REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE USO DE BENS PÚBLICOS
xxxxx://xxx.xxx/00.00000/0000-0000.0000.x00.0000
REGIME JURÍDICO DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE USO DE BENS PÚBLICOS
Thiago Mesquita Nunes1
SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Contratos complexos de concessão de uso de bens públicos; 3 – Peculiaridades na disciplina contratual de contratos de concessão de uso de bens públicos; 3.1 – Flexibilidade contratual na definição das atividades econômicas exploradas no bem público, da forma de exploração e dos investimentos a serem realizados;
3.2 – Impactos do regime de liberdade de preços e da atuação em ambiente concorrencial; 4 – Conclusão; Referências bibliográficas.
RESUMO: O presente artigo apresenta uma análise sobre o regime jurídico aplicável aos contratos complexos de concessão de uso de bens públicos. Especificamente, busca demonstrar a inadequação da aplicação das Leis Federais nº 8.666/93 e nº 14.133/2021 quanto à disciplina de extinção antecipada dessa espécie de contratos. Apresenta, ainda, as peculiaridades desse modelo contratual que demandam disciplina distinta da adotada nos contratos de concessão de serviços públicos.
PALAVRAS-CHAVE: Contrato. Concessões de uso de bens públicos.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo se propõe a analisar algumas peculiaridades jurídicas dos contratos de concessão de uso de bens públicos que,
1 Procurador do estado de São Paulo. Especialista em direito administrativo pela Escola de Direito da Função Xxxxxxx Xxxxxx, graduado em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
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em alguns projetos, em muito se aproximam das características essen- ciais de típicos contratos de concessão de serviços públicos, notadamente quanto ao volume de investimentos demandado para a viabilização do projeto, do que decorre a necessidade de um longo prazo de vigência do contrato para permitir a plena amortização desses investimentos exclusivamente a partir das receitas auferíveis pela exploração econômica do empreendimento.
Trata-se, portanto, de um recorte bastante específico. Desse modo, este artigo não apresentará uma análise puramente dogmática do instituto dos contratos de concessão de uso de bens públicos e de suas características no contexto da gestão pública do patrimônio imobiliário estatal. Na perspectiva adotada, o estudo tem como foco apenas aqueles contratos que, por suas características, assemelham-se às concessões de serviços públicos, no que podem ser citados como exemplos, no estado de São Paulo, projetos nas áreas de unidades de conservação ambiental2; parques urbanos3; lazer; educação e conser- vação ambiental4; exposições5; cultura6; e esportes e entretenimento7.
2 Projetos de concessão de uso do Parque da Cantareira e do Parque Xxxxxxx Xxxxxxx (disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022), do Parque Estadual de Campos do Jordão (disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx. xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022), do Parque Estadual da Serra do Mar (projeto “Caminhos do Mar”, disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/ Parcerias/Projetos/Detalhes/150. Acesso em: 2 ago. 2022), e do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR (disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/ Detalhes/162. Acesso em: 2 ago. 2022).
3 Projeto de concessão de uso dos parques urbanos da Água Branca, Villa-Lobos e Xxxxxxx Xxxxxxxxx, disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022.
4 Contrato de concessão de uso do Zoológico de São Paulo e do Jardim Botânico de São Paulo, celebrado em 08 de setembro de 2021. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/ Parcerias/Projetos/Detalhes/147. Acesso em: 2 ago. 2022.
5 Contrato de concessão de uso do Centro de Exposições Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx (São Paulo Expo), celebrado em 21 de agosto de 2013. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx. xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022.
6 Projetos de concessão de uso da Casa das Retortas (disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx. xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022) e do Casarão Xxxxxx xx Xxxxx (disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022).
7 Projeto de concessão de uso do Constâncio Vaz Guimarães, em fase de consulta pública. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 2 ago. 2022.
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Para esses projetos, apesar da existência de significativo grau de semelhança, não se observam, contudo, algumas das características mais próprias às concessões de serviços públicos propriamente ditas. Há, reconheça-se, inequívocas dificuldades na determinação exata de um conceito inquestionável de serviços públicos, com concepções distintas ao longo do tempo, quer qualificando-os segundo a presença do estado no exercício da atividade, quer em função da previsão legal de incidência de um regime próprio de direito público8. Não obstante, é certo que apenas com muita elasticidade no conceito seria possível atribuir tal qualificação a atividades como as de gestão de um centro de exposições ou de exploração de complexos esportivos, por exemplo.
Mas não há apenas potencial incompatibilidade do escopo desses projetos com conceitos doutrinários do que se entenda por serviços públicos. Há ainda dificuldades práticas de compatibilização do regime jurídico desses contratos com determinações legais aplicáveis às concessões de serviços públicos, a exemplo da imposição de diretrizes de adequação e continuidade dos serviços públicos9, ou da disciplina legal a respeito da política tarifária10.
De outro lado, problemas também surgem na hipótese de puro afastamento da disciplina legal atinente às concessões de serviços públicos, submetendo as concessões de uso de bens públicos exclusi- vamente à legislação geral de licitações e contratações públicas, que, conforme será visto mais adiante, não contém disciplina apta a lidar com contratações com tamanha complexidade e, notadamente, com tão extenso prazo de vigência.
Diante desse cenário, busca o presente artigo discorrer, inicialmente, sobre o regime jurídico aplicável às concessões de uso de bens públicos, quando detentoras de características que as aproximem de concessões de serviços públicos. Na sequência, serão apresentadas algumas peculiaridades desses contratos que, ordinariamente,
8 A respeito dessa evolução doutrinária do conceito de serviços públicos, vide SCHIRATO, Vitor Rhein. A noção de serviço público em regime de competição. 2011. Tese (Doutorado em Direito do Estado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
9 Cf. artigo 6º da Lei Federal nº 8.987/95.
10 Cf. artigo 9º da Lei Federal nº 8.987/95.
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demandam regulação distinta da comumente adotada em contratos de concessão de serviços públicos, destacadamente as relacionadas à alocação contratual de riscos, alterações estas imprescindíveis quando o projeto contemplar um regime de liberdade de preços ao concessionário, e de fundamental importância se a atividade econômica desempenhada no imóvel público estiver sujeita à competição com outros atores privados.
2. CONTRATOS COMPLEXOS DE CONCESSÃO DE USO DE BENS PÚBLICOS
A gestão dominial dos imóveis integrantes do patrimônio público pode envolver o emprego de diversos instrumentos jurídicos à disposição do administrador público, desde sua afetação a deter- minada destinação pública, passando por instrumentos de alocação temporária da posse do imóvel a terceiros, no que se enquadram as concessões, permissões e autorizações de uso de bens públicos, até atos de alienação a terceiros dos direitos reais incidentes sobre imóvel não afetado a qualquer política pública.
Neste artigo, o foco de estudo recai sobre a utilização do instituto da concessão de uso de bens públicos como instrumento para a realização de política pública, no escopo de projetos que buscam atrair vultosos recursos privados para que, em contrapartida ao direito de exploração econômica do bem público pelo prazo estabelecido no contrato, sejam realizados investimentos em imóvel público, e nele prestadas as atividades determinadas, com maior ou menor flexibilidade de atuação, no instrumento de concessão.
Cabe, inicialmente, salientar que o instituto da concessão de uso de bens públicos pode ser utilizado para reger relações de baixa complexidade, que demandam investimentos de menor monta. Em realidade, é instrumento apto a reger quaisquer relações jurídico-
-obrigacionais em que, por meio de vínculo contratual, terceiro assume temporariamente a posse de imóvel público para explorá-lo de acordo com as diretrizes instituídas no instrumento de concessão.
Para tais projetos de menor complexidade, a disciplina legal aplicável não costuma se apresentar como tema sujeito a maiores
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divagações. Aceita-se, sem grandes questionamentos, a regulação desses contratos pela legislação geral de licitações e contratações públicas, quer a Lei Federal nº 8.666/93, ainda em vigor, quer a recente Lei Federal nº 14.133/2021, que, aliás, expressamente se declara aplicável às concessões de uso de bens públicos11.
E, de fato, para esses assuntos a aplicação dessa legislação conduz a resultados bastante satisfatórios, ao menos até o ponto em que se pode ter como satisfatória a disciplina trazida por essas leis para toda e qualquer contratação administrativa.
Algumas críticas, naturalmente, podem ser feitas, diante da inevitável incompatibilidade da aplicação, às concessões de uso de bens públicos, de leis concebidas para regular contratos em que a Administração Pública figura como devedora de um pagamento ao terceiro contratado12, a exemplo da vinculação, trazida pelo artigo 57 da Lei Federal nº 8.666/93, da vigência dos contratos administrativos à vigência dos créditos orçamentários13, vinculação inexplicável em contratos como os de concessão de uso de bens públicos, em que a Administração Pública é, ordinariamente, credora de um pagamento devido pelo concessionário, em razão da outorga do direito de exploração econômica do imóvel público.
Ocorre que, para contratos de maior complexidade e, especialmente, de maior prazo de vigência, a incompatibilidade da aplicação irrestrita do regime jurídico trazido pela legislação geral de licitações e contratações públicas se mostra mais presente, com consequências significativamente mais gravosas para a própria viabilização da contratação.
11 Cf. artigo 2º, inciso IV.
12 Segundo Xxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx, a perquirição do processo legislativo e o contexto em torno do qual foi editada a Lei Federal nº 8.666/93 demonstrariam que esta foi significativamente influenciada por empreiteiras emergentes e, como consequência, a disciplina legal teria sido voltada mais especificamente à regulação de contratos de obras públicas, não obstante o âmbito de incidência da lei seja marcadamente mais amplo (XXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxx. As licitações segundo a Lei nº 8.666: um jogo de dados viciados. Revista de Contratos Públicos, Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 9-37, 2012/2013).
13 Embora com distinta redação, a mesma crítica pode ser direcionada ao artigo 105 da Lei Federal nº 14.133/2021, que igualmente exige a previsão no plano plurianual para a celebração de contratos com duração superior a um exercício financeiro, previsão esta, evidentemente, inconcebível para contratos que não demandem o emprego de qualquer recurso orçamentário para sua viabilização.
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Para demonstrar essa incompatibilidade, é necessário darmos um passo atrás e apresentarmos algumas características essenciais desses contratos, que os aproximam, na lógica econômico-financeira, dos contratos de concessão de serviços públicos.
Tanto em um caso – concessões de serviços públicos –, quanto em outro – projetos complexos de concessão de uso de bens públicos –, a viabilização da contratação pretendida depende da estruturação de um projeto capaz de gerar atratividade ao setor privado, o que demanda a definição de premissas de investimento, direitos e obrigações contratuais que, em seu conjunto, viabilizem ao investidor a expectativa de rentabilidade do capital empregado no projeto que seja compatível com o custo de oportunidade desses recursos.
Vale ressaltar que nesses projetos, sobretudo nos denominados projetos greenfield, a exploração econômica do ativo – quer do serviço público, quer do imóvel público – é precedida da realização de vultosos investimentos na implantação da infraestrutura ou do empreendimento, investimentos estes que demandam o emprego de capital privado, próprio ou de terceiros, que deve ser recuperado e remunerado pela exploração econômica do ativo objeto do contrato. Mesmo em projetos brownfield, vale dizer, aqueles em que já existe um ativo público passível de exploração econômica imediata, no mais das vezes é necessário o emprego de grande volume de capital para atividades de reforma, restauração, ampliação ou modernização dos ativos públicos, tornando igualmente imprescindível a recuperação e remuneração desses recursos aportados no empreendimento.
Nesse aspecto, as concessões de serviços públicos e os aqui estudados projetos complexos de concessão de uso de bens públicos se equivalem. Ainda que a atividade em si possa ser substancialmente distinta, com a prestação de um serviço mais marcadamente público nas concessões de serviços públicos justificando a incidência de um regime jurídico com maior presença estatal (notadamente na regulação tarifária) o fato é que, em ambos os casos, sob o ponto de vista econômico-financeiro as situações são equivalentes, se não idênticas.
Exige-se, do concessionário, a captação de recursos, próprios ou de terceiros, e sua aplicação no projeto, em investimentos normalmente
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irrecuperáveis14, realizados em bens que reverterão ao patrimônio público ao final da concessão, recursos estes que são viabilizados exclu- sivamente em razão da expectativa, conferida pelo contrato, de que o concessionário poderá exercer o direito de exploração econômica do ativo público por longo prazo, permitindo a obtenção de receitas capazes de: suportar os custos operacionais e demais despesas incorridas, recuperar o investimento realizado e remunerar o capital empregado no projeto por taxa condizente com seu custo de oportunidade, já conside- rando os riscos incorridos pelo concessionário.
Isso demonstra a importância que o prazo dos contratos de conces- são assume para assegurar sua viabilização do ponto de vista econômico-
-financeiro, de modo que, inexistindo a segurança na observância desse prazo estabelecido em contrato, inexistirá, por consequência, a segurança jurídica na principal premissa de atratividade do projeto.
E é justamente nesse ponto que tanto a Lei Federal nº 8.666/93 quanto a Lei Federal nº 14.133/2021 falham em conferir segurança jurídica adequada a esses contratos.
Isso porque, para as concessões de serviços públicos, a Lei Federal nº 8.987/95, em seus artigos 35 a 39, busca regular a extinção dos contratos de concessão a partir de uma ótica protetiva dos investimentos realizados pelos concessionários, com o objetivo de conferir segurança jurídica quanto à recuperabilidade dos investimentos realizados, quer seja por meio da própria exploração econômica do ativo público pelo prazo originalmente convencionado, quer seja, na hipótese de extinção antecipada da concessão, pelo pagamento de indenização em montante correspondente ao valor dos investimentos realizados em bens reversíveis, ainda não amortizados.
Há, ademais, uma preocupação com a proteção do concessionário face à eventual intenção expropriatória dos investimentos realizados, previamente à sua amortização, exigindo-se, para a encampação de um contrato de concessão de serviços públicos, a demonstração do interesse público na medida, a obtenção de prévia e específica autorização legisla- tiva, e, adicionalmente, o pagamento de indenização ao concessionário, previamente à retomada dos serviços.
14 Normalmente referidos, na literatura econômica, como sunk costs.
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Tais preocupações, repise-se, têm como fundamento o reconhe- cimento de que, nas concessões de serviços públicos, a recuperação e a remuneração do capital empregado no projeto depende da própria exploração, ao longo do tempo convencionado, do ativo público objeto da concessão, preocupação esta que não se faz presente nos contra- tos tradicionais de obras públicas, em que, em ritmo razoavelmente pari passu à execução dos investimentos, ocorre o pagamento do valor devido pela Administração Pública, a partir da medição dos serviços já realizados, o que reduz substancialmente o volume de capital já imobilizado e não pago e, portanto, exposto a risco.
Essa característica dos contratos de obra pública, igualmente presente em outros contratos de prestação de serviços ou aquisição de bens regidos pela legislação geral de licitações e contratações públicas, explica o fato de, nessas leis, não terem sido previstas grandes medidas protetivas dos interesses dos investidores na disciplina legal da extinção dos contratos administrativos.
Admite-se, nesse sentido, a rescisão unilateral do contrato após mera demonstração de razões de interesse público no âmbito de processo administrativo15, sem a exigência de prévia obtenção de autorização legislativa específica e, mais determinante, sem a obrigação de prévio pagamento de indenização calculada em função dos danos causados ao particular em razão dessa extinção antecipada do contrato.
Em realidade, no regime da Lei Federal nº 8.666/93, neste ponto equivalente à Lei Federal nº 14.133/2021, apenas se assegura ao con- tratado, quando a extinção não haja decorrido de sua culpa, o ressar- cimento dos prejuízos regularmente comprovados que houver sofrido, acrescido de eventuais pagamentos pendentes na data da rescisão e dos custos incorridos com a desmobilização. Esses pagamentos, contudo, não constituem condição prévia à extinção contratual e à retomada de seu escopo pela Administração Pública.
Não há, note-se, sequer previsão legal expressa a respeito de direitos de indenização na hipótese de extinção contratual por culpa do
15 Cf. artigo 78, inciso XII, da Lei Federal nº 8.666/93, e artigo 137, inciso VIII, da Lei Federal nº 14.133/2021.
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particular contratado, nem sequer quanto a eventuais pagamentos ainda não adimplidos na data da extinção contratual, embora, reconheça-se, tais pagamentos devam ser realizados ainda que na ausência de autorização legal expressa, de modo a não configurar enriquecimento indevido da Administração contratante.
Não é difícil perceber que tal disciplina é capaz de inviabilizar qualquer pretensão de atratividade econômica, se for aplicada aos projetos complexos de concessão de uso de bens públicos, capazes de demandar o emprego de bilhões de reais em investimentos no início do prazo contratual, amortizáveis apenas a partir da exploração econômica do imóvel público por dezenas de anos.
Veja-se, a título de exemplo, o projeto de concessão de uso do Complexo Constâncio Vaz Guimarães, ora em consulta pública no estado de São Paulo, cujos documentos projetam, no cenário referencial, investimentos da ordem de R$ 962 milhões, 81% deles concentrados nos cinco primeiros anos do projeto, demandando um prazo de 35 anos de vigência contratual para permitir a amortização desses investimentos e a remuneração do capital empregado no projeto16.
É pouco crível que investidores, com capacidade econômico- financeira para captação de recursos dessa magnitude, tivessem a segurança jurídica necessária para realizar tais investimentos em imóvel público, reversível à posse da Administração Pública quando do encerramento do contrato, caso pudessem, a qualquer momento, ser surpre- endidos com uma decisão administrativa de rescisão unilateral do contrato por razões de interesse público, sujeitando o direito à indenização pelos investimentos ainda não amortizados à conclusão de processo administra- tivo ou judicial, posterior à própria retomada do empreendimento.
A aplicação irrefletida de preceitos da Lei Federal nº 8.666/93, ou mesmo da recente Lei Federal nº 14.133/2021, acabaria por invia- bilizar a estruturação de projetos com essas características17. Afigura-se,
16 Conforme Documento Referencial V – relatório econômico-financeiro preliminar e referencial, disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 3 ago. 2022.
17 Essa preocupação, inclusive, pode ter motivado alguns entes federativos a denominar como concessões de serviços públicos alguns contratos que, em sua natureza, dificilmente encontrariam fundamento para tal classificação. Cite-se, como exemplos, o Contrato
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nesse sentido, necessária a aplicação analógica, no que couber, do regime jurídico previsto na Lei Federal nº 8.987/1995, cuja estrutura jurídica foi pensada justamente para contratos com características como as de projetos complexos de concessão de uso de bens públicos.
Tal aplicação encontra respaldo na jurisprudência e na doutrina especializada.
É possível citar, por exemplo, trecho do voto condutor do Acórdão do Tribunal Pleno, no Processo 00011116/989/16-1, de Exame Prévio de Edital, do Tribunal de Contas do estado de São Paulo:
O presente caso envolve concessão de uso de área pública, em que não há dispêndio de recursos públicos, razão pela qual a esses contra- tos não se aplicam muitos dos preceitos entabulados pela Lei Federal n.º 8.666/1993.18
O referido acórdão cita ainda Floriano de Azevedo Marques Neto19 que, em trabalho específico sobre concessões, afirma que:
A concessão de uso não tem fundamento legal único ou mesmo que possamos tratar como referência […]. Isso não impede, porém, que par- te da doutrina, na qual me incluo, defenda que as disposição [sic] da Lei 8.987/95 sejam aplicáveis, subsidiariamente, às concessões de uso.
No mesmo sentido, Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão20 traz o magistério de Pedro Costa Gonçalves21, professor da Universidade de Coimbra:
De fato, em relação a atividades econômicas stricto sensu exercitáveis em bens públicos, a concessão “se relaciona com a atribuição de di- reitos de gerir atividades que não são públicas, mas que, por estarem
de Concessão nº 01/SEME/2019, de concessão “dos serviços de modernização, gestão, operação e manutenção do Complexo do Pacaembu”, do município de São Paulo (SÃO PAULO. Contrato de concessão complexo Pacaembu. Cidade de São Paulo: Governo, São Paulo, 7 ago. 2020, n. p.).
18 SÃO PAULO. Tribunal Pleno (seção municipal). Exame prévio de edital processo
n. 11116/989/16-1. Relator: Conselheiro-Substituto Xxxx Xxxxxx, 24 de agosto de 2016, p. 6.
19 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 265.
20 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Curso de direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013, Capítulo XV, item 2.
21 XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. A concessão de serviços públicos. Coimbra: Almedina, 1999, p. 97 e 98.
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conexas com bens públicos, não podem ser exercidas por qualquer pes- soa. Estão, portanto, aqui em causa atividades materialmente privadas que, quando exercidas em certos locais (bens públicos), a lei reserva à Administração. […] Embora esteja implicada uma utilização priva- tiva de bens públicos, não é no entanto esse o objeto (principal) da concessão. De resto, é por isso que estas concessões criam vinculações especiais quanto ao exercício da atividade (“garantia de qualidade de serviço prestado aos utentes”) e não apenas quanto à utilização dos bens. […] É por isso que, já há algum tempo, a doutrina se refere a um princípio de atração do regime das concessões dominiais pelo regime das concessões de serviços.
De forma semelhante, Xxxxxx Xxxxxx Filho22 afirma que nas concessões de uso de bem público “o particular é titular de garantias similares às reconhecidas ao concessionário de serviço público”.
Esse entendimento é, aliás, compartilhado por inúmeros entes federativos. Não são poucos os contratos de concessão de uso de bens públicos que, de forma expressa, arrolam a Lei Federal nº 8.987/95 dentre as normas aplicáveis à avença e, adicionalmente, emprestam deste diploma legal a disciplina quanto à forma de extinção contratual, inclusive quanto às regras de encampação, disciplinando contratu- almente o tema da mesma forma como feito por estes mesmos entes federativos em típicas concessões de serviços públicos.
Podem ser citados, a título de exemplo, os contratos de concessão de uso do Vale do Anhangabaú23 e do Complexo de Interlagos24, ambos do município de São Paulo; o contrato de concessão de uso do Complexo Maracanã25, do estado do Rio de Janeiro; o contrato de concessão de uso
22 XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1013.
23 Contrato de Concessão 18/SUB-SÉ/2021, do município de São Paulo. Disponível em: https:// xxx.xxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxx_xxxxxxxx/xxxx_xx_ anhangabau/index.php?p=316053. Acesso: 3 ago. 2022.
24 Concorrência nº 009/SGM/2019, suspensa por determinação do Tribunal de Contas do município de São Paulo. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/xxxxxx/xxxxxxxxxxx/ governo/desestatizacao_projetos/interlagos/index.php?p=287584. Acesso em: 3 ago. 2022.
25 Em fase de consulta pública. Disponível em: xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/ documentos. Acesso em: 3 ago. 2022.
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da Arena Independência26, do estado de Minas Gerais; e dos contratos de concessão de uso do Centro de Convenções27 e do Zoobotânico28, ambos do estado do Piauí.
Tais posicionamentos foram firmados, há de se salientar, previa- mente à edição da Lei Federal nº 14.133/2021, que passou a incluir, expressamente, em seu âmbito de abrangência, as concessões de uso de bens públicos, ao contrário da Lei Federal nº 8.666/93, que apenas se referia, de forma expressa, às concessões de direito real de uso de bens públicos, instituto jurídico distinto do tratado neste artigo29.
Não obstante, portanto, o intérprete tenha de conviver com a realidade normativa segundo a qual, agora de modo expresso, as concessões de uso de bens públicos são regidas pela legislação geral de licitações e contratos administrativos, não há como se ignorar a realidade econômica sobre a qual são inseridas determinadas espé- cies de contratos administrativos, que demandam tratamento jurídico e contratual específico, sob pena de inviabilizá-los.
Assim, sem prejuízo da sujeição de tais contratos às normas contidas na Lei Federal nº 14.133/2021, essa subsunção deve se restringir exclusivamente aos pontos que forem estruturalmente compatíveis com a lógica jurídica e econômica dos contratos complexos de concessão de uso de bens públicos.
26 Contrato decorrente da Concorrência nº 01/2011. Disponível em: xxxx://xxx.xxx.xx.xxx. br/projetos/contratos-assinados/independencia. Acesso em: 3 ago. 2022.
27 Contrato nº 01/2021, do estado do Piauí. Disponível em: xxxx://xxx.xxx. xx.xxx.xx/xxxxxxxx/xx-xxxxxxx/xxxxxxx/0000/00/XXXXXXXX-_XXXXXX-XX- CONVEN%C3%87%C3%95ES.pdf. Acesso em: 3 ago. 2022.
28 Concorrência nº 02/2020, ainda em licitação. Documentos disponíveis em: xxxxx://xxxxxxxx. xxx.xx.xxx.xx/xxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxxxx.xxxxx?xxx000000. Acesso em: 3 ago. 2022.
29 A concessão de direito real de uso de bem público é regulada, no âmbito federal, pelo Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, que confere ao seu titular, ao contrário do que ocorre em concessões de uso de bens públicos ou concessões de obra, um direito real, sendo destinada aos “fins específicos de regularização fundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outras modalidades de interesse social em áreas urbanas” (BRASIL. Decreto-Lei n. 271, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre loteamento urbano, responsabilidade do loteador, concessão de uso e espaço aéreo e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2460, 28 fev. 1967, art. 7º).
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Da mesma forma como não faz qualquer sentido, por mera aplicação literal do comando contido no artigo 105, caput, da Lei Federal nº 14.133/2021, exigir, para que se admita a celebração de contratos de concessão de uso de bens públicos com vigência superior a um exercício financeiro, que haja previsão no plano plurianual do planejamento de alocação de créditos orçamentários para essa finali- dade, quando a lógica econômica desses contratos possa demonstrar a dispensabilidade do emprego de recursos públicos para sua viabilização, possibilitando inclusive a cobrança de outorga do concessionário do bem público, igualmente não guarda qualquer racionalidade exigir que a Administração Pública, de modo inafastável, reserve para si o direito de exercer as prerrogativas previstas nos artigos 137 e seguintes da Lei Federal nº 14.133/2021, sem que possa, no exercício de autolimitação dos poderes que a lei lhe assegura, optar por previsão contratual de regime jurídico que lhe confere prerrogativas menos amplas, porém mais compatíveis com a estrutura jurídica e econômica do negócio jurídico pretendido.
A adoção contratual, por exemplo, da disciplina prevista na Lei Federal nº 8.987/95 para a extinção de contratos de concessão de servi- ços públicos, nada mais significa do que a assunção, pela Administração Pública, de compromissos quanto à forma de cálculo de indenização nas diversas hipóteses de extinção antecipada do contrato, premissa esta que, relativamente às extinções motivadas por ato da Administração Pública, apenas detalha a norma contida no artigo 138, § 2º, da Lei Federal nº 14.133/2021 e, no que diz respeito às extinções motivadas por ato atribuível ao concessionário, confere concretude contratual ao princípio jurídico que veda o enriquecimento indevido de qualquer parte contratante, expressamente previsto no artigo 884 do Código Civil, e amplamente reconhecido como igualmente aplicável no âmbito do direito administrativo30. Ademais, estabelece compromissos quanto à observância de condições específicas para o exercício da prerrogativa de extinção unilateral do contrato administrativo por interesse público, definindo contratualmente que essa prerrogativa somente poderá ser exercida após a obtenção de autorização legislativa específica e prévio pagamento do montante calculado da indenização.
30 Nesse sentido, XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx de. Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 319.
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Trata-se de previsões contratuais que, sem contrariar qualquer disposição da legislação aplicável, adaptam o regime jurídico geral aplicável às licitações e contratações públicas aos aspectos peculiares desse modelo contratual, os quais demandam garantias mais incisivas em favor do parti- cular para gerar a segurança jurídica necessária à atração dos investimentos privados que constituem o cerne dessa espécie de contratação pública.
3. PECULIARIDADES NA DISCIPLINA CONTRATUAL DE CONTRATOS DE CONCESSÃO DE USO DE BENS PÚBLICOS
Superado o tema relativo à legislação aplicável a essa espécie de contratos administrativos e demonstrados os aspectos que muito os aproximam dos contratos de concessão de serviços públicos, faz-se necessário apresentar os elementos que, por outro lado, distinguem sensivelmente essas espécies contratuais e, como consequência, tecer algumas considerações quanto às peculiaridades do modelo de concessão de uso de bens públicos que demandam grande atenção por parte dos responsáveis pela estruturação desses projetos.
Uma primeira distinção importante para compreender as peculiaridades desse modelo contratual é que nas concessões de serviços públicos, em regra, há uma maior rigidez, contratualmente estabelecida, quanto ao serviço público que deva ser prestado pelo concessionário, quanto à forma de sua exploração, e quanto aos investimentos mínimos que devam ser realizados para a prestação do serviço adequado, restrições estas que encontram fundamento na essencialidade do serviço público à população, demandando diretrizes menos flexíveis quanto às características mínimas do que deva ser ofertado aos usuários.
Já nas concessões de uso de bens públicos, ao menos ordinariamente, inexiste propriamente um serviço público prestado à população, mas um ativo público que, ainda que eventualmente destinado, total ou parcialmente,a alguma atividade de interesse público31,pode ser explorado economicamente com maior liberdade contratual pelo concessionário,
31 Temos como exemplos, no estado de São Paulo, a concessão de uso do Zoológico e do Jardim Botânico de São Paulo, e a concessão de uso do Complexo Constâncio Vaz Guimarães, ambas relativas a imóveis em que é explorada atividade relevante para o interesse público, com equipamentos voltados ao esporte, lazer, ou complemento educacional.
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desde que atendidas as premissas fixadas em contrato com o objetivo de assegurar a preservação da destinação de interesse público almejada pela política pública definida para o local.
Há, naturalmente, situações em que concessões de uso de bens públicos estarão inseridas em contexto de promoção de políticas públicas que demandarão maior rigidez na definição das premissas de exploração do imóvel, da mesma forma que determinados serviços públicos podem, eventualmente, ser prestados em ambiente de maior flexibilidade con- tratual. Imaginando-se, todavia, os tipos ideais contratuais, a experiência prática demonstra que, em regra, concessões de uso de bens públicos são estruturadas com regras contratuais menos rígidas, e essa característica, embora não essencial ao modelo contratual, traz implicações práticas que devem ser compreendidas pelos atores públicos responsáveis pela estrutu- ração do projeto, para adequada disciplina contratual.
Outra distinção, de significativo relevo, diz respeito à forma de definição dos preços para os serviços prestados pelo concessionário.
Nas concessões de serviços públicos, até mesmo em função do quanto determinado no artigo 6º da Lei Federal nº 8.987/95 sobre a modicidade tarifária almejada para esses serviços, as tarifas passíveis de cobrança pelo concessionário são, em regra, determinadas em contrato, quer por meio de valores fixos e preestabelecidos, quer mediante regime de limites máximos ao valor da tarifa que possa ser fixada pelo concessionário, conferindo-lhe liberdade para, observado esse limite, definir preços em função de variáveis como dias da semana, horários, perfis de usuários etc.
Já nas concessões de uso de bens públicos, ordinariamente o con- trato é estruturado em um regime de liberdade, total ou parcial, para que o concessionário fixe os preços pelo uso das diversas atividades passíveis de cobrança na exploração econômica do imóvel público. Embora o regime contratual de cada projeto tenha suas particularidades32, ao menos
32 Nas mais recentes concessões de uso de bens públicos estaduais, o estado de São Paulo optou por assumir como premissa, em qualquer projeto, a liberdade de fixação de preços pelo concessionário. Não obstante, em alguns projetos exigiu a prática de gratuidades ou descontos tarifários para determinadas classes de usuários, com foco em aspectos sociais e de estímulo à educação ambiental, a exemplo do projeto de concessão de uso do Zoológico e do Jardim Botânico de São Paulo (vide Anexo XXIII) e dos projetos de concessão de uso do Parque Estadual Serra do Mar (projeto “Caminhos do Mar” – vide Anexo IX), e do Parque
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para parcela das atividades econômicas exploradas no ativo público é comum que se confira, contratualmente, liberdade ao concessionário para fixar os preços para os serviços prestados aos usuários.
Nesses contratos é comum, ademais, que ao menos parcela das ativi- dades econômicas exploradas pelo concessionário ocorram em ambiente de competição com outros agentes econômicos atuantes no mesmo setor.
Essas características, igualmente, trazem implicações bastante rele- vantes para a estruturação desses projetos, o que será detalhado adiante.
3.1. Flexibilidade contratual na definição das atividades econômicas exploradas no bem público, da forma de exploração e dos investimentos a serem realizados
A primeira característica já mencionada, observada na maioria dos contratos de concessão de uso de bens públicos, e em alguns contra- tos de concessão de serviços públicos, é a de um ambiente de maior flexibilidade para que o concessionário decida quais serviços ou ativida- des econômicas que explorará no imóvel público objeto de concessão, a forma de exploração dessas atividades e os investimentos necessários para viabilizá-las.
A maior flexibilidade contratual decorre da percepção de que, em alguns projetos, não há imperativo de interesse público na determinação, ex ante, de quais são os serviços e atividades que devam, obrigatoriamente, ser prestados em determinado local, ou de uma única forma de realizá-lo. Ao contrário, há a compreensão de que, em muitos casos, o concessionário, ofertante de significativa outorga fixa como condição para a assunção do contrato, já terá os incentivos econômicos adequados para explorar economicamente o ativo público da forma que lhe permita extrair o maior valor do bem, amortizando
Estadual da Cantareira e Xxxxxxx Xxxxxxx (vide Anexo IX). Já em outros projetos optou-se por exigir a oferta de determinadas atividades sem qualquer espécie de cobrança dos usuários, com liberdade na fixação de preços para o restante, a exemplo da gratuidade na fruição de equipamentos esportivos e de lazer no projeto de concessão de uso do Complexo Constâncio Vaz Guimarães (conforme exigência do artigo 4º, inciso IV, alínea “b”, da Lei Estadual nº 17.099/2019), ou da exigência de ingresso gratuito para a fruição dos parques urbanos Villa Lobos, Cândido Portinari e Água Branca.
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os investimentos realizados e proporcionando a rentabilidade almejada, o que costuma ocorrer por meio da realização de investimentos em nível eficiente, explorando o imóvel de modo capaz de gerar atratividade aos seus potenciais usuários, atratividade esta que, em alguns casos, traduz a própria premissa de interesse público que justifica a preservação do imóvel como integrante do patrimônio público.
Em outras palavras, na concessão de uso de um imóvel público em que está situado um centro de exposições, por exemplo, pode ser suficiente apenas exigir que, naquele imóvel, permaneçam sendo exploradas atividades relacionadas a exposições, convenções e eventos, sem determinar, em contrato, quais investimentos devam ser realizados para atingir aquela finalidade, ou quais as formas contratu- almente admissíveis para exploração do local33.
Naturalmente, não há nada que, conceitualmente, impeça que tal flexibilidade exista também nas concessões de serviços públicos, embora estas costumem demandar uma regulação mais rígida por parte do poder público para assegurar a prestação de serviço adequado à população, normalmente em razão da presença de uma relação de dependência entre o usuário e o serviço prestado, em função, sobretudo, do grau de essen- cialidade do serviço e da existência, ou não, de prestadores alternativos.
Não obstante, as considerações feitas a seguir têm como funda- mento as características do objeto contratual que possibilitam maior flexibilidade na exploração do empreendimento, e não são, portanto, determinadas em abstrato apenas pelo tipo contratual, de modo que se aquela flexibilidade se fizer presente também em determinada concessão de serviços públicos, as mesmas cautelas devem ser observadas.
Pois bem. Tal flexibilidade, embora inegavelmente permita alcançar uma das principais finalidades buscadas com o modelo concessório, de trazer à exploração de imóveis públicos a experiência e a maior espe- cialidade do setor privado, que pode vislumbrar formas de exploração
33 Vide, a esse respeito, as singelas diretrizes e restrições contidas no Anexo III do Edital de concessão de uso do centro de exposições Xxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxx (São Paulo Expo), que buscam apenas assegurar que no local sejam exploradas atividades com as características almejadas, sem impor ao concessionário uma única forma de exploração econômica do imóvel.
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econômica do bem público mais eficientes, também traz desafios que não podem ser ignorados na estruturação contratual, notadamente na regulação contratual das regras aplicáveis à reversão do imóvel público ao concedente, ao final da vigência do contrato.
Isso porque, como não se sabe quais os investimentos que serão, ao longo do tempo, realizados no imóvel público – eis que dependentes das decisões empresariais do concessionário quanto à forma de exploração desse bem, dentro das margens de liberdade que lhe sejam conferidas pelo contrato –, não há como, contratualmente, definir precisamente quais serão os bens que deverão reverter ao patrimônio público ao final da concessão, demandando, inevitavelmente, uma disciplina genérica que busque, conceitualmente, definir quais bens serão considerados como incorporados ao ativo público, e quais poderão ser retirados pelo concessionário.
Naturalmente, o concessionário buscará atuar de acordo com a alternativa que lhe proporcionar melhor rentabilidade, pois terá os incentivos econômicos para tanto. Inexistindo, por exemplo, regulação contratual que trate da matéria, pode preferir o emprego de estruturas temporárias, removíveis ao final da concessão, do que o investimento em infraestruturas fixas que acedam, fisicamente, ao imóvel público, caso compreenda que estas reverterão ao estado, e aquelas não.
A preocupação do poder público, nesse cenário, deve ser a de assegurar que, ao final da concessão, o bem público reverta à posse pública, para exploração direta ou nova concessão, em condições equivalentes às que vinham sendo utilizadas pelo concessionário para o exercício das atividades econômicas desempenhadas no local, de modo a viabilizar a continuidade da exploração econômica do imóvel público, sem alterações significativas exclusivamente em função do encerramento contratual. De outro lado, contudo, não há como se ignorar que determinadas atividades econômicas demandam, de fato, em deci- sões economicamente racionais, estruturas temporárias que permitam adaptar o local a usos distintos e não permanentes.
Cite-se, a título de exemplo, as necessárias adaptações em uma arena multiuso, como a prevista no projeto de concessão de uso do Complexo Constâncio Vaz Guimarães, a depender do tipo de evento
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realizado no local, substituindo-se equipamentos e estruturas adequadas a um evento esportivo por outras necessárias à realização, na sequência, de eventos musicais ou apresentações circenses. São mudanças que envolvem aspectos dos mais distintos, incluindo posicionamento de arquibancadas, sistemas de som e iluminação, estruturas de palco etc.
Como definir, nesses contratos, quais desses bens reverterão ao patrimônio público? Todos os distintos sistemas de som, iluminação e arquibancadas provisórias devem, necessariamente, reverter? E se o concessionário optar por explorar, no imóvel público, estrutura que jamais havia sido cogitada pela Administração Pública, de modo que, quanto a este uso, inexista viabilidade de uma definição contratual, antecipadamente, com tamanho nível de detalhamento?
É um desafio bastante significativo. Veja que, para esses assuntos, não basta a menção genérica, comum aos mais diversos contratos de concessão de serviços públicos, de que reverterão ao concedente aqueles bens, instalações e equipamentos “vinculados à concessão, incluindo aqueles transferidos à concessionária e os por ela adquiridos”34. Naturalmente, pode-se argumentar que todos os bens que, em algum momento, tenham sido empregados nas atividades desenvolvidas no bem público seriam, para fins dessa cláusula contratual, “vinculados à concessão”, embora igualmente seja possível argumentar que, não sendo tais bens incorporados, fisicamente, ao imóvel público, e sendo utilizados apenas pontualmente quando de determinadas atividades, não comporiam a estrutura física reversível ao patrimônio público ao final da concessão.
A despeito, portanto, das possíveis argumentações de parte a parte, é certo que o desejável é que o contrato discipline adequadamente a matéria, reduzindo os espaços para divergências entre as partes quando do encerramento contratual.
A disciplina da matéria é, conforme já mencionado, desafiadora. Não obstante, passo relevante parece ter sido dado pela minuta contratual
34 Essa expressão, com eventuais variações não dignas de nota, repete-se em inúmeros contratos de concessão de serviços públicos ou de concessão de uso de bens públicos. Representa, em alguma medida, previsão contratual análoga à norma contida no artigo 35, § 1º, da Lei Federal nº 8.987/95.
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submetida à consulta pública no projeto de concessão de uso do Complexo Constâncio Vaz Guimarães, cuja Cláusula Décima Quarta não apenas detalha, mais pormenorizadamente, quais bens serão compreendidos como reversíveis, de forma já adaptada à realidade daquela concessão específica35, assim como aqueles que não serão reversíveis36, mas também apresenta relevante disciplina a respeito das já mencionadas estruturas provisórias destinadas a eventos, indicando que estas não serão rever- síveis, salvo se tiverem permanecido instaladas no local “por período superior a 6 (seis) meses nos últimos 24 (vinte e quatro) meses de vigên- cia da CONCESSÃO”37.
Busca-se, com isso, endereçar a preocupação de que o concessio- nário, querendo furtar-se à reversibilidade de determinada estrutura de eventos, retire do imóvel público no momento da reversão estrutura que, embora não acedida fisicamente ao imóvel, tenha sido constantemente utilizada ao longo do período final da concessão, demonstrando sua utilidade para a prestação futura dos serviços.
Não há, note-se, disciplina contratual que vá se mostrar adequada para todos os projetos, mas há maneiras de avançar no detalhamento do tema, embora com cautelas para não criar regulação incompatível com a própria flexibilidade de investimentos concebida para o projeto. Para tanto, recomenda-se que o contrato reconheça que os agentes econômicos, invariavelmente, atuarão de acordo com os incentivos a que são submetidos, condição esta que pode ser explorada na regulação contratual de modo a identificar situações em que os
35 A Cláusula 14.1, inciso (ii), por exemplo, arrola dentre os bens reversíveis “a infraestrutura permanente e fixa (cabeamento, quadros de distribuição, pontos de conexão, etc.) e respectivos componentes hidráulicos, rede de tecnologia da informação, elétrica, de som, de imagem e de iluminação”, “os sistemas e equipamentos de climatização, hidráulico e de energia”, “os sistemas de tecnologia da informação, incluindo equipamentos de circuito fechado de TV (CFTV), painéis de mensagens dinâmicas e sistema de comunicação por áudio” e “equipamentos eletrônicos parte das edificações” (SÃO PAULO. Anexo I: contrato de concessão de uso de bem público conjunto desportivo “Constâncio Vaz Guimarães”. São Paulo: Secretaria de Esportes do Estado de São Paulo, 2020, p. 30), demonstrando maior atenção quanto a aspectos que poderiam suscitar divergências futuras de interpretação contratual, em relação à recorrente menção genérica àqueles bens e equipamentos “vinculados à concessão”.
36 Conforme Cláusula 14.2.
37 Ibidem, p. 31.
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incentivos econômicos possam levar o concessionário a adotar posturas incompatíveis com o interesse público. Em tais situações, será necessário um regramento específico no contrato para conduzir o comportamento à direção almejada.
As cláusulas contratuais relativas à reversibilidade de bens, portanto, devem ser redigidas de modo a, de um lado, conferir ao concessionário a segurança jurídica quanto ao que, ao final, será exigido em termos de reversibilidade, permitindo-lhe formular propostas com ciência quanto à possibilidade, por exemplo, de uso de estruturas efetivamente provisórias na exploração de determinados serviços ou atividades, assegurando que tais estruturas não serão posteriormente assumidas como reversíveis e, portanto, evitando impor-lhe ônus não conhecido quando da formulação de sua proposta. De outro lado, deve conter meca- nismos capazes de evitar que o concessionário se furte, mediante artifícios como o desmonte de estruturas utilizadas ao longo de período relevante do projeto, à reversibilidade de bens utilizados ao longo da concessão para a exploração econômica do imóvel, os quais podem ser tomados pela Administração Pública como úteis ou imprescindíveis à continuidade da exploração do ativo público revertido.
3.2. Impactos do regime de liberdade de preços e da atuação em ambiente concorrencial
Conforme já mencionado, aspecto bastante comum em conces- sões de uso de bens públicos, embora não seja inerente e essencial ao modelo contratual, é o fato de ser conferida, ao concessionário, liberdade para fixação dos preços cobrados dos usuários em razão dos serviços prestados e das demais atividades econômicas exploradas no local. Essa característica, em regra, vem acompanhada da inserção do objeto da concessão em um contexto concorrencial, que inclusive promove as forças de mercado que viabilizam a própria previsão dessa liberdade na fixação de preços pelo concessionário.
Não obstante as concessões de serviços públicos, em sua maioria, tenham por objeto serviço prestado sobre infraestrutura essencial, o que impõe intensa regulação estatal para corrigir as falhas de mercado potencialmente decorrentes da atuação de concessionários em regime
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de monopólio natural, não há qualquer incompatibilidade conceitual entre concessões de serviços públicos e um regime de liberdade de preços, sendo possível identificar alguns setores em que a atuação do concessionário sofre, em alguma medida, significativos efeitos de forças concorrenciais38, o que poderia, em tese, justificar projetos em que inexista regulação das tarifas por parte do poder concedente.
De todo modo, quer nesses peculiares projetos de concessão de serviços públicos em que inexiste determinação de patamar tarifário, quer em boa parcela das concessões de uso de bens públicos nas quais é con- ferida liberdade contratual para fixação dos preços, essa característica traz implicações de extrema relevância para a modelagem contratual, em especial quanto à alocação de riscos entre as partes e quanto às formas de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
Em linhas gerais, a modelagem contratual, como um todo, deve ser adaptada à própria circunstância de a atividade econômica desenvolvida pelo concessionário ocorrer em um ambiente concorrencial, e ao fato de o concessionário já possuir, contratualmente, autorização para variar os preços praticados nos serviços à luz das forças concorrenciais de mercado, das variações de demanda e das diversas circunstâncias supervenientes à contratação, liberdade esta inexistente nas concessões em que os preços ou tarifas são contratualmente determinados pelo poder concedente.
A título de exemplo, diversas das garantias contratualmente conferidas aos concessionários de serviços públicos, a exemplo do direito ao reequilíbrio econômico-financeiro diante de alguns even- tos supervenientes, somente encontram fundamento lógico na circunstância de que tais concessões, com a tarifa fixada e controlada pelo poder concedente, não conferem ao concessionário mecanismos aptos a suportar, sem desequilíbrio contratual, a superveniência desses eventos. O concessionário, em regra, encontra-se impedido pelo contrato de, por decisão própria, repassar aos preços eventuais aumentos de
38 Vide, por exemplo, as infraestruturas aeroportuárias voltadas à aviação regional, cujos serviços de aviação regular concorrem, em larga medida, com alternativas de deslocamento rodoviário disponíveis ao usuário, gerando alguma elasticidade da demanda em função de variações nos custos das passagens aéreas.
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custo, de modo que se atribui ao poder concedente a decisão de autorizar tal repasse, mediante reequilíbrio econômico-financeiro por aumento de tarifas, ou de suportar esse aumento de custo por meio de outros mecanismos, em prol da modicidade tarifária, a exemplo de indenizações ou prorrogação do prazo da concessão.
Todos os agentes econômicos, qualquer que seja o setor de atuação, estão sujeitos à influência de fatores que possam, de modo mais ou menos previsível, afetar os custos e a expectativa de rentabilidade da atividade econômica que exercem. Entretanto, ao contrário dos concessionários de serviços públicos, com tarifa regulada pelo poder concedente, tais agentes econômicos possuem, em regra, ampla liberdade para fixar os preços cobrados dos contratantes de seus serviços, de modo que, ainda que premidos por circunstâncias de mercado e fatores concorrenciais, podem repassar a tais preços eventuais variações nos custos de suas atividades.
Essa variabilidade de preços, em face da variação de custos, constitui mecanismo extremamente relevante para o funcionamento do mercado concorrencial, e qualquer elemento capaz de interferir no seu funciona- mento deve ser avaliado em função de seus impactos concorrenciais.
Vide, exemplificativamente, a garantia legal, prevista no artigo 9º, § 3º, da Lei Federal nº 8.987/95, que, conforme normal- mente interpretada, asseguraria o reequilíbrio econômico-financeiro de qualquer contrato de concessão de serviços públicos na hipótese de “criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta”39, de comprovado impacto sobre a concessão.
Trata-se de previsão semelhante à encontrada no artigo 65,
§ 5º, da Lei Federal nº 8.666/93, e no artigo 134 da Lei Federal nº 14.133/2021, ambos comumente lidos como responsáveis por asse- gurar, nos contratos celebrados pela Administração Pública, o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro na hipótese de ocorrer, “após a data
39 BRASIL. Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1917, 14 fev. 1995, art. 9º.
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da apresentação da proposta, criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais ou a superveniência de disposições legais, com comprovada repercussão sobre os preços contratados”40.
Ocorre que tais dispositivos legais não asseguram o direito, irrestrito, ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, impondo a alocação contratual desse risco, inevitavelmente, ao poder concedente. Ao contrário, todos os dispositivos legais citados apenas determinam que, na ocorrência dessa alteração da legislação tributária, os preços contratados (no caso das Leis Federais nº 8.666/9341 e 14.133/202142) ou a tarifa (no caso da Lei Federal nº 8.987/9543) deverão ser alterados ou revistos, para mais ou para menos, de modo a neutralizar o impacto da variação tributária.
Ora, em concessões que tenham por premissa a liberdade contratual do concessionário para fixação de preços, não há sequer esse elemento de preços contratados ou de tarifas, que possam ser revistos ou alterados em razão da alteração da legislação tributária. Ao revés, ao concessionário já é conferida liberdade contratual para a fixação dos preços cobrados dos destinatários de sua atividade econômica, o que lhe permite, a seu critério e sujeito às eventuais forças concorrenciais, variar os preços praticados para fazer face à nova realidade de incidência tributária sobre suas atividades.
40 BRASIL. Lei nº 14.133, de 1 de abril de 2021. Lei de licitações e contratos administrativos.
Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1-23, 1 abr. 2021, art. 134.
41 “Artigo 65 […] §5º – Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso” (BRASIL. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da administração pública e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 8369, 22 jun. 1993, art. 65, grifo nosso).
42 “Artigo 134 – Os preços contratados serão alterados, para mais ou para menos, conforme o caso, se houver, após a data da apresentação da proposta, criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais ou a superveniência de disposições legais, com comprovada repercussão sobre os preços contratados” (BRASIL, 2021, art. 134, grifo nosso).
43 “Artigo 9º, § 3o – Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a apresentação da proposta, quando comprovado seu impacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para menos, conforme o caso” (BRASIL, 1995, art. 9º, grifo nosso).
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Diante desse contexto, atribuir ao poder concedente, nesses projetos, o risco de variação da legislação tributária acaba por gerar significativas distorções na regulação contratual e, adicionalmente, potenciais impactos no contexto concorrencial em que está inserido o projeto. Isso porque alterações na legislação tributária não são específicas para determinado projeto, mas impactam todos os agentes econômicos atu- antes no mesmo setor.
Assim, impactados por eventual elevação na carga tributária, por exemplo, os agentes econômicos concorrentes do concessioná- rio terão de suportar tais tributos e incorporá-los em sua realidade econômica, quer elevando os preços cobrados de seus consumidores ou usuários, quer suportando tal impacto mediante redução da lucratividade da atividade, na hipótese de inviabilização de repasse aos preços.
Caso assegurado ao concessionário, diante dessa realidade, o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro do contrato, neutralizando por algum mecanismo decidido pelo poder concedente o impacto econômico-financeiro decorrente da alteração da legislação tributária, esse concessionário deixaria de suportar o impacto resultante dessa elevação da carga tributária, de modo que lhe seria conferida vantagem concorrencial não extensível aos demais atores atuantes no segmento.
Em termos práticos, diante de tal reequilíbrio decorrente da altera- ção da legislação tributária, caso todos os atores econômicos, incluindo o concessionário, elevassem os preços, isso resultaria em maior renta- bilidade para o concessionário, em relação aos concorrentes. Por outro lado, caso nenhum dos atores, incluindo o concessionário, repassasse tais aumentos da carga tributária aos preços, isso reduziria as margens de rentabilidade dos concorrentes, em relação ao concessionário. Por fim, caso todos os concorrentes decidissem por repassar o aumento de custos aos preços, e o concessionário persistisse praticando preços não onerados pela elevação da carga tributária, ele teria uma vantagem competitiva artificial frente aos concorrentes.
Em realidade, ao definir, contratualmente, um regime de liberdade na fixação de preços por parte do concessionário, o poder concedente já está, antecipadamente, anuindo com o livre exercício, pelo conces- sionário, da prerrogativa de variação dos preços praticados em função
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dos serviços prestados, de modo que passa a se revelar inaplicável a determinação legal de revisão dos preços contratados, ou da tarifa, em decorrência de mudanças na legislação tributária.
O mesmo, aliás, deve ser dito com relação a outros potenciais eventos supervenientes cujos impactos não sejam específicos à concessão, mas ocorram sobre todo o setor econômico em que está inserido seu escopo, a exemplo do risco habitualmente denominado de fato do príncipe, caracterizado por constituir uma determinação estatal de caráter geral, cujos impactos não são específicos à concessão, mas afetam toda a economia ou determinado setor econômico, de maneira que suas consequências, em regra, devem ser suportadas pelo concessionário, a partir de sua liberdade de fixação dos preços para seus serviços, da mesma forma que o farão todos os demais concorrentes atuantes no mesmo segmento.
Outra peculiaridade de considerável importância, igualmente presente nesses projetos em que é conferida ao concessionário a prerrogativa, total ou parcial, de fixação dos preços para os serviços, diz respeito aos mecanismos adequados para o reequilíbrio econômico-
-financeiro desses contratos, quando devido.
Para os contratos que contemplem plena liberdade ao concessionário para fixação dos preços, não parece haver maiores dificuldades, eis que evidente a impossibilidade de emprego, dentre os mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro, de alternativas relacionadas à variação no valor dos preços ou tarifas contratuais, inexistentes nesse modelo contratual.
O desafio reside, entretanto, nos contratos em que essa liberdade de fixação de preços é limitada pelo próprio contrato, notadamente em contratos que prevejam limites máximos para os preços praticados pelo concessionário.
Nesses contratos, o uso como mecanismo de reequilíbrio econômico-
-financeiro da alteração desses limites quanto aos preços que possam ser praticados, é alternativa bastante delicada, que somente pode ser utilizada em circunstâncias muito específicas, e com a devida cautela, tanto em razão da potencial ineficácia da medida para fins de efetivo reequilíbrio contratual, quanto em razão de potenciais impactos concorrenciais do uso inadequado do mecanismo.
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Imagine-se, a título de exemplo, uma concessão de infraestrutura aeroportuária com perfil de atendimento de voos regulares regionais, cuja demanda responda, em alguma medida, às alternativas de desloca- mento proporcionadas por transporte rodoviário, e cujo contrato estabeleça regime de livre fixação das tarifas, observado o teto tarifário contratual44.
Na hipótese de, por força de estratégia empresarial ou de imposições concorrenciais, o concessionário praticar tarifas em valores inferiores ao teto tarifário contratual, a elevação do teto tarifário como ferramenta para reequilíbrio contratual não traria qualquer efeito econômico-financeiro efetivo sobre seu fluxo de caixa, apenas elevando o limite contratual de preços que, em tese, poderiam ser praticados, mas que não o são em razão, por exemplo, de pressões concorrenciais.
Do mesmo modo, há que se considerar que ainda que o concessionário esteja praticando tarifas equivalentes ao teto tarifário, e que haja margem para elevação dessas tarifas sem perda significativa de demanda, viabilizando, em consequência, que a elevação do teto tarifário gere os almejados efeitos sobre o fluxo de caixa da concessão, reequilibrando o contrato, esse reequilíbrio demanda a projeção dos efeitos dessa elevação tarifária por todo o prazo futuro da concessão, e não há como se assegurar que, ao longo de todo esse prazo restante, o mesmo cenário de conforto concorrencial subsista, de modo a permitir que o concessionário persista praticando preços em patamar equivalente ao teto tarifário sem que tenha de, em algum momento, reduzi-los em virtude do surgimento de alternativas de deslocamento dos usuários de seus serviços.
Esses exemplos demonstram como a variação no valor do teto tarifário pode, em determinadas circunstâncias, não constituir mecanismo apto ao efetivo reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão submetidos a tal regime de fixação dos valores das tarifas. Não é por outra razão que, no estado de São Paulo, na con- cessão do serviço público de exploração dos complexos aeroportuários (Bloco Noroeste e Bloco Sudeste), licitada em 2021, optou-se por
44 Foi esse o regime adotado, na Concorrência Internacional nº 01/2021, nos dois lotes de concessão dos complexos aeroportuários (Bloco Noroeste e Bloco Sudeste) do estado de São Paulo. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx.xxx.xx/Xxxxxxxxx/Xxxxxxxx/Xxxxxxxx/000. Acesso em: 3 ago. 2022.
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restringir o uso desse mecanismo, exclusivamente, à hipótese de decisão consensual entre poder concedente e concessionário, excluindo-o do rol de mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro que possam ser eleitos, unilateralmente, pelo poder concedente45.
Por fim, um último ponto digno de nota, quanto a esses contratos de concessão de serviços públicos submetidos a regime de teto tarifário, quando inseridos em ambiente efetivamente concorrencial, é que, em tese, a eles são aplicáveis as mesmas considerações apresentadas anteriormente quanto à alocação de riscos relativos a eventos supervenientes que atinjam todo o setor econômico em que são praticadas as atividades em regime de concorrência.
Todavia, ao contrário das concessões com preços livres, em que o adequado, conforme referido acima, é a alocação desses riscos ao concessionário, eis que lhe é outorgada a prerrogativa de fixação dos preços para os serviços prestados, nas concessões de serviços públicos submetidos a regime de teto tarifário a recomendação é de atribuição desses riscos ao poder concedente, com a peculiaridade, entretanto, de que deve ser contratualmente definido que tais riscos, se materializados, deverão obrigato- riamente ser reequilibrados mediante variação no valor do teto tarifário. Isso permite simular, para esses contratos, o comportamento de repasse aos preços dos usuários usualmente observado nas demais atividades econômi- cas impactadas pelos mesmos eventos de elevação dos custos, preservando, portanto, o equilíbrio concorrencial.
4. CONCLUSÃO
O presente artigo trouxe uma análise sobre o regime jurídico aplicá- vel aos contratos de concessão de uso de bens públicos, buscando mostrar a inadequação da aplicação irrestrita a esses contratos da legislação geral de licitações e contratações públicas, ignorando as similaridades entre tais contratos, quando complexos e de longo prazo, e os contratos de concessão de serviços públicos. Defende-se, diante desse contexto, a aplica- ção analógica de alguns preceitos da Lei Federal nº 8.987/95, nos pontos em que a Lei Federal nº 8.666/93 e a Lei Federal nº 14.133/2021 se
45 Conforme Cláusulas 23.1 e 23.2 da minuta de contrato.
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 96: 366-396, jul./dez. 2022
mostram absolutamente incompatíveis com a lógica econômica e jurídica desses contratos complexos de concessão de uso de bens públicos, notadamente quanto à regulação jurídica de sua extinção antecipada.
Demonstrada a similaridade desses contratos com as concessões de serviços públicos, e definida a legislação aplicável, foram apresentados, por outro lado, os aspectos que distinguem esses modelos contratuais, e que precisam ser adequadamente compreendidos quanto às suas consequências, de modo a não conduzir a distorções na regulação contratual, ou mesmo no ambiente concorrencial em que é inserida a atividade econômica desenvolvida no ativo público.
Foram apresentadas, assim, as peculiaridades comumente encontradas nos contratos de concessão de uso de bens públicos. Tais peculiaridades são, de um lado, representadas por uma maior liberdade e flexibilidade na definição, pelo concessionário, das atividades econômicas que serão desempenhadas no bem público concedido, da forma de exploração dessas atividades e dos investimentos necessários para realizá-las, o que traz significativos impactos na disciplina contratual de reversão dos bens empregados na concessão. De outro lado, nesse modelo contratual costuma ser observada uma ampla liberdade de fixação de preços pelo concessionário, o que, por sua vez, traz consideráveis consequências nas premissas de alocação de riscos do contrato, demandando a alocação, ao concessionário, de riscos tradicionalmente alocados ao poder concedente em concessões de serviços públicos, a exemplo dos riscos de alteração da legislação tributária e de ocorrência de fato do príncipe.
Com as considerações apresentadas neste artigo, buscou-se demons- trar que os modelos contratuais de concessão de serviços públicos e de concessão de uso de bens públicos de fato assemelham-se em diversos aspectos, demandando uma disciplina legal e contratual harmoniosa e condizente com as características estruturais dessas formas de contratação do poder público. Não obstante, possuem significativas diferenças entre si, que, se não decorrem direta e inequivocamente dos modelos contratuais em abstrato, derivam da forma como eles costumam ser estruturados con- cretamente nos diversos entes federativos, diferenças estas que impõem adaptações na disciplina contratual de modo a não desnaturar a capaci- dade do próprio modelo contratual eleito pelo poder público de promover a política pública pretendida.
THIAGO MESqUITA NUNES
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