FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
A NATUREZA JURÍDICA DA RELAÇÃO MÉDICO- PACIENTE: O CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
Trabalho apresentado no âmbito da unidade curricular Direito Civil II, do Mestrado científico em Direito (revisto)
Regente: Professor Doutor Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx: Xxxxx Xxxxx Xxxxxxxx Xxxx
Coimbra 2012/2013
Sumário
I- Introdução – relação jurídica médico-paciente: um contrato?
1. Delimitação do tema: relações jurídicas entre privados
2. O surgimento da ideia de contrato
3. Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual II- O contrato médico – que contrato?
1. Conteúdo do contrato
2. Classificação: contrato de prestação de serviços médicos
3. Características essenciais
4. O problema da definição do objecto: obrigação de meios ou obrigação de resultado?
5. As dificuldades na determinação dos contraentes
III- Regime jurídico do contrato de prestação de serviços médicos
1. Regime jurídico: a necessidade de integração contratual
2. Formação do contrato
2.1. O princípio da liberdade contratual e a liberdade de contratar
2.2. O princípio da liberdade de forma
2.3. A representação no contrato médico
3. Obrigações contratuais
3.1. Deveres contratuais do médico
3.2. Deveres contratuais do paciente
4. Incumprimento
IV- Conclusão
I- INTRODUÇÃO – relação jurídica médico-paciente: um contrato?
1. Delimitação do tema: relações jurídicas entre privados
Há muito que as relações que se estabelecem entre o médico e o seu paciente vêm merecendo crescente foco de atenção por parte dos juristas, porquanto a determinação do seu regime jurídico se tem revelado, em concreto, assaz dúbia. Os problemas que daqui advêm manifestam-se não só ao nível da discussão doutrinal, mas também - e sobretudo - no âmbito do derradeiro patamar da decisão jurisprudencial, sede onde essa indeterminação se torna um verdadeiro entrave à realização dos objectivos magnos da justiça material e da paz social.
É claro que as dificuldades na definição do regime jurídico aplicável serão, naturalmente, tanto maiores quanto maior seja a tendência para bifurcações ‘artificiais’ por parte dos ordenamentos jurídicos que, como o nosso, operam a diferenciação entre, por um lado, unidades privadas de saúde (maxime, as “clínicas privadas”) e, por outro, unidades públicas de saúde, ou seja, os hospitais públicos, pertencentes à rede do Serviço Nacional de Saúde (doravante, SNS).
É hoje relativamente pacífico, quer na jurisprudência, quer na doutrina dominantes, o entendimento de que a relação que se estabelece entre o hospital público e o particular se trata de uma relação de serviço público, assumindo, pois, os respectivos actos médicos a natureza de actos de gestão pública, dado em causa estarem, acima de tudo, actos praticados no exercício de poderes públicos, com vista à realização do interesse público1 2.
1 Neste sentido, ver, por exemplo, FREITAS DO AMARAL, Diogo, “Natureza da Responsabilidade Civil por Actos Médicos Praticados em Estabelecimentos Públicos de Saúde”, in Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, 1991, pp. 121 e ss., XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, “Estrutura Jurídica do Acto Médico, Consentimento Informado e Responsabilidade Médica”, in Temas de Direito da Medicina, 2.ª edição aumentada, Coimbra, Coimbra Editora, 2005 e SÉRVULO CORREIA, “As Relações Jurídicas de Prestação de Cuidados pelas Unidades de Saúde do Serviço Nacional de Saúde”, in Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, pp. 11 e ss.
2 Contra esta ideia de relação de serviço público, sustentavam FIGUEIREDO DIAS/ XXXXX XXXXXXXX, Responsabilidade Médica em Portugal, Separata de Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1984, pp. 33 e ss., com base nas figuras do contrato de adesão (tese já antes defendida por XXXXXXX, Xxxxxxxx de, A responsabilidade civil do médico e o seu seguro, Scientia Juridica, XXI, 1972, pp.327 e ss.) ou das relações contratuais de facto, a existência de um verdadeiro vínculo contratual entre o hospital público e o particular, utente do SNS, o que, em caso de prejuízo causado pelo médico, daria origem a responsabilidade contratual do hospital público por actos dos auxiliares no cumprimento (art. 800.º do Código Civil).
Assim sendo, o regime de responsabilidade aplicável a este tipo de relações não é senão o da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, relativa ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, de acordo com o qual o hospital público responde (extracontratualmente) - e responde “exclusivamente” - pelos danos causados pelos médicos com “culpa leve” (cfr. art. 7.º, n.º 1 do regime).
No entanto, o médico também (e só) pode, nos termos do n.º 1 do art. 8.º, incorrer em responsabilidade civil extracontratual caso exista da sua parte “diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava obrigado”, ou, claro está, em caso de dolo. Nestes casos, a responsabilidade do hospital será solidária (art. 8.º, n.º 2), cabendo-lhe posteriormente direito de regresso, caso haja sido paga a indemnização respectiva (cfr. n.º 3 do art. 8.º).
Pois bem, perante o quadro apresentado, não podemos deixar de nos questionar sobre a efectiva diferença material entre medicina pública e medicina privada que justifique tal diversidade de regimes. De facto, “consoante se esteja perante a responsabilidade administrativa ou civil, o réu é distinto (ali o hospital, aqui o médico), com diferentes jurisdições (no primeiro caso, a administrativa, no segundo, a comum); para além de o próprio regime ser diferente”3. Ora, reconhecendo-se o acto médico4 como substancialmente idêntico, independentemente de em concreto se verificar uma relação de direito público ou antes uma relação de direito privado, parecem-nos de não pequena monta as consequências que daí derivam, sobretudo se tivermos em conta a situação de tendencial desfavor em que o paciente-lesado se encontra no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual5. Apesar da perplexidade que tal facto nos suscita, não nos parece contudo plausível, ao menos de iure condito, qualquer outra construção.
No presente estudo, debruçar-nos-emos apenas sobre as relações jurídico-privadas, com exclusão, portanto, das relações existentes entre o SNS e os respectivos utentes.
3 XXXXXXX, Xxxxx, O Consentimento Informado na Relação Médico-paciente: Estudo de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 36, nota 54.
4 Seguimos aqui a noção de acto médico proposta por XXXXXXXXX, Xxxx Xxx, O Consentimento Informado para o Acto Médico no Ordenamento Jurídico português: (Elementos para o Estudo da Manifestação de Vontade do Paciente), Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 24, segundo o qual se trata aquele de “uma actuação do agente médico (sublinhado nosso) na esfera físico-psíquica do paciente com o sentido de proporcionar saúde em benefício próprio (deste), em benefício alheio ou em benefício geral”. Elemento fundamental do conceito é, pois, que o sujeito seja “agente médico”, sendo, portanto, necessário, em qualquer caso, que tal acto (dirigido a “proporcionar saúde”) seja praticado por um médico habilitado para o exercício da medicina, sem o que, cumprindo-se os demais requisitos da noção, deixaremos de ter um acto médico, para passarmos a ter um acto médico auxiliar ou acto paramédico.
5 Sobre a os regimes da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, ver infra ponto 3 desta parte I.
2. O surgimento da ideia de contrato
Se hoje é praticamente indiscutível que a relação que liga o médico ao seu paciente encerra, nas relações privadas, uma natureza eminentemente contratual, advirta-se, contudo, para o facto de que nem sempre assim foi.
Durante praticamente todo o século XIX, as questões que se levantavam em matéria de responsabilidade médica - que, registe-se, sempre foram exíguas - eram ‘automaticamente’ remetidas para sede delitual. Com efeito, acreditava-se que o exercício das profissões liberais era expressão máxima da liberdade dos respectivos profissionais e que, por essa razão, haveriam estes de realizar a actividade de forma gratuita, constituindo os ‘honorários’ pagos pelas pessoas um mero “agradecimento”6. Depois, a vida e a saúde humanas eram consideradas bens jurídicos ‘intocáveis’, não podendo ser objecto de negócios7. Além disso, causava estranheza ao senso comum a ideia de que a actuação médica pudesse ser regulada por um contrato, porquanto se entendia o saber médico como algo de próximo do sagrado - os médicos, durante a sua actividade, apenas estariam vinculados à lei e, eventualmente, às normas deontológicas da profissão; nunca a um contrato.
Num tom mais genérico e em jeito de súmula, podemos dizer que, até há bem pouco tempo, a relação médico-paciente se encontrava marcada por um profundo paternalismo clínico8, dificilmente coadunável com a ideia de contrato e com a situação de tendencial paridade que ele por excelência propicia. Esta filosofia de certo ‘distanciamento’ e de não comunicação com o paciente (desde logo, ao nível do esclarecimento sobre as terapêuticas a aplicar), aliada à não existência de um efectivo reconhecimento de um conjunto sistemático e coerente de verdadeiros direitos do paciente (dos quais o mais importante e paradigmático será o direito ao consentimento informado, segundo o qual o paciente tem, em princípio, total liberdade para aceitar ou recusar a intervenção
6 Xxx XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, “Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico”, in
Direito da Saúde e da Bioética, Lisboa, AAFDL, 1996, pp. 79 e ss.
7 Cfr. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 80.
8 Sobre o paternalismo médico, ver, mais desenvolvidamente, XXXXXXXXX XX XXXXXXXX, op. cit. pp. 59 e ss. e XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., pp. 24 e ss.
médica9), constituiam, sem dúvida, terreno natural para a responsabilidade com base no delito.
Em 20 de Maio de 1936, uma sentença da Cour de Cassation viria dizer, pela primeira vez expressamente, que “forma-se entre o médico e o seu paciente um verdadeiro contrato”10. Em Portugal, foi Xxxxxxxx xx Xxxxxxx o primeiro a afirmar claramente, em 1972, que “as relações mais comuns entre médicos e doentes assumem natureza contratual”11.
Pela primeira vez, aparecia a figura do contrato associada à actividade médica, o que viria a contribuir decisivamente para que as relações entre médico e paciente passassem “de um plano mágico e quase religioso para um terreno balizado pelo direito”12, ou seja, um plano de igualdade ou de paridade, em que o médico não é mais do que um contraente, como qualquer outro.
Com este passo, estavam lançadas raízes para que, paulatinamente, se fosse instalando na consciência de médicos e de doentes a percepção da existência de um verdadeiro corpus articulado e coerente de direitos do paciente, a deverem ser observados durante a prática clínica13.
3. Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual
Pois bem, tendo nós concluído pela definitiva existência de um contrato, foquemo-nos agora, por breves instantes, numa outra importante consequência que daí decorre: a circunstância de o paciente passar agora a estar protegido pelo regime da responsabilidade civil contratual, claramente mais vantajoso para o lesado/ credor (in casu, o paciente) a vários níveis. Vejamos sumariamente quais sejam essas vantagens.
Em primeiro lugar, quando em causa esteja responsabilidade contratual o prazo de prescrição é o prazo ordinário de vinte anos, que consta do artigo 309.º do Código Civil (doravante, CC), enquanto na responsabilidade aquiliana nos deparamos com um curtíssimo prazo de apenas três anos (art. 498.º do CC), findo o qual o paciente deixa de poder intentar a acção.
9 Para um estudo abrangente sobre a doutrina do consentimento informado, ver a obra de XXXXXXX, Xxxxx, op. cit..
10 Xxxx XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., p. 31, nota 38.
11 XXXXXXX, Xxxxxxxx xx, op. cit., p. 5.
12 XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., p.32.
13 Para uma evolução histórica, em especial sobre a questão do consentimento informado, ver XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., pp. 24 e ss. e 56 e ss.
Por outro lado, existe na responsabilidade obrigacional uma presunção de culpa do devedor (médico) (cfr. art. 799.º do CC), que não existe em sede extracontratual - nesta vale o regime geral, que resulta dos arts. 487.º, n.º 1 e 342.º, n.º1 do CC, segundo o qual terá de ser o lesado (paciente) a provar a culpa do lesante; o que, convenhamos, é francamente difícil para o paciente, uma vez que não dispõe, em regra, nem dos conhecimentos técnico-científicos, nem dos meios materiais para tal. Isto é, enquanto na primeira forma de responsabilidade o paciente apenas tem de provar o dano e a violação das leges artis (ilicitude) (e o respectivo nexo de causalidade), na responsabilidade extracontratual ele terá ainda de provar a culpa do médico, pressuposto de difícil prova para a generalidade dos pacientes, em regra leigos em matéria de medicina.
Em terceiro lugar, refira-se o não despiciendo facto de, no âmbito da responsabilidade delitual, ser necessária uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º do CC, para que o médico responda pelas pessoas que utiliza no cumprimento da obrigação a que está adstrito; ao contrário, na responsabilidade contratual o devedor responde ‘automaticamente’ pelos actos dos auxiliares no cumprimento (art. 800.º, n.º1), i.e, das pessoas que utilize no cumprimento do dever de tratamento (v.g., outros médicos, enfermeiros, ou outro pessoal paramédico)14, ao qual contratualmente se vinculou.
O único ponto em que parece haver alguma desvantagem para o paciente na mobilização da responsabilidade contratual, tem que ver com a circunstância de, em caso de pluralidade de devedores, a responsabilidade ser parciária (seguindo-se, portanto, o regime geral), enquanto na responsabilidade extracontratual é solidária (cfr. o art. 497.º do CC).
Dos apontamentos precedentes conclui-se, pois, facilmente, uma clara vantagem para o paciente na utilização do regime da responsabilidade com base no incumprimento de obrigações contratuais, relativamente àqueloutro aplicável à responsabilidade delitual, sobretudo marcado pela nota do anonimato e, por isso mesmo, menos protector. Simplesmente, esta última estará sempre, por assim dizer, ‘garantida’, dado o facto de no exercício de um acto médico15 sempre estarem em causa direitos (absolutos) de personalidade, tais como o direito à integridade física e moral e o direito à autodeterminação (v.g., uma vez mais, no caso de violação do consentimento informado), o que nos remete imediatamente para a primeira modalidade de ilicitude do
14 Ou seja, mesmo que não possa dar instruções nem fiscalizar a sua actividade, o médico responde pela actuação dos outros médicos, pelo simples facto de ser ele o contraente activo.
15 Com o sentido que lhe demos supra, ponto 1, nota 4.
art. 483.º, n.º 1 do CC. Assim, em caso de dano provocado por acto médico, mesmo que entre o médico e o paciente não exista qualquer vínculo contratual16 (ou, havendo, este seja nulo), o paciente terá sempre, “pelo menos”, a responsabilidade extracontratual.
No entanto, como proceder quando se verifique uma situação de concurso de responsabilidades, i.e, quando, para além da protecção conferida pelo regime da responsabilidade aquiliana por violação de direitos absolutos, haja sido celebrado contrato (plenamente válido e eficaz)?
Pois bem, a este respeito, vêm doutrina e jurisprudência maioritárias defendendo há muito que, em caso de concurso, o lesado/ credor poderá optar por uma ou outra forma de responsabilidade, ou mesmo utilizar regras de ambas17. Trata-se da teoria do cúmulo de responsabilidades, que acabou por vingar sobre a chamada teoria da absorção, por se reconhecer não haver distinção essencial, mas antes uma “unidade substancial”, entre ambas as responsabilidades, e por se não descortinar na lei qualquer sustento para que uma (neste caso, a contratual) prevalecesse sobre a outra.
Ressalve-se, todavia, que o problema não apresenta, em todo o caso, relevância prática de monta, dada a quase inquestionável normal preferência pela responsabilidade contratual.
Uma última nota para acrescentar que, havendo contrato, sempre poderá proteger-se, para além dos mencionados direitos de personalidade, todo um rol de outros direitos, designadamente patrimoniais, que de outra forma não poderiam ser tutelados.
II- O CONTRATO MÉDICO - que contrato?
1. Conteúdo do contrato
A relação contratual de que vimos falando (e que, por ora, podemos designar simplesmente por contrato médico) tem por conteúdo ou elementos essenciais a
16 V.g., situações de urgência, em que o doente está inconsciente, ou em que o médico o socorre mesmo na rua, para além das referidas situações em que a actuação médica se dá no âmbito dos hospitais públicos (que não fazem parte do objecto deste estudo), onde, como vimos, também não há contrato.
17 Cfr. XXXXXXXXXX XXXX/ XXXXX XXXXXXXX, op. cit., pp. 24 e 25.
prestação de um acto médico ou conjunto de actos médicos, realizados por um médico18 a uma pessoa humana (o paciente19), com o “intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano” (art. 31.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (de ora em diante, CDOM), in fine).20 Trabalhamos, pois, com um conceito amplo de saúde, no qual se incluem não só os actos médicos destinados à cura do doente, mas também todos aqueles reconduzíveis a uma ideia genérica de promoção do bem-estar ‘orgânico’ ou de minimização do mal-estar.
Do que fica dito, podemos agora concluir que o conteúdo do contrato médico coincide com aquele conteúdo que atribuimos ao acto médico: ele há-de analisar-se num contrato que tenha por finalidade proporcionar saúde e que, para além disso, seja realizado por um médico21. Neste sentido, é possível dizer-se, em síntese, que o contrato médico é aquele cujo conteúdo principal é constituído por um ou mais actos médicos22.
2. Classificação: contrato de prestação de serviços médicos
Vai chegando o momento de classificar o contrato de que temos vindo a falar até aqui, atribuindo-lhe definitivamente um nome (algo que, propositadamente, temos estado a evitar) e daí retirando consequências.
Comecemos então por clarificar que não se analisará, certamente, esse contrato entre médico e paciente num contrato de trabalho (artigo 1152.º do CC). Com efeito, dificilmente se conceberia uma tal relação médico-paciente em que o médico estivesse “sob a autoridade e direcção” do seu paciente, pois que tal situação (para além do absurdo que comportaria) seria, desde logo, absolutamente incompatível com a independência técnica e deontológica dos médicos (art. 3.º do CDOM), indispensável para o bom exercício da medicina.
18 Como vimos supra, parte I, ponto 1, nota 5, sem tal requisito estaremos perante simples actos médicos auxiliares (v.g., os actos praticados pelos enfermeiros).
19 O acto praticado pelo médico terá sempre de incidir sobre um paciente, mesmo que não seja ele o contraente (ver infra ponto 2.3 da parte III).
20 Com este sentido, mas referindo-se ao anterior CDOM, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 84.
21 Cfr. supra, parte I, ponto 1, nota 4.
22 Pode haver, no âmbito do mesmo contrato, outras prestações que não sejam realizadas por um médico (v.g., os actos dos enfermeiros); no entanto, o contrato só se descaracteriza enquanto contrato médico se a “prestação característica e principal” não for executada por um médico. Neste sentido, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., pp. 84.
Perante esta conclusão, parece claro que não haverá como não incluir o contrato médico na ampla categoria dos contratos de prestação de serviços, categoria que, como resulta da simples leitura do artigo 1154.º, dispensa a mencionada relação de autoridade ou de subordinação jurídica, privilegiando antes uma ideia de independência do prestador, que apenas terá de apresentar posteriormente “um certo resultado”. O objecto do contrato de prestação de serviços é, pois, não a própria actividade, como acontece no contrato de trabalho, mas um determinado “resultado” dessa actividade.
Acontece, porém, que o contrato de prestação de serviços é, em si mesmo, “um contrato atípico, que possui três modalidades típicas”23, a saber: o mandato, o depósito e a empreitada (cfr. art. 1155.º do CC). Lancemos então um rápido olhar sobre cada uma destas modalidades e vejamos se se poderá nalgum deles enquadrar o nosso contrato médico.
Pois bem, excluindo naturalmente, desde já, a hipótese do contrato de depósito24, podemos começar por indagar sobre se não poderá este contrato médico consubstanciar um mandato, tal como vem regulado nos arts. 1157.º e ss. do CC. Esclarece, no entanto, MENEZES LEITÃO que “um dos elementos essenciais do mandato é que o mandatário assuma a obrigação de praticar actos jurídicos (sublinhado nosso)”, não constituindo, portanto, mandato aquele contrato que tenha por conteúdo “actos materiais ou intelectuais”25. Ora, não restam dúvidas de que a actividade médica constitui claramente uma actividade intelectual, independentemente dos actos jurídicos que possam ser praticados na execução do acto médico26.
Mas poderá este contrato configurar-se então como uma empreitada? Se bem virmos, seria inconcebível, e até algo chocante, considerar o objecto da actividade médica, i.e, esse tal “certo resultado” de que nos fala o artigo 1154.º, como uma obra, porquanto esta consiste na produção ou transformação de uma coisa. Ora, “a “obra” que o médico eventualmente realize consiste numa alteração produzida no corpo humano”27, o que, como é evidente, nos reporta de imediato para um outro ‘mundo’, que não o das coisas - qual não seja o complexo mundo das relações humanas, que nos suscita, a este respeito,
23 XXXXXXX XXXXXX, Xxxx, Direito das Obrigações, vol. III, contratos em especial, 7.ª edição, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p. 433.
24 Pois que não está em causa no contrato médico (ao menos a título principal) a guarda de uma coisa que depois deva ser restituída pelo depositário (cfr. art. 1185.º do CC).
25 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx, op cit., pp. 438.
26 V.g., a prestação do consentimento (informado) para o acto médico.
27 XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 88.
as questões mais sensíveis, como a da protecção de bens jurídicos tão fundamentais quanto a liberdade, a integridade físico-psíquica ou a própria vida.
Que tipo de contrato de prestação de serviços poderá ser então o contrato médico? Tendo-se excluído as três hipóteses típicas de contrato de prestação de serviços, temos de concluir pela ‘natureza sui generis’ deste contrato; na verdade, está em causa não uma das três categorias previstas no artigo 1155.º do CC, mas antes uma outra modalidade não regulada no CC (art. 1156.º); trata-se, enfim, de um autónomo contrato de prestação de serviços médicos, que, não encontrando a sua regulação específica no CC, não deixa, no entanto, de ser um contrato típico, na justa medida em que a sua tipicidade resulta não da lei, mas do simples facto da sua existência na sociedade enquanto categoria jurídica autónoma. Com XXXXXXXX XX XXXXXXX, assumimos, pois, que o contrato de prestação de serviços médicos é não um tipo legal, mas um tipo social e nominado, “porque como tal referido na prática e pressuposto em várias disposições legais”28; está, pois, em causa um verdadeiro e autêntico “contrato socialmente típico”, resultante da constatação da existência de uma prática constante e uniforme reconhecida e assumida generalizadamente como vinvulativa, i.e, dotada de juridicidade29.
3. Características essenciais
Como adiantámos já no ponto precedente, uma das características do contrato em análise que convém desde já salientar é a de que estamos em presença de um contrato nominado e típico, cujo regime, como veremos, devemos descortinar através do mecanismo da integração jurídica30.
Uma outra característica importante diz respeito à natureza consensual ou não formal do contrato de prestação de serviços médicos. Com efeito, vale aqui inteiramente o princípio da liberdade de forma, preceituado no art. 219.º do CC, verificando-se na prática que as “consultas” são as mais das vezes marcadas oralmente, não raro por via telefónica.
28 XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 88.
29 Ou seja, estamos afinal ante os pressupostos do costume jurídico enquanto fonte de direito. Sobre os contratos socialmente típicos, PAIS DE VASCONCELOS, Xxxxx, Contratos Atípicos, 2.ª edição, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, pp. 59 e ss.
30 Ver infra ponto 1, da parte III, deste trabalho.
Questão inevitável é também a de saber se se deverá ou não considerar este contrato um contrato oneroso. Pois bem, como veremos melhor adiante (infra, ponto 1 da parte III), trata-se este de um caso em que as normas do contrato de mandato claramente se aplicam supletivamente31, nomeadamente na parte em que se diz que, se o contrato tiver por objecto actos que se insiram no âmbito da prática profissional do mandatário - ou seja, do médico -, esse contrato “presume-se oneroso” (art. 1158.º, n.º 1 do CC). Ora, bem sabemos que, de facto, na maior parte das vezes, esta característica da onerosidade tenderá a verificar-se, porquanto em regra o paciente terá de pagar ao médico os respectivos honorários pelo serviço prestado; mas isso, está bem de ver, não significa que assim seja necessariamente. Pense-se, desde logo, para não ir mais longe, no exemplo plasmado no artigo 106.º do CDOM, que estabelece um dever dos médicos de prestar gratuitamente serviços médicos aos colegas de profissão.
Já a questão da correspectividade do contrato parece não levantar grandes dúvidas: estamos, indubitavelmente, em face de um contrato sinalagmático ou bilateral, pois que se, por um lado, temos necessariamente, do lado do médico, um dever contratual de tratamento (que, por constituir o núcleo do contrato de prestação de serviços médicos, não poderia deixar de existir sem alterar o tipo contratual), do lado do paciente, quando não haja lugar ao mencionado dever de pagar honorários, conforme acima demos nota, sempre haverá, quando menos, um dever de cooperação ou de colaboração - enquanto manifestação da boa-fé contratual - como imediato correspectivo da obrigação de tratamento que sobre o médico impende32.
Uma característica fundamental que encontramos neste contrato é ainda a que respeita à sua natureza intuitu personae. Com efeito, traduz o contrato médico uma relação jurídica de carácter pessoalíssimo, fortemente estribada numa relação de confiança entre o médico e o seu paciente33.
Finalmente, uma última nota para mencionar a configuração do contrato de prestação de seviços médicos como um verdadeiro contrato de consumo, plenamente abrangido pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor), na medida em que se considera consumidor “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços (sublinhado nosso) ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não
31 Cfr. art. 1156.º do CC.
32 Sob pena de existir mora do credor, como teremos ocasião de ver infra, parte III, ponto 4.
33 Uma característica que, de resto, não poderá deixar de estar na base de questões sensíveis como as levantadas a respeito do específico sigilo profissional médico. Sobre o segredo médico, ver a Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro (Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde), designadamente no seu art. 3.º, n.º 1, na parte em que diz que a informação de saúde “é propriedade da pessoa”.
profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios” (cfr. art. 2.º, n.º1). Como se vê, o paciente fica assim protegido, enquanto consumidor de cuidados de saúde, relativamente aos serviços prestados profissionalmente pelo médico, tendo a seu favor um amplo acervo de normas de protecção, a começar pelas previstas na referida Lei de Defesa do Consumidor.
4. O problema da definição do objecto: obrigação de meios ou obrigação de resultado?
Questão melindrosa tem sido, ao longo da evolução doutrinal da responsabilidade médica, a da exacta determinação do objecto, ou seja, a de saber qual o seu conteúdo e limites para efeitos de definição da obrigação que impende sobre o médico. Está em causa a velha distinção entre obrigação de meios e obrigação e resultados, operada por DEMOGUE a propósito do Code Civile francês.
Na verdade, se deitarmos um primeiro olhar, mais despreocupado, ao artigo 1154.º do CC, sobre o contrato de prestação de serviços, ele parece apontar, prima facie, para uma ideia de obrigação de resultado, na parte em que justamente se refere a um “certo resultado”. Quererá então esta referência expressa a um “resultado” significar que a obrigação nuclear do contrato de prestação de serviços médicos se analisa numa verdadeira obrigação de cura?
Pois bem, desde há muito que se vem assumindo estarmos, no caso da prestação de cuidados médicos, em presença de uma mera obrigação de meios34, ou seja, uma simples obrigação de (máxima) diligência e de cuidado, em que o médico se não achará incumpridor pela simples eventualidade de não conseguir lograr a cura do doente35. Com efeito, não obstante o objectivo ou fim último da intervenção médica - e, por conseguinte, do contrato médico - ser efectivamente a cura, o objecto contratualmente assumido nestas situações não pode senão haver-se como uma mera obrigação de tratamento, nos termos da qual o profissional de saúde se vincula a empregar todos os meios no sentido de atingir o melhor ‘resultado’ possível, nomeadamente procedendo
34 Já a referida sentença de 20 de Maio de 1936 da Cour de Cassation fazia referência à obrigação de meios do médico.
35 Descontados os casos marginais em que o médico assuma contratualmente esse resultado. Trata-se de algo mais frequente em certas operações estéticas (v.g., cirurgias plásticas para colocação de implantes mamários).
com a máxima diligência e fazendo uso das melhores técnicas e dos mais actuais conhecimentos.
Na base desta ideia está o facto de a actividade médica comportar quase sempre uma certa alea. Quer dizer, o facto de existir um (maior ou menor) conjunto de factores externos imprevisíveis ou incontroláveis impossibilita o médico de assegurar ao paciente um resultado exacto, i.e, que seja como que consequência inevitável da intervenção proposta36. Mas como compatibilizar esta compreensão com a expressão “certo resultado” do artigo 1154.º?
Parece dever entender-se que a expressão utilizada no artigo 1154.º do CC serve sobretudo o propósito de contrapor o contrato de prestação de serviços ao contrato de trabalho, cuja definição encontramos no artigo 1152.º. Na verdade, a expressão “certo resultado” aponta mais ou menos directamente para uma ideia de autonomia do prestador de serviços, que contrasta com a sujeição do trabalhador dependente à “autoridade e direcção” do seu patrono37. Ademais, se bem vemos, falar em “certo resultado” sempre será diferente do caso em que se falasse em “resultado certo”...! O “certo resultado” é, pois, o próprio tratamento, em si mesmo - afinal de contas, aquele determinado (e bastante limitado) “resultado” com que o médico se pode comprometer para com o paciente.
Não se pense, contudo, que assim é em todo e qualquer caso, abstraindo das circunstâncias concretas que o envolvam. Se é certo que podemos assumir a regra da obrigação de meios como tendo valor geral, não poderão deixar de ser reconhecidos casos de excepção, em que a intervenção médica encerrará, indubitavelmente, uma obrigação de resultado. Esses casos de desvio à regra geral serão, por exemplo, os casos de análises clínicas ou, eventualmente, da colocação de próteses (sempre na medida em que não haja risco de qualquer ‘rejeição’ desse “corpo estranho”).38 Tratar-se-ão estas de situações em que, ao que julgamos, o médico estará em condições de ‘prometer’ um
36 Esta natureza aleatória do tratamento médico resulta, desde logo, das diferentes reacções corporais aos mesmos tratamentos.
37 Neste sentido, XXXXX XX XXXX/ XXXXXXX XXXXXX, Código Civil: Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 783.
38 Rejeitamos liminarmente que possam as cirurgias estéticas (de qualquer espécie, terapêuticas ou não) ser um desses casos de excepção, pois que sempre o resultado final assentará sobre uma certa alea - desde logo, uma vez mais, a reacção orgânica por parte do doente. Neste sentido, XXXXXX XXXX, Xxxx, Procriação Assistida e Responsabilidade Médica, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 253. Veja-se também o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Novembro de 2012, segundo o qual “no contrato de prestação de serviços médicos cirúrgicos, ainda que na vertente de cirurgia estética, o cirurgião assume uma obrig meios”. Admitindo, contudo, o caso das operações estéticas como possíveis obrigações de resultado, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 110.
determinado e específico resultado ao seu paciente (o resultado - seja ele ‘bom’ ou ‘mau’ - da análise do colesterol ou da glicemia, ou a colocação da prótese de uma perna) e em que, consequentemente, poderá ser responsabilizado pela sua imperícia ou pela sua falta de cuidado.
Apesar das críticas frequentes a esta clássica distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultados39, cremos poder tirar dela algum préstimo de ordem prática, nomeadamente para efeitos de delimitação do ónus da prova que impende sobre o profissional médico. De facto, caso estejamos perante um daqueles casos excepcionais de obrigação de resultado, em caso de não cumprimento por parte do médico o paciente apenas terá de provar a ocorrência desse mesmo facto, que será automaticamente ilícito
- não precisando, portanto, de provar a violação dos deveres de cuidado (leges artis) -, e também não necessitará de provar a culpa, uma vez que sobre o médico impende a presunção (ilidível) de culpa do artigo 799.º do CC.
Advirta-se, no entanto, que a determinação de quais sejam as verdadeiras excepções à natureza de obrigação de meios não deverá ser feita em abstracto, postergando a indispensável análise casuística. Com efeito, perante situações duvidosas, só uma detida e rigorosa ponderação caso a caso poderá oferecer resposta adequada.
5. As dificuldades na determinação dos contraentes
Quando falamos em prestação de serviços médicos, um primeiro e mais intuitivo pensamento nos conduz naturalmente à ideia clássica da relação concretizada no doente que se dirige ao consultório do médico profissional liberal. Esta, pela sua simplicidade e proximidade, tem sido a relação médico-paciente pressuposta até aqui na nossa exposição.
Ora, este paradigma tem vindo progressivamente a ser superado a passos largos pela realidade actual, cada vez mais marcada pela proliferação de hospitais privados e de grandes clínicas, em que a relação entre o médico e o seu doente se insere no quadro de uma relação jurídica bastante mais complexa do que a tradicional; um quadro novo nos termos do qual o médico pode inclusive deixar de ser parte (devedor) no contrato. O que, se bem vemos, e atendendo à progressiva densificação da rede de estabelecimentos
39 XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., pp. 110 e ss.
privados de saúde40 (e ao aumento da sua dimensão) e à crescente massificação do recurso aos mesmos - sobretudo pela comodidade e flexibilidade que proporcionam -, poderá mesmo, em certas circunstâncias, representar uma perniciosa distorção relativamente à natureza intuitu pernonae que caracteriza o contrato41, afectando assim a relação de proximidade em que o mesmo deve assentar. Façamos então um brevíssimo cotejo de quais sejam tais outras relações jurídicas “novas”.42
Pois bem, desde logo, pode o próprio paciente não ser o credor da relação contratual. Assim acontece quando o paciente tenha celebrado contrato de seguro com uma empresa seguradora, que, por sua vez, tenha contratado com determinado médico ou clínica a prestação de assistência médica ao segurado, mediante a ocorrência de determinadas eventualidades previstas. O credor da prestação médica é, neste caso, a empresa seguradora, não obstante a relação pessoal nuclear se verificar entre o médico (directamente no seu consultório ou no quadro de uma clínica) e o paciente. O mesmo se diga em relação àquelas prestações médicas realizadas no âmbito da medicina do trabalho, em que as entidades empregadoras asseguram aos seus trabalhadores os cuidados de medicina, contratando elas próprias com o médico ou clínica. Neste caso, o contrato de prestação de serviços médicos surge como que enxertado num contrato a favor de terceiro realizado pela empresa.
Depois, do lado do médico, como fomos já deixando antever, pode ser parte na relação contratual, em vez dele, uma clínica, embora a relação pessoal - nunca é demais repetir - continue a operar-se entre o médico e o seu doente. Nestes casos, contrata-se com a clínica, e não directamente com o médico; o que dá origem a que possamos falar de várias modalidades contratuais, consoante o conteúdo da relação existente entre o médico e a clínica ou mediante a prestação acordada com o paciente.
Assim, teremos um contrato total quando a clínica assumir a prestação de actos médicos e ainda o internamento do paciente. O médico estará aqui, em regra, ao abrigo de um contrato de trabalho, sendo a a clínica a sua entidade empregadora. Trata-se, está bem de ver, de um contrato misto (ver art. 405.º do CC), em que temos, por um lado, o contrato de prestação de serviços médicos e, por outro, o chamado contrato de internamento (que é, em si mesmo, um contrato misto, já que pode englobar, para além
40 Por razões de comodidade expositiva, utilizaremos doravante a expressão “clínica” para nos referirmos a todo e qualquer estabelecimento privado de saúde que se não reconduza ao médico profissional liberal e o seu consultório (clínicas privadas, hospitais privados, etc.).
41 Considerações estas que valem, mutatis mutandis, para a utilização da rede do SNS pelos seus utentes. 42 Mais desenvolvidamente, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit. pp. 85-98, que aqui seguimos de perto.
da locação do espaço de internamento, uma compra e venda de medicamentos, a empreitada em que se traduz a confecção de alimentos ao longo do internamento, etc.43). Nesta modalidade, quem responde contratualmente pelos actos médicos é, portanto, a clínica contraente, nos termos do artigo 800.º, n.º 1 do CC; o médico (e, bem assim, os restantes profissionais “paramédicos”: enfermeiros, auxiliares da acção médica, etc.) é, neste contexto, mero auxiliar no cumprimento da obrigação contraída pela clínica, pelo que só responderá em sede delitual.
Podemos ter antes um contrato dividido, no quadro do qual a clínica apenas assume contratualmente a parte relativa ao internamento, sendo o médico (que acordou com a clínica esse internamento do seu paciente) o responsável (contratual) pelos seus actos médicos e pelos actos das pessoas que utilize no cumprimento da sua obrigação de tratamento. A relação do médico (em regra, profissional liberal) com a clínica tem também aqui subjacente um contrato misto, que consistirá numa locação ou comodato mais uma prestação de serviços (da clínica ao médico).
Finalmente, podemos descortinar ainda uma terceira modalidade, que denominaremos contrato “exclusivo”, que inclui apenas e só os actos médicos em sentido estrito, com exclusão da parte relacionada com o internamento. O paciente dirige-se à clínica e contrata com ela a prestação de serviços médicos nos mesmos termos em que o faria se se tivesse dirigido a um médico particular. A clínica responde contratualmente pelos actos dos seus auxiliares (art. 800.º do CC), que, neste caso, não incluem os restantes funcionários relacionados com as questões do internamento. Nesta modalidade, é frequente os médicos estarem ao serviço da clínica em regime ambulatório, ao abrigo de um contrato de prestação de serviços.
III- REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS
1. Regime jurídico: a necessidade de integração contratual
43 Neste sentido, XXXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 91.
Como pudemos verificar44, a prestação de serviços médicos encerra um tipo contratual muito marcado pela nota da informalidade ou da consensualidade, i. e, pelo princípio da liberdade formal, segundo o qual a declaração negocial não necessita, para a sua validade, de “observância de forma especial” (art. 219.º do CC). Deste modo, temos que, na prática, este contrato é, as mais das vezes, celebrado oralmente (v.g., quando o paciente se dirige à secretaria do consultório/clínica e solicita a marcação de uma consulta), quando não mesmo tacitamente, quando o paciente não chegue a solicitar expressamente a marcação de uma consulta, mas se limite, por exemplo, a dirigir-se à clínica e a expor uma série de ‘queixas’ físicas (princípio da liberdade declarativa – cfr. art. 217.º do CC).
Ora, esta desformalização - que faz com que habitualmente não haja qualquer período de negociações e, consequentemente, não haja uma verdadeira conformação do conteúdo do contrato pelas partes (ver artigo 405.º do CC) -, aliada ao facto de não haver no CC regulação especificamente dirigida ao contrato de prestação de serviços médicos - devido ao facto de, como vimos, se tratar de um contrato cuja tipicidade advém da praxis social -, faz que seja necessário o recurso ao mecanismo da integração contratual, constante do artigo 239.º do CC. Pois bem, esta norma vem estabelecer que, em caso de lacuna do contrato, antes mesmo de se proceder ao apuramento da vontade hipotética das partes, deverá procurar-se “disposição especial” relativa ao contrato, ou seja, norma jurídica que a ele se deva aplicar.45
Assim, encontramos, desde logo, um conjunto de normas (imperativas) que regulam a profissão médica e os actos médicos, bem como os direitos dos pacientes, que não podem, logicamente, deixar de ser aplicáveis no âmbito do contrato de prestação de serviços médicos, dadas as matérias em causa na obrigação principal. Neste sentido, têm plena aplicação aqui, desde logo, normas de direito internacional (refira-se, a este propósito, a Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina (CEDHBio), base fundamental do direito médico português), normas de direito comunitário e a própria Constituição (CRP), quando regulem em matéria de saúde. Em termos de leis ordinárias, temos ainda um conjunto alargado de diplomas avulsos, a começar pela Lei de Bases da Saúde (LBS), alguns deles a regular domínios específicos da actuação médica, e que, por conseguinte, se aplicam necessariamente ao contrato de prestação de
44 Ver supra ponto 3, da parte II.
45 Cfr. os “degraus” de supletividade de XXXXXXXX XX XXXXXXX op. cit., pp. 99 e .ss.
serviços médicos. Como vimos supra (ponto 3 da parte II), haverá ainda que ter em atenção nestas matérias as normas de direito do consumidor.
Depois, temos também as normas de deontologia médica, designadamente as constantes do CDOM. Este, enquanto “disposição especial” para efeitos do artigo 239.º, tem também plena aplicação no domínio da actividade médica, embora, enquanto diploma infralegal (com natureza de regulamento administrativo), deva sempre submeter-se às normas legais imperativas46.
Finalmente, num terceiro nível, encontramos as normas que regulam o contrato de mandato (arts. 1157.º e ss. do CC), que devem aplicar-se supletivamente aos contratos de prestação de serviços não regulados na lei. Note-se que a razão por que as normas do CDOM têm uma aplicação preferencial relativamente às normas do contrato de mandato (que são normas legais) prende-se, justamente, com o facto de aquelas constituirem “disposição especial” para efeitos do art. 239.º, enquanto as normas aplicáveis ao mandato são inespecíficas em relação “a um subtipo contratual que a lei não regula como tal mas apenas em conjunto com toda a categoria dos contratos de prestação de serviço”.47
2. Formação do contrato
2.1. O princípio da liberdade contratual e a liberdade de contratar
O princípio da liberdade contratual (art. 405.º do CC) concretiza-se não só numa liberdade de conformação do conteúdo do contrato, mas também na própria liberdade de celebração do mesmo e na liberdade de escolha do contratante.
Ora, o art. 41.º do CDOM, se por um lado confirma esta liberdade de contratar, dizendo que “o médico pode recusar-se a prestar assistência a um doente”, parece por outro lado abrir excepções, quando obriga o médico a prestar cuidados de saúde em caso de um doente se encontrar em “perigo iminente de vida”; dever que é, de resto, confirmado pelo art. 7.º do mesmo diploma. Isto tem levado vários autores a considerar
46 Sobre a natureza de regulamento administrativo do CDOM, com alusão à controvérsia histórica em torno do seu valor jurídico, ver ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE, Consentimento Informado: Relatório Final, Porto, Maio de 2009, p. 71.
47 XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 100.
tratar-se este de um caso excepcional, em que o médico tem um verdadeiro dever de contratar.48
Não nos parece ser esta a visão correcta das coisas. Na verdade, julgamos que os arts. 7.º e 41.º, n.º1 do CDOM estabelecem não propriamente um dever de contratar, mas antes um simples dever... de tratar. Tratar-se-á, pois, de um dever legal de assistência médica, aliás punível criminalmente, nos termos do artigo 276.º do Código Penal (CP), que existe “independentemente de ser ou não possível a celebração de um contrato”49. Assim, por hipótese, o médico que assiste o doente que tem um acidente automóvel e se encontra em estado inconsciente, não cria com isso qualquer vínculo de natureza contratual - embora a execução do acto médico possa mais tarde dar lugar à criação de um contrato.
2.2. Liberdade de forma e liberdade declarativa
Uma outra questão relativa à formação do contrato, diz respeito à liberdade de forma (art. 219.º do CC): o contrato será válido logo que o paciente se dirija verbalmente à clínica (expressa ou tacitamente - princípio da liberdade declarativa) e esta o aceite como seu paciente. Nenhuma dúvida de maior se levanta quanto a esta questão, a que já fizemos referência no ponto 1 desta parte, para o qual remetemos.
2.3. A representação no contrato médico
Questão que pode levantar algumas dúvidas nesta matéria tem que ver com o instituto da representação, muito vulgar na celebração do contrato de prestação de serviços médicos. Quer dizer, para além de, via de regra, este contrato ser celebrado oralmente (quantas vezes, por telefone), muitas das vezes é ainda celebrado mediante representação voluntária do paciente, o que pode suscitar alguns problemas. Vejamos. Do lado dos médicos, temos normalmente funcionários da secretaria do consultório/clínica incumbidos de receber os pacientes e de marcar as respectivas consultas. Este acto de marcação da consulta vincula, obviamente, o médico ou a clínica perante o paciente, uma vez que o empregado do médico ou da clínica dispõe de
48 Neste sentido, XXXXXXX XXXXXX e XXXXXXXXX XXXXXX xxxx XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p.102, nota 39.
49 Neste sentido, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx op. cit., p. 102.
poderes representativos para o efeito. É que a procuração reveste “a forma exigida para o negócio que o procurador deve realizar” (art. 262.º, n.º 2 do CC); ou seja, neste caso aplicar-se-á igualmente o princípio da liberdade formal (art. 219.º do CC), o que permite que o funcionário obtenha poderes de representação também por simples comunicação oral por parte do médico, mesmo tacitamente50. Assim, o contrato ficará desde logo concluído, obrigando tanto o médico/clínica como o paciente.
Do lado do paciente, também é comum que o contrato seja celebrado não pelo próprio, mas por familiar. Naturalmente que as coisas não se passam aqui de forma diferente da do caso da representação do médico: havendo procuração, nos termos do art. 262.º, o contrato celebrado por esse familiar vincula desde logo o paciente representado.
Diferente da representação voluntária (procuração) é a representação legal, no caso de menores e interditos, em que o pai ou tutor celebra o contrato em lugar do incapaz. Note-se, no entanto, que não se trata aqui de um contrato a favor de terceiro, pois que o menor ou interdito não é aqui nenhum terceiro; é ele quem é parte no contrato. Simplesmente, devido à sua incapacidade, é-lhe conferida uma especial protecção através da representação legal (no caso do menor, através do instituto do poder paternal ou, na nova terminologia legal, das “responsabilidades parentais”). Ademais, como bem salienta XXXXXXXX XX XXXXXXX, a ser um contrato a favor de terceiro, sempre haveria a possibilidade de rejeição da prestação pelo terceiro (ver art. 447.º, n.º1 do CC), direito potestativo que neste caso não pode existir, justamente porque se trata aqui de um incapaz para o exercício de direitos51.
Quanto à incapacidade acidental (art. 257.º do CC), caso o doente se encontre nessa condição, aquele que solicita a assistência médica (v.g., um amigo) não é contraente, mas também não é representante. Partilhamos da opinião de XXXXXXXX XX XXXXXXX quando sustenta que esse sujeito será um gestor de negócios (arts. 464.º e ss. do CC). Neste sentido, por aplicação do artigo 268.º (sobre a representação sem poderes), por remissão do artigo 471.º, o contrato deverá ser depois ratificado pelo
50 O simples facto de o funcionário ter sido contratado pelo médico/clínica para a específica função de marcar as consultas constituirá, sem dúvida, um facto que “com toda a probabilidade” revela a vontade (ver art. 217.º, n.º 1 do CC).
51 Cfr. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx op. cit., p.104.
paciente, caso em que este passa a ser contraente. Caso contrário, o contrato será
ineficaz em relação a ele52. 53
3. Obrigações contratuais
Da celebração de todo e qualquer contrato emerge um vínculo obrigacional que liga ambas as partes e que se traduz, do lado passivo, num (ou mais) dever(es) de prestação, e, do lado activo, no(s) correspondente(s) direito(s) de crédito, i.e, no poder de exigir a prestação ao devedor. Do contrato de prestação de serviços médicos resulta uma relação obrigacional complexa, constituída por um conjunto amplo de direitos e deveres.
Limitar-nos-mos aqui a enunciar os deveres obrigacionais (ou, menos rigorosamente, as “obrigações” 54) de cada uma das partes - médico e paciente -, escusando-nos de referir os logicamente correspondentes direitos de crédito da contraparte.
3.1. Deveres contratuais do médico
Pois bem, o primeiro e principal dever que sobre o médico impende é, como não podia deixar de ser, o próprio dever de tratamento, enquanto prestação nuclear e verdadeiramente tipificadora do contrato de prestação de serviços médicos. Dado o facto de o contrato médico constituir um contrato de execução continuada, cuja prestação se não encontra logo exactamente determinada no momento da celebração do contrato, acaba a obrigação de tratamento por ser uma obrigação genérica (art. 400.º do CC), a necessitar de ser posteriormente determinada. Ora, no contrato de prestação de serviços médicos, devido à sua natureza, quem determina a prestação é o próprio médico. Isto significa que o médico, ao longo do tratamento se auto-vincula a uma certa prestação e responde por essa prestação que ele próprio escolheu. Mas não se pense que significa isto um vínculo a uma obrigação de resultado; o médico responde apenas e só
52 O que implica que deixe de estar protegido sob a capa da responsabilidade contratual, apenas podendo defender-se de eventuais danos provocados pelo médico em sede aquiliana.
53 A remuneração, em caso de não ratificação pelo paciente, terá de ser paga pelo gestor de negócios, uma vez que, por aplicação do art. 1180.º (“mandato sem representação”), por remissão do art. 471.º, 2.ª parte por analogia, é ele quem “assume as obrigações”.
54 Em rigor, “o termo obrigação abrange a relação no seu conjunto e não apenas, como sucede na linguagem comum, o seu lado passivo”. Cfr. XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em Geral, vol I, 10.ª edição, Xxxxxxx, Xxxxxxxx, 0000, p. 63.
pela adequação da escolha do tratamento, e não pelo resultado final da mesma55. Com efeito, o médico, depois de realizado o diagnóstico, deverá escolher o tratamento “segundo juízos de equidade” - o que, no nosso caso, deverá levar já pressuposta uma escolha devidamente fundada de acordo com as leges artis médicas.
Um outro dever do médico de fulcral importância é o dever de informação (designadamente sobre a situação clínica ou diagnóstico, os riscos do tratamento e as alternativas). Este um daqueles deveres que, por força de norma imperativa aplicável à actuação médica, deverá aplicar-se ao contrato de prestação de serviços médicos.56 Não faltam no direito português normas legais a estabelecerem tal dever de informação: a começar no art. 5.º da CEDHBio, passando pela Base XIV, n.º 1, alínea e) da LBS e pelo próprio CP, no seu art. 157.º (para já não falar no central art. 57.º do CDOM ou ainda nas normas do art. 1161.º, als. b), c) e d) do CC, relativas ao contrato de mandato, aplicáveis supletivamente), existe no ordenamento jurídico português um sem número de injunções no sentido de obrigar o médico a respeitar desta forma a autodeterminação do seu paciente e, bem assim, a sua integridade físico-psíquica.
Intrinsecamente ligado ao dever de informação está também o dever de obtenção do consentimento informado, atenta a natureza de tal informação enquanto esclarecimento- para-a-autodeterminação57. Estão portanto em causa, em ambos os deveres, os mesmos bens jurídicos liberdade e autodeterminação e integridade física e moral, acautelados, desde logo, pelo art. 5.º da CEDHBio e pelo art. 25.º da CRP, mas também pelos arts. 156.º do CP (referente ao tipo legal de crime de “tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários”), 70.º do CC (sobre o direito geral de personalidade) e 44.º e 45.º do CDOM.
Sobre o dever de sigilo profissional médico, encontramos também um vasto conjunto de normas no direito português: os arts. 10.º da CEDHBio, 26.º da CRP, 195.º, 383.º e 386.º do CP, 85.º e ss. do CDOM, o art. 80.º do CC, relativo ao direito à reserva da intimidade da vida privada, a própria a Lei de Protecção dos Dados Pessoais58, etc.
Finalmente, uma referência ao, também ele relevante, dever de documentação, acoplado ao correspondente direito do paciente ao acesso aos documentos. Encontramos importantes manifestações deste dever no art. 10.º, n.º 2 da CEDHBio ou, no plano
55 Neste sentido, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx op. cit., pp. 107 e ss.
56 Ver supra ponto 1 desta parte.
57 Sobre este conceito e a sua contraposição ao esclarecimento terapêutico, ver XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx xx, anotação ao art. 157.º, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 394 e 395, e também XXXXXXX, Xxxxx, op. cit., pp. 71 e ss.
58 Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
interno, nos arts. 11.º, n.º 5 da Lei de Protecção dos Dados Pessoais e 100.º e ss. do CDOM.
3.2. Deveres contratuais do paciente
No contrato de prestação de serviços médicos, como contrato sinalagmático, ao dever de tratamento que sobre o médico impende contrapõe-se normalmente, como seu correspectivo, um dever de pagamento de honorários por parte do paciente (cfr. art. 1167,º, al. b) do CC, relativo ao mandato). Ora, apesar de o contrato se presumir, neste caso, oneroso (ver n.º 1 do art. 1158.º do CC), a sua gratuitidade em nada afecta o núcleo do contrato (como podemos constatar, aliás, através do já referido exemplo do art. 106.º do CDOM, em que não há lugar a qualquer pagamento).
Em qualquer caso, a obrigação de tratamento sempre terá como correspectivo, pelo menos, o dever de cooperação e de comunicação do doente (ver a Base XIV, n.º 2, al. c) da LBS, o art. 1167.º, al. a) do CC, relativamente ao mandato, a boa-fé contratual, etc.). Assim, caso, v.g., não compareça à consulta marcada ou não preste as informações solicitadas pelo médico, necessárias à boa escolha ou execução do tratamento, o paciente entrará em situação de incumprimento do contrato.
4. Incumprimento
Como resulta do que vimos expondo, as partes do contrato de prestação de serviços médicos, a partir do momento da celebração, ficam adstritas a uma série de obrigações que os liga uma à outra. Ao não realizarem essas prestações a que estão vinculados, entram em incumprimento, sendo-lhes aplicável o regime do não cumprimento das obrigações, constante dos arts. 790.º a 816.º do CC.
Assim, haverá mora do devedor quando a prestação não for efectuada “no tempo devido”, desde que a causa lhe seja imputável (art. 805.º, n.º 2 do CC); se a causa lhe não for imputável, o devedor não responde pela mora - tratar-se-á nesse caso de uma “impossibilidade temporária” (art. 792.º do CC). Haja em vista os casos em que o médico (devedor do tratamento) não comparece à consulta ou comparece mas com um atraso desrazoável.
Em vez de mora, teremos incumprimento definitivo se, com a mora, o paciente “perder o interesse” na prestação (art. 808.º do CC). Note-se que esta perda de interesse há-de ser objectiva (cfr. n.º 2 do art. 808.º do CC), não bastando que o paciente tenha alterado a sua vontade relativamente à prestação; a perda de interesse terá de ser em termos de o cumprimento não ter já qualquer efeito útil. Assim acontecerá, desde logo, nos casos extremos em que, em consequência da mora do médico, o paciente em perigo de vida venha a falecer.
Também haverá incumprimento definitivo no caso de a prestação não ter sido realizada depois de ter sido fixado pelo credor (paciente) um “prazo razoável” para o cumprimento (cfr. 2.ª parte do n.º 1 do art. 808.º do CC).
Haverá mora do credor quando este “não aceitar a prestação” ou não praticar “os actos necessários ao cumprimento da obrigação” (art. 813.º do CC). Esta situação é facilmente ilustrável com os casos em que o paciente dificulte a acção do médico, não comparecendo à consulta ou não fornecendo as informações necessárias, violando assim os seus deveres de cooperação.
Xxxxx, contudo, as situações de cumprimento defeituoso aquelas que maiores dificuldades e interrogações suscitam no âmbito do contrato de prestação de serviços médicos e do direito médico em geral. Tratam-se das situações de desconformidade entre a prestação devida e a prestação efectivamente realizada (in casu, o tratamento), seja relativamente à parte da escolha da terapêutica (incluindo, portanto, o diagnóstico), seja na parte da execução propriamente dita59. Estamos aqui, afinal, perante um dos capítulos mais vastos no âmbito das matérias de direito da medicina: o problema da responsabilidade médica por violação das leges artis.
Dado que esta questão se afasta claramente dos propósitos deste trabalho, exigindo um tratamento autónomo e muito mais detido - inserto nas sensíveis e complexas temáticas da responsabilidade médica -, não irá ser aqui objecto da nossa abordagem.
IV- Conclusão
59 Neste sentido, XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx op. cit., pp. 116 e ss.
O tema do contrato de prestação de serviços médicos, que temos vindo a estudar, é ainda hoje um tema relativamente pouco explorado, pelo menos enquanto matéria merecedora de um tratamento específico e autónomo. Com efeito, apesar de durante este estudo termos conseguido identificar aqui e ali determinados problemas que, pela sua sensibilidade, talvez justificassem um estudo mais aprofundado, a reclamar um capítulo próprio, quer no âmbito dos estudos sobre contratos civis, quer no âmbito das matérias de direito da medicina - área onde é usual ‘atrelar-se’ o contrato médico ao estudo da responsabilidade civil médica, acabando as mais das vezes por ser referido somente ‘de passagem’ -, parece, até agora, não ter havido suficiente mobilização ou interesse por parte da doutrina para a procura de soluções que auxiliem os aplicadores do direito - maxime, os juízes - na hora das decisões jurisprudenciais. Isto, juntamente com outros factores, conduz-nos aos, mais que diagnosticados, problemas da multiplicidade de entendimentos e da disparidade de soluções jurisprudenciais em matéria de direito médico.
Com FIGUEIREDO DIAS/ XXXXX XXXXXXXX, estamos em crer que tais problemas poderiam ser em parte atenuados com uma tipificação legal do contrato de prestação de serviços médicos60 (tal como ocorre já em alguns ordenamentos jurídicos), que finalmente viesse clarificar tais dubiedades; dubiedades que, ao fim e ao cabo, e como começámos por observar no início deste trabalho, acabam por constituir verdadeiros obstáculos à certeza e à segurança jurídica, bem como, no limite, à própria realização da justiça.
60 XXXXXXXXXX XXXX, Xxxxx/ XXXXX XXXXXXXX, Xxxxx, Responsabilidade Médica na Europa Ocidental: Considerações “De Lege Ferenda” , Separata de Scientia Iuridica, n.º 33, Braga, 1984, p. 12.
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