A Evolução da Responsabilidade
A Evolução da Responsabilidade
Civil e dos Contratos no Direito Francês e no Brasileiro *
Arnoldo Wald
Advogado. Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris, Professor Catedrático de Direito da UERJ.
I. INTRODU ÃO
1. Quero inicialmente manifestar minha profunda emoção pelo fato de estar voltando à Escola da Magistratura, cu¡o nascimento acom- panhei, e ao Tribunal do Rio de Janeiro, onde iniciei a minha vida profis- sional, há mais de meio-século, e no qual tenho tido o prazer de militar como advogado durante mais de cinqüenta anos tendo, ainda, exerci- do os cargos de Procurador do Estado e de Procurador Geral da Justi- ça. Reencontro aqui amigos da mocidade, companheiros de faculdade e, ao lado deles, magistrados, advogados e estudantes bem mais ¡o- vens, mas que participam do nosso entusiasmo pelo aprimoramento do direito e da nossa luta por uma ¡ustiça eficiente, moderna e eqüitativa.
2. Também me regozi¡o por tratarmos aqui do direito compara- do, que aproxima as nações e os homens numa fase de globalização, sendo um instrumento "indispensável para o progresso ¡urídico dos di- versos países, oferecendo a possibilidade de utilizar, cada qual, as ex- periências alheias".1 É, em certo sentido, a geografia do direito, que, con¡untamente com a história, nos permite uma melhor compreensão do direito vigente e a criação de uma linguagem ¡urídica internacional cu¡o conhecimento se impõe cada vez mais num mundo em que as distâncias desapareceram.
3. O bicentenário do Código Civil Francês é também comemora- do, no mundo inteiro, tendo em vista a sua importância histórica e a sua
* Palestra realizada na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro no dia 04.06.2004
1 XXXXXX XXXXXXXXXX, Problemas das sociedades anônimas, 1969, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 4.
divulgação mundial a qual fez Xxxxxxxx afirmar que mais do que suas batalhas o que ficaria da sua atuação como estadista seria o seu Código. Além disso, representa para os meios ¡urídicos europeus, um momento de reflexão quanto à atualidade do Código e à sua necessidade de revisão.
4. Ao mesmo tempo, examinando a influência que exerceu no mundo, e pensando ¡á não mais tão-somente no passado, mas tam- bém no presente e no futuro, examina-se, no velho mundo, os novos Códigos inclusive o nosso Código Civil de 2002.
5. Podemos, assim, falar num verdadeiro redescobrimento da América Latina no campo do direito. Cinco séculos após as viagens de XXXXXXXXX XXXXXXX e de XXXXX XXXXXXX XXXXXX, que revelaram aos euro- peus a existência de um continente por eles desconhecido, passa a ha- ver, no mundo inteiro, em 2004, por ocasião do bicentenário do Códi- go Napoleão, a consciência de existir um direito latino-americano, que merece ser conhecido, estudado e divulgado.
6. Passamos, assim, de uma posição unilateralista ao multilateralismo, procurando-se estudar não só a influência do direito francês no Brasil, mas também a contribuição que o direito brasileiro pode dar à ciência ¡urídica do Velho Mundo. É o que se discutiu, pela primeira vez, em Paris, no Senado francês e na Faculdade de Direito de Paris, em inícios do corrente ano, começando-se uma nova forma de diálogo ¡urídico entre o Brasil e a França, que continua ho¡e, na Escola da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
7. É, aliás, a primeira manifestação das celebrações do bicentenário, com a colaboração de ¡uristas e magistrados franceses e brasileiros, que será sucedida por outra a ser realizada em Brasília, no Superior Tribunal de Justiça, abrangendo tanto a magistratura quanto a classe dos advogados, a Universidade e o Ministério Público.
8. Feita essa breve introdução, examinarei as condições em que foram elaboradas os Códigos Civis, na França e no Brasil, e em seguida a evolução da responsabilidade civil e dos contratos, nos dois países.
II. O CÓDIGO CIVIL FRANCÊS
9. Numa comemoração do bicentenário do Código Civil Fran- cês, não se pode deixar de lembrar, em algumas palavras, o que ele representou, fazendo breves comparações com os nossos dois Códigos Civis, de 1916 e de 2002, para em seguida salientar as suas repercus- sões no regime dos contratos e da responsabilidade civil.
10. XXXXXXXX, que foi um dos seus principais co-autores, chegou a dizer que a aprovação do Código Civil foi um dos maiores bens que os homens se possam dar e receber. Na realidade, após a Revolução Fran- cesa e a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cida- dão, faltava transformar os novos princípios políticos que passaram a reger a sociedade em normas específica, elaborando-se uma verdadei- ra constituição civil da França, à qual alude CARBONNIER, para substituir as normas vigentes no regime feudal que tinham sido revogadas.
11. É preciso lembrar que a monarquia tinha sido abolida, a no- breza tinha perdido os seus direitos, os bens nacionais tinham sido alie- nados pelo Estado a uma nova classe de proprietários e a propriedade tinha passado a ser exclusiva, deixando de existir o chamado anfiteatro enfiteutico, que identificava o poder político e os direitos sobre os bens. Era um mundo novo que se criava "baseado nos direitos de liberdade, de propriedade e de contratar".
12. Pretendeu-se, assim, superar o caos legislativo anteriormente exis- tente mediante a elaboração de um corpo de leis nacionais, uniformes, coerentes e harmônicas "destinadas a dirigir e fixar as relações de sociabi- lidade, família e interesses que as pessoas têm uma com as outras".
13. Superava-se, outrossim, a dualidade dos direitos então exis- tente na França entre o direito escrito e o direito costumeiro, cada um deles vigente numa parte do território francês, fazendo-se, pois, tam- bém do Código, um elemento de formação da nacionalidade.
14. Embora a idéia do Código tivesse sido bem discutida bem anteriormente, a sua elaboração realizou-se em quatro anos, propon- do-se os seus autores a adaptação das antigas tradições ¡urídicas às novas idéias, num diploma inovador na forma, mas relativamente con- servador no conteúdo. Nele viu-se um instrumento político para organi- zar uma nova sociedade e tal fato explica o interesse pessoal de XXXXXXXX XXXXXXXXX que compareceu a 55 das 107 sessões em que o pro¡eto foi discutido no Conselho de Estado.2
15. Embora inspirado nos princípios da Revolução Francesa, ou se¡a na liberdade, igualdade e fraternidade, o Código deu muita impor- tância ao regime dos bens, destinando-se, no fundo, aos proprietários, casados, chefes de família e donos de empresa – embora ainda
2 XXXXXX XXXXXXXX, Le plus grand bien, 2004, Paris, Fayard, p. 57.
artesanais na época – consagrando o princípio da autoridade. Autori- dade do pai sobre os filhos, do marido sobre a mulher, do dono na gestão dos seus bens, do patrão sobre o assalariado.
16. Operou-se, assim, o que os economistas denominaram a "destruição criadora", pondo fim a muitos institutos do antigo regime e criando-se um novo sistema ¡urídico que, embora com muitas modifica- ções, iria perdurar por mais de dois séculos, salientando-se que, dos seus 2.281 artigos, 1.200 estão em vigor ainda ho¡e, com a sua reda- ção inicial.3
17. Assim, enquanto a França mudou várias vezes de regime político e teve muitas constituições, manteve nas suas grandes linhas o seu Código Civil de 1804, como garantia básica do cidadão.
18. Embora evidentemente muito diferentes as situações que ocor- reram na França e no Brasil, os nosso dois Códigos Civis também surgi- ram logo após grandes transformações sofridas pela sociedade, que não mais podia subsistir no caos e labirinto ¡urídico decorrentes de nor- mas conflitantes, elaboradas em várias épocas sem que se soubesse o que estava ainda realmente em vigor. Cabe outrossim reconhecer que houvera uma importante mudança de escala de valores, exigindo uma reformulação não só da redação mas também do espírito das leis civis,abrangendo, em particular mas não exclusivamente os contratos e a responsabilidade civil.
19. Efetivamente, quando XXXXXX XXXXXXXXX foi incumbido, em 1899,
de redigir o pro¡eto de Código Civil, o Brasil acabava de sofrer, na déca- da anterior, duas grandes transformações. A Lei Áurea tinha abolido a escravidão em 1888 e, no ano seguinte, a República tinha sido procla- mada. Por outro lado, a sociedade brasileira estava sofrendo uma grande e rápida evolução econômica e social, com o nascimento da nossa pe- quena indústria e a criação de uma verdadeira classe média anterior- mente inexistente.4
20. Acresce que o direito privado se apresentava de forma caótica, não obstante a Consolidação das Leis de TEIXEIRA DE FREITAS e o Código Comercial de 1850, que, ambos no fim do século XIX, ¡á começaram a se tornar obsoleto.
3 Xxxxxx Xxxxxxxx, ob. cit., p. 13.
4 San Tiago Dantas, "Dois momentos de Xxx Xxxxxxx", conferências, Rio de Janeiro, publicação da Casa de Xxx Xxxxxxx, p. 16-17.
21. Podemos, assim, verificar uma certa correspondência históri- ca entre o Código Napoleão e o nosso de 1916, embora utilizassem formas de apresentação e terminologias técnicas distintas.
22. Um século depois, aprovamos o Código Civil de 2002, numa sociedade brasileira ¡á industrializada prevalecendo a população urba- na sobre a rural e imperando uma nova escala de valores decorrentes,em grande parte, da Constituição de 1988.
23. Por outro lado, antes do recente Código de 2002 havia um labirinto legislativo que se criara, em mais de oitenta anos, durante os quais as transformações mundiais superaram todas as previsões. Já no meio do século XX, a doutrina reconhecia que existiam no Brasil dois direitos paralelos: o do Código Civil que continuava a ser ensinado nas Faculdades e constava dos tratados e manuais ¡urídicos e, por outro lado, o das leis extravagantes e da ¡urisprudência. Havia, pois, a neces- sidade de uma reforma legislativa urgente que finalmente se conclui no início do nosso novo milênio.
24. Se o Código Civil de 1916 tinha princípios e regras que não se
afastavam muito dos constantes do Código Napoleão, ao contrário o Código de 2002 tem raízes distintas e diverge da versão original do diplo- ma francês, mas adota as lições da doutrina e da ¡urisprudência france- sas assim como inovações introduzidas nas legislações de outros países, sem pre¡uízo de apresentar soluções próprias considerando a realidade social e econômica do nosso país.
25. Se no domínio da responsabilidade civil, seguimos de perto o direito francês, ao contrário, em relação ao atual regime dos contratos estamos afastados do Código Napoleão. Acresce que uma parte da doutrina francesa chega a propor uma revisão legislativa para se apro- ximar mais das soluções adotadas no Brasil em relação aos contratos.
III. A RESPONSABILIDADE CIVIL
26. XXXXX XX XXXX chegou a afirmar que:
“O intérprete que, em nossa época, penetra no domínio da res- ponsabilidade civil não pode deixar, desde as suas primeiras in- vestigações, de lembrar o verso célebre que Xxxxx coloca sôbre a porta do Inferno:
‘Lasciate ogni speranza, voi che'ntrate', - vós que entrais, deixai toda a esperança'”
27. Na realidade, a evolução econômica e social fez da responsa- bilidade civil o problema central do direito privado no século XX. Com efeito, há um século que o movimento de idéias não tem sido tão intenso em nenhuma outra matéria. A revolução industrial transformou os dados da responsabilidade civil, que, de um dia para outro, dominou os tribu- nais, monopolizou os processos, fez convergir sobre ela os tratados e as monografias. A evolução tecnológica, as novas condições econômicas e a idéia da solidariedade social têm feito da responsabilidade civil o rumo das questões mais discutidas do direito privado contemporâneo. Suas numerosas aplicações têm ultrapassado todas as previsões. Inicialmente a prática e, depois, a doutrina se têm desenvolvido sob a pressão das necessidades da vida cotidiana. E, tendo feito tão depressa novas con- quistas, a responsabilidade civil se vê proprietária de um campo imenso onde domina ainda a anarquia fecunda das grandes terras.
28. No entanto, o desenvolvimento da noção da responsabilidade civil não se explica somente pelos fatores econômicos, mas também pela psicologia particular do homem do nosso tempo, que se recusa a crer no inevitável, na fatalidade no acidente causado pela vida, procurando sem- pre um responsável, pelos danos e pre¡uízos que sofre.
29. Por outro lado, a questão da responsabilidade civil sai do qua- dro ¡á muito amplo do Direito para suscitar um problema moral. E, as- sim, a discussão ¡urídica vai ultrapassando o domínio da técnica do Direi- to Civil para afetar, por suas conclusões, toda a escala dos valores. É uma área na qual, o ¡urista não se pode separar do filósofo e do moralista. É a eqüidade que gerou a teoria do risco. É a moral que mantém a teoria da culpa. O ¡urista deve pois considerar, ao lado das questões econômicas, o problema moral, e somente estudando a responsabilidade civil sobre esses dois planos é que se lhe poderá dar uma solução satisfatória.
30. O lado moral da questão foi assinalado por XXXXXXX XXXXXX em seu livro: A regra moral nas obrigações civil e no prefácio do livro de XXXX XXXXXXXX sobre a responsabilidade civil no qual salientou: “Os juristas escrevem: devemos abandonar a idéia da culpa; é
uma idéia antiga; o progresso a substituiu pela idéia do risco. Ou- sariam êles escrever: devemos esquecer que o homem deve pro- ceder bem; devemos dizer-lhe: conduze-te como quiseres, por tua conta e risco; desde que pagues pelo dano causado”.5
0 Xxxxxxx Xxxxxx, Xx Xxxxx Morale dans les Obligations Civiles, 1949, Paris, LGDJ. Prefácio do livro de Xxxx Xxxxxxxx, Traité de la Responsabilité Civile en Droit Français, 1939, Paris, LGDJ, t. 1, p. XI.
31. Estudando a responsabilidade civil e seu desenvolvimento na França e no Brasil, cabe examinar a situação econômica dos dois paí- ses e as regras morais que os governam.
32. Sob o ponto de vista econômico, o Brasil consolidou uma economia capitalista em desenvolvimento que a França passou a co- nhecer após a Segunda Guerra Mundial. As leis de seguro obrigatório contra os acidentes do trabalho, e o direito trabalhista datam na França de 1898 e no Brasil do período que se inicia em 1930. A teoria do risco se impôs, na França, desde o fim do século XIX; no Brasil, ela começou a ser aplicada muito mais tarde em casos específicos, só tendo sido consagrada pela ¡urisprudência nos meados do século passado e da- tando a sua generalização do Código Civil de 2002.
33. Quanto aos fatores ¡urídicos e morais, o direito brasileiro per-
tence, como todos os da América do Sul ao grupo do direito francês. Ele se prende à mesma tradição do direito romano e aos mesmos preceitos do cristianismo e da civilização ocidental, mas se apresenta com incon- testável originalidade.
34. Vemos por conseguinte que seria impossível não haver seme- lhanças profundas entre os direitos brasileiro e francês, no domínio da responsabilidade civil, ¡á que as constantes morais, econômicas e políti- cas são as mesmas.
35. É preciso salientar que a influência francesa decorreu menos dos textos específicos do Código Napoleão do que da ¡urisprudência e da doutrina francesa, que adaptaram a lei às novas necessidades de- correntes da Revolução Industrial. Dizem os autores franceses que o Código só conseguiu sobreviver duzentos anos pelo fato de ter evoluído na prática, mediante uma ¡urisprudência construtiva que, sem abando- nar a letra da lei, deu-lhe nova interpretação. Pelo Código, mas além do Código (par le Code mais au dela du Code) foi a diretriz que, durante muitos anos, os tribunais franceses aplicaram com a finalidade de manter o seu direito em condições de dar soluções adequadas, eficientes e eqüi- tativas aos conflitos de interesse.
36. Para tanto, usaram o que XXXXXXX XXXXX considerou como
sendo verdadeiros "conceitos amortecedores" como, por exemplo, a teoria do abuso de direito, relativizando os efeitos do direito de proprie- dade e do contrato. O esforço realizado pela doutrina e pela ¡urispru- dência mereceu, muitas vezes, ser posteriormente consagrado pela pró-
1OO Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004
pria lei, como aconteceu no tocante à responsabilidade decorrente de acidentes de automóveis, que na França foi o resultado de uma verda- deira campanha dos professores de direito liderados por XXXXX XXXX, um dos grandes especialistas na matéria.
37. Foi, assim, que partindo de uma responsabilidade que, no Código Napoleão, se baseava exclusivamente na culpa, o direito fran- cês elaborou sucessivamente teorias, como os da guarda de pessoas ou de coisas, desenvolvendo, assim, a culpa in eligendo e in vigilando, de tal modo que se aceitou a presunção de culpa. Inicialmente, em certos casos, tratava-se de presunção juris tantum, admitindo prova em contrário. Posteriormente, em relação à responsabilidade do emprega- dor pelos danos cometidos pelo empregado, passou-se à chamada pre- sunção juris et de jure, que não admite prova em contrário e que, na prática, equivale à responsabilidade ob¡etiva.
38. Ao mesmo tempo, de modo gradual, admitiu-se um direito à
segurança por parte da vítima da lesão de direito, abrangendo tanto a integridade física da pessoa como a intangibilidade dos seus bens. As- sim, quando o direito à segurança sofria uma lesão surgia uma respon- sabilidade por parte do autor do dano. A doutrina explicou que houve um deslocamento do prisma pelo qual se examinava a responsabilida- de civil. Abandonou-se, em alguns casos, a apreciação da conduta do autor do dano para garantir o direito à segurança de quem tinha sofri- do a lesão.6
39. Essa evolução acabou ense¡ando dois campos distintos na área da responsabilidade civil. Na maioria dos casos, continuava-se a examinar a conduta do autor do dano e a responsabilidade civil depen- dia de culpa, provada ou presumida. Em outras relações, como os aciden- tes de trabalho, de veículos ou os decorrentes da atividade empresarial garantia-se a segurança da vítima, com base nas teorias da responsabi- lidade ob¡etiva, baseada no risco ou nas situações de profunda desigual- dade existente entre quem causava o dano e a vítima da lesão.
40. Evolução análoga tivemos no direito brasileiro. Deixando de lado a nossa legislação do século XIX, que foi pouco importante na maté- ria, o nosso Código Civil de 1916, se destinava a uma sociedade em
6 Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxxx, "L'Évolution de la Responsabilité D'une Dette de Responsabilité à une Créance D'Indemnisation", in Revue Trimestrielle de Droit Civil, ¡an.-mar. 1987, n. 86, p. 7 e seg.
grande parte rural e na qual a industrialização era rudimentar. Como vimos, poder-se-ia até comparar o Brasil de 1899 com a França do início do século XIX que estava saindo do clima revolucionário e necessitava manter os seus princípios, mas reorganizar o país. Em ambos os diplo- mas, o legislador se preocupou mais com a proteção do direito de propri- edade do que com os aspectos sociais das relações entre indivíduos. Fo- ram ambos os textos legislativos, códigos do proprietário e do chefe de família, sem maiores preocupações democráticas, nem sociais.
41. O Código Civil de 1916 se inspirou quanto à sua sistemática e a organização das matérias no texto do Código Civil alemão, que era o mais recente, tendo entrado em vigor no início do século XX. Dele e dos trabalhos de TEIXEIRA DE FREITAS aceitou a divisão em parte geral e especial e aboliu a distinção francesa entre delitos e quase delitos para tratar de ambos como sendo os atos ilícitos. Mas no seu espírito e no seu conteúdo, o Código de 1916 sofreu a influência tanto do Código Napoleão quanto da ¡urisprudência e da doutrina francesas. Assim, esclarece PONTES DE MIRANDA que dos artigos do nosso primeiro Código Civil, 900 decorrem do direito tradicional português e da doutrina bra- sileira e 170 inspiraram-se no direito francês, enquanto tão-somente 70 seguem o modelo alemão.7
42. É interessante notar que a divulgação do B.G.B. e das doutri- nas alemãs foi feita, no Brasil, por ¡uristas franceses como SALEILLES, DUGUIT e GÉNY. Os próprios autores alemães como SAVIGNY e IHERING têm sido sobretudo conhecidos por traduções francesas de suas obras.
43. No tocante à responsabilidade civil, a própria doutrina france- sa reconhece que os textos do Código Xxxxxxxx não são excelentes (PLANIOL-RIPERT),8 mas a sua riqueza decorreu da interpretação construtiva que a ¡urisprudência lhes deu durante dois séculos. O mesmo se pode dizer dos artigos do nosso Código Civil de 1916, embora ¡á se referisse ao abuso de direito, mas entendia que a responsabilidade por ato do empregado dependeria de prova da culpa do empregador.
44. No particular, foram a ¡urisprudência e a doutrina que trans- formaram a necessidade de prova da culpa à qual se referia o art. 1523
7 Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, 1928, Rio de Janeiro, Pimenta de Mello, p. 119.
8 Xxxxxx Xxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx, Traité Elémentaire de Droit Civil, 1949, 3 ed., Paris, LGDJ, t. 2, p. 235.
do Código de 1916, em presunção inicialmente juris tantum e posteri- ormente juris et de jure, ense¡ando, assim, finalmente uma responsabi- lidade ob¡etiva.
45. Assim, na década de 1930, o ilustre ¡urista XXXXXXXX XX XX XXXXXXX, que foi desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, exami- nando os problemas decorrentes de acidentes de bondes, reconheceu que a vítima devia ser ressarcida independentemente da culpa tanto do motorneiro, quanto da empresa exploradora da concessão, que era, na época da Light. Dizia o consagrado magistrado que o motorneiro podia ter culpa, mas não tinha recursos para indenizar a vítima e que a Light (empregadora) tinha dinheiro, mas não tinha culpa. Ora, era preciso que a vítima fosse ressarcida, tanto mais que a empresa de bondes realizava atividade lucrativa e tendo as respectivas vantagens devia arcar também com os ônus decorrentes. Construiu-se, pois, gradativamente, uma ¡uris- prudência que garantia a indenização da vítima pela empresa, sem pre¡u- ízo da eventual ação regressiva que a mesma poderia ter contra o empre- gado se tivesse atuado culposamente. Algumas décadas depois, essa
¡urisprudência se sedimentou definitivamente ense¡ando, na década de 1960, a Súmula nº 341 do Supremo Tribunal Federal.
46. Tanto na França, como no Brasil, tivemos numerosas leis es- peciais estabelecendo a responsabilidade ob¡etiva, como ocorreu em relação aos danos ao meio-ambiente e aos pre¡uízos causados ao con- sumidor, ampliando-se o campo da responsabilidade civil em relação às suas causas, aos danos ressarcíveis e ao valor e ao modo de calcular a indenização. Assim, adotamos no Brasil a teoria das dívidas de valor que, embora estudada em algumas teses, não teve muito sucesso na França, mas desenvolveu-se na Itália e na Alemanha. Permitiu-se, desse modo, que a indenização mantivesse um valor constante, no que se refere ao seu poder aquisitivo, não sendo corroída pela inflação. Trata- se de tese que defendemos no fim da década de 1950 e que a ¡urispru- dência veio a consagrar invocando inclusive o exemplo da interpreta- ção dada pelos tribunais da Alemanha que revalorizaram as indeniza- ções com base no princípio da boa-fé.
47. Trata-se, ho¡e, de encontrar um ¡usto equilíbrio entre o direito à segurança do cidadão e as atividades empresariais necessárias ao desenvolvimento da economia brasileira.
48. É um problema que tem preocupado a doutrina francesa, os- cilando entre a culpa e o risco, entre a proteção da vítima ou do lesado, de um lado, e a apreciação do comportamento do autor dos danos.
49. Na França a teoria do risco data do ano de 1890, ligada se¡a ao art. 1.384 se¡a ao artigo 1.382. SALEILLES escreve que:
“Se o feito deriva da personalidade própria do homem, se êle é sua obra, como diz o art. 1.382, e êle não diz outra coisa ... há responsabilidade civil, o que quer dizer que o risco é para aquêle que praticou o ato”.9
50. Invocou pois SALEILLES o princípio ‘ubi emolumentum, ibi onus esse debet'. Mas de outra parte PLANIOL dizia, a respeito da teoria de culpa, que:
“verdadeiramente, o espírito jurídico conduziria a humanidade ao caminho da injustiça, se lhe fizesse rejeitar êste princípio (não há res- ponsabilidade sem culpa) que é a base eterna da filosofia moral”.
51. Mas PLANIOL notava igualmente que a solidariedade social exigia que a grande infelicidade particular fosse compensada por uma leve carga comum. Este fim foi atingido pelas sociedades de seguro.
52. Sentia-se que havia razão de um lado e de outro. PLANIOL ti- nha razão quando declarava que a teoria da culpa não podia cessar de dominar as relações interindividuais. SALEILLES e JOSSERAND10 tinham razão quando exigiam em nome da eqüidade, a aplicação da teoria do risco nas relações entre patrões e operários e nos serviços de transporte. A moral não pode satisfazer-se senão pela teoria da culpa. A eqüidade exige freqüentemente a aplicação da teoria do risco. O equilíbrio social e o desenvolvimento econômico da sociedade exigem ora a aplicação de uma dessas teorias ora a de outra. É que existem, de um lado, as relações interindividuais, e de outro, as relações entre indivíduos e gru- po social. No primeiro caso, em geral, é a teoria da culpa que deve dominar, no segundo a do risco.
53. Mais recentemente, como assinalamos, a teoria do risco foi subs- tituída pela garantia da segurança à qual se referem os autores que escre- veram a respeito na segunda metade e especialmente no fim do século XX.
9 SALEILLES, Les Accidents de Travail et la Responsabilité Civile, 1897, p. 5.
10 Josserand, Responsabilité du Fait des Choses, 1897, p. 31, Saleilles, Les Accidents de Travail et la Responsabilité Civile, 1897.
54. Tanto para o direito francês como para o direito brasileiro, novas soluções se impunham no momento de uma revisão legislativa, como a que tivemos com a elaboração do nosso novo Código Civil. O seu texto integrou as conquistas da ¡urisprudência e as aspirações da doutrina, instituindo a responsabilidade ob¡etiva para determinados ca- sos, sem pre¡uízo de manter a culpa como fundamento principal da responsabilidade civil. Neste sentido, esclarecem os artigos 927, 931, 932 e 933 que:
“Art. 927 - Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único - Haverá obrigação de reparar o dano, indepen- dentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano impli- car, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 931 – Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem indepen- dentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos pos- tos em circulação.
Art. 932 - São também responsáveis pela reparação civil:
I – os pais, pelo filhos menores que estiverem sob sua autorida- de e em sua companhia;
II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acha- rem nas mesmas condições;
III – o empregador ou comitente, por seus empregados, servi- çais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
Art.933 – As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo ante-
cedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelo terceiros ali referidos”.
55. Comentando os referidos artigos, esclarece o Professor XXXXXX XXXXX que:
“Responsabilidade subjetiva ou responsabilidade objetivaṢ indagava eu. Não há que fazer essa alternativa. Na realidade, as duas formas de responsabilidade se conjugam e se dinami- zam. Deve ser reconhecida, penso eu, a responsabilidade sub- jetiva como norma, pois o indivíduo deve ser responsabilizado, em princípio, por sua ação ou omissão, culposa ou dolosa. Mas isto não exclui que, atendendo à estrutura dos negócios, se leve em conta a responsabilidade objetiva. Este é um ponto funda- mental. O conceito de estrutura não é privilégio do estruturalis- mo, que é um dos tantos modismos filosóficos do nosso tempo. O conceito de estrutura ao contrário, é um conceito sociológico e filosófico fundamental, como no-lo mostra a obra de Person ou de Xxxxxx, e desempenha papel cada vez mais relevante no mundo do Direito, esclarecendo o antigo e renovado conceito de natureza das coisas, cuja aceitação independe, não é de- mais adverti-lo, para evitar equívocos correntes, do fato de ad- mitir-se, ou não, qualquer modalidade de Direito Natural.
‘Pois bem, quando a estrutura ou natureza de um negócio jurídico, como o de transporte ou de trabalho, só para lembrar os exemplos mais conhecidos, implica a existência de riscos ine- rentes à atividade desenvolvida, impõe-se a responsabilidade objetiva de quem dela tira proveito, haja ou não culpa.'
O reconhecimento da responsabilidade objetiva ocorre, hoje em dia, no Direito de todos os países cultos, bastando lembrar, nesse sentido, as Súmulas 341 e 492 do Supremo Tribunal Federal”.11
56. Essa evolução paralela dos dois direitos foi ob¡eto de vários trabalhos, destacando-se, entre os mais recentes, o excelente comentá- rio ao novo Código Civil do Ministro XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX DIREITO e do Desembargador XXXXXX XXXXXXXXX XXXXX, a respeito dos arts. 927 a 965, cu¡o capítulo de Introdução se inicia e termina com citações do Profes- sor XXXXX XXXXXXXXX. Inicia-se lembrando, com o mestre de LION, que hou- ve uma verdadeira revolução no tocante à responsabilidade civil pois, na matéria, "a verdade de ontem não é mais a de ho¡e, que deverá, por sua vez, ceder o lugar à de amanhã". E termina afirmando com o emi- nente ¡urista francês, que:
11 Xxxxxx Xxxxx, "Estudos Preliminares do Código Civil", 2003, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 67-68
“A responsabilidade civil continuará dominando todo o direito das obrigações, toda a vida em sociedade. E será a grande sen- tinela do direito civil mundial. Sua história é a história do triunfo da jurisprudência e também da doutrina, e mais geralmente, do espírito e do senso jurídico”.12
I V. A EVOLU ÃO DO CONTRATO
57. Poucos institutos sobreviveram por tanto tempo e se desen- volveram sob formas tão diversas quanto o contrato, que se adaptou a sociedades com estruturas e escalas de valores tão distintas quanto as que existiram na Antigüidade, na Idade Média, no mundo capitalista e no próprio regime comunista.13
58. Para os ¡uristas, magistrados e advogados brasileiros, ainda acostumados aos princípios que inspiraram o Código Civil de 1916, mesmo quando flexibilizados pelas chamadas leis extravagantes, o Có- digo de 2002 apresenta o contrato sob novas vestimentas, com finali- dades e regime ¡urídico que se afastam do nosso direito clássico, ¡ustifi- cando uma reflexão sobre a matéria.
59. Na realidade, o contrato nasceu formalista e típico, no direito romano, para transformar-se num instrumento cu¡a validade e eficácia decorria do fato de ser uma manifestação de vontade do indivíduo e, em conseqüência, um instrumento vinculatório, constituindo a lei entre as partes, na concepção do Código Napoleão.
60. Por longo tempo, entendeu-se, tanto no direito francês como no brasileiro, que os pactos deviam ser respeitados religiosamente (pacta sunt servanda), pois refletiam um ato de liberdade individual. O contra- to, pela sua própria natureza, por decorrer de um acordo de vontades, devia ser considerado ¡usto e, conseqüentemente, era intangível, deven- do ser executado, custasse o que custasse, de acordo com a intenção das partes, ressalvada tão-somente a ocorrência da força maior e do caso fortuito.
12 Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx Direito e Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx , Comentários ao Novo
Código Civil (art. 927 a 965), 2004, vol. XIII, Rio de Janeiro, Forense, p. 42.
13 F. C. de Xxx Xxxxx Xxxxxx, Evolução Contemporânea do Direito Contratual, Foren- se, nº 139, p. 5-13, e Xxxx Xxxxx, Traité Élémentaire de Droit Comparé, Paris, 1950, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, p. 328.
61. Surgiram, aos poucos, as limitações tanto à liberdade de contratar, ou de não contratar, quanto à liberdade contratual, ou se¡a, à fixação do conteúdo do contrato. Embora se mantivesse, como regra geral, a onipotência da vontade individual, com a possibilidade de cria- ção dos mais variados contratos inominados, atípicos e mistos, o legis- lador, ampliando a área da ordem pública econômica, foi restringindo o conteúdo da autonomia da vontade.
62. A liberdade, no plano contratual, tem sofrido amplas restri- ções, especialmente no tocante à faculdade de fixar o conteúdo do con- trato (liberdade contratual), pois muitos contratos são ho¡e verdadeiros contratos de adesão, cu¡o texto depende de aprovação prévia de organis- mos governamentais ou nos quais, tratando-se de contratos de massa, o aderente não tem condições de discutir as cláusulas. Quanto à liberdade de contratar, tem sido mantida em termos gerais, nos países democráti- cos, embora, em determinados casos, o fato de deixar de vender determi- nado artigo possa constituir infração à lei, por considerar o sistema legislativo vigente tais omissões como contrárias à ordem econômica.
63. Em tese, a liberdade contratual só sofre restrições em virtude
da ordem pública, que representa a pro¡eção do interesse social nas relações interindividuais. O ius cogens, o direito imperativo, defende os bons costumes e a estrutura social, econômica e política do país. Em determinada fase, a ingerência da ordem pública em relação aos con- tratos se fazia sentir principalmente pelo combate à usura, proibindo as leis medievais as diversas formas de agiotagem. Quanto aos outros contratos, as limitações, até o século XIX, eram em menor número.
64. As idéias solidaristas e socialistas foram defendidas pela dou- trina francesa de XXXX XXXXXX e XXXX XXXXXXX, no início do século XX, e reconheceram a existência do dirigismo contratual,14 expandindo-se a área das normas de ordem pública destinadas a proteger os indivíduos fracos, favorecendo o empregado, pela criação do direito do trabalho, o inquilino, com a legislação sobre locações, e o consumidor, por uma legis- lação específica em seu favor. Por outro lado, o dirigismo contratual restrin-
14 Xxxx Xxxxxx, Les Transformations Générales du Droit Xxxxx Depuis le Code de Napoléon, 1999, Paris, Éditions Xx Xxxxxxx xx Xxxxx, 0x xx., p. 24; Xxxx Xxxxxxx, Traité des Obligations, 1994, Bad Feilnbach, Schmidt Periodicals GMBH, III, p. 331; e Xxxx Xxxxxxxx, Les Métamorphoses Économiques et Sociales du Droit Civil d'Aujourd'Hui, 1952, Paris, Dalloz, 2a éd., p. 19
giu a autonomia da vontade, em virtude da elaboração de uma série de normas legislativas, fixando princípios que os contratos não podem afastar (salário mínimo, tabelamento de gêneros alimentícios, fixação de ¡uros) e assegurando a livre concorrência pela legislação anti-truste.
65. O contrato passou, assim, em certos casos, a ter um maior conteúdo de ordem pública, decorrente da lei, podendo alcançar até pessoas que nele não foram partes, como ocorre na convenção coletiva de trabalho. Temos então uma "convenção-lei”, definida pela doutrina como "um ato legislativo, elaborado por via convencional".
66. A obrigatoriedade dos contratos constitui, por sua vez, uma pro¡eção, no tempo, da liberdade contratual, pois as partes são obriga- das a realizar as prestações futuras decorrentes do contrato. O direito contemporâneo também limitou, todavia, tal obrigatoriedade, interpre- tando-a de acordo com a cláusula implícita rebus sic stantibus, desen- volvido pelo Conselho de Estado da França, e pela ¡urisprudência e dou- trina brasileiras, permitindo a revisão ou a resolução do contrato no caso de haver transformações sérias e imprevisíveis, das circunstâncias.
67. Durante muito tempo, considerou-se que, na maioria dos
casos, o contrato compunha interesses divergentes, que nele encontra- vam uma forma de solução, como acontece nos casos da compra e venda, da locação, da empreitada etc. Os contratos que constituem liberalidades são relativamente menos importantes e só recentemente é que a doutrina foi admitindo a importância crescente dos chamados contratos de colaboração, de cooperação e de organização, que exis- tem tanto no direito privado, quanto no direito público.
68. Nos últimos anos, deixou-se, no entanto, de conceber o con- trato como instrumento necessariamente decorrente ou representativo de interesses antagônicos, chegando os autores e a própria ¡urispru- dência a admitir, inicialmente nos contratos de longo prazo mas, em seguida, em todos eles, a existência de uma affectio - a affectio contractus
-, com alguma semelhança com outras formas de colaboração como a
affectio societatis ou o vínculo con¡ugal.
69. Em vez de adversários, os contratantes passaram, num nú- mero cada vez maior de contratos, a ser caracterizados como parcei- ros, que pretendem ter, um com o outro, uma relação equilibrada e eqüitativa, considerando até os ideais de fraternidade e ¡ustiça. Já no início do século passado, alguns autores franceses, como XXXX
DEMOGUE, referiam-se ao contrato como sendo "uma união de inte- resses equilibrados, um instrumento de cooperação leal, uma obra de confiança mútua".15 Mais recentemente, outros autores desen- volveram a tese da equação contratual, inspirada no direito admi- nistrativo, para vislumbrar no contrato um instrumento de colabo- ração entre os contratantes, no interesse de ambos e da própria sociedade.
70. Há, pois, uma evolução na qual, após termos abando- nado a caracterização do contrato como manifestação ilimitada da liberdade individual, lhe demos uma nova conceituação, na qual prepondera, ou deveria preponderar, sobre a intenção e a vontade individual de cada um dos contratantes, o consenso que entre eles se formou, sem que se¡a lícito, a qualquer um deles, tirar uma vantagem maior do que a razoavelmente aceitável, no momento tanto da celebração do contrato, como em todo o perí- odo da sua execução, quando se trata de convenções com efeitos duradouros ou diferidos.
71. No passado, o contrato permitia às partes evitar todos os riscos futuros, garantindo-lhes a imutabilidade das prestações convencionadas e a sobrevivência da convenção diante de fatos impre- vistos, mesmo quando alteravam substancialmente a equação contratual. Ho¡e, o contrato perdeu essa perenidade, mas ganhou flexi- bilidade, sacrificando-se alguns benefícios eventuais ao interesse co- mum das partes que se presume e ao interesse social.
72. Em recente estudo, a Professora XXXXXXXXX XXXXXXXXX-XXXXXXXXX pretendeu que o contrato, no passado, era uma espécie de bolha ou uma ilha, sendo independente, alheio aos acontecimentos e prevale- cendo sobre as eventuais modificações fáticas e legislativas. Atualmen- te, o contrato se transformou num bloco de direitos e obrigações de ambas as partes, que devem manter o seu equilíbrio inicial, num vínculo
15 XXXX XXXXXXX chega a caracterizar a relação entre o credor e o devedor como sendo um verdadeiro microcosmo, uma sociedade na qual ambas as partes devem trabalhar para atingir um fim comum, surgindo, entre eles, um dever de colaboração (XXXX XXXXXXX, Traité des Obligations en Général, 0000, Xxxxx, Xxxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx, t. VI, nº 3, p. 9).
11O Revista da EMERJ, v. 7, n. 26, 2004
ou até numa entidade.16 Vínculo entre as partes, por ser obra comum das mesmas, o contrato torna-se pois, uma entidade constituída por um con¡unto dinâmico de direitos, faculdades, obrigações e eventuais outros deveres, que evolui como a vida, de acordo com as circunstânci- as que condicionam a atividade dos contratantes.
73. Assim, em vez do contrato irrevogável, fixo, estático e cristaliza- do de ontem, conhecemos um contrato dinâmico e flexível, que as partes devem adaptar para que ele possa sobreviver, superando, pelo eventual sacrifício de alguns dos interesses das partes, as dificuldades encontra- das no decorrer da sua existência. A plasticidade do contrato transforma a sua própria natureza, fazendo com que os interesses divergentes do passado se¡am agora convertidos numa verdadeira parceria, na qual to- dos os esforços são válidos e necessários para fazer subsistir o vínculo entre os contratantes, respeitados, evidentemente, os direitos individuais.
74. Dentro desse conceito de parceria, admite-se a anulação do
contrato por xxxxx, a sua resolução ou a sua revisão em virtude da excessiva onerosidade, a cessão do contrato e a assunção da posição contratual, a oponibilidade das cláusulas contratuais a terceiros não contratantes, a vinculação ou a relação de dependência que se estabe- lece entre contratos conexos e subordinados uns aos outros17, inclusive com a eventual substituição de cláusulas e a mitigação das sanções. O Supremo Tribunal Federal chegou a admitir que determinados contratos estavam tão ligados uns com os outros que poderiam ser considerados como verdadeiros "irmãos siameses".18
75. Trata-se de uma verdadeira nova concepção do contrato, ¡á
agora como ente vivo, como vínculo que pode ter um conteúdo variável, complementado pelas partes, por árbitros ou até pelo Poder Judiciário,
16 J. Mestre, "L'Évolution du Contrat em Droit Privé Français", in L'Évolution Contemporaine des Contrats, Journées Savatier, 1985, Paris, Presses Universitaires de France, 1986, p. 45 e seg.; Xxxxxxxxx Xxxxxxxxx-Guelfucci, "Libres Propos sur la Transformation du Droit des Contrats", in Revue Trimestrielle de Droit Civil, nº 2 de 1997, p. 357 e seg.; Xxxxx Xxxxxxx, "Loyauté, Solidarité, Fraternité: la Nouvelle Devise Contractuelle", in X'Xxxxxx xx Xxxxx, Xxxxx, Xxxxxx, 0000, p. 603 e seg.
17 Xxxxxxx Xxxxxxx, Les Groupes de Contrats, 1975, Paris, "Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence", passim, e Xxxxxxx Xxxxxxxxx, Les Contrats de Dépendance, 1986, Paris, "Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence", passim.
18 RTJ 76/618 e 77/884 e ainda Xxxxxxx Xxxx, Obrigações e Contratos, 2001, 15ª ed., São Paulo, n. 81, e Estudos e Pareceres de Direito Comercial, 1979, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 184 e seg.
e no qual, ao contrário do que acontecia no passado, a eventual nulidade ou substituição de uma cláusula não põe necessariamente em perigo toda a estrutura da relação ¡urídica. Essas modificações surgiram tanto na ¡uris- prudência quanto em virtude do trabalho doutrinário realizado pela exten- são que se deu do conceito de boa-fé19 e pelas obrigações implícitas de leal execução do contrato, significando um dever, imposto às partes, de encon- trar uma solução para os eventuais impasses que possam surgir. Por outro lado, também exerceram importante influência sobre a nova conceituação do contrato as normas extravagantes e as chamadas leis de emergência, assim como a inspiração de certos ramos mais recentes da ciência ¡urídica, como o direito do consumidor e o desenvolvimento que passou a ter a equação contratual no direito administrativo.20
76. Num mundo em que nada mais é absoluto, o contrato, para
subsistir, aderiu ao relativismo, que se tornou condição sine qua non da sua sobrevivência no tempo, em virtude da incerteza generalizada, da globalização da economia e da imprevisão institucionalizada. A indeterminação das prestações contratuais, que era inconcebível no passado, também está vinculada à inflação, à oscilação do câmbio e às rápidas mudanças tecnológicas, fazendo com que as partes adotem determinados critérios para definir os seus direitos, aceitando presta- ções indeterminadas no momento da celebração do contrato, mas que se tornam determináveis no momento de sua execução.
77. Por outro lado, a eventual necessidade de substituir certas
cláusulas contratuais, sem afetar as bases da equação contratual, obri- gou os contratantes a realizarem uma verdadeira sintonia fina para dis- tinguir as cláusulas principais ou essenciais das demais, destacando aquelas sem a presença das quais o contrato não teria sido assinado das que foram consideradas inicialmente como meramente complemen- tares ou acessórias. Por outro lado, cabe-lhes verificar se as eventuais mutações sofridas pelas cláusulas principais permitem manter a equa-
19 Xxxxxx Xxxxxxx-Xxxxx, A Boa-Fé no Direito Privado, 1999, São Paulo, Revista dos Tribu- nais, e Xxxxxxx Xxxx, "La Bonne Foi: Dans L'Exécution du Contrat, Rapport Brésilien", in Travaux de L'Association Xxxxx Xxxxxxxx, XLIII, La Bonne Foi (journées louisianaises), Paris, Litec, 1994, p. 252-264.
20 XXXXXXX XXXX, "O Equilíbrio Econômico e Financeiro no Direito Brasileiro: A Contribuição do professor XXXX XXXXXX", in XXXXXX XXXXXXX XXXXXXX DIREITO (org.), Estudos em homena- gem ao professor XXXX XXXXXX, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 75-97.
ção contratual inicial ou se, ao contrário, as modificações surgidas no contexto tornam imperativa a resolução do mesmo.
78. O contrato, realidade viva, forma de parceria, com direitos e obrigações relativas, constitui uma verdadeira inovação para os ¡uris- tas, mas decorre de um imperativo categórico do mundo de ho¡e que é, caracterizado como sendo o da descontinuidade, da incerteza e da mudança. Assim, autores franceses recentes puderam afirmar que as regras do direito dos contratos se tornaram relativas, pois:
“o contrato é mais ou menos obrigatório, mais ou menos oponível (a terceiros), mais ou menos sinalagmático ou mais ou menos aleatório e uma nulidade ou uma resolução é mais ou menos extensa”.21
79. Por longo tempo, manteve-se a estrutura tradicional do con- trato, considerando-se como exceções as regras que, aos poucos, esta- vam alterando a escala de valores em que se fundamentou. A generali- zação das exceções está agora exigindo uma reformulação do regime
¡urídico do contrato, pois não houve tão-somente modificações técni- cas, mas uma verdadeira mudança de concepção, que exige uma reformulação dogmática. Trata-se de passar do absoluto para o relati- vo, respeitando os princípios éticos e sem perder um mínimo de segu- rança, que é indispensável ao desenvolvimento da sociedade.
80. Se, há meio século, uma parte dessa evolução ¡á tinha ocorrido, os ¡uristas da época ainda podiam admitir que as modificações eram neces- sárias mas que uma revisão de alguns dos artigos do Código Civil bastaria.22
81. Já no início do terceiro milênio, foi preciso reconhecer que o contrato, para sobreviver, exige que se lhe dê uma função social e uma nova estrutura, dela extraindo as conseqüências necessárias. Efetiva- mente, o número de exceções à aplicação dos princípios gerais do con- trato clássico ¡á alcança um nível que não mais permite fazer com que prevaleçam as regras gerais, sob pena de ense¡ar o predomínio da fic- ção sobre a realidade.
82. Foi o que fez o Código Civil de 2002, ao admitir que o con- trato devia ter uma função social, ser celebrado e executado de boa-fé, estabelecendo, desde o início, prestações equilibradas e suscetíveis de
21 P. Malaurie e L. Aynes, Cours de Droit Civil, Les Obligations, 1995, 6ª ed., Paris, Editions Cu¡as, p. 170.
22 SAN TIAGO DANTAS, "Nova Dogmática Jurídica", in Revista de Direito Bancário, do Mer- cado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, nº 18, p. 241.
revisão no caso de desequilíbrio que importasse em pre¡uízo excessivo para uma das partes e vantagem extrema para a outra. (art. 421, 422 e 478 e 479) E o seguinte o texto dos mencionados artigos:
“Art. 421 – A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.
Art. 422 – Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probi- dade e boa-fé.
Art. 478 – Nos contratos de execução continuada ou diferida, se prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extra- ordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do con- trato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479 – A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”.
83. Essa nova concepção do contrato corresponde também ao ideal da mais moderna doutrina francesa. Efetivamente, em colóquio realizado em Lille, foi sustentada uma concepção solidarista e equilibra- da do contrato. E mais, nas suas conclusões, o Professor XXXXXXXX XXXXXX, resumindo as posições dos seus colegas disse que estavam sonhando com uma reforma legislativa na qual se desse ao contrato uma verda- deira função social, exigindo-se que sempre fosse equilibrado. Verifica- mos, assim, que há ¡uristas franceses que sonham com um Código análogo ao nosso.23
84. Vemos assim que, se durante muito tempo e em muitas ma- térias pudemos receber as lições da doutrina e da ¡urisprudência fran- cesa, ¡á ho¡e, no campo contratual, com o Código de 2002, o direito brasileiro pode também, por sua vez, dar uma contribuição importante no momento da revisão da legislação francesa.⯌
23 É o seguinte o texto em francês das mencionadas conclusões:
«Depuis quelques heures, nous nous prenons à rêver qu'un Garde des sceaux législateur, émule de MM. XXXX XXXXX et BADINTER, fasse un ¡our procéder à une refonte générale des articles du code civil consacrés aux obligations. Et pour rester fidèles à l'esprit du colloque, nous aimerions alors que la nouvelle version laissât une place importante à la conception commutative du contrat, sans pour autant renier un certain nombre de principes, en l'absence desquels - nous en donnons acte à nos contradicteurs - il n'y aurait plus de contrat du tout. Ces principes devraient simplement être conciliés avec d'autres, nouvellement affirmés. L'exercice de rédaction serait difficile, mais notre ami XXXXXXX, pour ne citer que lui, aurait sûrement le talent d'élaborer un excellent pro¡et. (In XXXXXXXXXX XXXXX, et XXXXX XXXXXXX, La Nouvelle Crise du Contrat, 2003, Paris, Dalloz, p. 247).