A ESCOLHA DA LEI APLICÁVEL AO CONTRATO DE SEGURO NO REGULAMENTO ROMA I
A ESCOLHA DA LEI APLICÁVEL AO CONTRATO DE SEGURO NO REGULAMENTO ROMA I
Hélder Frias
Abogado (*)
A Escolha da lei aplicável ao contrato de seguro no Regulamento Roma I
Neste artigo são analisadas as novas regras relativas à escolha da lei aplicável ao contrato de seguro introduzidas pelo Regulamento (CE) n.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (doravante abreviadamente designado por «Regulamento Roma I»1). Pretendeu- se apresentar, de uma forma necessariamente sucinta, o regime actu- almente em vigor, fazendo referência às suas principais virtualidades, sem olvidar as questões que permanecem em aberto na sua interpre- tação e aplicação.
Choice of law in insurance contracts under the Rome I Regulation
In this article we discuss the new choice of law rules applicable to insurance contracts laid down in Regulation (EC) No 593/2008 of the European Parliament and of the Council of 17 June 2008 on the law applicable to contractual obligations (hereinafter the «Rome I Regulation»). The purpose of this paper is to briefly describe the framework currently in force, highlighting the main improvements implemented by this new legal framework and, by the same token, raise the issues that remain unanswered in its interpretation and application.
INTRODUÇÃO
O passado tem demonstrado que a redacção de normas de conflitos de leis aplicáveis ao contrato de seguro suscita um sem número de dificuldades, não sendo, por isso, de estranhar que este tenha sido também um tema controverso no decurso da elaboração do Regulamento Roma I.
O contrato de seguro tem sido designado por alguns autores 2 como a «ovelha negra» do direito internacional privado, nunca tendo sido objecto da devida atenção pelo legislador e, consequentemen- te, as normas vigentes nesta matéria até à entrada em vigor do Regulamento Roma I sempre foram severamente criticadas pela doutrina.
A este propósito, refira-se que a Convenção de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (doravante abreviadamente designada por «Con- venção de Roma») exclui grande parte dos contra- tos de seguro do seu âmbito de aplicação. Com efeito, apenas os contratos de resseguro e os contra- tos de seguro que cubram riscos situados fora dos territórios dos Estados-Membros da União Euro- peia se encontravam abrangidos por este diploma,
(*) Del Área de Mercantil de Xxxx Xxxxxxxx (Londres).
1 Salvo indicação em contrário, os preceitos legais indicados sem referência ao diploma a que pertencem constam do Regu- lamento Roma I, com a redacção em vigor à data do presente artigo.
2 GRUBER, Urs Peter: Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, Munique, Sellier. European Law Publishers GmbH, 2009.
o que acabou por conduzir a uma fragmentação do direito internacional privado do contrato de seguro.
Inicialmente, a larga maioria dos contratos de segu- ro eram, assim, regulados pelas normas de conflitos internas de cada Estado. Entretanto, foram aprova- das duas directivas comunitárias —a segunda Directiva Não Vida 3 e a Directiva Vida consolida- da4 5 (em conjunto, as «Directivas»)— que contêm normas de conflitos de leis que deveriam ser objec- to de transposição para o direito interno de cada Estado-Membro.
Refira-se, desde já, que o Regulamento Roma I reproduz em tragos gerais o regime legal constante dos diplomas comunitários acima referidos, tendo o legislador comunitário optado por adiar a avaliação do mérito das suas normas para uma data poste- rior6.
3 Segunda Directiva 88/357/CEE do Conselho, de 22 de Junho de 1988, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respeitantes ao seguro direc- to não vida, que fixa disposições destinadas a facilitar o exer- cício da livre prestação de serviços («Segunda Directi- va 88/357/CEE»).
4 Directiva 2002/83/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de Novembro de 2002, relativa aos seguros de vida («Directiva 2002/83/CE»).
5 Ambas as Directivas são revogadas, com efeitos a partir de 1 de Novembro de 2012, pela Directiva 2009/138/CE do Parla- mento Europeu e do Conselho, de 25 de Novembro de 2009, relativa ao acesso e à actividade de seguros e resseguros e ao seu exercício («Directiva 2009/138/CE»).
6 O relatório relativo à aplicação do Regulamento Roma I a apresentar ao Parlamento Europeu pela Comissão nos termos do Artigo 27.o deve incluir um estudo sobre a legislação aplicá-
A verdade é que, no momento da elaboração das normas de conflitos de leis aplicáveis aos contratos de seguro, o legislador deverá ter em consideração a tensão permanente que se verifica entre a autono- mia contratual das partes e a necessidade de protec- ção da parte mais desfavorável da relação (i.e., o tomador do seguro). Nesta medida, cada Estado poderá dotar certas normas específicas de uma natureza imperativa e de aplicação imediata, as quais regularão determinadas matérias de um dado contrato de seguro, independentemente da lei que seria de outro modo aplicável.
Torna-se, assim, imperioso estabelecer regras espe- cíficas para diversos contextos ou contratos (e.g., contratos celebrados por consumidores). Contudo, a eventual aplicação imediata de um número signi- ficativo de normas jurídicas não derrogáveis por acordo acabará por servir de desincentivo à activi- dade transfronteiriça das empresas de seguros.
Neste contexto, as normas de conflitos aplicáveis ao contrato de seguro deverão procurar dar resposta a três questões essenciais 7:
(i) qual a liberdade que deverá ser concedida às partes na escolha da lei aplicável;
(ii) qual a lei aplicável na falta de escolha; e
(iii) em que medida deverá ser reconhecida eficácia às normas de aplicação imediata.
Neste artigo, analisaremos as respostas que o legis- lador comunitário consagrou no Regulamento Roma I para cada uma destas questões, confrontan- do, sempre que possível, tais soluções com as opções legislativas do passado.
CONVENÇÃO DE ROMA
No que respeita à primeira questão, a Convenção de Roma aponta em grande medida no sentido da liberdade de escolha (cfr. Artigo 3.º da Convenção de Roma). No entanto, a Convenção de Roma aca- bou também por consagrar um número significati- vo de desvios a esta regra geral, nomeadamente:
— Nos termos do número 3 do Artigo 3.º da Convenção de Roma, a escolha da lei aplicá- vel não poderá prejudicar a aplicação das
disposições não derrogáveis por acordo de um país no qual todos os outros elementos do caso concreto se encontrem situados.
— Nos termos do Artigo 5.º da Convenção de Roma, os contratos celebrados por consumi- dores encontram-se sujeitos a regras especí- ficas segundo as quais a liberdade de escolha é muito menor.
— Nos termos do número 2 do Artigo 7.º da Convenção de Roma, as regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto serão sempre aplicáveis.
— Nos termos do número precedente, as dispo- sições imperativas da lei de outro país com o qual a situação apresente uma conexão es- treita poderão ser aplicáveis em determina- das circunstâncias 8.
— Nos termos do Artigo 16.º da Convenção de Roma, a aplicação de um preceito legal da lei escolhida pode ser recusada caso esse precei- to se apresente como contrário à ordem pú- blica do foro.
Quanto à determinação da lei aplicável na falta de escolha, a Convenção de Roma consagra no seu Artigo 4.º o mecanismo flexível da conexão mais estreita, embora estabelecendo uma presunção a favor do país onde se encontra domiciliada a parte que está obrigada a realizar a prestação característi- ca do contrato 9. Note-se que, nos contratos cele- brados por consumidores, a solução será sempre a residência habitual do consumidor, uma vez verifi- cados determinados requisitos.
Cumpre questionar se estas regras e princípios gerais deverão ser aplicáveis ao contrato de seguro ou se este contrato requererá uma abordagem dife- rente. Conforme referido supra, a Convenção de Roma é aplicável apenas aos contratos de seguro que cubram riscos situados fora dos territórios dos Estados-Membros da União Europeia. Caso o risco se situe no território de um Estado-Membro, serão ontcõ aplicáveis as normas das Directivas.
Como se poderá constatar infra, embora as partes contratantes gozem de uma certa liberdade de esco-
vel aos contratos de seguro.
7 Neste sentido, vide XXXXXX, Xxxxxx: «Choice of Law in Insu- rance Contracts under the Rome I Regulation», Journal of Priva- te International Law, Vol. 5, n.º 1, Abril de 2009, págs. 49-67.
8 Portugal, no momento da sua adesão à Convenção de Roma, reservou-se no direito de não aplicar o disposto neste preceito.
9 O que nos contratos de seguro significa uma presunção a favor do país onde se encontra localizada a administração cen- tral da empresa de seguros.
lha ao abrigo das Directivas, estes diplomas impõem, ao contrário do disposto na Convenção de Roma, limitações materiais a essa liberdade. Com efeito, o âmbito da liberdade de escolha dependerá do tipo de riscos envolvidos, ao mesmo tempo que as normas das Directivas que permitem determinar a lei aplicável na falta de escolha são também diferentes das que podemos encontrar na Convenção Roma.
O REGULAMENTO ROMA I
As normas de conflitos aplicáveis ao contrato de seguro constantes do Regulamento Roma I foram objecto de alterações materiais no decurso do (lon- go) processo de discussão e elaboração do Regula- mento.
O documento inicial de trabalho, datado de 2005, que delineava os termos essenciais do futuro diplo- ma comunitário, contemplava a introdução de um inovador sistema de conflitos de leis aplicável ao contrato de seguro que acabava por se distanciar materialmente das normas contidas nas Directivas.
Caso o Regulamento Roma I tivesse implementado estas normas de conflitos de leis, teríamos assistido a uma reforma radical do sistema então em vigor. Contudo, o teor destas normas não partilhavam de uma opinião favorável unânime, sobretudo devido às restrições propostas na liberdade concedida às partes contratantes de escolha da lei aplicável.
Na proposta inicial da Comissão, publicada em Dezembro de 2005, verificou-se uma alteração sig- nificativa da orientação seguida até aí nesta matéria. Nesta proposta previa-se simplesmente que o futuro regulamento não deveria prejudicar a aplicação nem a adopção por parte das instituições comunitárias dos actos de direito comunitário derivado que, em matérias específicas, regulem os conflitos de leis em matéria de obrigações contratuais, incluindo, nome- adamente, o disposto nas Directivas.
Ao arrepio da opção avançada na proposta de 2005, o Regulamento Roma I contém uma disposi- ção inovadora no seu Artigo 7.º, que estabelece as normas de conflitos de leis aplicáveis a determina- dos contratos de seguro. Como se tratará de demonstrar infra, esta norma acaba por reflectir, em termos muito semelhantes, o disposto na Directivas relativamente a esta matéria.
O preceito legal acima mencionado tem como prin- cípio basilar a distinção entre os contratos nos
quais o tomador do seguro carece de uma protec- ção especial e os contratos nos quais não se impõe tal protecção acrescida. Nesta medida, o Artigo 7.º distingue em termos gerais contratos de seguro que cubram riscos de massa, por um lado, e contratos de seguro que cubram grandes riscos 10 e contratos de resseguro, por outro.
Nos contratos de seguro que cubram riscos de mas- sa, o Regulamento Roma I visa conferir uma protec- ção efectiva da posição contratual do tomador do seguro, razão pela qual a liberdade de escolha pelas partes da lei aplicável é a excepção e não a regra. Por outro lado, na falta de escolha, as normas de conflitos de leis favorecem os interesses do tomador do seguro ao apontarem para a lei com a qual o tomador do seguro (e não necessariamente a empre- sa de seguros) tem uma conexão mais estreita.
Pelo contrário, as partes dos contratos de seguro que cubram grandes riscos e contratos de resseguro podem escolher livremente a lei aplicável. Caso as partes não tenham efectuado qualquer escolha, então, a lei aplicável será, na maioria dos casos, a lei pessoal do (res)segurador, dado que se pressu- põe, nestes casos, que o tomador do seguro terá acautelado devidamente os seus próprios interesses no decurso da negociação do contrato.
Em concreto, as regras constantes do Artigo 7.º podem ser resumidas nos seguintes termos:
— Os contratos de resseguro são regulados pe- las normas gerais do Regulamento Roma I (o Artigo 7.º, número 1, refere expressa-
10 Os grandes riscos encontram-se definidos na alínea (d), do número 2, do Artigo 5.º da Primeira Directiva 73/239/CEE do Conselho, de 24 de Julho de 1973, relativa à coordenação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas respei- tantes ao acesso à actividade de seguro directo não vida e ao seu exercício (conforme completada pela Segunda Directiva 88/357/CEE9), por referência ao respectivo anexo. Em determi- nados casos a distinção prende-se unicamente com a natureza dos riscos cobertos e, portanto, todos os contratos que cubram veículos rodoviários, aeronaves, embarcações marítimas, lacus- tres ou fluviais e transporte de mercadorias. Noutras situações (crédito e caução), os riscos em causa apenas serão considera- dos grandes riscos quando relacionados com a actividade pro- fissional do tomador do seguro, o seu balanço, volume de negócios ou número médio de empregados. Os riscos de mas- sa, por seu turno, são definidos pela negativa, na medida em que são riscos de massa todos aqueles que não se encontrem abrangidos pela definição de grandes riscos. Refira-se, por últi- mo, que o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, que regula as condições de acesso e exercício da actividade seguradora e resseguradora, está em linha com a definição constante dos diplomas comunitários supra citados.
mente que o mesmo não é aplicável a con- tratos de resseguro);
— Os contratos de seguro que cubram grandes riscos são regulados pelas regras especiais do Artigo 7.º (independentemente do risco coberto se situar ou não no território de um Estado-Membro);
— Os contratos de seguro que cubram riscos de massa:
(i) que cubram riscos situados no território de um Estado-Membro 11 são regulados pelas regras espe- ciais do Artigo 7.º;
(ii) que cubram riscos situados fora do território de qualquer Estado-Membro são regulados pelas regras gerais do Regulamento Roma I (nomeada- mente, o seu Artigo 3.º).
Constata-se, assim, que as soluções plasmadas no Regulamento Roma I ficam como que a meio cami- nho. Sendo certo que o Regulamento contém nor- mas de conflitos de leis específicas relativamente a determinados contratos de seguro, a verdade é que tais normas reproduzem em larga medida as regras que podemos encontrar nas Directivas.
Uma vez delineado o quadro geral introduzido pelo Regulamento Roma I, cumpre agora analisar em maior detalhe cada uma das normas de conflitos de leis aplicáveis ao contrato de seguro.
CONTRATOS DE SEGURO QUE CUBRAM GRANDES RISCOS
O passado demonstra que as normas de conflitos de leis aplicáveis aos contratos de seguro de massa têm sido objecto de uma crítica generalizada, enquanto que tais normas, quando respeitantes aos
11 A localização do risco encontra-se prevista no número 6, do Artigo 7.º por remissão para as Directivas. Na maioria dos casos, o risco ou o compromisso encontra-se situado no Estado-Mem- bro em que o tomador do seguro reside habitualmente ou em que se situe o seu estabelecimento, no caso de se tratar de uma pessoa colectiva. Existem, no entanto, três excepções a esta regra: os contratos de seguro relativos a imóveis (nos quais se considera que o risco se situa no Estado-Membro onde se situa o imóvel), veículos (nos quais se considera que o risco se situa no Estado-Membro da matrícula) e contratos de seguro de cur- ta duração ou relativos a riscos ocorridos durante uma viagem ou férias (nos quais se considera que o risco se situa no Estado- Membro em que o tomador do seguro tiver ¿?¿? o contrato). Refira-se, por último, que o regime agora descrito não sofreu alterações significativas na Directiva 2009/138/CE.
contratos de seguro que cubram um grande risco, são reconhecidas como menos controversas.
O número 2 do Artigo 7.º contém uma regra relati- vamente clara quanto a esta matéria. O primeiro parágrafo do citado preceito legal estabelece que as partes podem escolher livremente a lei aplicável nes- tes contratos de seguro (cfr. Artigo 3.º, número 1).
Por força da remissão expressa para o Artigo 3.º, poderá concluir-se que os contratos de seguro que cubram grandes riscos encontram-se sujeitos preci- samente às mesmas normas de conflitos de leis que os demais contratos regulados directamente por esse preceito legal 12.
Por seu turno, o segundo parágrafo do número 2 do Artigo 7.º vem regular as situações em que não se verifica qualquer escolha da lei aplicável pelas partes ou tal escolha é inválida. Nestes casos, o contrato de seguro é regulado pela lei do país em que se situa a residência habitual da empresa de seguros, conforme definida no Artigo 19.º 13.
Esta regra assume uma especial importância sobre- tudo nos contratos de seguro que cubram riscos situados em mais do que um país. Mesmo que a empresa de seguros não insira nos seus contratos uma cláusula relativa à escolha da lei aplicável, esses contratos serão regulados pela sua lei pessoal.
As empresas de seguros encontram-se, assim, dota- das de um instrumento crucial para o desenvolvi- mento da sua actividade transfronteiriça, na medida em que se assegura que todos os contratos de segu- ro que venham a ser celebrados serão regulados pela mesma lei sem que se tenha de proceder à sua escolha.
Outro mérito desta opção legislativa prende-se com o facto de o resultado da aplicação do preceito legal aqui em análise não depender da localização do ris- co, evitando-se assim as dificuldades associadas à sua determinação.
Refira-se, no entanto, que esta regra constitui uma mera presunção ilidível, dado que se resultar clara- mente do conjunto das circunstâncias do caso que o contrato em causa apresenta uma conexão mani-
12 Também aqui a existência e a validade do consentimento das partes quanto à escolha da lei aplicável deverá ser aferida à luz do disposto nos Artigos 10.º, 11.º e 13.º (ex vi, Artigo 3.º, número 5).
13 No qual se lê que, para efeitos do Regulamento Roma I, a residência habitual de sociedades é o local onde se situa a sua administração central.
festamente mais estreita com um outro país, então será aplicável a lei desse outro país 14.
Embora o mérito desta solução não seja merecedo- ra de qualquer crítica da nossa parte, a verdade é que a regra constante do segundo parágrafo do número 2 do Artigo 7.º determina um resultado que poderia ser obtido mediante a aplicação directa do disposto nos números 2 e 3 do Artigo 4.º 15.
Poderá argumentar-se que a consagração de um cri- tério rígido ao invés de uma presunção ilidível teria constituída uma melhor opção legislativa, por força da segurança jurídica acrescida que daí adviria. Contudo, importa realçar que todos os outros con- tratos abrangidos pelo Regulamento Roma I (e pela Convenção de Roma) encontram-se, de uma forma geral, igualmente sujeitos a uma presunção ilidível. Tendo em conta que um afastamento da presunção será apenas possível em casos excepcionais, parece- nos duvidoso que o contrato de seguro seja mere- cedor de um regime especial.
Face ao exposto, conclui-se que, embora as normas de conflitos de leis aplicáveis aos contratos de segu- ro se encontrem previstas no Artigo 7.º, os contra- tos de seguro que cubram grandes riscos encon- tram-se sujeitos a normas de conflitos de leis idênticas às aplicáveis às obrigações contratuais em geral, com excepção do Artigo 6.º relativo aos con- tratos celebrados por consumidores 16. Significa isto que um contrato que cubra um grande risco que pudesse à partida ser qualificado como um contrato celebrado por um consumidor (por exemplo, uma pessoa singular celebrar um contrato de seguro sobre um navio de recreio), não se encontra sujeito às regras especiais do Artigo 6.º.
Com o Regulamento Roma I, os contratos de segu- ro que cubram grandes riscos deixam, assim, de se encontrar sujeitos a uma eventual sobreposição com o relativamente complexo regime dos contra- tos celebrados por consumidores, o que não poderá deixar de ser apontado como uma virtualidade do novo regime.
O maior problema da solução conferida pelo Artigo 7.º aos contratos de seguro que cubram grandes ris- cos prender-se-á, porventura, com a determinação do âmbito em que as normas de aplicação imediata poderão ter um imfueto na a lei aplicável. Procura- remos analisar esta problemática com um maior detalhe mais adiante.
CONTRATOS DE RESSEGURO
No que respeita à liberdade de escolha da lei apli- cável que assiste às partes contratantes, os contratos de resseguro acabam por ser objecto de um trata- mento idêntico ao que é conferido aos contratos de seguro que cubram grandes riscos.
Conforme anteriormente referido, os contratos de resseguro encontram-se expressamente excluídos do âmbito de aplicação do Artigo 7.º 17, aplicando-se directamente o Artigo 3.º, pelo que as partes gozam, assim, de total liberdade na escolha da lei aplicável.
Uma questão interessante, e já objecto de atenção por parte da doutrina prende-se com a determina- ção de quem efectua a prestação característica no contrato de resseguro: o ressegurador ou o segura- dor. A resposta a esta questão, embora à primeira vista teórica, acaba por assumir uma importância prática crucial nos casos de falta de escolha da lei aplicável pelas partes contratantes.
A maioria dos autores sustenta que a prestação característica nos contratos de resseguro é efectua- da pelo ressegurador. Contudo, parte da doutrina argumenta que não é possível determinar uma prestação característica neste tipo de contratos, ao passo que outros autores defendem uma ligação mais estreita com o país onde o tomador do seguro tem a sua residência habitual.
Independentemente da via de argumentação que possamos escolher, a verdade é que muito dificil- mente será possível alcançar uma solução isenta de dúvidas para esta questão ao abrigo do regime legal até agora vigente. Contudo, esta incerteza não foi eliminada pelo Regulamento Roma I.
Uma vez que o número 1 do Artigo 4.º não faz
qualquer referência expressa aos contratos de resse-
14 Refira-se que a redacção deste preceito legal reproduz exac- tamente o disposto no número 3, do Artigo 4.º.
15 Este argumento tem como pressuposto que a prestação característica do contrato é efectuada pela empresa de seguros, na medida em que é esta a parte contratante responsável pela prestação (i.e., a liquidação do sinistro) que representa a con- trapartida do pagamento do prémio.
16 O qual deverá ser aplicado sem prejuízo do disposto no Arti- go 7.º.
guro, a lei aplicável deverá ser determinada com
17 Os contratos de resseguro eram dos poucos contratos de seguro que não eram regulados pelas Directivas (as quais abrangiam apenas o seguro directo), sendo regulados, ao invés, pela Convenção de Roma.
recurso aos critérios plasmados nos números sub- sequentes. Parece-nos que, na maioria das situações (salvo circunstâncias especiais que poderão condu- zir à aplicação do disposto no número 3 do Artigo 4.º), a lei aplicável deverá ser a lei do país onde se situar a residência habitual do ressegurador. Por razões de maior certeza jurídica, teria sido, no entanto, preferível que o legislador comunitário tivesse regulado expressamente esta matéria no tex- to do Regulamento Roma I.
Refira-se, a este propósito, que não vemos razões para que o contrato de resseguro não goze de um regime idêntico ao plasmado actualmente no Regu- lamento Roma I para os contratos de seguro que cubram grandes riscos 18. Entendemos, ¿?¿?, que os contratos de resseguro deveriam ser regulados por normas de conflitos específicas, pelo que a excep- ção actualmente prevista no Artigo 7.º, número 1, relativa aos contratos de resseguro deveria ser suprimida numa futura revisão do Regulamento Roma I.
CONTRATOS DE SEGURO QUE CUBRAM RISCOS DE MASSA
O legislador reservou para o número 3 do Artigo 7.º a disciplina de todos os contratos de seguro para além dos contratos de seguro que cubram grandes riscos ou dos contratos de resseguro, desde que tais contratos cubram riscos situados nos terri- tórios dos Estados-Membros.
A primeira dúvida que nos assalta quando analisa- mos este preceito legal prende-se com o facto de não resultar claro do seu texto qual o regime apli- cável aos contratos de seguro nos casos em que apenas parte dos riscos cobertos são qualificados como «grandes riscos» e os restantes são «riscos de massa». Problema idêntico, prende-se com a locali- zação dos riscos cobertos pelo contrato 19.
CONTRATOS DE SEGURO QUE CUBRAM RISCOS DE MASSA: RISCOS SITUADOS FORA DO TERRITÓRIO DOS ESTADOS-MEMBROS
Os contratos de seguro que cubram riscos de massa situados fora da União Europeia encontram-se excluídos do âmbito de aplicação do Artigo 7.º na sua totalidade. Tais contratos encontram-se, assim, sujeitos às normas de conflitos de leis aplicáveis às obrigações contratuais em geral, em particular às constantes do Artigo 3.º (em caso de escolha da lei aplicável) e do Artigo 4.º (no caso de falta de esco- lha pelas partes). Mas mais importante do que isso, deverá nesses casos observar-se também o disposto no Artigo 6.º, pelo que se um determinado contrato de seguro que cubra riscos de massa situados fora do território da União Europeia for celebrado por um consumidor e os demais requisitos do Artigo 6.º se encontrarem verificados, então tal contrato estará sujeito às normas de conflitos de leis mais restritivas aí previstas.
O Regulamento Roma I parece não fornecer uma resposta clara para estas situações. Poderá recorrer- se a alguns critérios para resolver este problema 20, mas a verdade é que, com a redacção que foi confe- rida ao Artigo 7.º, colocar-se-ão sempre dúvidas quanto à forma mais adequada de determinar se e em que medida o Artigo 7.º é aplicável a contratos de seguro que cubram (pelo menos) parte de riscos situados fora do território de qualquer dos Estados- Membros.
É legítimo, assim, concluir que estamos muito lon- ge da solução ideal mesmo para os contratos de seguro que (apenas) cubram riscos de massa situa- dos fora do território da União Europeia. A aplica- ção conjunta dos Artigos 3.º, 4.º e 6.º, para além de se revelar um processo relativamente complexo, não é transparente 21.
Por outro lado, não vislumbramos um motivo váli- do para que as regras especificamente elaboradas
18 Entendimento já sustentado por Urs Xxxxx Xxxxxx em Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Euro- pe, Munique, Sellier. European Law Publishers GmbH, 2009.
19 Imagine-se um contrato de riscos de massa em que apenas parte dos riscos cobertos se situam no território de um Estado- Membro. Esta situação pode colocar-se de duas formas distin- tas: podemos ter um risco que se situe em dois locais (por exemplo, um seguro sobre a vida de uma pessoa que reside habitualmente em Lisboa e no Rio de Janeiro) ou um contrato de seguro que cobre dois ou mais riscos situados em países diferentes (por exemplo, um contrato de seguro sobre edifícios localizados em Lisboa e em São Paulo).
20 Como por exemplo, a dépecage do contrato (fixação de leis diferentes aplicáveis a partes distintas do contrato – cfr. Artigo 7.º, número 5), o que pode não ser possível nos casos em que os riscos são «indivisíveis». Outra possibilidade seria aplicar as regras das Directivas nos casos em que uma parte significativa dos riscos se situe no território dos Estados-Membros. Julgamos, no entanto, que esta solução não conseguirá dar uma resposta adequada em todas as situações.
21 Recorde-se, a este propósito e em caso de escolha da lei aplicável pelas partes, a eventual aplicação das disposições não derrogáveis por acordo da «lei» do consumidor, por força do disposto no número 2, do Artigo 6.º.
para proteger o tomador do seguro nos contratos de seguro de massa que cubram riscos situados no território dos Estados-Membros não sejam também aplicáveis aos contratos que cubram riscos de mas- sa situados fora do espaço da União 22.
Esperamos que este tema seja objecto de atenção no futuro relatório previsto no Artigo 27, de modo a colocar um ponto final na incerteza jurídica resul- tante do disposto sobre esta ¿?¿? no Regulamento.
Contratos de Seguro que Cubram Riscos de Massa: Riscos Situados no Território dos Estados-Membros.
Suscitada esta questão preliminar, a verdade é que o número 3 do Artigo 7.º foi redigido com base numa linha de pensamento radicalmente distinta à subjacente aos números anteriores.
Enquanto que os números 1 e 2 do Artigo 7.º reproduzem em traços genéricos o regime aplicável às obrigações contratuais em geral, as normas de conflitos de leis aplicáveis aos contratos que cubram riscos de massa situados no território dos Estados-Membros contêm regras muito específicas. Esta diferença prende-se com o facto de o legisla- dor entender que o tomador do seguro carece de um nível acrescido de protecção neste tipo de con- tratos de seguro.
(i) Falta de Escolha
No caso de falta de escolha pelas partes contratan- tes, a lei aplicável é determinada de acordo com o disposto no terceiro parágrafo do número 3 do Arti- go 7.º, nos termos do qual o contrato será regulado pela lei do Estado-Membro em que o risco se situe no momento da celebração do contrato 23. Esta nor- ma tem como consequência que, na falta de escolha das partes contratantes, diferentes contratos de seguros celebrados por uma empresa de seguros serão regulados por ordenamentos jurídicos distin- tos em função da localização dos riscos cobertos.
Esta norma representa, assim, um forte desincenti- vo à actividade seguradora transfronteiriça mas a verdade é que a sua consagração acaba por se reve- lar inevitável como uma forma de proteger o con- sumidor/tomador do seguro.
22 Por outro lado, ao adoptar-se esta solução eliminar-se-iam as dificuldades de interpretação acima descritas no casos de riscos parcialmente situados dentro e fora dos territórios dos Estados-Membros.
23 Cfr. considerações supra sobre a localização do risco.
(ii) Escolha da Lei Aplicável
A principal questão nos contratos de seguro que cubram riscos de massa situados no território dos Estados-Membros prende-se com o âmbito da liberdade de escolha da lei aplicável de que as par- tes devem beneficiar.
Num primeiro momento, as alíneas a) a e), do número 3 do Artigo 7.º concedem às partes uma certa liberdade de escolha da lei aplicável, embora com restrições. Com efeito, as partes apenas podem escolher uma das leis em conformidade com o disposto nas referidas alíneas, o que repre- senta uma orientação diametralmente oposta ao teor das soluções consagradas para os contratos de seguro que cubram grandes riscos e para os contra- tos de resseguro.
À primeira vista, estamos perante uma liberdade de escolha muito limitada, verificando-se assim uma restrição material à autonomia das partes. Contu- do, o segundo parágrafo do referido preceito legal permite aos Estados-Membros consagrarem no seu ordenamento jurídico interno normas de conflitos de leis adicionais e, assim, conceder às partes a possibilidade de invocar uma maior liberdade de escolha da lei aplicável.
Na prática, este preceito legal concede indirecta- mente às partes uma muito maior liberdade do ini- cialmente suposta. No que respeita ao exemplo português, nos termos do Artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que estabelece o regi- me jurídico do contrato de seguro («DL 72/2008»), as partes contratantes podem escolher a lei aplicá- vel ao contrato de seguro sem qualquer restrição (desde que os demais requisitos aí previstos se encontrem verificados). Assim, caso o contrato de seguro cubra riscos situados em território portu- guês ou, nos seguros de pessoas, caso o tomador do seguro tenha em Portugal a sua residência habitual, as partes poderão escolher qualquer lei como lei aplicável ao contrato, embora devam observância às disposições não derrogáveis por acordo.
O número 3 do Artigo 7.º representa um compro- misso na sempre delicada questão das normas de conflitos de leis relativas à escolha da lei aplicável do contrato de seguro que cubra riscos de massa. A falta de consenso entre os Estados-Membros quanto ao âmbito concreto da liberdade de escolha que deve ser concedida, fez com que o legislador optasse por estabelecer um quadro mínimo da liberdade de escolha da lei aplicável (cfr. primeiro
parágrafo do número 3 do Artigo 7.º), tendo dele- gado no Estado-Membro que apresente uma ligação particular com um determinado contrato de seguro a decisão de adoptar determinas regras específicas que concedam uma maior liberdade de escolha (cfr. parágrafo subsequente).
Embora esta solução seja relativamente complexa e pouco transparente, o seu resultado (ou, por outras palavras, a eventual maior liberdade de escolha concedida às partes) afigura-se crucial para fomen- tar o crescimento do mercado único segurador.
Uma análise em detalhe das opções previstas nas alíneas a) a e) do primeiro parágrafo, do número 3 do Artigo 7.º extravasa o escopo do presente traba- lho. Não obstante, não restam dúvidas de que a possibilidade de escolher a lei aplicável apenas é concedida em situações excepcionais, tendo sempre como princípio subjacente que tal escolha não poderá ser efectuada em prejuízo dos interesses do tomador do seguro.
Refira-se, desde logo, que, nos termos do primeiro parágrafo do número 3 do Artigo 7.º, o mino facto de o tomador do seguro e a empresa de seguros residirem habitualmente em Estados-Membros diferentes não justifica uma possibilidade de esco- lher a lei aplicável. Terão sempre de existir circuns- tâncias que justifiquem a possibilidade de escolha de lei aplicável.
Tal possibilidade é, assim, concedida nos casos em que os riscos cobertos pelo contrato de seguro não se encontrem situados no Estado-Membro em que o tomador do seguro resida habitualmente (cfr. alí- nea b)) ou nos casos em que o contrato cubra dois ou mais riscos situados em Estados-Membros dis- tintos e o tomador do seguro exerça uma actividade comercial, industrial ou uma profissão liberal (cfr. alínea e)). Outra situação que poderá determinar uma possibilidade de escolha de lei aplicável res- peita a um contrato de seguro que cubra riscos limitados a eventos que ocorram num Estado- Membro distinto daquele em que o risco se situa (cfr. alínea d)).
Nos seguros de pessoas, as partes podem escolher a lei do Estado-Membro da nacionalidade do toma- dor do seguro (cfr. alínea c)). Importa retermo-nos por umas linhas no que respeita a esta alínea, dadas as dificuldades de interpretação e os resultados a que a mesma pode conduzir.
Em determinadas situações, a alínea c) poderá minar a protecção conferida ao tomador do seguro subjacente ao número 3 do Artigo 7.º, na medida
em que a nacionalidade constitui, por diversas vezes, uma ligação essencialmente formal a um determinado Estado-Membro. Esta solução abre, assim, a porta à escolha de uma lei com a qual o tomador do seguro, especialmente se tiver nascido no estrangeiro, não está necessariamente familiari- zado.
Por outro lado, julgamos que esta alínea deverá ser objecto de uma interpretação restritiva 24, à luz da protecção do tomador do seguro, em caso de dupla nacionalidade. Nestas situações, deverá apenas conceder-se a possibilidade de escolher uma outra lei (e não a lei de qualquer dos Estados-Membros dos quais o tomador do seguro é nacional), sendo que esta deverá ser a lei do Estado-Membro com o qual o tomador do seguro tem uma conexão mais estreita.
Embora a norma do primeiro parágrafo do número 3 do Artigo 7.º seja relativamente complexa, a ver- dade é que somos forçados a reconhecer que muito dificilmente se alcançará um consenso quanto à adopção de regras mais simples.
Já no que respeita à possibilidade de escolha de lei aplicável constante da alínea a), partilhamos o entendimento já sustentado Urs Xxxxx Xxxxxx 25, segundo o qual tal alínea deverá ser suprimida numa futura revisão do Regulamento Roma I.
Nos termos da referida alínea, as partes podem escolher qualquer dos Estados-Membros em que se situe o risco no momento da celebração do contra- to. De acordo com o estipulado no parágrafo tercei- ro do preceito legal aqui em análise, o contrato será igualmente regulado pela lei do Estado-Membro em que o risco se situe nesse mesmo momento, na falta de escolha pelas partes.
Ou seja, de acordo com a alínea a), as partes do contrato gozam da «liberdade» de escolher a mesma lei que, no caso de falta de escolha, será aplicável de qualquer modo. Individualmente considerada, a alí- nea a) não tem qualquer implicação prática e embo- ra não tenha também qualquer efeito negativo na protecção dos interesses do tomador do seguro, a verdade é que acaba por se revelar supérflua.
24 Neste sentido, vide XXXXXX, Urs Peter: Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, Muni- que, Sellier. European Law Publishers GmbH, 2009.
25 XXXXXX, Urs Peter: Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, Munique, Sellier. European Law Publishers GmbH, 2009.
NORMAS DE CONFLITOS DE LEIS ADICIONAIS
Como anteriormente referido, o parágrafo 2 do número 3 do Artigo 7.º permite aos Estados-Mem- bros conceder às partes contratantes uma maior liberdade de escolha da lei aplicável 26. Apenas os Estados-Membros que tenham uma conexão espe- cial com o contrato de seguro em causa poderão conceder uma maior liberdade de escolha, ou seja: o Estado-Membro onde se situe o risco (alínea a));
o Estado-Membro onde o tomador do seguro resida habitualmente (alínea b)) e o Estado-Membro no qual um dos riscos se situe no caso de estarmos perante um contrato de seguro que cubra diversos riscos situados em diferentes Estados-Membros e o tomador do seguro exerça uma actividade comer- cial, industrial ou uma profissão liberal (alínea e)).
Caso um desses Estados-Membros conceda às par- tes uma maior liberdade de escolha, os restantes Estados-Membros deverão também observar essa liberdade. Assim, se um risco se situar no Estado- Membro A enquanto que o tomador do seguro resi- de habitualmente no Estado-Membro B, e o orde- namento jurídico do Estado-Membro A (ao contrário do Estado-Membro B) consagra uma nor- ma de conflitos que concede uma maior liberdade para escolher a lei aplicável, então, esta norma terá de ser aplicada não apenas pelos tribunais do Esta- do-Membro A, mas também pelos tribunais do Estado-Membro B, bem como dos restantes Esta- dos-Membros.
Do mesmo modo, caso ambos os ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros A e B consagrem normas de conflitos que concedam uma maior liberdade de escolha, as normas do Estado-Membro A e as normas do Estado-Membro B deverão ser aplicadas na medida em que determinem um incre- mento da liberdade de escolha da lei aplicável.
Este parágrafo suscita, assim, a problemática da apli- cação de uma lei estrangeira por um tribunal de um outro Estado-Membro. No entanto, julgamos que esta solução é de saudar, na medida em que, apesar das dificuldades que a mesma poderá suscitar, os tribunais deverão estar habituados a aplicar normas de conflitos de leis estrangeiras por força das regras de reenvio, com o acréscimo de protecção dos inte- resses do tomador do seguro daí resultante.
26 Esta regra já podia ser encontrada no Artigo 7.º da Segunda Directiva 88/357/CEE e no Artigo 32.º da Directiva 2002/83/CE.
SEGUROS OBRIGATÓRIOS
No que respeita aos seguros obrigatórios, julgamos que a regra plasmada no número 4 do Artigo 7.º afigura-se relativamente complexa com as suas diversas remissões e derrogações para outros pre- ceitos do Regulamento Roma I.
À semelhança do sustentado por Xxx Xxxxx Xxx- ber 27, esta norma poderia ser substituída com rela- tiva facilidade por uma disposição mais simples que impusesse a lei do foro que determina a obriga- ção legal de segurar como a lei aplicável.
Refira-se, ainda, que o disposto no número 4 do Artigo 7.º , é aplicável apenas —pelo menos, no que respeita aos contratos de seguro que cubram riscos de massa— aos contratos de seguro que cubram ris- cos situados nos territórios dos Estados-Membros da União Europeia. Dado que não vislumbramos qual- quer motivo para diferenciar contratos de seguro que cubram riscos de massa situados dentro ou fora do território da União Europeia, o âmbito de aplica- ção desta nova disposição deveria ser extensível a todos os contratos de seguro de riscos de messa.
SEGUROS DE GRUPO
Uma possível lacuna do novo regime introduzido pelo Regulamento Roma I prende-se com a eventu- al deficiência de protecção conferida à pessoa segu- ra nos seguros de grupo 28.
Neste tipo de contratos de seguro (sobretudo nos contratos de seguro contributivos), cumpre ques- tionar se, na falta de escolha da lei aplicável pelas partes, a pessoa segura não deverá ser tida como tomador do seguro para efeitos das normas de con- flitos de direito internacional privado.
Em virtude da teleologia subjacente ao número 3 do Artigo 7.º —a protecção efectiva da parte mais
27 XXXXXX, Urs Peter: Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, Munique, Sellier. European Law Publishers GmbH, 2009.
28 Recorde-se que, nos termos do DL 72/2008, que estabelece o regime jurídico do contrato de seguro, o seguro de grupo é definido como o contrato de seguro que cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vín- culo que não seja o de segurar. O seguro de grupo pode ser contributivo, quando do contrato resulta que as pessoas seguras suportam, no todo ou em parte, o pagamento do montante correspondente ao prémio devido pelo tomador do seguro, ou não contributivo, quando assim não é.
débil da relação contratual— o tomador do seguro de um contrato de seguro de grupo deverá ser con- siderado como uma espécie de «mediador» da empresa de seguros para efeitos da aplicação desta norma de conflitos e não como o tomador propria- mente dito (esse deverá ser, ao invés, a pessoa segu- ra).
Reconhecemos que esta tese poderia determinar, em última análise, a aplicação da lei de ordenamen- tos jurídicos diferentes 29 ao mesmo contrato de seguro. Contudo, tal objecção poderá ser ultrapas- sada mediante a dépecage do contrato, em termos substancialmente idênticos à regra constante do número 5 do Artigo 7.
NORMAS DE APLICAÇÃO IMEDIATA
Historicamente, a aplicação de normas de aplicação imediata tem-se revelado como o principal obstácu- lo para a criação de um mercado segurador único e eficiente.
Com uma maior ou menor dificuldade, o intérprete e o juiz poderão encontrar nos ordenamentos jurí- dicos de cada país disposições não derrogáveis por acordo das partes que deverão ser observadas pelas partes contratantes, inclusivamente durante a vigência e execução do contrato de seguro (e não apenas na sua formação) 30. Por força destas nor- mas, mesmo que a empresa de seguros celebre um contrato de seguro regulado pela sua lei pessoal, caso seja demandada no país em que situe o risco coberto pelo contrato ou no país em que o tomador do seguro resida habitualmente, o contrato de seguro poderá encontrar-se sujeito a determinadas normas locais não derrogáveis por acordo. Por esta razão, a empresa de seguros deverá ter em conside- ração a eventual aplicação de normas de aplicação imediata a um determinado contrato de seguro, independentemente da lei aplicável ao mesmo.
Uma análise detalhada de todas as questões relacio- nadas com este tema ultrapassa o escopo do nosso
trabalho. Não obstante, procuraremos descrever sumariamente nos parágrafos seguintes a solução conferida pelo Regulamento Roma I a esta matéria.
O número 3 do Artigo 3.º, estipula a regra geral aplicável aos casos em que tenha sido concedida às partes a liberdade de escolher a lei aplicável. Assim, «caso todos os outros elementos relevantes da situação se situem, no momento da escolha, num país que não seja o país da lei escolhida, a escolha das par- tes não prejudica a aplicação das disposições da lei des- se outro país não derrogáveis por acordo» 31.
Por outro lado, o Regulamento Roma I impõe que a escolha da lei aplicável pelas partes contratantes se encontra agora também sujeita à aplicação das dis- posições de direito comunitário não derrogáveis por acordo, tal como aplicadas pelo Estado-Mem- bro do foro, caso os demais elementos da situação se encontrem situados num ou em vários Estados- Membros.
Sem prejuízo do acima exposto, é o Artigo 9.º 32 a disposição legal que acaba por apresentar uma rele- vância muito mais significativa para a análise desta problemática. Nos termos do seu número 2, «as disposições do presente regulamento não podem limitar a aplicação das normas de aplicação imediata do país do foro». Esta disposição reproduz genericamente o disposto no número 2 do Artigo 7.º da Convenção de Roma 33, constituindo a principal fonte de pro- blemas.
Assim, caso um tomador do seguro instaure uma acção no Estado-Membro em que resida habitual- mente ou no Estado-Membro em que se situe o ris- co, o número 2 do Artigo 9.º permite ao tribunal nacional aplicar as normas internas que sejam de
«aplicação imediata», independentemente da lei aplicável ao contrato.
Este enquadramento legal poderá servir de desin- centivo para o desenvolvimento da actividade segu- radora transfronteiriça. Com efeito, as empresas de seguros encontram-se, assim, sujeitas à eventual aplicação de regras de um outro ordenamento jurí- dico que poderão determinar o afastamento de um
29 Pense-se, por exemplo, numa situação em que duas pesso- as seguras residem em Estados-Membros distintos (cfr. alínea b), do número 3 do Artigo 7.º).
31 Esta disposição acaba por reproduzir o disposto no Artigo 3.º, número 3 da Convenção de Roma.
32 Que vem substituir o Artigo 7.º da Convenção de Roma.
33 No qual se pode ler «o disposto na presente Convenção não pode prejudicar a aplicação das regras do país do foro que regulem imperativamente o caso concreto, independentemente da lei aplicável ao contrato».
eventual direito que, à partida, lhes assistiria nos termos da lei aplicável ao contrato.
Para minorar este cenário, muito contribuirá a interpretação que se faça do disposto no número 1 do Artigo 9.º e da definição aí presente de «normas de aplicação imediata» 34. Caso esta definição seja interpretada restritivamente, o problema ora susci- tado poderá ser, de certa forma, mitigado, ao limi- tar-se o número de situações em que os Estados- Membros poderão invocar as normas de aplicação imediata do seu próprio Estado-Membro. No entanto, apenas a experiência prática e a jurispru- dência nos poderão demonstrar se tal se virá a con- firmar no futuro.
Para além do mais, uma outra questão relativa a esta problemática foi introduzida pelo número 3 do Artigo 9.º. À semelhança do número 1 do Artigo 7.º da Convenção de Roma (o qual não fazia parte do direito português, recorde-se), este preceito legal contempla a possibilidade de aplicação por um tri- bunal nacional das normas de aplicação imediata de um país terceiro 35.
Os tribunais nacionais encontram-se agora habilita- dos (não estando, no entanto, obrigados) a dar pre- valência às normas de aplicação imediata de um país terceiro, na medida em que, segundo essas normas de aplicação imediata, a execução do con- trato seja ilegal.
Embora não sejam de descurar os entraves que esta norma possa representar ao bom funcionamento do mercado interno segurador, acreditamos, contudo, que a relevância prática do disposto no número 3 do Artigo 9.º acabará por se manifestar relativa- mente reduzida, uma vez que as situações em que as faculdades conferidas por este preceito poderão vir a ser invocadas por um tribunal serão, muito provavelmente, escassas 36.
CONCLUSÕES
Delineado que está, em traços genéricos, o regime introduzido pelo Regulamento Roma I no que diz respeito ao direito internacional privado aplicável aos contratos de seguro e contratos de resseguro, somos da opinião que o balanço é claramente posi- tivo.
O facto de as diversas normas de conflitos de leis que podíamos encontrar nas Directivas se encontra- rem agora reunidas num único instrumento repre- senta uma melhoria significativa na interpretação e aplicação das normas de conflitos de leis aplicáveis ao contrato de seguro e ao contrato de resseguro que não poderá ser descurada.
Outra novidade digna de nota prende-se com a eli- minação da distinção entre riscos situados dentro e fora dos territórios dos Estados-Membros nos con- tratos de seguro que cubram grandes riscos. Contu- do, esta distinção permaneceu inalterada no que respeita aos contratos de seguros que cubram riscos de massa, com as inerentes dificuldades de inter- pretação daí emergentes 37. Por outro lado, determi- nados contratos de seguro permanecem sujeitos às normas de conflitos de leis aplicáveis às obrigações contratuais em geral.
Assim, ao passo que as normas relativas aos con- tratos de seguro que cubram grandes riscos e con- tratos de resseguro são agora muito mais claras, as normas aplicáveis aos restantes contratos de segu- ro não se afastam materialmente do regime legal estabelecido nas Directivas, salvo alguns ajustes pontuais.
Esta solução de compromisso do Regulamento Roma I e consequente fragmentação do direito internacional privado carece de uma justificação plausível e apenas dá origem a dificuldades de interpretação que não têm razão de ser. Concede- mos, no entanto, que este compromisso muito difi- cilmente poderia ter sido evitado, dada a complexi-
dade das matérias aqui em causa (em especial, a
34 «As normas de aplicação imediata são disposições cujo res- peito é considerado fundamental por um país para a salvaguar- da do interesse público, designadamente a sua organização política, social ou económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro modo seria aplicável ao contrato, por força do presente regulamento».
35 Embora possamos aqui encontrar uma formulação algo mais atenuada (cfr. parte final do número 3 do Artigo 9.º) do que a presente no preceito correspondente da Convenção de Roma.
36 Que tenhamos conhecimento, o Artigo 7.º, número 1 da Convenção de Roma não foi invocado por qualquer tribunal europeu até à presente data.
dicotomia entre autonomia privada e necessidades de protecção da parte mais débil da relação contra- tual) e a perspectiva particular que cada Estado- Membro tem sobre as mesmas.
37 Esta distinção foi já apontada como a «principal fraqueza» do Regulamento Roma I. Neste sentido, vide XXXXXX, Xxxxxx:
«Choice of Law in Insurance Contracts under the Rome I Regu- lation», Journal of Private International Law, Vol. 5, n.º 1, Abril de 2009, págs. 49-67.
A verdade, porém, é que os problemas que têm impedido o desenvolvimento de um mercado único segurador têm a sua raiz numa outra sede, uma vez que as normas de conflitos de leis individualmente consideradas apenas contam uma parte da história. Em particular, o futuro desenvolvimento da activi- dade transfronteiriça por parte das empresas de seguros dependerá, essencialmente, da interpreta- ção que for conferida à definição de normas de aplicação imediata do número 1 do Artigo 9.º.
Esperamos que uma futura revisão do Regula- mento Roma I, no que respeita à legislação apli- cável aos contratos de seguros, venha rectificar as deficiências salientadas no presente trabalho. Jul- gamos, assim, que tal oportunidade deverá ser aproveitada essencialmente para (i) incluir no texto do Regulamento uma única norma cujo escopo inclua todos os contratos de seguro e de resseguro e (ii) precisar o conceito de normas de aplicação imediata.