NOTA TÉCNICA Nº 0001/2023/SEPEPDC/MPCE
NOTA TÉCNICA Nº 0001/2023/SEPEPDC/MPCE
O Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor – DECON, órgão do Ministério Público do Estado do Ceará, criado pela Lei Complementar Estadual nº 30/2002, expede a presente nota técnica em apoio aos Projetos de Lei em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará – ALECE, que tratam da obrigatoriedade da assinatura física das pessoas idosas em contratos de operação de crédito firmados por meio eletrônico ou telefônico, e a proibição da oferta e da celebração, por ligação telefônica, de contrato de empréstimo de qualquer natureza, direcionada a aposentados e pensionistas, no âmbito do Estado do Ceará.
1. Da hipervulnerabilidade do consumidor idoso
Na cadeia de consumo, as pessoas idosas que utilizam crédito tendem a firmar diferentes modalidades de contratação, sendo, a principal delas, o crédito consignado. Se, por um lado, a oferta de crédito possibilita o poder de compra que dá acesso a produtos e serviços, por outro, esse público, que se enquadra na categoria de hipervulnerável, fica exposto a métodos coercitivos e desleais de mercado, além do risco iminente de superendividamento.
São princípios da Política Nacional das Relações de Consumo previstos nos incisos I e IV do art. 4º da Lei n. 8.078/1990 o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, a educação e a informação de fornecedores e consumidores quanto aos seus direitos e deveres com vistas à melhoria do mercado de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor – CDC reconhece como hipervulneráveis os idosos, crianças, deficientes mentais, analfabetos e pessoas com saúde debilitada. A eles, a proteção consumerista é ainda maior, motivo que obriga os fornecedores a tratá-los de modo diferenciado.
Sabendo da vulnerabilidade do idoso, decorrente da própria idade, é que o art. 230 da CF/88, trouxe a obrigação, para o Estado, às famílias e à sociedade, de amparo ao idoso, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e o direito à vida.
Em cumprimento ao desiderato protetivo do texto constitucional é que o legislador
aprovou a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Este é o marco na regulamentação dos direitos da pessoa idosa, uma vez que referida Lei trata de matéria específica, regulamentando as reais necessidades das pessoas idosas, tratando especificamente dos problemas que enfrentam no cotidiano em todas suas relações no convívio em sociedade. O art. 20 desta Lei prevê, por exemplo, o direito a produtos e serviços que respeitem a sua peculiar condição de idade:
Art. 20. O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade.
Soma-se a isso, o entendimento pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que é ainda mais amplo do que o que prevê a lei. A exemplo disso, o ministro Xxxxxx Xxxxxxxx assim dispôs no Recurso Especial nº 586.316:
“Ao Estado Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais sofrem com a massificação do consumo e a ‘pasteurização’ das diferenças que caracterizam e enriquecem a sociedade moderna.
Ser diferente ou minoria, por doença ou qualquer outra razão, não é ser menos consumidor, nem menos cidadão, tampouco merecer direitos de segunda classe ou proteção apenas retórica do legislador.
O fornecedor tem o dever de informar que o produto ou serviço pode causar malefícios a um grupo de pessoas, embora não seja prejudicial à generalidade da população, pois o que o ordenamento pretende resguardar não é somente a vida de muitos, mas também a vida de poucos.”
O idoso faz parte de um grupo de consumidores que tem sua vulnerabilidade potencializada perante os fornecedores, em decorrência de sua idade e grau de instrução. Assim entende Marques (2002, p. 194):
Tratando-se de consumidor ‘idoso’ (assim considerado indistintamente aquele cuja idade está acima de 60 anos) é, porém, um consumidor de vulnerabilidade potencializada. Potencializada pela vulnerabilidade fática e técnica, pois é um leigo frente a um especialista organizado em cadeia de fornecimento de serviços, um leigo que necessita de forma premente dos serviços, frente à doença ou à morte iminente, um leigo que não entende a complexa técnica atual dos contratos cativos de longa duração [...].
Partindo destes pressupostos, o CDC está baseado no princípio da boa-fé e o fornecedor fica obrigado a atender à legítima expectativa de seu público, adotando a lealdade e a honestidade em suas condutas. Na normativa consumerista se reconhecem, de forma expressa, como direitos básicos do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem” (inc. III do art. 6º da Lei n. 8.078/1990) e “a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” (inc. IV do art. 6º).
Entretanto, a teia de incentivos ao consumo que vigora na sociedade atual, combinada com, no caso dos idosos, pelo elevado índice de analfabetismo e falta de educação financeira, leva esse grupo para patamares significativos de hipervulnerabilidade, chegando a poder atentar contra preceitos fundamentais quando suprime até mesmo a garantia do mínimo existencial.
Xxxxxx, com apoio na doutrina de Xxxxxxx Xxxx Xxxxxxx (2010, p. 405-424) cita:
A Constituição Federal de 1988 como o centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário. Em outras palavras, a Constituição seria a garantia (de existência e de proibição de retrocesso) e o limite (limite-guia e limite- função) de um direito privado construído sob seu sistema de valores e incluindo a defesa do consumidor como princípio geral.
Note-se, pois, a importância da manutenção do equilíbrio nas relações de direito privado, principalmente quando envolver um elo vulnerável, como ocorre nas relações de consumo firmadas entre consumidores idosos e instituições financeiras.
2. Da fragilidade das contratações virtuais e as decisões administrativas sancionatórias em casos de fraude contra a pessoa idosa prolatadas no âmbito do DECON/CE
A modalidade de contratação em que o valor do crédito é descontado mensalmente de forma direta do benefício previdenciário do consumidor aposentado ou pensionista, tornou-se massificada a partir de 2003, quando a Lei 10.820/2003 permitiu a consignação nos referidos benefícios.
A evidente facilidade e desburocratização da vinculação do pagamento à aposentadoria geram uma série de problemas que precisam ser enfrentados. No âmbito do DECON/CE, o atendimento de idosos que reclamam de contratações fraudulentas e cobranças indevidas é corriqueiro, o que demonstra a grande vantagem que as instituições financeiras
obtém em detrimento da hipervulnerabilidade dos contratantes.
Para ilustrar a atuação do órgão em face das reclamações recebidas em que não houve acordo, em um recorte de 30/06/2022 a 30/06/2023, foram exaradas 89 (oitenta e nove) decisões administrativas sancionatórias contra instituições financeiras diversas, de casos em que a contratação fraudulenta foi, inclusive, formalizada através de whatsapp sem o consentimento do consumidor:
Os principais problemas identificados até então são, em linhas gerais:
a) Empréstimos consignados e cartões de crédito consignado desconhecidos pelo consumidor, que afirma não os ter realizado
b) refinanciamentos de contrato em andamento à revelia do interessado, tornando-o cativo de determinada instituição financeira
c) total falta de transparência das financeiras em seus procedimentos, que possibilitam contratações fraudulentas, inclusive, através de redes sociais, sem ingerência ou controle algum do INSS no que tange a estas operações.
Dessa forma, vê-se que o sistema de segurança nas contratações telefônicas e virtuais é frágil, pois é facilmente concretizado sem a ciência do titular da conta. Além disso, os artifícios que induzem o consumidor a erro estão cada dia mais modernos, que fogem do controle do poder judiciário e dos órgãos de defesa e proteção do consumidor que, muitas vezes, não conseguem atuar de forma preventiva, a fim de evitar o dano, mas tão somente repressiva, quando a lesão já foi materializada.
Tais situações evidenciam ainda mais a necessidade de ferramentas legais que auxiliem no combate a este cenário, que cada vez mais coloca o consumidor idoso em desvantagem em relação às instituições financeiras.
3. Da Constitucionalidade das Leis Estaduais em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará
Os Projetos de Lei que tramitam na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará dispõem acerca da obrigatoriedade da assinatura física das pessoas idosas em contratos de operação de crédito firmados por meio eletrônico ou telefônico, e a proibição da oferta e da celebração, por ligação telefônica, de contrato de empréstimo de qualquer natureza, direcionada a aposentados e pensionistas.
Modelo semelhante de normativa que, inclusive, já se encontra em pleno vigor, foi editada e aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná, que publicou a Lei Estadual nº 20.276/2020, que proíbe a oferta e a celebração de contrato de empréstimo bancário com aposentados e pensionistas por ligação telefônica no Paraná.
A legislação estadual paranaense proíbe instituições financeiras, correspondentes bancários e sociedades de arrendamento mercantil de fazerem publicidade dirigida a aposentados e pensionistas e estabelece que a contratação de empréstimos somente pode ser realizada após solicitação expressa do aposentado ou do pensionista.
Irresignada com a promulgação da referida Lei, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6727, com pedido de medida cautelar, no Supremo Tribunal Federal.
Alegou, em suma, a incostitucionalidade formal, devido a competência privativa da União para legislar sobre propaganda comercial, direito civil e política de crédito, bem como
inconstitucionalidade material, devido à violação ao princípio da proporcionalidade e da livre iniciativa.
A Suprema Corte, em decisão unânime, validou e declarou a constitucionalidade da Lei Estadual paranaense, pois concluiu que esta resultou do legítimo exercício da competência concorrente do ente federado em matéria de defesa do consumidor, suplementando-se os princípios e as normas do Código de Defesa do Consumidor e reforçando-se a proteção de grupo em situação de especial vulnerabilidade econômica e social.
Em seu voto, a Relatora Ministra Cármen Xxxxx destaca o federalismo cooperativo como mola propulsora para o desenvolvimento nacional, legitimando a atuação do ente estatal em sua competência concorrente para legislar sobre matéria de consumo:
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou interpretação do direito posto a prestigiar, na repartição de competências legislativas, o federalismo cooperativo, com divisão de responsabilidades entre os entes políticos para a consecução dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º da Constituição republicana). Em tema de proteção ao consumidor, cabe à União editar as normas gerais e aos Estados suplementá-las, tal como se dispõe nos §§ 1º e 2º do art. 24 da Constituição da República, não existindo, portanto, supremacia de um ente político em detrimento do outro. Há divisão de competências legislativas para a preservação da segurança jurídica e da organicidade do sistema. Portanto, as disposições da Lei n. 20.276/2020 do Paraná no sentido de que instituições financeiras, correspondentes bancários e sociedades de arrendamento mercantil estão proibidas de realizar publicidade ou atividade de convencimento de aposentados e pensionistas para a contratação de empréstimos – os quais devem ser expressamente solicitados por esses consumidores – resultam do legítimo exercício da competência concorrente do ente federado em matéria de defesa do consumidor, afeiçoando-se a “legislação estadual às peculiaridades locais, de forma a superar a uniformização simétrica da legislação federal” (XXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 356). (grifo nosso)
idosos.
Assim, a Lei paranaense em nenhum momento usurpou de sua competência, que, em verdade, lhe é conferida constitucionalmente para legislar sobre matéria de consumo. Além disso, o advento da normativa foi de suma importância, uma vez que criou precedente legislativo para que outros estados também o façam, no sentido de balancear o direito de instituições privadas (parte mais forte da relação) e o direito e segurança do coletivo (parte mais fraca da relação), ou seja, constitui-se como mais uma ferramenta disponível à população, visando evitar situações de vantagem manifestamente excessiva em face da vulnerabilidade dos consumidores
No Ceará, em consonância com a Lei publicada no Estado do Paraná, estão em trâmite dois projetos, conforme supracitado, um que trata da proibição da contratação de crédito para pessoas idosas sem assinatura física, e outro que prevê a proibição da oferta e contratação pela via telefônica. Destaque-se que as normativas não possuem o intuito de proibir a contratação, mas tão somente de conferir maior segurança ao consumidor vulnerável desde o momento pré-contratual até a formalização do negócio.
A iniciativa legislativa cearense, portanto, é legal, e, como visto, já possui validação constitucional em caso semelhante, não existindo óbice a sua aprovação e posterior eficácia em todo o estado.
4. Conclusão
Ante todo o exposto, é inquestionável a importância e emergência na aprovação das Leis que tramitam na ALECE, pois, uma vez em vigor, serão elementos cruciais no cenário atual de assédio comercial agressivo que o público idoso sofre corriqueiramente.
Ademais, os órgãos de proteção e defesa do consumidor permanecerão vigilantes no tocante ao cumprimento do conteúdo das referidas normativas, em que a inobservância pelos estabelecimentos comerciais financeiros será apurada e devidamente julgada pelo rito pertinente.
5. Referências
XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no código de defesa do consumidor. O novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002, p. 194.
XXXXXXX, C. L. Consumo como igualdade e inclusão social: a necessidade e uma leiespecial para prevenir e tratar o “superendividamento” dos consumidores pessoas físicas.Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 13 n. 101, p. 405-424, 2010. Disponível em:xxxxx://xxxxxxxxxxxxxxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxx/000. Acesso em: 29.jun.2023
BRASIL, R. F. Constituição federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.Disponível em:< xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxxx.xxx>. Acesso em: 29.jun.2023
BRASIL. Lei n. 8078/1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível
em:xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/xxxx/X0000.xxx. Acesso em: 29.jun.2023
BRASIL. Lei n. 10.741, 01 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Brasília, 1o de outubro de 2003; 182o da Independência e 115o da República. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx_00/Xxxx/0000/x00.000.xxx Acesso em: 29.jun.2023
Fortaleza/CE, 04 de julho de 2023.