Prefácio
Prefácio
O contrato de seguro tem sido tratado na doutrina brasileira sob duas perspectivas inteiramente antagônicas. De um lado, situam-se aqueles que, amparados na crescente complexidade e sofisticação do mercado de seguros, parecem excessivamente dispostos a mitigar a proteção do segurado em nome do funcionamento dos produtos securitários e do modelo de negócios das seguradoras. De outro, há aqueles que, exagerando no paternalismo com os segurados, deixam de distinguir entre as diferentes espécies de seguros e entre as suas respectivas funções, buscando resolver todos os conflitos com base no simples – e equivocado – desprezo às cláusulas contratuais. O diálogo entre essas duas correntes mostra-se, como já era de se esperar, impossível. E, enquanto o direito brasileiro vai oscilando entre um e outro extremo, a realidade do seguro se transforma, invadida por notáveis avanços tecnológicos que tornam velhos os novos problemas que xxxxxxxx enfrentando, desafiando os órgãos regulatórios e os tribunais estatais e arbitrais, chamados com frequência cada vez maior a resolver conflitos entre os múltiplos interesses legítimos que o seguro toca.
Entre esses numerosos desafios, situa-se o problema do tratamento de dados pessoais para a quantificação do prêmio devido, especialmente a partir da possibilidade do emprego de algoritmos para traçar o perfil de risco dos segurados. Quais regras devem ser aplicadas à coleta e ao tratamento desses dados? Como impedir que sua utilização gere discriminações inaceitáveis entre os segurados? O que, em última análise, as torna inaceitáveis? Há, diante de resultados estatísticos comprovados, discriminações legítimas? Estes e outros temas tão delicados quanto atuais constituem o objeto da inovadora obra de Xxxxxx Xxxxxxxxx, que o leitor tem agora em mãos. Tratamento de dados pessoais e discriminação algorítmica nos seguros combina o que há de mais inovador no campo da tecnologia com problemas que radicam fundo na cultura humanista, prometendo se tornar um novo marco na bibliografia jurídica brasileira.
O autor parte, no capítulo inicial, de um abrangente estudo da classificação dos riscos nos contratos de seguros e de sua potencial repercussão sobre a esfera existencial dos segurados, mormente no que se refere à discriminação de determinados grupos vulneráveis e à violação da privacidade. Sem medo de despertar suscetibilidades, Xxxxxx utiliza como exemplo o emprego do gênero do segurado como fator de precificação nos seguros de automóveis, em um retrato instigante, fruto de sua experiência teórica e prática no ramo securitário. O segundo capítulo é dedicado à análise do impacto da adoção de novas tecnologias, especialmente o emprego de inteligência artificial. Sem prejuízo das suas vantagens, Xxxxxx demonstra como o tratamento de dados com base em algoritmos potencializa o risco de discriminação indireta, vale dizer, a discriminação operada pelo emprego de um critério distintivo que não seja, per se, ilegítimo, mas que conduza a um impacto desproporcional sobre um grupo vulnerável, como pode ocorrer, por exemplo, em relação às minorias raciais. O autor destaca como a Lei Geral de Proteção de Xxxxx Xxxxxxxx, embora oferecendo instrumentos capazes de contribuir para o combate à discriminação, mostra-se, em geral, insuficiente, sobretudo no que se refere ao problema da discriminação indireta.
Partindo desta constatação, o autor procura, no capítulo final da obra, traçar estratégias para a prevenção da discriminação racial nos contratos de seguro, focando tanto na restrição dos dados recebidos para tratamento (inputs) – mais eficaz diante de
hipóteses de discriminação direta – como também no condicionamento das inferências realizadas a partir do resultado do tratamento (outputs) – essencial ao enfrentamento da discriminação indireta –, entre outras relevantes proposições que a obra apresenta, sempre no intuito de garantir o necessário equilíbrio entre interesses econômicos e sociais no mercado de seguros privados.
A obra de Xxxxxx Xxxxxxxxx situa-se, assim, em um bem-vindo meio-termo entre as correntes antagônicas que mencionei no início. De modo raro, o autor combina profundo conhecimento técnico sobre o mercado de seguros com uma peculiar sensibilidade social, fornecendo contribuição valorosa e original para um problema que atingirá a vida de milhares de brasileiros nos próximos anos. O livro é fruto da tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ e aprovada com nota máxima e recomendação de publicação por banca que tive a honra de integrar, como orientador, ao lado dos Professores Xxxxx Xxxxxxx (UFRGS), Xxxxxxxx Xxxxxxx (UNIP), Xxxxxx Xxxxxx Xxxxxx (UERJ) e Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx (UERJ). O texto reflete, ao fim e ao cabo, as virtudes acadêmicas de Thiago, pesquisador dedicado e estudioso do direito comparado, com passagens pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht.
Em toda parte, a tecnologia vem suscitando novos desafios, que já se tornaram urgentes no mundo dos seguros, e perigam tornar desatualizadas, da noite para o dia, as melhores bibliotecas. Ao leitor, deixo a certeza de que o livro de Xxxxxx Xxxxxxxxx traz, contra esse risco, integral proteção.
Xxxxxxxx Xxxxxxxxx Professor Titular de Direito Civil da UERJ