SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
Acórdão
Processo
1691/19.4T8LSB.L1.S1
Data do documento
30 de junho de 2021
Relator
Olindo Geraldes
SUMÁRIO
I . Para além da autorização do exercício da atividade de empresário desportivo, este, em Portugal, tem ainda de estar registado na Federação Portuguesa de Futebol e na Liga de Clubes de Futebol Profissional.
I I . A falta de tal registo acarreta a invalidade do contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, celebrado com empresário desportivo, considerando-se o contrato juridicamente inexistente, por disposição expressa da lei (artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho).
III. O regime da inexistência jurídica é incompatível com o abuso do direito.
IV. O enriquecimento sem causa, decorrente da alteração da causa de pedir na réplica, é irrelevante para a decisão, por tal alteração ser processualmente inadmissível, nos termos do artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
V . Não há impugnação da decisão recorrida, quando a questão, embora integrando as conclusões do recurso, não foi objeto no corpo das alegações.
VI. Se o efeito da inexistência do contrato é o de restituir tudo o que tiver sido prestado, à semelhança da nulidade, tal não deve acontecer, quando a outra parte, por impossibilidade da restituição, fica numa situação de benefício.
TEXTO INTEGRAL
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
Football Capital, S.A., instaurou, em 24 de janeiro de 2019, no Juízo Central Cível de …, Comarca de …, contra Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 603 500,00, acrescida dos juros de mora vencidos, no montante de € 31 947,95, e dos juros de mora vincendos, à taxa legal.
Para tanto, alegou, em síntese, que celebrou com a R. um contrato de prestação de serviço de consultadoria, tendo por objeto a assistência e aconselhamento da R. e por objetivo a obtenção para esta, na qualidade de empregadora, de um contrato de trabalho de futebolista profissional, com o jogador de futebol de nacionalidade italiana, AA; nos termos deste contrato, a R. comprometeu-se a pagar-lhe certas quantias pecuniárias de acordo com determinadas condições; a A. cumpriu o acordado e tais condições ocorreram; neste contexto, a A. emitiu a primeira fatura, pela contrapartida prevista no contrato, no valor de € 86 250,00, que a R. pagou; emitiu ainda mais duas faturas, cada uma no valor de € 86 250,00, e ainda também uma terceira, no valor de € 345 000,00, esta correspondente à contrapartida pela cedência dos direitos económicos e desportivos do jogador para o … Club, faturas remetidas à R., mas que não foram pagas.
Contestou a R., por exceção, alegando a inexistência do contrato, nos termos do art. 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho, e por impugnação, concluindo pela improcedência da ação. Deduzindo reconvenção, a R. pediu que a A. fosse condenada a restituir-lhe a quantia de € 86 250,00, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento, por efeito da inexistência do contrato.
Replicou a X., impugnando a reconvenção e defendendo a validade do contrato de prestação de serviço, ao qual não é aplicável o disposto no art. 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, e alegando que a R. está a agir em abuso de direito deduzindo a reconvenção.
A R. respondeu à réplica, negando o abuso do direito.
Foi convocada a audiência prévia, durante a qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 4 de novembro de 2020, a sentença, que, julgando a ação procedente, condenou da Ré a pagar à Autora a quantia de € 603 500,00, acrescida dos juros de mora vencidos, no valor de € 31 947,95, e dos juros de mora vincendos, à taxa legal, e a
reconvenção improcedente, absolvendo a Autora do pedido reconvencional.
Inconformada, a Ré apelou para o Tribunal da Relação …, que, por acórdão de 23 de março de 2021,
julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença.
Ainda inconformada, a Ré interpôs revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, a qual, pela relevância jurídica da matéria, foi admitida nos termos do art. 672.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), e tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:
a) A atividade desenvolvida pela Recorrida é a de intermediação desportiva.
b ) Nos termos do disposto no art. 1156.º do Código Civil, o regime legal aplicável aos contratos de prestação de serviços inominado é o do contrato de mandato.
c ) Não tendo o empresário desportivo cumprido a sua obrigação de se licenciar para o exercício da atividade de intermediação ou agenciamento desportivo, os contratos por si celebrados são juridicamente inexistentes, assim como são inexistentes “as cláusulas contratuais que prevejam a respetiva remuneração pela prestação desses serviços” (art. 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26/6).
d) No art. 23.º da mesma lei, à representação na intermediação desportiva, o legislador chamou mandato.
e) O acórdão recorrido esvazia a lei de conteúdo, tornando-a inútil e insuscetível de aplicação à realidade dos casos materiais.
f) A cominação com o vício da inexistência jurídica é justificada por uma preocupação de regulamentação da parte do legislador que se encontra para além dos concretos interesses individuais de partes contratantes.
g) O regime da inexistência jurídica é incompatível com a verificação do abuso do direito.
h) A decisão recorrida laborou numa ótica privatística de ordinária relação bilateral sinalagmática, fazendo prevalecer (e protegendo) os interesses individuais da parte não relapsa, que cumpriu a prestação a que se encontrava adstrita, tendo por isso direito ao recebimento da contraprestação (pacta sunt servanda).
i) O acórdão recorrido violou as disposições constantes dos artigos 22.º e 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho, e 1156.º do Código Civil.
j ) A declaração de inexistência do contrato obriga à restituição dos valores pagos (€ 86 250,00), em procedência do pedido reconvencional formulado.
Com a revista, a Recorrente pretende a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra, que determine a improcedência da ação e a procedência da reconvenção.
Contra-alegou a Autora, no sentido de o recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se o acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Neste recurso, essencialmente, está em discussão a qualificação jurídica do contrato, a sua validade e o seu incumprimento.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:
1. Em 15 de maio de 2017, A. e R. acordaram nos termos contantes do documento de fls. 8 e 9 autos (com tradução a fls. 98/99), do qual consta, designadamente, que: “a) A Sociedade tem experiência em consultoria relacionada com a atividade desportiva; b) A Sporting C.P. está interessada em ser assessorada pela SOCIEDADE na contratação de AA, cidadão …, nascido a ….. de de 1992, titular do passaporte
n.º …….., emitido a ….. de …… de 2009 e válido até ….. de …… de 2019, a seguir designado por ‘JOGADOR” que, por conseguinte, assina um contrato de trabalho de futebol profissional (a seguir designado por “contrato de trabalho” com a SPORTING C.P.). É acordado o seguinte: Cláusula 1 1. A SOCIEDADE prestará ao SPORTING os serviços seguintes: a) Aconselhar a Sporting CP na estratégia da negociação, nomeadamente definindo a melhor forma de convencer a B……. a aceitar os termos da SPORTING CP em vez de prosseguir outras alternativas que se possam estar abertas à transferência do Jogador; b) Conduzir e facilitar a obtenção do Contrato de Trabalho do Jogador para o Sporting CP, para as épocas desportivas. 2. A SOCIEDADE prestará os serviços da melhor forma possível e de acordo com os padrões que podem razoavelmente esperar-se de uma sociedade com experiência deste tipo de serviços.
Cláusula 2 1. Como contrapartida dos serviços prestados pela SOCIEDADE a SPORTING C.P. pagará os seguintes montantes brutos: 1. 345 000,00 (trezentos e quarenta e cinco mil euros), mais o IVA à taxa legal, se aplicável, após o Contrato de Trabalho profissional do Jogador com o Sporting CP ser registado na Primeira Liga de Futebol Portuguesa, e na Federação Portuguesa nos seguintes termos: a. € 86 250,00 (…) o mais tardar até 15 de setembro de 2017; b. € 86 250,00 (…) o mais tardar até 15 de setembro de 2018;
c. € 86 250,00 (…) o mais tardar até 15 de setembro de 2018; d. € 86 250,00 (…) o mais tardar até 15 de setembro de 2019. § O montante acima referido será devido independentemente de o Jogador estar registado e apto a jogar para a Sporting SAD, ou não, ou mesmo que o contrato de trabalho profissional seja celebrado com a SPORTING SAD ou não. 2. 345 000,00 (trezentos e quarenta e cinco mil euros), acrescidos de IVA à taxa legal, se aplicável, a pagar quando, e se, a SPORTING SAD receber de um Clube terceiro ou de uma Entidade Desportiva, como contrapartida dos direitos desportivos e económicos do Jogador, um montante líquido mínimo de 6 000 000,00 (seis milhões de euros) — isto é, excluindo todas as despesas devidas a clubes, referentes a (i) compensação de formação (“Compensação de formação”), e/ou
(ii) contribuição de solidariedade (“contribuição de solidariedade”), nos termos previstos nos Regulamentos da FIFA, e a comissões/remunerações intermédias de 10 % da taxa de transferência. Este valor apenas será pago 30 (trinta) dias úteis após a SPORTING SAD receber o montante líquido mínimo de 6 000 000,00 euros”.
2. Na sequência dos serviços prestados pela A., a R. chegou a acordo com a Real Bétis, para a contratação do jogador AA, e celebrou, entre abril e maio de 2017, um contrato de trabalho de futebolista profissional com o mesmo jogador.
3. A R. procedeu ao registo de tal contrato na Liga Portuguesa de Futebol e na Federação Portuguesa de Futebol.
4. Em julho de 2018, a R. cedeu os direitos desportivos e económicos a um clube terceiro (o … Club), pelo valor de € 8 000 000,00.
5 . Por comunicado de 23 de julho de 2018, o conselho de administração da R. informou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, nos termos do art.° 248.°-A, n.º 1, alínea a), do Código dos Valores Mobiliários, de que “chegou a acordo com o … Club para a cedência, a título definitivo, dos direitos desportivos e 90 % dos direitos económicos do jogador profissional de futebol AA, em contrapartida dos quais a Sporting SAD receberá o montante de 8 000 000,00 (oito milhões de euros)”, garantindo ainda o direito a 10 % do valor de uma futura venda.
6. A A. procedeu à emissão das faturas que titulam a contrapartida prevista para a prestação dos serviços, procedendo ao respetivo envio à R.
7. A R. pagou a quantia de €86 250,00, titulada pela fatura correspondente ao valor previsto na alínea a)
do n.° 1 da Cláusula 2.a do contrato celebrado com a R.
8. A 6 de fevereiro de 2018, a A. emitiu a fatura, no valor de € 86 250,00, que titulava a segunda prestação do pagamento da contrapartida devida pela celebração de contrato de trabalho desportivo, tendo procedido ao seu envio à R., acompanhada do certificado de domicílio fiscal preenchido (Mod. 21 RFI).
9. Em 23 de agosto de 2018, a A. emitiu fatura no valor de € 86 250,00, que titulava a terceira prestação do pagamento da contrapartida devida pela celebração de contrato de trabalho desportivo.
10. Em 23 de agosto de 2018, a A. emitiu fatura no valor de € 345 000,00 que titulava a contrapartida devida pela cedência dos direitos económicos e desportivos do jogador AA a um clube terceiro.
11. A A. enviou à R. tais faturas e os certificados de domicílio fiscal preenchidos (Mod. 21 RFI).
12. A R. não procedeu ao pagamento das quantias tituladas pelas faturas emitidas em 6 de fevereiro e 23 de agosto de 2018.
13. Em execução do acordo, a A. praticou os seguintes atos: a. No decurso dos meses de março a abril de 2017, funcionários da A. deslocaram-se a Lisboa para discutir e delinear com a R. a estratégia de negociação da transferência do jogador; b. No decurso desse período, funcionários da A. também se deslocaram … para apresentar ao Real Bétis a intenção da R. de adquirir os direitos desportivos e económicos do jogador e aferir e discutir com tal entidade quais as condições com base nas quais pretendia estabelecer o negócio em causa; c. Em finais de abril de 2017, a R. apresentou à A. uma oferta concreta de aquisição dos direitos desportivos e económicos do jogador que esta propôs ao Real Bétis, tendo discutido com tal entidade os respetivos termos; d. No dia 13 de maio de 2017, a R. apresentou à A. proposta de contrato de trabalho desportivo a celebrar com o jogador (e também proposta de contrato de prestação de serviços a outorgar com a A.); e. No dia 15 de maio de 2017, vários funcionários da A. deslocaram-se a … para reunião com o Presidente da Real Xxxxx tendo logrado chegar a acordo para a transferência do jogador.
14. BB bem como a empresa Football Capital, S.A., foram intermediários registados na Federação Portuguesa de Futebol de 19/03/2018 a 30/06/2018.
***
2.2. Delimitada a matéria de facto, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da validade do contrato, do seu incumprimento, do abuso do direito e do
enriquecimento sem causa.
O acórdão recorrido confirmou a sentença, que condenara a Recorrente a pagar à Recorrida a quantia de € 603 500,00, acrescida dos juros de mora vencidos, no valor de €31 947,95, e dos juros de mora vincendos, à taxa legal, e a reconvenção improcedente, absolvendo a Recorrente do pedido reconvencional.
A Recorrente, porém, insurge-se contra a condenação na ação e a absolvição na reconvenção, defendendo a inexistência do contrato e, por via disso, a sua absolvição da quantia peticionada e a restituição da quantia entregue.
A Recorrida, por sua vez, acompanha a fundamentação e a decisão do acórdão recorrido, invocando ainda o enriquecimento sem causa.
Identificada, sumariamente, a posição de cada uma das partes quanto à questão material controvertida, interessa examinar o direito aplicável aos factos, tendo em conta os elementos objetivos que caracterizam a ação instaurada.
A Recorrida invocou, na ação, o incumprimento de um contrato de prestação de serviço, nomeadamente no âmbito desportivo (futebol), celebrado entre si e a Recorrente, por falta de pagamento da respetiva remuneração.
Desde logo, interessa começar pela qualificação jurídica do contrato efetivamente celebrado.
Compulsando a materialidade provada, verifica-se que a Recorrida aceitou prestar serviços de aconselhamento à Recorrente, com vista a conduzir e facilitar a obtenção do contrato de trabalho do jogador AA com a Recorrente, numa altura em que o jogador estava vinculado ao Real Bétis, mediante retribuição.
Mais se demonstrou que, na execução desse acordo, a Recorrida discutiu e delineou com a Recorrente a estratégia de negociação da transferência do jogador, apresentou ao Real Bétis a intenção da Recorrente de adquirir os direitos desportivos e económicos do jogador e aferir e discutir as condições base para o negócio, propôs ao Real Bétis a oferta concreta de aquisição dos direitos desportivos e económicos do jogador, cujos termos discutiu com o Real Bétis, e, por fim, chegou a acordo para a transferência do jogador, tendo a Recorrente celebrado um contrato de trabalho desportivo com o jogador.
A relação jurídica estabelecida configura, genericamente, um contrato de prestação de serviço, porquanto a Recorrida se obrigou a prestar à Recorrente certo resultado do seu trabalho intelectual, mediante remuneração – art. 1154.º do Código Civil (CC).
No entanto, como os referidos factos sugerem, a prestação da Xxxxxxxxx não se limitou a uma mera prestação de serviço, incluindo também a prática de atos jurídicos por conta da outra, próprios do mandato (art. 1157.º do CC).
Com efeito, a Recorrida apresentou ao Real Bétis a intenção da Recorrente de adquirir os direitos desportivos e económicos do jogador, discutiu as condições base do negócio e, perante uma oferta concreta de aquisição de tais direitos, chegou a acordo para a transferência do jogador. Estes atos em representação da Recorrente implicam a prática de atos de natureza jurídica, integrando a relação jurídica do contrato de mandato, modalidade do contrato de serviço, e influenciam a sua natureza jurídica.
Dada, pois, a predominância do mandato, a relação jurídica estabelecida entre o Recorrente e a Recorrida configura um contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, tendo por finalidade a celebração de um contrato desportivo entre a Recorrente e o jogador de futebol.
Por isso, no âmbito do contrato celebrado, pode afirmar-se que a Recorrida, sem prejuízo do contrato de prestação de serviço, intervém também no exercício de poderes de um contrato de mandato, comum na atividade de intermediação desportiva.
Identificado o fim da relação jurídica e a qualidade em que a Recorrida teve intervenção, continua a questionar-se a validade da relação jurídica, a que as instâncias deram a mesma resposta.
Neste âmbito, à data dos factos, sobressai o regime jurídico constante da Lei n.º 28/98, de 26 de junho (entretanto, revogada pela Lei n.º 54/2017, de 14 de julho), designadamente sobre o contrato de trabalho do praticante desportivo, com capítulo especificamente dedicado aos “empresários desportivos” ou “agente de jogadores”.
O empresário desportivo, para o exercício da sua atividade, carece de autorização das entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes (art. 22.º, n.º 1, da Lei n.º 28/98).
Além disso, os empresários desportivos que pretendam exercer a atividade de intermediários na contratação de praticantes desportivos devem ainda registar-se como tal junto da federação desportiva da respetiva modalidade, que, para o efeito, deve dispor de um registo organizado e atualizado (art. 23.º, n.º 1, da Lei n.º 28/98). Por outro lado, nas federações desportivas onde existam competições de caráter profissional tal registo será igualmente efetuado junto da respetiva liga (art. 23.º, n.º 2, da Lei n.º 28/98).
Perante estas disposições normativas, para além da autorização do exercício da atividade de empresário desportivo (ainda que pessoa coletiva), este, em Portugal, tem ainda de estar registado na Federação Portuguesa de Futebol e na Liga de Clubes de Futebol Profissional.
Este registo constitui uma condição essencial para a validade dos contratos de agenciamento desportivo celebrados pelo respetivo agente (XXXX XXXXXXX, O Desporto que os Tribunais Praticam, 2014, pág. 365).
Na realidade, “os contratos de mandato celebrados com empresários desportivos que se não encontrem inscritos no registo referido (…), bem como as cláusulas contratuais que prevejam a respetiva remuneração pela prestação desses serviços, são considerados inexistentes” (art. 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98).
A falta de tal registo acarreta a invalidade do contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, celebrado com empresário desportivo, considerando-se o contrato juridicamente inexistente, por disposição expressa da lei. Trata-se, com efeito, de uma importante exigência legal, justificada, por certo, pela enorme relevância social do setor desportivo e pelas enormes e, por vezes, astronómicas quantias pecuniárias envolvidas, a requererem empresários ou agentes desportivos especialmente idóneos.
A inexistência jurídica, aceite largamente pela doutrina, não tem consagração geral no nosso sistema jurídico.
Contudo, a propósito do casamento, o Código Civil faz referência à inexistência jurídica (arts. 1628.º e 1630.º), assim como também a aflora no caso das declarações não sérias (art. 245.º) e da falta de consciência da declaração e coação física (art. 246.º).
O negócio jurídico, sendo inexistente, não produz qualquer efeito jurídico, como se reconhece, nomeadamente, no disposto no art. 1630.º, n.º 1, do CC, permitindo a distinção com a nulidade, onde ainda podem produzir-se alguns efeitos jurídicos (XXXXXXXX XXXXXXXXX, Teoria Geral do Direito Civil, II, 3.ª edição, 2001, pág. 457, I. XXXXXX XXXXXX, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª edição, 2002, pág. 356, e XXXXXX XX XXXXXXX, Teoria da Relação Jurídica, II, 4.ª reimpressão, 1974, págs. 414 e 415).
Perante a inexistência jurídica do negócio jurídico, declarada expressamente por lei, o mesmo não é suscetível de produzir qualquer efeito jurídico.
No caso em apreciação, a Recorrida, no período em causa, não estava autorizada a exercer a atividade empresarial desportiva, como se estipula no art. 22.º, n.º 1, da Lei n.º 28/98.
Além disso, também não estava registada na Federação Portuguesa de Futebol e na Liga de Clubes de Futebol Profissional, como é exigido pelo disposto no art. 23.º, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho.
Nestas circunstâncias, apesar da sua materialidade, o negócio jurídico é totalmente inválido, por ser juridicamente inexistente, nos termos especificados no art. 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98.
Perante a regulação normativa tão categórica, não se pode qualificar a invalidade do negócio jurídico de
forma diferente, divergindo-se por isso das instâncias. Na verdade, não pode deixar de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do CC), não ignorando também as consequências que poderiam resultar da previsão da inexistência jurídica.
Face à inexistência jurídica, o negócio jurídico celebrado não produz qualquer efeito jurídico, como é próprio do seu regime.
Por consequência, sendo juridicamente inexistente o contrato de prestação de serviço, com poderes de mandato, não pode advir da sua celebração quaisquer direitos e obrigações, sendo irrelevante, por isso, o incumprimento imputado.
Em face da inexistência jurídica do contrato celebrado, distinta da nulidade, acaba por ser despropositada a motivação do acórdão recorrido baseada no abuso do direito, com referência a um contrato nulo.
O regime da inexistência jurídica é incompatível com a verificação do abuso do direito, tal como este é definido pelo art. 334.º do CC.
Efetivamente, não podendo, por efeito da inexistência jurídica, o negócio jurídico celebrado produzir qualquer efeito jurídico, obviamente que também não pode, através do instituto do abuso do direito, produzir os efeitos jurídicos que, de outro modo, nunca poderia produzir.
Por efeito da inexistência jurídica do contrato celebrado, a Recorrida não pode exigir o pagamento da retribuição fixada nesse contrato.
De forma semelhante, decidiu-se também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de setembro de 2017 (10 145/14.4T8LSB.L1.S1), subscrito pelo mesmo relator e pela mesma adjunta.
Para fundamentar a sua pretensão, a Recorrida alude ainda ao enriquecimento sem causa, invocado na réplica.
Na verdade, como fonte autónoma de obrigações, o art. 473.º do CC prevê o enriquecimento sem causa, o enriquecimento injusto ou de locupletamento à custa alheia, sendo certo que a obrigação de restituir aquilo que se adquiriu sem causa corresponde a uma necessidade moral e social, com vista ao restabelecimento do equilíbrio injustamente quebrado entre patrimónios e que, de outro modo, não era possível obter-se (XXXXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em Geral, II, 1972, pág. 13, e XXXXXXX XXXXXXXX, Direito das Obrigações, 2.º, 2001, pág. 45). Por isso, se atribui à ação de enriquecimento sem causa o fim de remover o enriquecimento do património do enriquecido, transferindo-o ou deslocando-o para o património do empobrecido (XXXXXXX XXXXXX, O Xxxxxxxxxxxxxx e o Xxxx, 2.ª reimpressão, 2003, pág. 36).
Por efeito do princípio do dispositivo, o enriquecimento sem causa, nomeadamente quanto aos seus requisitos, carece de ser alegado na ação.
O enriquecimento sem causa, como causa de pedir da ação, deve ser invocado na petição inicial, nos termos do disposto no art. 552.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), levando em consideração a teoria da substanciação.
Examinando a petição inicial, a Recorrida limita-se a alegar, como causa de pedir, o incumprimento do contrato de prestação de serviço celebrado com a Recorrente.
É certo que, na réplica (artigos 104 a 118), se invocou, como nova causa de pedir, o enriquecimento sem causa.
Todavia, a alteração da causa de pedir estava dependente do acordo da outra parte, nos termos do art. 264.º do CPC, que os autos não revelam. Faltando o acordo, verifica-se que a alteração não decorre, nem tal foi invocado, em consequência de confissão feita pela Recorrente e aceita pela Recorrida, como se estabelece no art. 265.º, n.º 1, do CPC.
Com esta norma, procedeu-se a uma modificação fundamental quanto à alteração da causa de pedir, deixando de ser possível, por regra, fazê-la na réplica, como se admitia no art. 273.º, n.º 1, do CPC/1961, em harmonia, aliás, com a nova função da réplica, restrita à dedução da defesa quanto à matéria da reconvenção (art. 584.º, n.º 1, do CPC).
Neste contexto, não sendo processualmente admissível, a alteração da causa de pedir é irrelevante e, por isso, não pode o enriquecimento sem causa, como fonte autónoma de obrigações, ser considerado no âmbito da ação.
De resto, quando da audiência prévia, o enriquecimento sem causa não foi sequer incluído no âmbito do objeto do litígio (fls. 94/95).
Além disso, a questão do enriquecimento sem causa não foi objeto de ampliação do âmbito do recurso, nomeadamente nos termos do art. 636.º do CPC, o que constituiria sempre uma questão nova, que não podia conhecer-se.
A Recorrente afirma ainda que a inexistência do contrato obriga à restituição do valor pago, correspondente à quantia de € 86 250,00, que peticionou na reconvenção deduzida.
Esta questão, embora preencha a última conclusão formulada pela Recorrente, não foi objeto no corpo das
alegações do recurso, podendo assim afirmar-se que, nesta parte, não houve propriamente impugnação do acórdão recorrido, com a respetiva decisão a transitar em julgado.
Na verdade, na parte relativa à reconvenção, a Recorrente não indicou os fundamentos pelas quais pedia a alteração da decisão recorrida, acabando por incumprir o ónus de alegar, estabelecido no art. 639.º, n.º 1, do CPC, a que estava sujeita.
De qualquer modo, em termos substantivos, sempre se dirá ainda que, no caso, não existe a obrigação de restituir tal quantia, paga pela Recorrente à Recorrida, em função do contrato celebrado, integralmente cumprido pela última.
Se o efeito da inexistência do contrato é o de restituir tudo o que tiver sido prestado, à semelhança da nulidade, tal não deve acontecer, quando a outra parte, por impossibilidade da restituição, fica numa situação de benefício.
Nestas circunstâncias, e na tentativa de encontrar o justo equilíbrio das prestações, a que o direito é expressamente sensível, como se pode inferir do disposto no art. 237.º do CC, deve a quantia de € 86 250,00 considerar-se correspondente, em parte, ao valor da prestação realizada pela Recorrida, que as partes fixaram livremente, e que, pela sua natureza, é impossível ser restituída pela Recorrente, que beneficiou da prestação total da Recorrida.
Assim, procedendo parcialmente a alegação, justifica-se, em parte, a revista, devendo revogar-se o acórdão recorrido, quanto à ação, com a consequente absolvição da Recorrente do pedido formulado, e confirmar-se relativamente à improcedência da reconvenção.
2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:
I . Para além da autorização do exercício da atividade de empresário desportivo, este, em Portugal, tem ainda de estar registado na Federação Portuguesa de Futebol e na Liga de Clubes de Futebol Profissional.
I I . A falta de tal registo acarreta a invalidade do contrato de prestação de serviço, na modalidade de mandato, celebrado com empresário desportivo, considerando-se o contrato juridicamente inexistente, por disposição expressa da lei (artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 28/98, de 26 de junho).
III. O regime da inexistência jurídica é incompatível com o abuso do direito.
IV. O enriquecimento sem causa, decorrente da alteração da causa de pedir na réplica, é irrelevante para a decisão, por tal alteração ser processualmente inadmissível, nos termos do artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
V . Não há impugnação da decisão recorrida, quando a questão, embora integrando as conclusões do recurso, não foi objeto no corpo das alegações.
VI. Se o efeito da inexistência do contrato é o de restituir tudo o que tiver sido prestado, à semelhança da nulidade, tal não deve acontecer, quando a outra parte, por impossibilidade da restituição, fica numa situação de benefício.
2.4. A Recorrida e a Recorrente, ao ficarem vencidas por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.
III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Conceder a revista parcial, revogando o acórdão recorrido na parte em que condenou a Ré, absolvendo- a do pedido, e confirmando no demais decidido.
2) Condenar a Recorrida (Autora) e a Recorrente (Ré) no pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias.
Lisboa, 30 de junho de 2021
Olindo dos Santos Geraldes (relator)
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