxxxxx Xxxxx e XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx (coord). Direito dos contratos. São Paulo: Quartier Latin, p. 97.
21 Xxxxxx completo sobre a onerosidade excessiva segundo Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx: “Embora o princípio pacta sunt servanda ou da intangibilidade do contrato seja fundamental para a segurança nos negócios e fundamental a qualquer organização social, os negócios jurídicos podem sofrer as consequências de
74 Assim como os demais impactos, para a verificação da onerosidade excessiva, há uma série de requisitos casuísticos que devem ser observados, inclusive com relação à extensão e gravidade da crise que é vivenciada. De um lado, deve haver extrema onerosidade para uma das partes e, de outro, extrema vantagem para a outra.
75 No caso, a redução de lucro alegada pela Bacamaso não nos parece guardar nexo causal direto com a COVID-19, bem como não há onerosidade excessiva à Bacamaso em razão dos mecanismos de acesso a novos recursos decorrentes do mercado de energia como abordado acima. Além disso, não verificamos extrema vantagem para a Cevica.
76 Ainda que não se desconheça os impactos amplos da COVID-19, é fato que a natureza especialíssima de um CCEAL impossibilita a revisão do valor das prestações. Ou seja, considerando a característica de hedge e o fato de a Cevica já ter adquirido de terceiros toda a energia que se comprometeu contratualmente entregar à Xxxxxxxx, qualquer alteração de valores ou condição de pagamento terá como efeito imediato a alocação do impacto financeiro à Cevica.
77 Consequentemente, em nossa visão jurídica, embora não se neguem os impactos da pandemia da COVID-19, a natureza estritamente financeira do contrato é razão suficiente para que não se admita a revisão dos valores contratados.
* * * * *
modificações posteriores das circunstâncias, com quebra insuportável da equivalência. Tal constatação deu origem ao princípio da revisão dos contratos ou da onerosidade excessiva, que se opõe àquele, pois permite as contratantes recorrerem ao Judiciário, para obterem alteração da convenção e condições mais humanas em determinadas situações. [...] A teoria que se desenvolveu com o nome de rebus sic stantibus consiste basicamente em presumir, nos contratos comutativos, de trato sucessivo e de execução diferida, a existência implícita (não expressa) de uma cláusula pela qual a obrigatoriedade de seu cumprimento pressupõe a inalterabilidade da situação de fato. Se esta, no entanto, modificar-se em razão de acontecimentos extraordinários, como uma guerra, por exemplo, que tornem excessivamente oneroso para o devedor o seu adimplemento, poderá este requerer ao juiz que o isente da obrigação, parcial ou totalmente. [...] A ação de resolução por inadimplemento contratual parte do pressuposto de que o credor já perdeu o interesse pelo adimplemento, enquanto na onerosidade excessiva ‘esse interesse ainda pode existir, tanto que permitida a simples modificação do contrato. Também a circunstância de fasto que fundamenta o pedido de extinção é, na onerosidade excessiva, estranha às partes, enquanto no incumprimento decorre de fato atribuível ao devedor. [...] Embora a resolução por onerosidade excessiva se assemelhe ao caso fortuito ou força maior, visto que em ambos os casos o evento futuro e incerto acarreta a exoneração do cumprimento da obrigação, diferem, no entanto, pela circunstância de que o último impede, de forma absoluta, a execução do contrato (impossibilitas praestandi), enquanto a primeira a primeira determina apenas uma dificultas, não exigindo, para sua aplicação, a impossibilidade absoluta, mas a excessiva onerosidade, admitindo que a resolução seja evitada se a outra parte se oferecer para modificar equitativamente as condições do contrato. [...] Em linha geral, não se aplica aos contratos aleatórios, porque envolvem um risco, sendo ínsita a eles a álea e a influência do acaso, salvo se o imprevisível decorrer de fatores estranhos ao risco do próprio contrato”. (XXXXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito Civil Brasileiro: Contratos e Atos Unilaterais. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2017. pp. 192 – 194).