TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
18650 Diário da República, 2.ª série — N.º 112 — 14 de junho de 2016
PARTE D
TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Acórdão n.º 277/2016
Processo n.º 978/15
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1 — Xxxxxx Xxxxx Xxxxx e sua mulher, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, recorridos nos presentes autos, intentaram ação declarativa contra Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx, ora recorrente, pedindo que fosse decretada a resolução do contrato de arrendamento celebrado com o segundo, bem como a sua condenação na restituição do locado livre de pessoas e bens. Em saneador-sentença, de 20 de junho de 2015, o Tribunal da Comarca do Porto julgou procedente a ação. O réu apelou, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (“NRAU”), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, interpretados no sentido de que «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das refe- ridas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção», uma vez que tal «consubstancia uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança».
Por acórdão de 23 de junho de 2015, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso. Para tanto, considerou a factualidade assente na primeira instância (v. secção 3-Factos provados de tal aresto), de que importa destacar:
(i) Que o contrato de arrendamento foi celebrado verbalmente, há cerca de 50 anos, com prazo de duração mensal, prorrogável por iguais e sucessivos períodos, enquanto não for denunciado nos termos legais (alíneas A e B);
(ii) Que o locado se destina exclusivamente à habitação do arrenda- tário e que a renda em janeiro de 2012 era, na sequência dos sucessivos aumentos legais, de € 13,00 (alínea C);
(iii) Que o autor, ora recorrido, usando a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 30.º do NRAU, enviou ao réu, ora recorrente, e m 30 de novembro de 2012, uma carta em que comunicava a sua intenção «de transitar o arrendamento do locado» para o NRAU, pretendendo que a renda fosse atualizada para € 163,00 e que o contrato passasse a ser
«com prazo certo, pelo período de cinco anos» (xxxxxx X);
(iv) Que, em resposta, a Associação dos Inquilinos do Norte de Por- tugal, invocando o artigo 36.º, n.º 9, alínea b), do NRAU, afirmou que a pretensão do senhorio «não é exigível»; além disso, que o inquilino seu associado tem um rendimento mensal de € 877,00, comprovado pelos recibos da Segurança Social, e o seu cônjuge sofre de uma incapacidade, circunstâncias que, em conjunto, lhe conferem «direito a uma resposta social, nomeadamente através do subsídio de renda, de habitação social ou de mercado social de arrendamento a definir em diploma próprio, nos termos do n.º 10 [do mesmo artigo] da L 31/12» (alínea G);
(v) Na mesma carta, a citada Associação acrescentou, que, «de todo o modo e como mera hipótese, sempre diremos que o montante pretendido por V. Ex.ª está mal calculado», devendo a renda exigível nos termos do artigo 35.º, n.º 2, alínea a), do NRAU ser de € 129,00, acrescentando: «a idade do nosso associado de 77 anos e o rendimento inferior a 1 500 € dar-lhe-á o direito a benefício quando a atualização for exigível, o que de momento não o é, pelas razões supra aludidas» (ibidem);
(vi) Respondendo a esta missiva, o autor, ora recorrido, informou, por carta datada de 20 de dezembro de 2012, que «para fazer prevalecer o consignado [no artigo 31.º, n.º 4, alíneas a) e b), do NRAU], e desde que se encontrasse nas condições expressas no n.º 5 do referido artigo 31.º, teria V. Ex.ª que comprovar o alegado dando cumprimento ao previsto no art 32.º do mesmo [diploma] legal o que não fez. Nesta conformi- dade, comunico que nos termos da alínea b) do n.º 5 do artigo 33.º do mesmo [diploma] legal, a renda é atualizada para a quantia de € 129,00 [...] mensais […] por aplicação dos critérios constantes nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º, considerando-se o contrato celebrado com prazo certo a partir desta comunicação» (alínea H);
(vii) Em resposta, datada de 17 de janeiro de 2013, a referida Associa- ção contestou a interpretação feita pelo senhorio quanto ao artigo 32.º do NRAU e a sua pretensão «de lançar mão da alínea b) do n.º 5 do artigo 33.º do N.R.A.U. […] quanto à duração do contrato, pois que a conversão para o N.R.A.U. só seria possível com o acordo das partes, nos termos do n.º 1 e n.º 9 do artigo 36.º do N.R.A.U. e que o nosso associado rejeita»; mais refere ter o associado, ora recorrente, 78 anos de idade e junta documentos comprovativos quer da idade, quer da
«declaração do do pedido do R.A.B.C. emitida pela Repartição de Finanças» (alínea I),
(viii) O autor, ora recorrido, respondeu, informando que, «por ex- temporâneo», não aceita o conteúdo de tal carta; acrescenta que, «sem prescindir, sempre se dirá que a Lei obriga à junção dos documentos comprovativos quer da idade quer da declaração das finanças ou pedido da mesma», pelo que confirma «o teor integral» da carta referida supra em (vi) (xxxxxx X).
Quanto à fundamentação de direito, pode ler-se no citado acórdão:
«4-1. Se a renda é devida a partir de 01-02-2013. […]
Conforme deflui dos factos provados, o senhorio tomou a iniciativa de proceder à atualização da renda comunicando ao inquilino o valor da renda — 163,00 euros —, o tipo de duração do contrato e o valor do locado avaliado nos termos do artigo 38 e seguintes do CIMI.
Dentro do prazo concedido pelo artigo 31 do NRAU, o inquilino respondeu ao autor referindo, que, nos termos do n.º 9 do artigo 36 da Lei n.º 6/2006 na nova redação dada pelo Lei n.º 31/2012, a preten- são não lhe era exigível e que tem um rendimento mensal diminuto, adiantando, no entanto, o montante de 129,00 euros calculado nos termos do artigo 35 que apenas se aplica quando o arrendatário invo- que e comprove que o RABC (rendimento anual bruto corrigido) do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA. (retribuição mínima nacional anual).
Como o réu/arrendatário não comprovou essa situação, o Tribunal recorrido entendeu que estávamos perante uma contraproposta por o valor da renda proposto pelo senhorio não obedecer aos valores aludidos no n.º 2 do artigo 35.º do NRAU, mas, sim, aos valores referidos no artigo 30.º do NRAU, e, por falta de junção dos docu- mentos comprovativos das circunstâncias exigidas pelos artigos 35.º e 36.º do NRAU e elencadas pelo inquilino na sua comunicação para se poder passar a esta segunda fase, considerou que esta fase não se tinha iniciado, posição que acompanhamos.
Com efeito, se o arrendatário, nesta primeira fase, pode invocar” isolada ou cumulativamente [...]o RABC do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais e/ou a idade igual ou superior a 65 anos tem de fazer acompanhar essa sua alegação do comprovativos emitido pelo serviço de Finanças competente, do qual conste o valor RABC ou o comprovativo de o ter requerido, bem como documento que comprove a sua idade — artigos 31, n.os 4, 32, n.os 1 e 2 e 36,n.º 1, do NRAU — para poder passar à segunda fase.
Como se diz na decisão recorrida “não basta a invocação das cir- cunstâncias referidas no artigo 31, n.º 4, alínea a) e b), terá também de as comprovar documentalmente” o que não aconteceu e, como tal, não pode beneficiar das circunstâncias que alegou de acordo com o preceituado no artigo 32.n.º 4, do NRAU aplicável também à situação referida no artigo 31, n.º 4. al.a) — cf. Prof. Menezes Cordeiro, Leis do Arrendamento urbano Anotadas, Almedina, pág.490/491-
Não esqueçamos que a transição para o NRAU é da iniciativa do senhorio que pela sua comunicação desencadeia o processo nego- cial a que aludem os preceitos acima referidos, cujas regras foram “claramente inspiradas no CPC” — cf. Prof. Menezes Cordeiro, ob. Citada, pág.484-
Desencadeado o processo negocial, o arrendatário, ao invocar al- guma das circunstâncias aludidas nos precitos legais acima referidos, tem de as demonstrar documentalmente sob pena do efeito preclusivo quanto à junção posterior tal como acontece na apresentação das provas aludidas no CPC — sobre a preclusão vide Xxxxxxx Xxx- tos Abrantes Geraldes, Temas de Processo Civil, II Vol. Almedina, 2.ª ed. pág. 123; em todo caso, se o senhorio não tomar a iniciativa da transição para o NRAU, o contrato rege-se pelo NRAU mas com as especificidades constantes dos artigos 28 e 29” — cf. Prof. Xxxxxxx Xxxxxxxx, obra citada, pág. 483).
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Não se iniciando a segunda fase, o montante oferecido, como sendo o valor do locado corrigido, funciona como um novo valor contraposto pelo inquilino o qual, neste caso, foi aceite pelo senhorio, nos termos do artigo 33,n.º 1, parte final, do NRAU e, consequente- mente, a renda é devida a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao da receção pelo arrendatário da comunicação da aceitação, data que foi atendida no dispositivo da sentença e, por conseguinte, improcede o fundamento invocado.
4-2. Se o arrendatário pode valer-se da ignorância das regras apli- cáveis.
A resposta da lei a esta questão é decisiva: “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”- artigo 6 do CC-
Daqui decorre que à ignorância se equipara a má interpretação: “o facto de alguém conhecer a lei mas estar convencido que ela tem o sen- tido a de nada lhe aproveita, se na realidade ela tiver o sentido b, Será responsabilizado e sancionado como se tivesse ajuizado exatamente as sua vinculações” — cf. Prof. Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx. O Direito, Introdução e Teoria Geral, Almedina, 13.ª ed. pág.607 — Contudo, nas conclusões das alegações do recurso, o apelante parece defender que o desconhecimento teria de ser relevado na medida em que o princípio da boa-fé tem de estar presente em todas as relações con- tratuais para concluir que se impunha que os autores notificassem o réu — aqui apelante — para juntar os elementos em falta.
Mas, com todo o respeito, não podemos confundir a ignorância da lei com o erro na vinculação, que pode ser de direito aquando da celebração de um contrato em que as partes devem proceder segundo as regras de boa-fé o que não está aqui em causa — sobre esta questão vide Prof Xxxx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, ob, citada, pág. 610 -
[…]
4-3. Se foi violado o preceituado no artigo 65 da CRP
Preceitua o artigo 65 da Constituição da República Portuguesa que: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”
Mas, este direito, como referido pelo Tribunal Constitucional, “não implica que os proprietários das casas sejam compelidos a entregá-las a quem as não tem, nem que os arrendatários possam utilizá-las sem quaisquer limitações, como se fossem suas. Na realidade, o direito à habitação pressupõe concretização, mediação, do legislador ordinário, decorrente das opções político-legislativas em que em princípio, não há molde constitucional para além das incumbências enunciadas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 65 da CR, nem aos tribunais compete substituir o legislador nesta matéria” Acórdão n.º 633/1995 no site DGSI-
Ou seja, “não pode aceitar-se como constitucionalmente exigível que a realização do direito à habitação esteja dependente de limitações intoleráveis e desproporcionadas dos direitos de terceiro, porventura também constitucionalmente consagrados, como o é o direito de propriedade privada” — cf. artigo 62 da CRP e Acórdão 101/1992, in sítio GGSI e, ainda, Xxxxx Xxxxxxx e Xxx Xxxxxxxx, CRP anotada, Coimbra Editora, tomo I, pág.666-
Dito doutro modo, o cidadão só pode exigir o cumprimento do di- reito à habitação nas condições e nos termos definidos por lei ordinária e, portanto, a interpretação dada não é violador do artigo 65,n.º 1, da CRP.
Termos em que improcede o fundamento invocado.
4-4. Se o seu regime viola o princípio ínsito no artigo 18, n.º 3, da CRP, que dispõe: “As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm caráter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.
No caso em apreço, como decorre do que acima ficou dito, estamos perante relações contratuais decorrentes do contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, realidade desajustada às necessidades do mercado de arrendamento e, que, por iniciativa do senhorio, transitam para o NRAU com o recurso ao processo negocial a que aludem os artigos 30 e seguintes das Normas Transitórias do NRAU — cf. artigo 36.n.º 10, da Lei 31/2012 e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 38/XII que deu origem à Lei n.º 31/2012 -
E, portanto, como todo o respeito, não estão em causa direitos fun- damentais “de natureza análoga a direitos, liberdade e garantias”- vide Acórdão do TC95/92, de 17 de março, BMJ 415/191 e tb Xxxx xx Xxxxxxxx Xxxxxxxx, obra citada, pág.554-
Donde se conclui que a transição para o NRAU nos termos so- breditos não viola o princípio decorrente do artigo 18,n.º 3, e 17 da Constituição da República Portuguesa.
4-5. Se o seu regime viola o princípio de Estado de Direito demo- crático e da confiança ínsito no artigo 2 da CRP.
Em defesa da sua tese o apelante invoca Acórdão 847/2014 do Tribunal Constitucional que considerou que “a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita na conjugação dos artigos 703 do CPC e 6, n.º 3, da Lei n.º 41/2013, de 26-06, de que decorre a perda de valor de título executivo de documentos particulares que o possuíam à luz do CPC revogado, sem uma disposição que gradue temporariamente essa aplicação é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da Proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2 da Constituição”, para de seguida julgar inconstitucional “a norma resultante [de tais preceitos].
Ora, cremos, salvo sempre o devido respeito que é muito, que esta jurisprudência constitucional não tem aqui aplicação. Com efeito, as normas em causa estão desde logo contidas nas disposições transitó- rias, que, embora não graduem temporalmente a sua aplicação, não se apresentam como desproporcionadas em face dos trâmites processuais nelas contidos em que as partes podem expor os seus argumentos tendo em vista um acordo negociado ou, na impossibilidade de acordo, a denúncia do contrato.
Não se vê, por isso, que este regime transitório viole o princípio constitucional da segurança jurídica ou o princípio da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plas- mado no artigo 2 da Constituição.
Na verdade, o Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade daLei 31/2012, por violação dos prin- cípios de segurança jurídica e de proteção integrantes do princípio do Estado de Direito democrático contido no artigo 2 da Constituição da República Portuguesa, fê-lo por a remissão na alínea a) do n.º 4 do artigo 26 do NRAU para a alínea a) do n.º 1 do artigo 107 do RAU ter deixado de fora a alínea b) do mesmo preceito para legitimar a sua oposição à extinção do arrendamento na interpretação dada pelo Acórdão n.º 270/99, processo 54/99 — sítio DGSI — cuja aplicação não está, nestes autos, em causa — Xxxxxxx 297/2015, proc. 369/14, sítio DGSI, Relator Conselheiro Xxxx Xxxxx Xxxxxxx -».
2 — É deste aresto que vem interposto o presente recurso de cons- titucionalidade, com fundamento no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, seguidamente abreviada como “LTC”), para apreciação da questão de constitucionalidade já anteriormente suscitada: a «aplicação imediata e automática da solução legal ínsita nos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU, na versão da Lei 31/2012, interpretados no sentido de que os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto ao rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos do- cumentos e das consequências da sua não junção, consubstancia uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da prote- ção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição, e, também os artigos 18.º, 65.º, n.º 1 e 3, 72.º n.º 1, todos da mesmo CRP.»
Admitido o recurso, e subidos os autos a este Tribunal Constitucional,
foi determinada a produção de alegações.
O recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
«2) [D]eu-se como provado que o contrato de arrendamento em causa foi celebrado há mais de 50 anos, que em novembro de 2012, os autores remeteram ao réu uma carta que foi recebida a 03.12.2012, propondo a transição do contrato para o NRAU e o aumento da renda para a quantia de € 163,00;
3) Acontece que, o Tribunal de primeira instância — depois sus- tentado pela aresto da Xxxxxxx — a quo concluindo sentido de que, na cara de resposta, o réu apresentou uma contraproposta aos autores, no valor de € 129,00, o que não corresponde à realidade;
4) Com efeito, o réu limita-se a referir qual seria o montante da renda máximo, considerando os critérios previstos no artigo 35.º, n.º 2, alíneas a) e b), do NRAU (ex vi artigo 33.º n.º 5 alínea b) do NRAU), que prevê, nomeadamente, que nas situações de falta de acordo entre o senhorio e o inquilino, a renda atualizada não pode ultrapassar um 1/15 do VPT;
5) Por outro lado, refere ainda o dito Tribunal que, na 2.ª carta remetida pelos senhorios ao réu, os autores aceitam a contrapro- posta apresentada pelo réu e que, em consequência de tal aceitação, a renda se considera atualizada para o valor proposto a partir de 01.01.2013;
6) No entanto, se não existe nenhuma contraproposta, nunca poderá ocorrer aceitação da mesma, sendo que o réu limitou-se a se opor à renda proposta;
[…]
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8) De qualquer modo, sempre se diga que, perante a carta remetida pelo réu, os autores nunca poderiam atualizar a renda sem considerar a alegação feita por aquele no que respeita ao rendimento do seu agregado familiar.
9) A este propósito, importa ter em conta que a alteração à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, operada pela Lei 31/2012, de 14 de agosto, entrou em vigor a 12 de novembro do mesmo ano, constatando-
-se que esta alteração legislativo vem consagrar um novo, e complexo, modelo de alteração dos contratos de arrendamento anteriores ao RAU, bem como de atualização das respetivas rendas;
10) É um facto que o réu, na sua carta de resposta, para além de alegar os seus baixos rendimentos e a sua idade superior a 65 anos, deveria ter enviado os comprovativos legalmente impostos, conforme determina o artigo 32.º do NRAU;
11) No entanto, também é verdade que a lei tinha entrado em vigor há muito pouco tempo, sendo certo que, ao contrário das situações que o legislador pretendeu acautelar com a consagração do previsto no mencionado artigo 32.º, o réu não enviou os respetivos comprovativos para se furtar, desde logo, à atualização da renda;
12) Na verdade, conforme resulta da leitura das cartas juntas aos autos, a falta de envio dos documentos comprovativos resulta do desconhecido (em profundo, e ao pormenor) da nova legislação,
13) Desconhecimento esse que teria de ser relevado, atendendo ao facto de a alteração legislativa em causa ter ocorrido há tão pouco tempo e na medida em que o princípio da boa-fé, que tem de pautar todas as relações contratuais (cf. artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil), impunha que os autores, nas circunstâncias em causa, tivessem noti- ficado o réu para juntar os referidos comprovativos,
14) Sendo que, só se no seguimento da referida interpelação o recorrente não juntasse os mesmos, aí sim os autores poderiam retirar as consequências previstas no dito artigo 32.º;
15) De outro modo, ao contrário do pretendido pelo legislador, o recorrente, apesar de ter mais de 65 anos — note-se, à data, 77 anos, hoje 80 — e de ter um RABC inferior a 5 RMNA, no valor de € 6.972,14, deparar-se-ia com um aumento da renda ao qual não poderia fazer face, por ser manifestamente superior à taxa de esforço legalmente prevista, na medida em que, a renda, correspondente a 1/15 VPT, se traduziria em € 129,00, enquanto que, atendendo ao RABC do arrendatário, ficaria nos € 98,77 (verificando-se que o recorrente foi aumentando gradualmente os valores de renda mensalmente pa- gos, sendo que de momento está a pagar um valor acima das suas possibilidades, fazendo o com grande esforço de modo a compensar os montantes que, porventura, se considerem em atraso);
16) Bem como com um contrato a prazo, pelo período de 5 anos quando o legislador, nestes casos, pretendeu perpetuar os contratos existentes,
[…]
18) Mais, deparando-se com a alegação dos autores no sentido de não terem sido juntos os comprovativos adequados às circunstâncias alegadas — em relação à idade e aos rendimentos — prontamente os enviou aos autores;
19) Note-se que as dificuldades de apreensão do complexo procedi- mento de atualização da renda e transição do contrato de arrendamento para o NRAU não se fizeram sentir apenas junto dos inquilinos, mas também em relação aos senhorios,
[…]
21) Por outro lado, importa ter em conta que, a forma como o Tribunal a quo interpreta o artigo 32.º do NRAU, bem como (e por consequência) todo o procedimento de atualização extraordinária da renda e de transição do contrato de arrendamento para o NRAU, acaba por estar ferida de inconstitucionalidade;
22) Na verdade, com a publicação da Lei 31/2012, o legislador não pretendeu, sem mais, que a mera omissão de um formalismo permitisse a transição do contrato para o NRAU, quando o inquilino tivesse mais de 65 anos, ou a atualização da renda sem considerar o RABC dos inquilinos;
23) Estamos diante de um problema resultante da sucessão no tempo de disposições substantivas que, por implicação de outras adjetivas, poderá conduzir (como na sentença posta em crise), a so- luções manifestamente excessivas quando consideradas as pretensões do legislador;
24) Até à entrada em vigor da Lei 31/2012, o recorrente, aqui re- corrente, era titular de um contrato de arrendamento que perdurava há mais de meio século;
25) Praticamente octogenário, tinha como certo e adquirido que, continuando a pagar as rendas devidas, como sempre fizera, teria assegurado até ao fim da sua vida a habitação no locado;
26) Xxx xxx, como é sabido, o direito à habitação encontra-se constitucionalmente tutelado, resultando do artigo 65.º, n.º 1, da CRP que: «Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação
de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.»;
27) Mais, acrescenta o n.º 2, alínea c), do supra aludido normativo que «Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado: Es- timulara construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada.»;
28) Nesta decorrência, determina o n.º 3 do mesmo artigo 65.º da CRP que: «O Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiare de acesso à habitação própria.»;
29) Considerados tais elementos, manifesto se torna que não poderia o legislador ter pretendido não só aumentar exponencialmente uma renda, sem considerar os rendimentos dos inquilinos (ainda para mais quando não há acesso a subsídios de renda), como ainda, delimitar no tempo um contrato que desde sempre foi vitalício e que tem um inquilino com mais de 65 anos;
30) Por fim, alude-se ainda ao decorrente do artigo 72.º, n.º 1, da CRP: «Aspessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social»
31) Aqui chegados, constatamos que, enquanto direitos fundamen- tais de natureza análoga aos direitos, liberdade e garantias, o direito à habitação e à terceira idade beneficiam do regime de proteção do artigo 18.º da Constituição, designadamente do princípio da proibição da aplicação retroativa de leis restritivas (n.3);
32) O regime definido através da Lei 31/2012 estabelece que o mesmo apenas se aplica dali em diante, mas também a contratos de arrendamento já em vigor;
33) Assim, considera-se que, interpretadas literalmente tais normas, entram estas em colisão com o princípio da proibição da aplicação retroativa de leis restritivas do direito ao arrendamento, decorrente do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição;
34) Como tal, a reportada alteração legislativa tem como conse- quência a afetação de contratos muitas vezes decanos e perfeitamente estabilizados entre as partes, permitindo-se agora que os senhorios se aproveitem, por exemplo, do incumprimento de um mero formalismo para converter aqueles em contratos absolutamente precários e sujeitos a rendas incompatíveis com a disponibilidade dos arrendatários;
35) A alteração normativa em presença caracteriza-se pela aplicação para o futuro a situações de facto e relações jurídicas presentes;
36) Nestes casos, ainda que a nova regulação jurídica não substitua ex tunc a disciplina normativa existente, ela acaba por atingir posições jurídicas ou garantias geradas no passado e relativamente às quais os respetivos titulares formaram legítimas expectativas de não serem perturbados por um regime jurídico inovador;
37) Trata-se da situação que a doutrina classifica de «retroatividade inautêntica» ou «retrospetiva»;
38) É certo que o legislador pode legislar inovatoriamente, estando habilitado a alterar a lei processual;
39) No entanto, essas alterações só são possíveis se ocorrerem dentro de certos limites;
[…]
41) [Como se refere no] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 847/2014: «Numa situação como a objeto do presente processo um dos limites constitucionais à atuação do legislador é o princípio da segurança jurídica ou ao princípio da proteção da confiança»
42) «Conforme vem sendo afirmado pelo Tribunal Constitucional “fora dos casos de retroatividade proibida expressamente previstos na Constituição, o juízo- ponderação de que o Tribunal Consti- tucional vem lançando mão para apreciar as restantes situações potencialmente lesivas do princípio da segurança jurídica assenta no pressuposto de que o princípio do Estado de Direito contido no artigo 2.º da CRP implica “um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expetativas que a elas são juridicamente criadas”. Neste sentido, “a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança [...], terá de ser entendida como não consentida pela lei básica” (cf. Acórdão n.º 556/2003)» (Xxxxxxx n.º 355/20 13).»;
43) A questão que deve ser colocada é, então, a de saber se a interpretação literal das normas em causa afetam, de forma inadmis- síveis, arbitrária ou demasiadamente onerosa direitos ou expectati- vas legitimamente fundadas dos cidadãos, traduzindo uma violação daquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito — i.e. uma violação do princípio da proteção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da CRP (cf., v.g., Acór- dãos do Tribunal Constitucional n.º 511/83, 10/84, 287/90, 330/90, 486/96, 559/98, 556/2003, 128/2009, 188/2009, 399/2010, 3/2011, 396/2011 e 355/2013);
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44) Neste sentido, será de sublinhar, antes do demais, a legitimidade e plena justificação cujas expectativas dos titu1ares de contratos de arrendamento para habitação anteriores a 1990 e a que a lei mantinha o seu caráter “vitalício”;
45) Os cidadãos atuaram de acordo com um comportamento social normal, respeitador do enquadramento legal aplicável, confiando na sua estabilidade, pois nada fazia prever que fosse criado um regime que conduzisse à cessação quase imediata de um contrato perfeita- mente estabilizado, que tinha por inquilino um idoso, apenas por não ter sido respeitado um mero formalismo;
[…]
47) Aceita-se, sem esforço, a opção legislativa no sentido de au- mentar as rendas ou até a de encurtar a duração dos contratos;
48) Porém, o que aqui se discute é a legitimidade do Estado para implementar um regime que, impondo um tão inovador quanto inusitado formalismo (designadamente, quanto à prova do RABC que esteve largos meses sem funcionar por inoperacionalidade da Administração tributária), permite ao senhorio auferir de um desco- nhecimento do arrendatário que o coloca numa situação de absoluta fragilidade, jogando-se então a apreciação da proporcionalidade da solução encontrada;
49) Da ponderação exposta, parece-nos ser de reter a cristalina ideia da desproporção entre o pretendido e o legitimante;
50) Como se vê, um arrendatário que, pese embora comunique, por exemplo, a sua provecta idade sem a documentar, pese embora a mesma seja até do conhecimento do senhorio que, já sexagená- rio, sempre soube que o arrendatário “tinha idade para ser seu pai”, fica exposto à conversão do seu contrato quantas vezes secular num quinquenal!...
51) Em contraponto, é notório que o Estado não tem sequer imple- mentado um regime que permita aos arrendatários nestas circunstân- cias beneficiarem de regimes que lhes pudessem conferir o efetivo direito à habitação constitucionalmente consagrado;
52) Se em si mesma esta situação se contém na liberdade de con- formação do legislador, a incidência do novo regime jurídico sobre situações jurídicas constituídas no passado exige, todavia, uma pon- deração de interesses contrapostos, constituídos, por um lado, pelas expectativas dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente e, por outro, pelas razões de interesse público que justificam a alteração das soluções legislativas;
53) Nessa ponderação assume especial relevância a lesão do inte- resse particular legítimo, na medida em que esta constitui uma ablação do contrato de arrendamento existente;
54) A esta relevância da lesão do interesse particular contrapõe-se a prossecução de um interesse público de particular relevância que pode ser alcançado com um nível similar de eficácia através de meios menos lesivos ou numa escala temporal maior;
55) Paralelamente ao que dispõe o aludido acórdão n.º 847/2014, no juízo de ponderação que é imposto pela proteção da confiança, confronta-se e valora-se o efeito negativo sobre o interesse do arrenda- tário (que fica sem possibilidades de pagar a renda que lhe é imposta e/ou sujeito a um contrato de curtíssima duração), com um interesse público, que pode ser alcançado por outras medidas legislativas e seguramente também num horizonte temporal mais alargado;
56)Xxx, neste caso, a solução justa desta ponderação feita à luz do princípio da tutela da confiança impõe que a implementação da medida se faça de forma diferida no tempo;
57) Aplicá-la de imediato, é ultrapassar, de forma excessiva, a me- dida de sacrifício imposto aos interesses particulares atingidos, uma vez que, bastaria a previsão de um regime transitório e informativo adequados para acautelar as expectativas legítimas dos titulares dos contratos de arrendamento anteriores a 1990 e que, com este diploma, perderam a sua natureza e características, sem descurar o interesse público que reside na adequação do mercado de arrendamento aos nossos dias;
58) Ainda em paralelo, não se trata de exigir que a alteração das regras atinentes aos contratos de arrendamento conferidas por uma lei revogada tenha de ser garantida até à extinção do último contrato baseado na mesma;
59) Na verdade, bastaria a previsão de que, na carta de interpela- ção prevista no artigo 30.º, os senhorios tivessem de referir quais os regimes de exceção existentes, bem como a obrigação de enviar os respetivos documentos comprovativos (indicando, designadamente, quais os documentos em concreto que terão de ser enviadas e quais as consequências. do seu não envio), para se poder assegurar a devida proteção da sua legítima confiança na estabilidade do ordenamento jurídico;
60) Xxxxx, foi neste sentido que o legislador, já através da Lei 79/2014, de 19 de dezembro, veio impor tais obrigações, quando estabelece no artigo 30.º alínea f) do NRAU que “as circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou conjuntamente com a
resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apre- sentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32.º”;
61) Prevendo precisamente o artigo 31.º n.º 4 do NRAU que, “se for caso disso, o arrendatário deve ainda, na sua resposta, invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias: a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º; b) idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º;”
62) Conclui-se, assim, que a aplicação imediata e automática da solução legal ínsita nos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU, na versão da Lei 31/2012, interpretadas no sentido de que os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto ao rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção, consubstancia uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição, donde resulta a inconstitucionalidade dos referidos preceitos, que aqui expressamente se alega.»
Os recorridos contra-alegaram, dizendo a final o seguinte sobre o mérito do presente recurso:
«2 — O recorrente pretende que sejam declaradas inconstitucionais os artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU.
3 — O recorrente invoca a inconstitucionalidade no processo de atualização extraordinária da renda, constante dos autos, não invo- cando qual o tipo de inconstitucionalidade violada.
4 — Se é o indicado direito à habitação previsto no artigo 65.º da Constituição da República, o mesmo é apenas um direito pro- gramático.
5 — Não existe qualquer violação do direito à habitação previsto na Constituição, o que houve foi que o réu não fez prevalecer os seus direitos, previstos na lei, e consequentemente, não pagou a renda a que estava obrigado, o que levou à necessidade de propor a presente ação, que foi julgada provada e procedente, e confirmada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
6 — Por uma questão de economia processual dão-se por reprodu- zidos os doutos fundamentos invocados no douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto quanto a esta matéria.
7 — O mesmo acontece relativamente ao artigo 72.º da CRP, que é meramente uma norma programática, pelo que a douta sentença não violou qualquer norma constitucional designadamente o artigo 18.º da mesma, dando-se, também, por reproduzido o douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
8 — A Lei 31/2012 não viola o princípio da proibição da aplicação retroativa da lei, sendo apenas uma lei transitória.
9 — Não existe violação do princípio da segurança jurídica ou do princípio da confiança.
10 — Assim, não existe a violação de qualquer norma constitucional invocada pelo Recorrente, pelo que não deverá o presente recurso ter provimento.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3 — O presente recurso tem por objeto a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (“NRAU”), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção».
Esta solução inscreve-se no procedimento negocial iniciado pelo se- nhorio com vista à transição para o regime do NRAU e que se subordina a regras que foram «claramente inspiradas» no Código de Processo Civil (v. a citação de MENEZES CORDEIRO constante do acórdão recorrido). Ou seja, diferentemente do que ressalta das alegações do recorrente e da jurisprudência constitucional por este mobilizada (e, bem assim, de alguns passos argumentativos da decisão recorrida), não está em causa uma questão imediatamente relacionada com o problema da sucessão
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de leis no tempo, mas antes a conformação legislativa dada a certo aspeto procedimental de um regime transitório destinado justamente a salvaguardar bens constitucionalmente relevantes e objeto de políticas públicas concretizadoras de normas constitucionais (v., por exemplo, os artigos 65.º, n.º 3, e 72.º, n.º 1, da Constituição).
Recorde-se que a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, se propôs di- namizar o mercado de arrendamento urbano, alterando para o efeito, nomeadamente, o regime substantivo da locação, conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à duração dos contratos de arrendamento (v. a nova redação dada a diversos preceitos do Código Civil), e o regime transitório dos contratos de arrendamento celebrados antes do início de vigência do NRAU, reforçando a negocia- ção entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos para o novo regime, num curto espaço de tempo (cf. o respetivo artigo 1.º, alíneas a) e b)).
4 — De todo o modo, e como justamente assinala XXXXX OLINDA GAR- CIA, a mencionada “transição” «não é uma designação muito rigorosa, pois [aos contratos em causa no mencionado regime transitório] já são amplamente aplicáveis as normas do regime do arrendamento urbano que valem para os novos contratos. Os principais desvios a este regime são estabelecidos pelas normas transitórias que consagram restrições aos direitos extintivos do senhorio, nomeadamente ao seu direito de livre denúncia» (v. a Autora cit., Arrendamento Xxxxxx Xxxxxxx — Regime Substantivo e Processual, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 135, nota 68). Na verdade, salienta a mesma Autora:
«Os artigos 26.º a 58.ºda Lei n.º 6/2006 (que constituem o TÍTULO II deste diploma [- o NRAU]) traduzem-se num conjunto de normas transitórias, aplicáveis apenas a contratos celebrados antes da entrada em vigor dessa lei, embora nem todas essas normas se apliquem, em igual medida, a todos os contratos celebrados antes desse marco temporal, pois estabelecem-se ainda aí distinções normativas entre contratos mais antigos e contratos menos antigos, bem como entre contratos para fim habitacional e para fim não habitacional. Este conjunto de normas de caráter transitório é comummente designado por regime transitório do arrendamento urbano.
O regime transitório não corresponde, porém, a um quadro normativo completamente distinto daquele que tem aplicação aos novos contratos (ou seja, aos contratos celebrados depois da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006). Os artigos 26.º a 58.ºda Lei n.º 6/2006 aplicam-se apenas a contratos antigos, mas os contratos antigos não encontram a sua disci- plina apenas nestas normas, pois é-lhes também aplicável o regime dos novos contratos (por força do artigo 12.º, n.º 2, do CC) em tudo o que não seja contrariado pelas normas específicas do regime transitório.
A concreta identificação das normas do regime transitório aplicáveis a um contrato celebrado antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, depende da finalidade do contrato, ou seja, tratar-se de arrendamento para habitação ou para fim não habitacional, e de saber se a data da sua celebração ocorreu na pretérita vigência de determinados diplomas. Assim, tratando-se de arrendamentos para habitação, importa saber se a sua celebração ocorreu antes ou depois da entrada em vigor do DL n.º 321-B/90, que aprovou o denominado RAU (Regime do Arrenda- mento Urbano) e tratando-se de arrendamentos para fins não habitacio- nais importa saber se a celebração do contrato ocorreu antes ou depois da entrada em vigor do DL n.º 257/95.A razão desta diferenciação normativa prende-se com a existência ou a ausência da possibilidade de celebrar contratos com duração limitada, ou seja, contratos que o senhorio pudesse livremente extinguir caso não desejasse a sua renovação. Assim, até à entrada em vigor do supra referido RAU (15 de novembro de 1990), os arrendamentos para habitação eram disciplinados pelo denominado regime geral do arrendamento urbano previsto no Código Civil, também designado doutrinalmente por regime vinculístico, já que os poderes do senhorio para denunciar esses contratos eram extremamente reduzidos. Os contratos renovavam-se automaticamente enquanto o arrendatário desejasse a sua manutenção. Com a entrada em vigor do RAU, passou a existir uma plena alternativa de regime, a dos arrendamentos de duração limitada, pelo prazo de 5 anos, que qualquer das partes podia livremente extinguir caso não desejasse a sua renovação. A partir daí (e até à entrada em vigor da Lei n.º 6/2006), o regime vinculístico passou a ser uma escolha (muito pouco frequente) das partes e não uma imposição legal como anteriormente sucedia.
Os arrendamentos para comércio, indústria, exercício de profissões liberais e outros fins não habitacionais apenas passaram a poder ser celebrados em regime de duração limitada a partir da entrada em vigor do DL n.º 257/95 (a partir de 30 de setembro de 1995). Só a partir daí passou a existir a alternativa entre o regime vinculístico e um regime de contratos a prazo, que as partes podiam livremente extinguir caso não desejassem a sua renovação.
É com base nestes marcos legislativos que o vigente regime transitório estabelece diferenciações normativas (nos seus artigos 26.º e 28.º) entre contratos celebrados ao abrigo do regime vinculístico em diferentes
momentos históricos, ou seja, tendo em conta o fito de tal regime ter sido uma opção das partes (quando já dispunham de alternativa) ou uma imposição legal.
A Lei n.º 31/2012 veio alterar significativamente o regime transitório, dando maior acolhimento aos interesses do senhorio em matéria de au- mentos de rendas desatualizadas e de extinção dos contratos mais antigos, sem, todavia, desproteger de imediato os arrendatários mais idosos ou economicamente mais débeis.» (v. idem, ibidem, pp. 123-125; sobre a evolução do regime em apreço, v. também os Acórdãos deste Tribunal n.os 297/2015 — em especial, pontos 5. a 7. —, e 360/2015 — em es- pecial, o ponto 7. —, disponíveis, assim como a demais jurisprudência constitucional adiante citada, em xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. pt/tc/acordaos/)
E, tendo em conta esta diversidade de regimes substantivos, não deixa de ser significativa a advertência inicial de Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx: «a com- plexidade da atual disciplina do arrendamento urbano faz com que esta matéria não seja de fácil domínio para quem tem de interpretar e aplicar as suas regras aos casos concretos» (v. ibidem, p. 5). Xxxxxxxxxx, terá sido esta dificuldade de entendimento e aplicação que explica a discussão da problemática da ignorantia legis no âmbito do presente processo (cf. o ponto 4-2 da decisão recorrida, transcrito supra no n.º 1).
5 — Acresce que, relativamente ao mesmo tipo de contrato, a lei veio possibilitar uma multiplicidade de situações quer no que se refere à atu- alização das rendas, quer à própria transição para o NRAU, a qual pode variar substancialmente, em função da necessidade ou desnecessidade de acordo do arrendatário para operar essa transição e, bem assim, das posições assumidas pelas partes ao longo do procedimento negocial em que a mesma se concretiza.
Com efeito, a transição para o NRAU e a atualização da renda de- pendem da iniciativa do senhorio, «que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando», desde logo, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos» (artigo 30.º, alínea a), do NRAU, na redação da Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto; itálico aditado; salvo indicação em contrário, todas as referências ao NRAU reportam-se à versão resultante da citada Lei). Tratando-se de uma relação de direito privado, nada obsta à formulação de propostas com esta amplitude. Simplesmente, o alcance da proposta não é, em face da lei aplicável sempre o mesmo, uma vez que, sem prejuízo da livre disponibilidade da relação jurídica pelos respetivos sujeitos, há alterações que, segundo a própria lei transitória, só são viáveis desde que o arrendatário as aceite; enquanto outras podem ser-lhe impostas.
A situação objeto do processo-base a que se reportam os presentes autos evidencia-o bem.
Estando em causa um contrato de arrendamento para habitação cele- brado há mais de 50 anos — antes da entrada em vigor do Regime do Ar- rendamento Urbano (“RAU”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, e, portanto, ao abrigo do chamado regime vinculístico caracterizado pelo princípio da prorrogação obrigatória ou automática consagrado no artigo 1095.º do Código Civil, na sua redação originária («[n]os arrendamentos a que esta secção se refere o senhorio não goza do direito de denúncia, considerando-se o contrato renovado se não for denunciado pelo arrendatário nos termos do artigo 1055.º») -, o mesmo está sujeito, por força do artigo 27.º do NRAU, ao regime previsto no artigo 28.º do mesmo diploma: a tais contratos aplica-se, com as neces- sárias adaptações, o disposto no artigo 26.º - sujeição ao NRAU sem prejuízo de certas regras especiais — com as especificidades constantes dos números 2 e 5 do mesmo artigo 28.º e, bem assim, dos artigos 30.º a 37.º seguintes. As especificidades em causa respeitam quer ao regime de denúncia do contrato por parte do senhorio fora da sujeição do contrato ao NRAU, quer à atualização da renda e aos termos e condições da própria transição para aquele regime.
5.1 — Assim, no que se refere ao primeiro aspeto, o artigo 1094.º do
Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, define os tipos de contratos de arrendamento em função da sua duração, consagrando o artigo 1099.º seguinte um novo princípio geral aplicável aos arrendamentos urbanos para habitação celebrados por duração in- determinada: estes cessam por denúncia de uma das partes, nos termos dos artigos seguintes desse mesmo Código. O respetivo artigo 1101.º, igualmente na redação dada pela Lei n.º 31/2012, prevê a denúncia pelo senhorio nos casos seguintes:
«a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descen- dentes em 1.º grau;
b) Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado;
c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação.»
O artigo 1103.º do mesmo Código disciplina o modo como se deve efetivar a denúncia justificada, que respeita aos casos previstos nas
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xxxxxxx x) e b) do artigo 1101.º, e o artigo 1102.º condiciona a denúncia para habitação — caso previsto na alínea a) do artigo 1101.º
Ora, a «especificidade» consagrada no artigo 28.º, n.º 2, do NRAU consiste precisamente na exclusão da aplicabilidade aos contratos a que tal preceito se refere da denúncia pelo senhorio independente de justificação prevista no artigo 1101.º, alínea c), do Código Civil. A «especificidade» mencionada no n.º 5 do mesmo artigo 28.º, pelo seu lado, traduz-se no condicionamento à obrigação de realojamento do arrendatário da denúncia pelo senhorio para demolição ou realização de obras prevista no artigo 1101.º, alínea b), do citado Código, no caso de o arrendatário ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
Por outro lado, resulta ainda da remissão do artigo 28.º, n.º 1, para o artigo 26.º, ambos do NRAU, no que respeita ao tipo de contratos em causa nos presentes autos, a cobertura da hipótese de denúncia prevista no artigo 1101.º, alínea a), do Código Civil, já que se deve continuar a aplicar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU (e, se se tiver em conta a jurisprudência dos já referidos Acórdãos n.os 297/2015 e 360/2015, também da alínea b) do mesmo preceito). É o seguinte o teor do artigo 107.º, n.º 1, do RAU, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de dezembro:
«O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do n.º 1 do artigo 69.º [denúncia do contrato para o termo do prazo ou da sua renovação quando o senhorio neces- sitar do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1.º grau, ou para nele construir a sua residência], não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias:
Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho;
Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade.»
5.2 — Relativamente à atualização das rendas de contratos de ar- rendamento para habitação anteriores ao RAU, importa considerar o disposto nos artigos 30.º a 37.º do NRAU ex vi o respetivo artigo 28.º, n.º 1 — disciplina normativa essa que também tem por objeto o pro- cedimento negocial que operacionaliza a transição dos contratos em causa para o NRAU. Tal transição, contudo, e como se verá, pode, de acordo com a disciplina contida naqueles artigos 30.º a 37.º, conduzir a uma modificação do tipo de contrato — designadamente passar de arrendamento por duração indeterminada a arrendamento com prazo certo — e, consequentemente, da sua duração.
Assim, compete ao senhorio desencadear o procedimento de atuali- zação de renda e de transição para o NRAU dos arrendamentos para habitação anteriormente sujeitos ao regime vinculístico. Para o efeito, deverá comunicar a sua intenção ao arrendatário, por via de um escrito por si assinado e instruído com os elementos mencionados no artigo 30.º do NRAU (cf. também o artigo 9.º do mesmo normativo):
«a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato propostos;
b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38.º e seguin- tes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana;
c) Cópia da caderneta predial urbana.»
Na sequência dessa comunicação, a lei prevê que o arrendatário possa responder, tendo em vista (artigo 31.º, n.º 3):
«a) Aceitar o valor da renda proposto pelo senhorio;
b) Opor-se ao valor da renda proposto pelo senhorio, propondo um novo valor, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 33.º;
c) Em qualquer dos casos previstos nas alíneas anteriores, pronunciar-
-se quanto ao tipo e à duração do contrato propostos pelo senhorio;
d) Denunciar o contrato de arrendamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 34.º»
Nessa reposta, o arrendatário, se for caso disso, pode invocar, isolada ou cumulativamente, as seguintes circunstâncias pessoais (artigo 31.º, n.º 4):
«a) Rendimento anual bruto corrigido (RABC) do seu agregado fa- miliar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais (RMNA), nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º e 36.º;
b) Idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau com- provado de incapacidade superior a 60 %, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 36.º»
Estas circunstâncias têm uma relevância muito importante quer para o arrendatário, quer para o senhorio.
A primeira, só por si, condiciona ao acordo das partes a submissão do contrato em causa ao NRAU ou, na falta de acordo, difere tal submissão por cinco anos, condicionando medio tempore a atualização da renda em função de percentagens do RABC (artigo 35.º, n.os 1 e 2). No termo desse período de cinco anos, o senhorio pode promover a transição do contrato para o NRAU, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 30.º e seguintes, com as seguintes especificidades: (a) o arrendatário não pode invocar as circunstâncias previstas nas alíneas do n.º 4 do artigo 31.º; (b) no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de dois anos (artigo 35.º, n.º 6).
A segunda circunstância referida determina que o contrato só fique submetido ao NRAU mediante acordo das partes (artigo 36.º, n.º 1). Isto sem prejuízo da possibilidade de negociação da atualização da renda (artigo 36.º, n.os 2 a 6). Se o arrendatário invocar, cumulativamente, que o RABC do seu agregado familiar é inferior a cinco RMNA, o valor da renda é apurado nos termos do n.º 2 do artigo 35.º — correspondendo a uma dada percentagem do RABC —, devendo vigorar por um período de cinco anos (artigo 36.º, n.º 7). Findo este período, o valor da renda pode ser atualizado por iniciativa do senhorio, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 30.º e seguintes, não podendo o arrendatário invocar a circunstância prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo 31.º, mas o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes (artigo 36.º, n.º 9).
É devido à respetiva importância que a lei comete ao arrendatário o
ónus da comprovação das aludidas circunstâncias pessoais, nos termos do artigo 32.º:
— Quanto ao RABC inferior a cinco RMNA: o arrendatário deve instruir a resposta à comunicação do senhorio a que se refere o artigo 30.º com documento emitido pelo serviço de finanças competente, do qual conste o valor do RABC do seu agregado familiar ou, na falta deste, do comprovativo de ter o mesmo sido já requerido, devendo juntá-lo no prazo de 15 dias após a sua obtenção (n.os 1 e 2);
— Quanto à idade: o arrendatário faz acompanhar a aludida resposta, conforme os casos, de documento comprovativo de ter completado 65 anos ou de documento comprovativo da deficiência alegada, sob pena de não poder prevalecer-se das referidas circunstâncias (n.º 4).
5.3 — Em caso de não verificação de ambas as circunstâncias em causa — assim como nos casos da sua não alegação ou, simplesmente, da falta de comprovação de tal alegação na resposta à comunicação do senhorio a que se refere o artigo 30.º —, importa distinguir consoante a reação do arrendatário a essa mesma comunicação:
— A falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao do termo do prazo para a resposta do arrendatário (ar- tigo 31.º, n.º 6);
— A aceitação do valor da renda proposto pelo senhorio determina que o contrato fica submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte ao da receção da resposta: (a) de acordo com o tipo e a duração acordados; (b) no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos (artigo 31.º, n.º 7);
— Em caso de oposição ao valor da renda, vale o disposto no ar- tigo 33.º
Segundo este artigo, cumpre diferenciar consoante exista ou não contraproposta do arrendatário, quer quanto ao valor da renda, quer quanto ao tipo ou duração do contrato, e, subsequentemente, consoante a reação do senhorio. Assim:
— A aceitação expressa ou tácita do valor da renda proposto expressa ou tacitamente pelo arrendatário determina a submissão do contrato ao NRAU: (a) de acordo com o tipo e a duração acordados; (b) no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, e, desde que não tenha havido falta de resposta do senhorio à contra- proposta do arrendatário quanto ao tipo e duração do contrato — pois, nesse caso, a falta de resposta do senhorio vale como aceitação de tal contraproposta —, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos (artigo 33.º, n.os 2, 3 e 4) — esta foi, aliás, a posição assumida nos presentes autos pelo recorrido, na resposta de 20 de dezembro de 2012 relativamente à reação constante da carta enviada pela Associação dos Inquilinos do Norte de Portugal, em representação do recorrente, que visava responder à iniciativa do senhorio de fazer transitar o arrendamento para o NRAU (v. supra o n.º 1, com referência à matéria de facto dada como provada, xxxxxxx (iii) a (vi));
— Em caso de não aceitação expressa do valor da renda proposto
expressa ou tacitamente pelo arrendatário, pode o senhorio na cor- respondente comunicação: (a) denunciar o contrato de arrendamento,
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pagando ao arrendatário uma indemnização equivalente a cinco anos de renda resultante do valor médio das propostas formuladas pelo senhorio e pelo arrendatário; (b) atualizar a renda de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º, considerando-se o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos a contar da referida comunicação (artigo 33.º, n.os 2 e 5).
5.4 — Decorre do exposto, em primeiro lugar, que os arrendamentos para habitação celebrados ao abrigo do regime vinculístico — portanto, em momento anterior à vigência do RAU —, enquanto não forem sub- metidos ao NRAU, se mantêm, no essencial, inalterados quer quanto ao tipo de contrato (duração indeterminada, devido à renovação automática), quer em relação às circunstâncias em que o senhorio pode denunciar o contrato, quer, ainda, no que se refere ao valor da renda. Em segundo lugar, a transição para o NRAU, além de depender da iniciativa do se- nhorio, pode, em regra e com observância de determinadas condições, por ele ser imposta ao arrendatário. Em terceiro lugar, a submissão dos contratos em apreço ao NRAU implica a possibilidade de, mesmo no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, os mesmos passarem a considerar-se celebrados com prazo certo, normalmente pelo período de cinco anos. Em quarto lugar, a submissão ao NRAU está associada a uma atualização do valor da renda, ainda que a transição para tal regime não constitua uma condição necessária dessa atualização (ou seja, a transição para o NRAU é apenas uma condição suficiente da atualização da renda). Em qualquer caso, e desde que o RABC do agregado familiar do arrendatário seja inferior a cinco RMNA, o aumento da renda é condicionado pelo valor desse mesmo RABC. Finalmente, a submissão de um contrato de arrendamento celebrado ao abrigo do regime vinculístico só fica dependente do acordo do arrendatário no caso de este ter idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
6 — Fica, deste modo, patenteada a importância que, quer o valor do RABC, quer a idade ou o grau de incapacidade do arrendatário têm para a salvaguarda do seu interesse na estabilidade e continuidade do seu direito à habitação anteriormente consolidado na base de um arrendamento celebrado ao abrigo do regime vinculístico e, consequen- temente, para a sua autonomia pessoal — interesses esses com expresso reconhecimento constitucional (cf. os artigos 65.º, n.º 3, e 72.º, n.º 1, da Constituição). Assim, e de acordo com a conformação legal da intenção de tutelar as expectativas jurídicas criadas com base no citado regime, perante a opção do senhorio de iniciar o procedimento de transição para o NRAU de tal arrendamento, a proteção daqueles interesses depende da oponibilidade ao senhorio das mencionadas circunstâncias pessoais do arrendatário.
O regime legal dos artigos 30.º e seguintes do NRAU que prevê a troca de comunicações entre o senhorio e o arrendatário em vista da transição para o novo regime prossegue o objetivo precípuo de uma rápida definição do estatuto do contrato. Nesse sentido, compreende-se a imposição de diversos ónus ao arrendatário que seja confrontado com a intenção do senhorio de submeter o contrato ao NRAU e de atualizar a renda comunicada nos termos do artigo 30.º:
— Desde logo, um ónus de resposta à intenção do senhorio de subme- ter o contrato ao NRAU, já que «a falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio» (artigo 31.º, n.º 6);
— Mas também um ónus de alegação de circunstâncias que podem condicionar ou, no limite, impedir a transição do contrato para o NRAU sem o acordo do arrendatário (artigo 31.º, n.º 4);
— E, ainda, um ónus de comprovação de tais circunstâncias (ar- tigo 32.º).
Saliente-se que todos estes ónus são agravados pela circunstância de a referida comunicação do senhorio ser enquadrada exclusivamente pela lei, sem indicação das diferentes opções do arrendatário e respe- tivas consequências. Recorde-se que a referida comunicação, além de iniciar um procedimento negocial disciplinado por regras que foram
«claramente inspiradas» no Código de Processo Civil (v. a citação de Menezes Cordeiro constante do acórdão recorrido), tem como desti- natários normais pessoas já com uma certa idade, atenta a titularidade de um contrato de arrendamento celebrado antes de 15 de novembro de 1990 (data da entrada em vigor do RAU). Tais dificuldades foram reconhecidas na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII (disponível em xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xx/XxxxxxxxxxXxxxxxxxxxx/Xx- ginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=38714), que esteve na origem da Lei n.º 79/2014, 19 de dezembro:
«[A] monitorização da reforma [do arrendamento urbano], para a qual contribuiu a Comissão de Monitorização da Reforma do Ar- rendamento Urbano […] que integrou entidades privadas e serviços públicos com envolvimento na execução da reforma, nomeadamente associações de inquilinos e de proprietários, assim como de profis-
sionais do setor, revelou que existiam alguns aspetos do regime legal previsto que podiam e deviam ser melhorados, nomeadamente no que respeita à transição dos contratos mais antigos para o novo regime.
Assim, alguns dos procedimentos previstos nessa matéria carecem de ajustamento e foram refletidos, inclusivamente, nas sugestões da Comissão de Monitorização da Reforma do Arrendamento Urbano, nomeadamente quanto à informação exigível na comunicação reali- zada pelo senhorio para atualização de renda, no sentido de esclarecer o inquilino das consequências da falta ou da extemporaneidade da sua resposta ou quanto à comprovação anual dos rendimentos por parte dos arrendatários, cujo regime legal apontava para um momento temporal que não se revelava articulado com a liquidação anual dos impostos sobre o rendimento.»
Daí as alterações introduzidas na redação do artigo 30.º do NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro) pelo artigo 3.º da mencionada Lei n.º 79/2014:
«Artigo 30.º
[…]
A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem de iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arren- datário, indicando, sob pena de ineficácia da sua comunicação:
[...]
Que o prazo de resposta é de 30 dias;
O conteúdo que pode apresentar a resposta, nos termos do n.º 3 do artigo seguinte;
As circunstâncias que o arrendatário pode invocar, isolada ou con- juntamente com a resposta prevista na alínea anterior, e no mesmo prazo, conforme previsto no n.º 4 do artigo seguinte, e a necessidade de serem apresentados os respetivos documentos comprovativos, nos termos do disposto no artigo 32.º;
As consequências da falta de resposta, bem como da não invoca- ção de qualquer das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo se- guinte.»
7 — No caso dos presentes autos não está em causa o cumprimento daqueles ónus pelo arrendatário, ora recorrente. O que se discute é a consequência associada ao não cumprimento do ónus de comprovação das circunstâncias relativas ao rendimento e à idade ou incapacidade do arrendatário — e só deste — num dado momento, isto é, na primeira resposta à comunicação do senhorio efetuada nos termos do artigo 30.º do NRAU (na redação anterior à Lei n.º 79/2014, de 19 de dezembro, ou seja, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto). Com efeito, segundo a interpretação dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU feita pelo tribunal a quo — e cujo acerto não cabe aqui questionar, mormente no que respeita à aplicação do segmento final do artigo 34.º, n.º 4, também aos documentos referentes ao RABC —, «os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção» (itálico aditado). Como se explica no acórdão recorrido:
«Desencadeado o processo negocial, o arrendatário, ao invocar alguma das circunstâncias aludidas nos precitos legais acima referidos, tem de as demonstrar documentalmente sob pena do efeito preclusivo quanto à junção posterior tal como acontece na apresentação das provas aludidas no CPC [Código de Processo Civil].»
A questão que se coloca é a de saber se, atentas as consequências gravosas para os interesses em causa do arrendatário — como, sublinhe-
-se, o direito à habitação e a proteção à terceira idade (respetivamente, artigo 65.º e artigo 72.º, ambos da Constituição) — e, bem assim, o caráter duradouro e objetivo das situações a comprovar documental- mente (idade, incapacidade e rendimentos anuais brutos), não será excessiva esta aplicação do princípio da preclusão num procedimento negocial complexo entre privados sem que exista qualquer advertência prévia por parte de quem inicia o mesmo procedimento. Acresce que eventuais demoras na definição do estatuto contratual não só podem ser compensadas, como não são suscetíveis de se repercutir imediatamente na situação material das partes nesse mesmo contrato, uma vez que, mesmo sujeito ao NRAU, o vínculo entre senhorio e arrendatário sempre perdurará por mais alguns anos.
8 — A proibição do excesso constitui, tal como o princípio da proi- bição do arbítrio, uma componente elementar da ideia de justiça, razão por que aquele princípio pode reclamar uma validade geral. Como realça REIS NOVAIS, «[s]ó essa vinculação entre proibição do excesso,
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proporcionalidade, Estado de Direito e justiça explica que, apesar das substanciais diferenças dos textos constitucionais ou mesmo da sua ausência nesses textos, seja idêntica ou muito próxima a tendência de evolução que, a propósito, se desenvolve nos Estados Unidos da Amé- rica ou nos diferentes países europeus, na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ou na jurisdição comunitária» (Autor cit., Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portu- guesa, Coimbra editora, Coimbra, 2004, p. 165). A mencionada conexão imediata com a ideia de justiça e de Direito justifica igualmente que, no tempo presente, se retomem as preocupações clássicas em matéria de moderação e, por conseguinte, não se confine o âmbito de aplicação da proibição do excesso às relações jusfundamentais em que esteja em causa a liberdade, alargando-o a toda e qualquer atuação dos poderes públicos. Nesse sentido, pode dizer-se com XXXXX XXXXX XXXXXX:
«Quando falamos em proibição do excesso, ou em princípio da proporcionalidade em sentido lato, queremos significar essencialmente o seguinte. As decisões que o Estado toma, justamente pelo facto de não poderem ser nem ilimitadas nem arbitrárias, têm que ter, todas e cada uma delas, uma certa finalidade ou uma certa razão de ser. Esta finalidade, prosseguida por cada decisão estadual, deve ser para os seus destinatários — como para qualquer membro da comunidade ju- rídica — algo de detetável, denominável e compreensível. É evidente que o Estado, sempre que age, busca a melhor realização do interesse público. Mas tal não basta: o que é necessário é que, perante cada decisão, se possa compreender o modo específico pelo qual, naquele caso, se quis prosseguir o interesse de todos. É a isso mesmo que nos referimos, quando aludimos à “finalidade” ou “razão de ser” de cada decisão estadual é à necessidade da sua inteligibilidade.
Ora, o que o princípio da proibição do excesso postula é que entre o conteúdo da decisão estadual e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida”. Não se utili- zam canhões para atirar a pardais: as vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do seu fim.» (Autora cit., A Forma da República — Uma introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 186)
E, na verdade, a proibição do excesso (ou a proporcionalidade em sentido amplo) tem vindo a ser reconhecido como princípio geral de limitação do poder público, pertinente para sindicar atuações públicas que interfiram, por exemplo, com direitos económicos, sociais e cultu- rais. Tal aponta decisivamente para uma base normativo-constitucional daquele princípio que seja o mais abrangente possível. Nesse sentido, o Acórdão n.º 187/2001, afirmou que «[r]elativamente às restrições a direitos, liberdades e garantias, a exigência de proporcionalidade resulta do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República. Mas o prin- cípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito. Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado-legislador e o Estado-administrador adequar a sua projetada ação aos fins pretendi- dos, e não configurar as medidas que tomam como desnecessária ou excessivamente restritivas».
Com efeito, o princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição, pelas suas conotações históricas e devido à sua natureza de “princípio fundamental”, é expressão da ideia de que a garantia da liberdade, igualdade e segurança dos cidadãos se funda na sujeição do poder público a normas jurídicas: um Estado informado pela ideia de Direito não pode, sem negar a sua essência, ser um Es- tado prepotente, arbitrário ou injusto (cf. os Acórdãos n.os 205/2000 e 491/2002). Nessa perspetiva, o Acórdão n.º 73/2009 entendeu «o princípio da proporcionalidade [como um] princípio geral de limitação do poder público que pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (também o Estado-legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos, e não estatuir soluções desne- cessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas». Deste modo, «as decisões que o Estado (lato sensu) toma têm de ter uma certa finalidade ou uma certa razão de ser, não podendo ser ilimitadas nem arbitrárias, e [tal] finalidade deve ser algo de detetável e compreensível para os seus destinatários. O princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra sede no artigo 2.º da Constituição. O Estado de direito não pode deixar de ser um “Estado proporcional”» (cf. o Acórdão n.º 387/2012; itálico aditado). Por isso, as atuações dos poderes públicos, justamente pelo facto de não poderem ser ilimitadas nem arbitrárias, são perspetivadas em cada caso concreto, real ou representado, como meios para atingir um
certo fim — pressupondo-se naturalmente a legitimidade constitucional tanto dos primeiros como do segundo.
Assim:
«[S]e se tolerasse que os encargos impostos pelas suas decisões aos cidadãos fossem desmedidos, não justificados pelos seus fins espe- cíficos e — por isso mesmo — levianos, dificilmente se conseguiria assegurar a ideia segundo a qual a atividade estadual deve surgir, para os seus destinatários, como algo sério, seguro ou confiável. Ora […] um poder político assim, incapaz de merecer a confiança daqueles a quem se dirige, não pode ser nunca um poder limitado pelo direito e destinado a garantir a justiça, a dignidade da pessoa humana e a liberdade. O princípio da proibição do excesso, que postula a men- surabilidade de todos os atos estaduais, integra o conteúdo material do princípio do Estado de direito exatamente pelas mesmas razões por que o fazem os outros princípios […] e que visam assegurar a calculabilidade possível dos comportamentos públicos. É que não haverá nunca tal calculabilidade aí onde não for estabelecido o se- guinte princípio de segurança: os atos estaduais, além de serem atos previsíveis, devem ser também, sempre, atos equilibrados, medidos e ponderados.» (v. XXXXX XXXXX XXXXXX, A Forma da República, cit., p. 187)
No controlo da proibição do excesso, tem este Tribunal seguido na análise da relação de adequação entre um meio e o respetivo fim (princí- pio da proporcionalidade em sentido amplo) uma metódica de aplicação assente num triplo teste, assim sintetizado no Acórdão n.º 634/93:
«O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprin- cípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a pros- secução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adotar-
-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»
Recorde-se, em todo o caso, que o controlo exercido deve ser, em vista da salvaguarda do princípio da separação de poderes, não só menos intenso quando esteja em causa a atuação do legislador (v., por exem- plo, os Acórdãos n.os 484/2000 e 187/2001), como meramente negativo (v., entre outros, os Acórdãos n.os 509/2015 e 81/2016: existe violação do princípio da proporcionalidade se a medida em análise for considerada inadequada (convicção clara de que a medida é, em si mesma, inócua, indiferente ou até negativa, relativamente aos fim visado); ou desne- cessária (convicção clara da existência de meios adequados alternativos mas menos onerosos para alcançar o fim visado); ou desproporcionada (convicção de que o ganho de interesse público inerente ao fim visado não justifica nem compensa a carga coativa imposta; relação desequi- librada entre os custos e os benefícios).
9 — In casu está em causa a aplicação do princípio da preclusão,
de origem processual, à possibilidade de o arrendatário, não obstante as ter invocado oportunamente, se prevalecer de certas situações preexistentes, que têm natureza objetiva — porque verificáveis por terceiros e conhecidas das autoridades públicas — e duradoura. É o caso, nomeadamente, do seu rendimento anual bruto, da sua idade ou da sua incapacidade: não sendo tais situações comprovadas do- cumentalmente no momento da resposta a que se refere o artigo 31.º do NRAU, o arrendatário deixa de poder beneficiar do regime subs- tantivo associado à verificação de tais situações, impedindo ou di- ferindo a transição para o NRAU do seu arrendamento e limitando e condicionando a atualização do valor das rendas. A preclusão em apreço ocorre, não no quadro de um processo judicial, mas de um procedimento negocial desencadeado pelo senhorio e sem que este se encontre vinculado a advertir o arrendatário para as consequências da inobservância daquele ónus de comprovação.
Por isso mesmo, devem valer aqui, ainda com mais razão, as exigên-
cias que este Tribunal tem vindo a formular a propósito do processo. Com referência ao processo civil, o Acórdão n.º 620/2013 afirmou o seguinte:
«Apesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as comi- nações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adotadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as comina-
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ções ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta, ou ainda, se de uma forma inovatória e surpreendente, face ao texto legal em vigor, são impostas às partes exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos (vide, neste sentido, XXXXX DO REGO, em “Os princípios constitu- cionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em “Estudos em homenagem ao Conselheiro Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxx”, pág. 839 e seg.).»
Na verdade, sustenta Xxxxx do Rego, em relação aos regimes adjetivos que prescrevem requisitos de natureza estritamente procedimental ou formal dos atos das partes — «isto é, conexionados, não propriamente com a formulação essencial das pretensões ou impugnações dos liti- gantes, mas tão-somente com o modo de apresentação ou exposição dos respetivos conteúdos» — que os mesmos devem (além de revelar-
-se «funcionalmente adequados aos fins do processo, não traduzindo exigência puramente formal, arbitrariamente imposta, por destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto à disciplina processual»):
«Conformar-se — no que respeita às consequências desfavorá- veis para a parte que as não acatou inteiramente — com o princípio da proporcionalidade: desde logo, as exigências formais não podem impossibilitar ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a atuação procedimental facultada ou imposta às partes; e as co- minações ou preclusões que decorram de uma falta da parte não podem revelar-se totalmente desproporcionadas — nomeadamente pelo seu caráter irremediável ou definitivo, impossibilitador de qualquer ulterior suprimento — à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta imputada à parte.» (v. Autor cit., ob. cit., pp. 839-840).
Ou, segundo a síntese formulada no Acórdão n.º 96/2016:
«[O]s ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela juris- dicional efetiva (cf., sobre esta matéria, Xxxxxx Xxxxx do Rego, [ob. cit., pp. 839 e ss.] e, entre outros, os Acórdãos n.os 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do
Tribunal Constitucional).
O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurispru- dência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais:
— a justificação da exigência processual em causa;
— a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado;
— e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cf., neste sentido, os Acórdãos n.os 197/07, 277/07 e 332/07).»
Xxx, é justamente em relação a este último aspeto que a norma sin- dicada pelo recorrente suscita dificuldades.
10 — Como mencionado, o objetivo visado com tal solução é a célere definição do estatuto do contrato de arrendamento, uma vez comunicada a intenção do senhorio de o fazer transitar para o NRAU. Este fim inte- ressa não apenas ao próprio senhorio, como, tendo em conta a apreciação feita pelo legislador relativamente à interdependência entre a reforma do regime do arrendamento concretizada no NRAU e a dinamização do mercado do arrendamento (cf., por exemplo, a já citada Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 250/XII) — apreciação essa que não cabe a este Tribunal questionar -, a toda a comunidade. Trata-se, pois, de um fim legítimo.
Por outro lado, a solução legal de precludir a possibilidade de o arrendatário impedir ou diferir a transição para o NRAU do seu arren- damento e ou limitar e condicionar a atualização do valor das rendas não é funcionalmente inadequada para tal objetivo.
A verdade, porém, é que tal solução se revela desnecessária para o efeito. Uma vez comunicada ao senhorio a idade ou a incapacidade do arrendatário ou o seu rendimento anual bruto, aquele — que até pode ter conhecimento pessoal desses dados (ao menos quanto à idade e à incapacidade, tal até será a situação mais provável, de acordo com a experiência comum) — fica a saber que a sua intenção de fazer transitar o arrendamento para o NRAU, a menos que as alegações do arrendatário
sejam falsas, está comprometida ou limitada. Mas nada impediria que, até ao momento em que tais circunstâncias pessoais do arrendatário fossem por este devidamente comprovadas, a transição prosseguisse sob condição. Agindo de boa fé, como é dever de todas as partes con- tratuais, o arrendatário também tem interesse numa rápida clarificação da situação. O mais tardar, no âmbito do procedimento especial de despejo referido nos artigos 15.º e seguintes do NRAU, a veracidade das alegações do arrendatário teria de ser comprovada, sem prejuízo do dever de compensação de eventuais danos causados pela demora na comprovação daquelas situações objetivas. E, de qualquer modo, opondo-
-se o arrendatário à transição para o NRAU, esta, mesmo abstraindo dos regimes especiais do “arrendatário com RABC inferior a cinco RMNA” (artigo 35.º) e do “arrendatário com idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60 %” (artigo 36.º), só implica a imediata cessação do vínculo de arrendamento no caso de o senhorio não aceitar o valor da renda proposto, expressa ou tacitamente, pelo arrendatário e optar pela denúncia imediata do contrato mediante o pagamento de indemnização, nos termos do artigo 33.º, n.º 5, alínea a) (cf. supra o n.º 5.3.).
A solução consubstanciada na norma objeto do presente recurso revela-
-se, além disso, desproporcionadamente onerosa para o arrendatário, por comparação com os benefícios que a mesma traz para o senhorio e para o interesse comum. Aliás, estes não seriam excessivamente lesados caso tal norma não vigorasse. Com efeito, o senhorio não perde nem o seu direito a promover a transição para o NRAU nem o direito a eventuais compensações devidas pela demora na efetivação dessa mesma transição. Já o arrendatário que reúna as condições que alega — RABC inferior a cinco RMNA e idade igual ou superior a 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60 % — sem as comprovar no momento devido e que até à comunicação da intenção do senhorio de fazer transitar o seu contrato de arrendamento para o NRAU gozava de um direito consolidado ao locado com uma certa renda, fica, por força de tal norma, numa situação muito precária, já que o seu direito à ha- bitação no locado e a garantia de uma renda ajustada ao seu rendimento ficam dependentes da boa vontade do senhorio. Ou seja, numa fase já muito avançada da vida, e em que dificilmente encontrará soluções equivalentes à que tinha por consolidada, o arrendatário pode, contra a sua vontade, ver-se confrontado com um contrato de arrendamento com prazo certo e, portanto, sujeito a caducidade, e, ou, com uma renda de valor demasiado elevado para o seu nível de rendimentos (cf. supra os n.os 5.3. e 5.4.).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 30.º, 31.º e 32.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, segundo a qual «os inquilinos que não enviem os documen- tos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem (seja quanto aos rendimentos, seja quanto à idade ou ao grau de deficiência) ficam automaticamente impedidos de beneficiar das referidas circunstâncias, mesmo que não tenham sido previamente alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e das consequências da sua não junção», por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição;
E, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso e determinar a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o presente juízo de inconsti- tucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 4 de maio de 2016. — Xxxxx Xxxxxxx — Xxxx Xxxx Xxxxxxx (com declaração de voto que junto) — Xxx Xxxxxx Xxxxxxx — Xxxxxxxx Xxx Xxxxxxx — Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx.
Declaração de voto
Voto a decisão com a declaração de que o juízo de inconstitucionali- dade atinge a solução preclusiva consagrada nos artigos 30.º, 31.º e 32.º do NRAU, na redação dada pela Lei n.º 31/2012, segundo a qual, os inquilinos que não enviem os documentos comprovativos dos regimes de exceção que invoquem ficam automaticamente impedidos de benefi- ciar desses regimes, independentemente de terem sido ou não alertados pelos senhorios para a necessidade de juntar os referidos documentos e as consequências preclusivas da sua junção.
A inconstitucionalidade reside na excessiva severidade das consequên- cias do não cumprimento daquele ónus e não na falta de um aviso pelo senhorio da existência dessas consequências. — Xxxx Xxxx Xxxxxxx.
209636225