SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
Acórdão
Processo
4499/18.0T8LSB.L1.S1
Data do documento
23 de abril de 2020
Relator
Xxxx Xxxxxxxx
DESCRITORES
Contrato de seguro > Seguro de acidentes pessoais > Cláusula contratual
geral > Terraços > Cláusula de exclusão > Interpretação do negócio jurídico > Teoria da impressão do destinatário > Princípio do tratamento mais favorável > Negligência
grosseira > Ónus da prova > Lei especial
SUMÁRIO
I - Relativamente à interpretação das declarações que se fundiram no contrato de seguro valem, à partida, as regras dos arts. 236.º e ss. do CC.
II - Havendo dúvida sobre a interpretação de cláusulas contratuais gerais nele insertas, há que atender à favorabilidade constante do n.º 2 do art. 11.º do DL n.º 445/85 de 25-10.
III - Se num contrato de seguro de acidentes pessoais se excluírem os ocorridos em trabalhos ou atividades em telhados, ficam de fora da exclusão os verificados em terraços de cobertura.
IV - Se o acidentado cai por uma claraboia existente em terraço de cobertura, sem que prove especial fragilidade desta ou sinalização neste sentido, não se pode considerar que o seu comportamento tenha sido grosseiramente negligente para efeitos de desresponsabilização da seguradora.
TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA intentou contra:
A Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A.
A presente ação declarativa.
Invocou a morte daquele com quem vivia em união de facto, por ter caído por uma claraboia existente no terraço do prédio que refere e o contrato celebrado com a seguradora, relativo a acidentes pessoais.
Pediu, em conformidade:
A condenação da ré a pagar-lhe € 106.246,57 acrescidos dos juros legais vincendos contados sobre
€100.000,00, à taxa legal desde 26 de Fevereiro de 2018 inclusive, até efetivo e integral pagamento.
2. Em contestação, a ré declinou a responsabilidade por – segundo defende – o evento se integrar nas cláusulas contratuais excluidoras desta e o sinistrado ter agido com negligência grave.
3. A ação prosseguiu e, na devida oportunidade, foi proferida sentença que a julgou improcedente, absolvendo a ré do pedido.
Nela se considerou precisamente que estávamos perante um caso a subsumir nas cláusulas excluidoras.
4. Apelou a autora e o Tribunal da Relação decidiu como segue:
“Pelo exposto e decidindo, de harmonia com as disposições legais citadas, concedendo provimento à apelação, revogando a decisão recorrida, condena-se a R. seguradora a pagar à A. a quantia de € 100.000,00 acrescida de juros, à taxa de 4%, desde a referenciada data de 04.08.2016, até integral pagamento.”
5. Pede revista a ré.
Conclui as alegações do seguinte modo:
1 - Entre a Ré Fidelidade - Companhia de Seguros, S.A (como seguradora) e a A. AA (como tomadora do seguro) foi celebrado um contrato de seguro do Ramo Acidentes Pessoais Individual, que se rege pelas Condições Gerais e Particulares da apólice;
2 - Nas Condições Particulares, sob a epígrafe coberturas/capitais/franquia, encontram-se discriminadas as seguintes coberturas da apólice:
“- Morte ou Invalidez Permanente por Acidente: 100.00,00€;
- Despesas de Internamento Hospitalar por Acidente: 5.000,00€ -Incapacidade Temporária por Internamento Hospitalar 50,00€”
3 - Porém, e como é normal em qualquer contrato de seguro, para além das coberturas, existem também cláusulas de exclusão que nuns casos se aplicam e noutros não;
4 - No caso concreto, constam da Cláusula 2ª das Condições Gerais da Apólice o que se encontra coberto (pontos 1, 2, 3.1) e o que não está coberto (ponto 3.2), assim como as Exclusões Aplicáveis a Todas as Coberturas (ponto 4);
5 - Consta dessas exclusões, para além do mais, o seguinte:
“4.1 Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações:
a)…
b) Ações ou omissões dolosas ou grosseiramente negligentes praticadas pela Pessoa Segura, Tomador do Seguro ou Beneficiários, bem como por aqueles pelos quais sejam civilmente responsáveis;
…
u) Acidentes ocorridos durante a execução dos seguintes trabalhos ou atividades:
i) Em andaimes, telhados, pontes, minas, poços, pedreiras e postes;”
6 - Ou seja, a exclusão tem que ver com o aumento exponencial do risco e o risco é o que se segura num contrato de seguro e o falecido estava, repita-se, a proceder a medições no terraço, nomeadamente à claraboia sita no terraço da sua habitação, a qual exercia a função de telhado;
7 - O que a decisão singular da Relação, confirmada pelo acórdão proferido em Conferência, acabou por fazer foi, considerar, erradamente e de forma manifestamente acrítica, que o acidente/queda ocorreu num terraço, quando, na realidade, ocorreu em consequência da cedência de uma claraboia que se encontrava no terraço, a qual servia, por sua vez, de telhado para as escadas interiores do prédio.
8 - Com o devido respeito, o Exmo. Senhor Relator deu ao clausulado da apólice uma interpretação que não tem o menor respaldo no seu texto, pelo que é totalmente inaceitável para a Recorrente.
9 - Ou seja, tem de se considerar que o acidente ocorreu no telhado do prédio, encontrando-se por isso excluído da cobertura da apólice, de acordo com as respectivas Condições Gerais (clª.2ª pontos….).
10 - Acresce dizer que das exclusões da Apólice constam ainda “Ações ou omissões (dolosas ou) grosseiramente negligentes praticadas pela Pessoa Segura…” (alínea b) do ponto 4.1 da Cláusula 2ª das Condições Gerais da Apólice)
11 - Ora, qualquer homem médio, colocado na situação em que se encontrava o falecido, facilmente depreende que circular no topo de um telhado, com vista a proceder a medições numa claraboia de um prédio com 5 andares de altura, sem qualquer sistema de retenção que evitasse a queda do telhado, é conduta manifestamente temerária … como no caso, o acidente clara e infelizmente veio a confirmar.
12 - Ora, como é evidente, tem de se entender como ação grosseiramente negligente do sinistrado o comportamento de alguém que se apoia numa claraboia em acrílico sujeita às intempéries e que, como se viu, cedeu.
A decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artº 236º, 238º, 239º e 483º, todos do Código Civil.
Pelo exposto, e com o mais que Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, repristinando-se a total absolvição da ora recorrente, tal como havia sido decido pela 1.ª Instância, com a consequente absolvição da Recorrente, assim se fazendo a costumada,
Contra-alegou a autora, sustentando que o evento não se integra nas cláusulas de exclusão.
6. Ante as conclusões das alegações, a questão que se nos depara consiste em saber se o evento danoso se integra nas cláusulas excluidoras por:
Ter ocorrido durante atividade levada a cabo em “telhado”;
A vítima ter agido com negligência grosseira.
7. Vem provada a seguinte matéria de facto:
1. Factos adquiridos por acordo nos termos do art. 574° n° 2 do CPC (constantes do despacho proferido na audiência prévia).
A) No dia 25 de Junho de 2016, BB sofreu uma queda de 4/7 metros de altura no prédio onde se situa a sua residência sito na praceta … n.… em … .
B) XX faleceu no dia 20 de Julho de 2016.
C) O falecido BB tinha um seguro de acidentes pessoais, titulado pela apólice n° Ap. 6…96, cf. doc. fls. 13, cujo teor aqui se dá por reproduzido, que tinha as seguintes coberturas:
- Morte ou invalidez permanente por acidente - capital € 100.000,00;
- Despesas de internamento hospitalar por acidente, capital € 5.000,00;
- Incapacidade Temporária por internamento Hospitalar: capital € 50,00, sendo beneficiária a ora Autora.
D) Após o óbito do referido BB a A. participou o mesmo e as condições em que ocorreu à R, para que esta fizesse accionar o seguro.
E) Na descrição pormenorizada do sinistro disse: "Queda de uma claraboia para o interior do edifício numa altura aproximada de 7 metros. Fazia medições no terraço com o propósito de pedir orçamentos para obras futuras no prédio de habitação.
F) A R. por carta de 4 de Agosto de 2016 declinou a responsabilidade, encerrando o processo por considerar que o evento participado se encontrava excluído no âmbito das coberturas da apólice, conforme clausula 4 - Exclusões que se transcrevem:
- Acidentes ocorridos durante a execução dos seguintes trabalhos ou actividades:
- Em andaimes, telhados, pontes, minas, poços, pedreiras e postes.
G) BB era engenheiro …. e por via dessa sua competência académica, comunicou à Autora que, por iniciativa própria, ia proceder a medições no terraço, nomeadamente à claraboia sita no terraço da sua habitação;
H) Xxxxxx tinha a sua habitação no prédio sito no n° … da Praceta …, na … e porque tinha conhecimentos técnicos que lhe permitiam com rigor proceder a medições, no dia 26-6-2016 deslocou-se ao terraço do prédio referido com o objectivo de medir a cobertura do terraço.
I) Como consequência da cedência da claraboia situada no local onde BB se apoiou, este precipitou-se no vazio vindo a cair sete metros mais abaixo, nas escadas do prédio que lhes provocou as lesões descritas a fls. 6 v° a 7 v°.
J) O contrato de seguro celebrado entre BB regia-se pelas condições gerais e particulares cuja cópia se
encontra junta a fls. 28 a 31 e que se dão por reproduzidas, constando, além do mais, da Cláusula 2.ª das Condições Gerais da Apólice o que se encontra coberto (pontos 1, 2, 3.1) e o que não está coberto (ponto 3.2), assim como as Exclusões Aplicáveis a Todas as Coberturas (ponto 4), consta dessas exclusões, para além do mais, o seguinte: "4.1 Estão sempre excluídas do âmbito de todas as coberturas do seguro as seguintes situações: a)...b) Ações ou omissões dolosas ou grosseiramente negligentes praticadas pela Pessoa Segura, Tomador do Seguro ou Beneficiários, bem como por aqueles pelos quais sejam civilmente responsáveis; ..u) Acidentes ocorridos durante a execução dos seguintes trabalhos ou actividades: i) Em andaimes, telhados, pontes, minas, poços, pedreiras e postes;".
2 - Factos resultantes da prova produzida em audiência de julgamento
L) BB veio a falecer na sequência das lesões traumáticas crânio meningo-encefálicas, torácico-abdominais e vertebrais cervico-torácico-lombares politraumatismo associada a broncopneumonia.
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos.
8. Na base da pretensão da autora está um contrato.
Na sua interpretação, valem as normas do artigo 236.º e seguintes do Código Civil (também atento o artigo 4.º do Decreto Lei n.º72/2008 de 16.4).
Xxxxx relevando, quanto ao que aqui importa, a teoria da impressão do destinatário:
“Imagina-se um declaratário normal (ou seja um declaratário medianamente instruído e diligente); imagina-se esse declaratário normal colocado na posição real do declaratário; verifica-se que sentido deveria o declaratário normal deduzir do comportamento do declaratário real se estivesse na efetiva posição deste; eis o sentido a atribuir à declaração negocial.” (Xxxxxx Xxxxxx, Manual dos Contratos em Geral, 445).
9. Para além disso, tratou-se dum contrato tipificado, qual seja o contrato de seguro.
Constando da respetiva apólice, junta a folhas 13, que:
“Ao presente contrato aplicam-se as Condições Gerais Acidentes Pessoais”, as quais “estão disponíveis” no endereço da própria companhia de seguros.
Estamos – podemos inferir – perante cláusulas contratuais gerais, quer quanto à cobertura, quer quanto às
exclusões, conforme resulta da definição do n.º1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º445/85, de 25.10.
Deste normativo consta o artigo 11.º, assim redigido:
1 - As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real.
2 - Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
3 …
“Esta disposição cobre a quase totalidade dos contratos de seguro uma vez que o âmbito do diploma abrange as cláusulas contratuais gerais bem como as cláusulas de contratos individualizados não negociadas…” – Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, Contrato de Seguro, Estudos, 130.
Conforme se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 13.11.2014, processo n.º 62/12.8TCGMR.G1.S1, “No que tange à tutela da vontade do segurado, impõe-se, como regra, o princípio in dubio contra stipulatorem, na medida em que a aplicação do mesmo conduzirá a um maior equilíbrio das prestações e, assim, se em caso de litígio se pretender extrair das cláusulas uma significação que o aderente não surpreendeu, não poderá tal significado prevalecer.”
Portanto, se dúvida houver, temos de atender ao “sentido mais favorável ao aderente”.
10. No sentido amplo – ousaríamos dizer, pouco rigoroso – “telhado” abrangeria tudo o que cobre, com carater de permanência, um imóvel.
Mas tal sentido é pouco frequente. Antes o cidadão comum se fixa na ideia de que o “telhado” é constituído por uma sucessão de telhas ligadas entre si que serve de cobertura permanente total ou parcial a imóvel. Assim se fala vulgarmente que em que “no sul muitas casas têm terraços em vez de telhados” ou que “muitas casas modernas não têm telhado.”
O próprio legislador assumiu tal diferença, por exemplo, no artigo 93.º do RGEU – já citado pela Relação – em cujo §1 estabelece:
"Os tubos de queda dos dejectos e águas servidas dos prédios serão sempre prolongados além da ramificação mais elevada, sem diminuição de secção, abrindo livremente na atmosfera a, pelo menos, 50 centímetros acima do telhado ou, quando a cobertura formar terraço, a 2 metros acima do seu nível e a 1 metro acima de qualquer vão ou simples abertura em comunicação com os locais de habitação, quando situados a uma distância horizontal inferior a 4 metros da desembocadura do tubo''' .
11. Pelas telhas escorre a água e para que esta escorra é necessária inclinação. A escorrência é livre para a queda ou é acolhida em tubos que conduzem ao chão. Por isso, salvo casos muito pouco frequentes, os telhados não têm limites de proteção.
De todo este contexto deriva uma situação de particular risco para quem a eles aflui. Pode escorregar ou desequilibrar-se – de modo muito fácil – com probabilidades de quedas gravíssimas pelos lados e podem partir-se as telhas de tudo podendo derivar acidentes mais ou menos graves.
Em contrário, os terraços, mesmo de cobertura, são habitualmente planos, com limitações físicas adequadas e escoamento de águas por drenagem que nada têm a ver com os respetivos limites.
Para o cidadão comum, quanto a riscos, uma ida ao telhado é completamente diferente duma ida a um terraço de cobertura.
12. As idas ao telhado geralmente fazem-se através de claraboias que servem precisamente para isso. Não têm consistência particular precisamente porque ninguém, no normal, andará por cima delas.
Em contrário, os acessos ao terraço são, por regra, próprios destinando-se as claraboias a facultar luz para baixo, sendo construídas, também por regra, com dureza suficiente para não cederem à passagem de pessoas.
13. Todo este quadro – assente também em factos notórios, com aquisição prevista no artigo 412.º, n.º1 do Código de Processo Civil – leva a que uma pessoa medianamente instruída e diligente (cfr-se o que deixámos dito em 8), ou seja, um destinatário normal do contrato de seguro pensasse que estavam excluídos os acidentes causadores de danos pessoais ocorridos em telhados, mas não os que pudessem ter lugar em terraços, ainda que de cobertura.
Logo, a interpretação contratual com base na teoria da impressão do destinatário leva ao naufrágio da tese da recorrente.
14. Mas se dúvidas houvesse, sempre deveria ser tido em conta o sentido mais favorável ao aderente do seguro. E este vai no sentido de que a exclusão não abrange os acidentes verificados nos terraços de cobertura.
15. Já referimos em 12 que as claraboias dos terraços de cobertura são pensadas para aguentarem a circulação humana. O que se compreende muito bem, atenta a estrutura em que se inserem e a facilidade com que pessoas acedem aos mesmos.
Uma pessoa normalmente diligente circularia por cima delas.
Não seria assim só se aparentassem fragilidades de qualquer espécie ou se ali tivesse sido aposto um aviso a estas relativo. Nada tendo sido provado a tal respeito – e a prova cabia, inquestionavelmente à seguradora – não podemos concluir pela existência de negligência por parte da vítima.
Sendo certo, em qualquer caso, que só poderia relevar no sentido da exclusão, atuação “grosseiramente negligente”.
15. Face a todo o exposto, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa. 23-04-20
Xxxx Xxxxxxxx (Relator)
Abrantes Geraldes
Xxxx Xxxxxxxx
Contrato de seguro; Seguro de acidentes pessoais; Cláusula contratual geral; Terraços; Cláusula de exclusão; Interpretação do negócio jurídico; Teoria da impressão do destinatário; Princípio do tratamento mais favorável; Negligência grosseira; Ónus da prova; Lei especial; Descritores: Imprimir