Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Relações Internacionais
Trabalho de Conclusão de Curso Curso de Relações Internacionais
TCC em Formato de Artigo Científico Conforme Definido Pelo Regulamento de TCC Projeto Pedagógico de Curso do Curso de Relações Internacionais em Cumprimento das DCNs do Curso de Relações Internacionais (MEC/CNE)
Título do Trabalho: Perspectivas e Dificuldades das Atuações das Missões da Organização das Nações Unidas e da União Europeia no Pós-Conflito Kosovar
Nome da Estudante: Xxxxxx Xxxxx Xxxxxx Nome do Orientador: Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx Xxx xx Xxxxxxxx: 2020
RESUMO (300 palavras no máximo)
O objetivo principal deste trabalho de conclusão de curso é compreender as especificidades do papel da Organização das Nações Unidas (ONU) e da União Europeia (UE) no cenário pós- conflito no Kosovo. Para isso, será necessário analisar: i) o conceito de Operações de Paz e evidenciar questões específicas como a retórica política e jurídica destas formas de intervenção, suas formas de classificação e críticas direcionadas à atuação dos Estados e Organizações Internacionais por meio destas; ii) a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (United Nations Interim Administration Mission in Kosovo, UNMIK), sob a égide da resolução 1244 do Conselho de Segurança das Nações Unidas; e iii) a Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo (European Union Rule of Law Mission in Kosovo, EULEX), um dos mais importantes e longevos programas de assistência e cooperação do bloco para a região.
PALAVRAS CHAVE: Kosovo; Operações de Paz; Organização das Nações Unidas; União Europeia; Missão de Administração Interina das Nações Unidas; Missão da União Europeia para o Estado de Direito no Kosovo.
ABSTRACT
The purpose of this final course work is to understand the role of the United Nations (UN) and the European Union (EU) in the post-conflict context in Kosovo. In order to do so, it will be necessary to analyze: i) the concept of Peace Operations and highlight specific issues, such as the political and legal rhetoric of these forms of intervention, their forms of classification and criticisms directed at the performance of States and International Organizations through them; ii) the United Nations Interim Administration Mission in Kosovo, UNMIK, under the UN Security Council resolution 1244; and iii) the European Union Rule of Law Mission in Kosovo (EULEX-Kosovo), one of the most important and long- lived assistance and cooperation programs for the region.
PALAVRAS CHAVE: Kosovo; Peace Operations; United Nations; European Union; United Nations Interim Administration Mission in Kosovo; European Union Rule of Law Mission in Kosovo.
1. INTRODUÇÃO
O Kosovo é um país de reconhecimento limitado localizado na Península Balcânica; a qual, historicamente, é afamada por supostamente ter o caráter de fronteira entre Cristianismo e Islamismo, entre Igreja Católica e Igreja Ortodoxa e, mais que isso, entre Ocidente e Oriente1. A sua importância para a Iugoslávia apresentou-se na esfera militar como uma área estratégica contra ameaças do sul e, na esfera econômica, como uma região significativa devido as suas indústrias – ainda que a população kosovar fosse majoritariamente rural. Entretanto, a principal razão da sua relevância sempre foi simbólica: o Kosovo era e é considerado o “berço da civilização sérvia” e a essência da nação, hospedando diversos locais sagrados e cenários da história e das lendas sérvias.
1 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxx. “Kosovo, a desintegração do mosaico iugoslavo”; Revistas eletrônicas FEE. V. 27. N. 2. 1999, p. 137.
Em um período de cinquenta anos de existência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a Guerra do Kosovo se tornou a primeira intervenção militar realizada por esta organização e integrou – junto ao Iraque, à Somália, à Ruanda e à Bósnia- Herzegovina – o grupo das principais crises humanitárias dos anos 1990, causando o êxodo de mais de um milhão de refugiados. Os ataques realizados foram centralizados em locais de apoio tático, obras de infraestrutura e instalações militares, sendo apresentadas três justificativas para a intervenção: i) impor o acordo de Rambouillet; ii) evitar ações que possam ser entendidas como limpeza étnica; e iii) enfraquecer Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Desde 1997 até a véspera do ataque realizado pela OTAN, foram contabilizados cerca de 150 mil refugiados e mais de 2 mil mortos. Já em junho, após a ação da organização, foram contabilizados cerca de um milhão de kosovares refugiados. Isso é, o que ocorreu foi exatamente o oposto do esperado: o ataque aéreo intensificou ainda mais a movimentação e a fuga da população civil. Apesar disso, a OTAN tinha ampla ciência de que uma das possíveis consequências de um ataque aéreo seria a intensificação do fluxo da população, fosse pela aceleração da limpeza étnica, pelo medo da chuva de bombas ou pelo agravamento do conflito entre as tropas iugoslavas e a guerrilha do Exército de Libertação do Kosovo.
Já em 2008, foi a declarada unilateralmente a soberania do Estado do Kosovo. Enquanto os Estados Unidos apoiaram fortemente os separatistas, a Rússia negou a independência kosovar e reatou sua ligação com os sérvios. O Kosovo enfrenta, desde então, duas limitações principais: a sua relativa autonomia devido à precariedade estatal e o reconhecimento parcial da sua soberania, impedindo-o de participar plenamente como membro da comunidade internacional. Neste sentido, a Organização das Nações Unidas, bem como a União Europeia, apresentam um papel fundamental na estruturação das funções administrativas no Kosovo ao longo de todo o século XXI.
Durante a década de 2000, um processo de concentração do poder local nos representantes onuescos ocorreu. A Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo, amparada pela Resolução 1244 do Conselho de Segurança das Nações Unidas de 10 de junho de 1999, possibilitou a reconstrução do território kosovar e contou com quatro pilares liderados por organizações internacionais: i) a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, que coordenava a criação de instituições e democratização; ii) a Organização das Nações Unidas, encarregada da administração civil; iii) o Alto Comissariado
das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), responsável por questões humanitárias; e
iv) a União Europeia, que liderava a reconstrução econômica e passou a desenvolver uma série de iniciativas no país.
O Kosovo abriga a maior missão civil de gestão de crises europeia2 e é o maior
beneficiário per capita de ajuda financeira do bloco em todo o mundo3. É possível tipificar a presença da organização no território em quatro instituições principais: i) o European Union Special Representative (EUSR), que é responsável pela coordenação da presença na União Europeia e apoia o Governo do Kosovo no seu processo de futura integração à organização – instituído pelo Conselho Europeu, ele também contribui para o desenvolvimento e consolidação do respeito pelos Direitos Humanos e liberdades fundamentais no território4; ii) o European Commission Liaison Office (ECLO), que acompanha as reformas por meio de políticas regulares e de diálogos técnicos e, igualmente, procura obter apoio para o reforço das instituições, o desenvolvimento da economia e o cumprimento dos princípios europeus por parte do Governo kosovar; e iii) o International Civilian Representative (ICR), que é responsável pela supervisão do cumprimento do acordo sobre o estatuto do Kosovo concebido por Xxxxxx Xxxxxxxxx.
Um dos mais significativos empreendimentos europeus no Kosovo é a European Union Rule of Law in Kosovo, maior missão civil lançada sob a Política Europeia de Segurança e Defesa (PESC). A EULEX-Kosovo supervisiona e apoia as autoridades kosovares na implementação do Estado de Direito e se configura como um dos mais longevos e importantes programas de assistência e cooperação do bloco europeu para a região. A missão tem como principal papel a reconstrução do sistema de justiça kosovar, o fomento dos Direitos Humanos e a promoção do rule of law – sempre com o financiamento e a partir de critérios e parâmetros estabelecidos pela União Europeia. Por fim, ressalta-se que apesar da grande influência que as organizações internacionais possuem na vida política, social e econômica do território (como a UE, a ONU e a OTAN), o Kosovo ainda não se constitui
2 TRIBUNAL DE CONTAS EUROPEU. Assistência da União Europeia ao Kosovo no Domínio do Estado de Direito. Relatório Especial nº. 18, 2012, p. 11.
3 Ibidem, p. 10.
0 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx. Xxxxxx: Os Desafios à Democratização. Relações Internacionais, v. 32, 2011, p. 153-170, p. 165.
como um Estado-membro de nenhuma destas organizações e, por isto, não possui poder sobre as decisões das organizações.
Isto posto, uma abordagem precisa dos ditames e dificuldades do cenário pós-conflito no Kosovo tem por pressuposto uma sistematização acurada dos fatos e teorias envoltas no período da intervenção, do pós-conflito e da atuação internacional. Trata-se de uma condição sine qua non para entender lógicas, vicissitudes e desafios da (re)construção do Kosovo e da sua independência, ambas extremamente influenciadas pela atuação de organizações internacionais. O estudo do papel das organizações internacionais é fundamental para a compreensão dos imperativos da Política Internacional contemporânea e para a decodificação das formas de atuação de tais agentes – seja pela via militar, política, jurídica ou de cooperação. Este trabalho de conclusão de curso abordará, portanto, o papel de duas das Organizações Internacionais mais atuantes na crise do Kosovo: a Organização das Nações Unidas e a União Europeia.
2. OPERAÇÕES DE PAZ E ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS
Em 1948, em meio à Primeira Guerra Árabe-Israelense, foi iniciada a primeira missão de manutenção de paz da ONU: a Organização das Nações Unidas para a Supervisão da Trégua (UN Truce Supervision Organization – UNTSO). Somada à garantia dos Direitos Humanos e à promoção do desenvolvimento, a manutenção da paz internacional se tornou um dos principais pilares da Organização. Já em 1956, no contexto da Crise de Suez, a ONU deu início à Força de Emergência das Nações Unidas (United Nations Emergency Force – UNEF I), sua primeira operação de paz. Quatro anos depois, foi estabelecida a Operação das Nações Unidas no Congo (ONUC), tornando-se a primeira missão de grande escala até então realizada. A ONUC contou com aproximadamente 20 mil militares e seu objetivo principal foi acabar com a guerra iniciada com a independência do país. Tendo em vista as 250 mortes entre a equipe onuesca – incluindo o ex secretário-geral Xxx Xxxxxxxxxxxx – a missão colocou em evidência os riscos destes tipos de operações5.
Como defende Xxxxxxx Xxxxxxx, a mediação da Crise de Suez – que envolveu especialmente Israel, França, Reino Unido e Egito – deu início à prática de missões ad hoc da
5 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. ONU conta história das Missões de Manutenção de Paz, que completam 68 anos. Disponível em: <xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxx/xxx-xxxxx-x-xxxxxxxx-xxxxxxx-xx-xxxxxxxxxx- de-paz-que-completa-68-anos-de-existencia/>. Acesso em: 3 de mai. de 2020.
ONU para atuar em conflitos localizados6. Experiências posteriores, principalmente no decorrer da Guerra Fria, solidificaram esta prática "como uma forma distinta de intervenção organizada para estabilizar situações de violência e acompanhar processos de paz por meios que excluíssem o uso ostensivo da força”7. Por conseguinte, as operações de paz se tornaram centrais no estudo de direito e segurança internacional, bem como uma das mais conhecidas atividades da ONU. Desde suas origens, tais operações passaram por diversas transformações
– tanto do seu propósito original quanto da sua natureza – devido às transformações da política internacional estimuladas por eventos como o fim da Guerra Fria, a globalização e o genocídio em Ruanda.
O caráter ad hoc das operações de paz é decorrente da inexistência de qualquer referência às missões de paz na Carta de São Francisco8. De outro modo, Xxx Xxxxxxx Xxxxxx argumenta que estas operações têm sua base legal implícitas nos capítulos VI, VII e VIII da Carta da Organização das Nações Unidas9. Até o início dos anos 1990, a ONU não havia demonstrado nenhuma possível incorporação desta modalidade de intervenção em seu arcabouço jurídico e, ainda assim, as operações de paz gradualmente demonstraram ser ferramentas de caráter permanente e o principal mecanismo de gerenciamento de conflitos da organização10. Prova disto foi a publicação dos documentos “Uma Agenda para a Paz” (1992) e “Suplemento de uma Agenda para a Paz” (1995) e a criação do DPKO (Department of Peacekeeping Operations) em 199211.
Tais documentos descrevem as técnicas de prevenção, monitoramento e resolução de conflitos da ONU que, de forma sucinta, podemos conceituar como: i) Diplomacia Preventiva (preventive diplomacy): prevenção ao surgimento de disputas entre Estados, ou no interior de um Estado, visando evitar a deflagração de conflitos armados, ou o alastramento destes uma vez iniciados. Contempla ações autorizadas de acordo com o Capítulo VI da Carta da ONU; ii) Promoção da Paz (peacemaking): ações diplomáticas empreendidas após o início do conflito, que visam a negociação entre as partes para a suspensão das hostilidades. Baseiam-se nos mecanismos de
6 BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx. Do fracasso à reforma das operações de paz das Nações Unidas (2000-2010). 2015. 191p. Tese (pós-graduação em Relações Internacionais) – Universidade Estadual Paulista Xxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx, São Paulo, 2015, p. 33.
7 Idem.
8 Idem.
9 XXXXXX, Xxx Xxxxxxx. Five generations of peace operations: from the "thin blue line" to "painting a country blue". Revista brasileira de política internacional, Xxxxxxxx , x. 00, x. 0, x. 000.
10 BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 33.
11 Idem.
solução pacífica de controvérsias, previstos no Capítulo VI da Carta da ONU; iii) Manutenção da Paz (peacekeeping): ações empreendidas por militares, policiais e civis, no terreno do conflito, com o consentimento das partes, objetivando o monotonamente e o controle de conflitos (cessar-fogos, separação de forças, etc) e também a sua mediação (acordos de paz). Tais ações são complementadas por esforços políticos no intuito de estabelecer uma resolução pacífica para o litígio. A base jurídica deste tipo de operação não se enquadra perfeitamente no Capítulo VI nem no Capítulo VII da Carta da ONU, o que leva alguns analistas a situá-las em um imaginário ‘Capítulo VI e meio’; iv) Consolidação da Paz no pós-conflito (post- conflict peacebuilding): executadas após a assinatura de acordos de paz, tais ações visam fortalecer o processo de reconciliação nacional através da reconstrução das instituições, da economia e da infraestrutura do Estado anfitrião. Os Programas, Fundos e Agências das Nações Unidas atuam na promoção do desenvolvimento econômico e social, mas também pode haver a presença de militares e policiais; v) Imposição da paz (peace-enforcement): ações respaldadas pelo Capítulo VII da Carta da ONU, as quais incluem o uso de força armada na manutenção ou restauração da paz. São estabelecidas quando o CSNU julga haver ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão, e geralmente não contam com o consentimento de todas as partes em conflito12
Neste sentido, o conceito de construção da paz foi introduzido no léxico internacional no início dos anos 1990 com o documento Uma Agenda para a Paz de Xxxxxxx- Xxxxxxx Xxxxx, então secretário-geral das Nações Unidas, sob a definição de “action to identify and support structures which will tend to strengthen and solidify peace in order to avoid a relapse into conflict”13. É possível observar ao longo das mais de seis décadas da prática de missões de paz pela ONU uma ampla variedade de mandatos, com diferentes atividades e objetivos, "composição das forças militares, policiais e civis, além das variadas formas como cada sociedade reage aos esforços da ONU na área de prevenção, monitoramento ou resolução de de conflitos”14. Por este motivo, um consenso acerca da classificação para as operações de paz é inexistente.
Respaldado pela extensa literatura e os diversos debates sobre operações de paz e intervenções armadas e levando em consideração a diversidade de tarefas e atores, Xxxxxx analisa o conceito através de cinco gerações: i) traditional peacekeeping; ii) civilian tasks; iii) peace enforcement; iv) peacebuilding e v) hybrid missions. Centradas em fatores como mandatos, tarefas, atitude da ONU em relação ao conflito e atores necessários para se cumprir o mandato, as gerações são divididas com base em três elementos principais: "the level of
12 Ibidem, p. 34.
13 BAXEVANIS, Christos. International Community and its Responsibility to rebuild war-torn societies:
Towards a Cosmopolitan Approach to Peacebuilding. 7th Conference of the Postgraduate and Early Professionals/Academics Network of the Society of International Economic Law (PEPA/SIEL), Nicosia, 2018, p. 1.
14 BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 35.
force used by operations military pillar; the type and depth of tasks conducted by its civilian pillar; and in the case of the latest generation, increased UN load-sharing with regional organizations”15. Em contrapartida, apesar de autores como Bigatão reconhecerem a utilidade da divisão em gerações, eles admitem que esta possa conduzir a uma ideia errada de padronização das operações de paz por gerações. Tais autores optam, portanto, por classificar as operações de paz em tradicionais e multidimensionais, assumindo como critérios os objetivos estabelecidos nos mandatos das missões quando são aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (UNSC).
De acordo com Xxxxxxx, Xxxxxxxx e Griffin16, as operações tradicionais dispõem de três princípios: i) consentimento das partes em conflito; ii) mínimo uso da força por parte dos peacekeepers; e iii) imparcialidade da organização em não favorecer nenhum dos beligerantes. Ademais, as operações de paz têm como objetivos principais fortalecer o grau de confiança e abrir espaço para diálogo entre as partes em litígio, ao mesmo tempo em que acompanham o cessar-fogo e se colocam fisicamente entre as partes para prevenir a violência17. Aqui, ressalta-se que tais operações, estabelecidas entre a formação de um cessar- fogo e a consagração de um acordo político para o fim dos conflitos entre as partes, não buscam fornecer uma solução pelos seus próprios meios mas sim forçar uma negociação de acordo entre as partes em conflito. De outro modo, as operações multidimensionais possuem mandatos que determinam diversos objetivos, a nível de exemplo: i) administração de territórios e repatriamento de refugiados; ii) apoio a processos políticos e constitucionais; iii) prestação de ajuda humanitária; iv) proteção de civis v) promoção dos Direitos Humanos; e
vi) o tradicional acompanhamento do processo político para a formalização de um acordo entre as partes18. Em decorrência deste amplo conjunto de atividades, estão envolvidos no processo não apenas os peacekeepers como também agentes humanitários de organizações não governamentais, contingente civil, policial e programas das Nações Unidas19.
15 XXXXXX, Xxx Xxxxxxx, op. cit., p. 125.
16 XXXXXXX, X. X.; XXXXXXXX, P.; XXXXXXX, S. apud BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx. Do fracasso à reforma das operações de paz das Nações Unidas (2000-2010). Tese (pós-graduação em Relações Internacionais) – Universidade Estadual Paulista Xxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx, São Paulo, 2015, p. 35.
17 BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 35.
18 Ibidem, p. 36.
19 Idem.
Já na primeira metade da década de 1990, desastres humanitários como os ocorridos em Ruanda, na Somália e na Bósnia-Herzegovina puseram em dúvida a concepção de que a ONU estaria preparada para assumir responsabilidades no que diz respeito à segurança internacional e à manutenção de paz na “nova ordem mundial”20. A incapacidade das missões de paz enviadas a estes três países em atingir seus objetivos principais, bem como a condição de esgotamento de recursos decorrente da expansão da agenda de segurança da ONU no período pós-Guerra Fria, contribuíram fortemente para a expansão da ideia de uma desqualificação da ONU quanto a sua atuação além das missões tradicionais de monitoramento de conflitos entre os Estados21. Ou seja, o otimismo do período pós-Guerra Fria não tardou a se converter e os desastres humanitários evidenciaram a inaptidão da ONU em lidar com conflitos intraestatais22.
Ademais, alguns estudiosos afirmam que as operações de paz envolvem formas sutis de exploração econômica. Xxxxxxx Xxxx argumenta que as operações de paz nos Bálcãs foram parcialmente motivadas pela pretensão de integrar o sudeste da Europa ao capitalismo ocidental23. Da mesma forma, William Robinson24 alega que a operação na Nicarágua "served the interests of ‘transnational capital’ by opening the Nicaraguan economy to foreign investment and by limiting the power of anti-capitalist forces within Nicaragua itself”25. Segundo Xxxxxx Xxxxx, tais autores têm razão ao afirmar que o peacebuilding não é puramente altruísta, contudo, há de se considerar que as missões de paz normalmente ocorrem em locais mais pobres, economicamente estagnados e que têm pouco a oferecer às grandes potências capitalistas26. Como exemplo, Paris retoma à missão no Camboja, que teve um custo de aproximadamente US$ 3 bilhões e gerou poucos benefícios econômicos para as agências que interviram no país.
20 Ibidem, p. 18.
21 Ibidem, p. 18.
22 Ibidem, p. 27.
23 XXXX, Xxxxxxx apud PARIS, Xxxxxx. International peacebuilding and the ‘mission civilisatrice’. Review of International Studies, vol. 28, Cambridge, 2002, p. 652.
24 XXXXXXXX, Xxxxxxx apud PARIS, Xxxxxx. International peacebuilding and the ‘mission civilisatrice’.
Review of International Studies, vol. 28, Cambridge, 2002, p. 652.
25 PARIS, Roland. International peacebuilding and the ‘mission civilisatrice’. Review of International Studies, vol. 28, Cambridge, 2002, p. 652.
26 Ibidem, p. 653.
De acordo com Paris, uma outra maneira de se interpretar as operações de paz, além da gestão de conflitos, é através da concepção da democracia liberal de mercado como um modelo de governança doméstica internacionalmente aceito. O autor defende que ao buscar estabilizar países que passaram recentemente por guerras civis, as operações de paz difundem uma visão particular de organização interna dos Estados baseada em princípios da democracia liberal e da economia voltada ao mercado e que devem ser aceitas para que os países tenham plenos direitos e reconhecimento da comunidade internacional27. Deste modo, Paris argumenta que as operações de paz da ONU são transmissores de padrões de governança aceitáveis internacionalmente para países da periferia e, mais que isso, defende que o peacebuilding é uma forma de missão civilizatória moderna, retomando a crença colonial de que as potências imperiais europeias “avançadas" possuíam o dever de “civilizar” populações “atrasadas” através da colonização28. Contudo, Paris ressalta que esta comparação não deve ser levada ao extremo, visto que as missões de paz: i) não se baseiam em teorias de superioridade racial; ii) geralmente não buscam extrair recursos materiais ou humanos dos países hospedeiros; iii) são aprovadas pelos governos locais; e iv) normalmente são realizadas por um período de tempo limitado29.
Nas palavras do autor:
Most obviously, the decision to deploy international peacebuilding operations cannot be separated from the national security interests of the world’s most powerful states, particularly the permanent members of the UN Security Council, who have the power to veto the creation of new UN-sanctioned missions. Fears about refugee flows into the United States, for example, appear to have driven the international commitment to build peace in Haiti; and it seems unlikely that NATO member states would have devoted billions of dollars to peacebuilding in Bosnia if that war- ravaged country were in sub-Saharan Africa, rather than right next door in Europe. [...] In short, the practice of peacebuilding has been considerably more charitable and consensual than the behaviour of many colonial powers. There is, however, at least an echo of the mission civilisatrice in the contemporary practice of peacebuilding. As we have seen, the assistance that peacebuilding agencies offer war- shattered states tends to come with ideological strings attached. Recipients are expected to bring themselves into conformity with the prevailing international standards of domestic governance, which means holding ‘free and fair’ elections, respecting civil and political rights, placing constitutional limits on the powers of government, and undertaking market- oriented economic reforms, among other things. To the extent that these standards reflect the ideological predilections of the most powerful states in the world — the core of the international system — peacebuilding is not merely a tool of conflict management, but a new phase in the ongoing and evolving relationship between the core and the periphery of the
27 Ibidem, p. 650.
28 Ibidem, p. 637.
29 Ibidem, p. 652.
À vista disto, as missões de paz, além de gestoras de conflitos, são também fenômenos da globalização do modelo de democracia liberal de mercado – elas restabelecem instituições políticas e econômicas liberais em sociedades pós-conflito e reforçam uma ordem global liberal31. Por sua vez, estes valores políticos e econômicos liberais são amplamente internalizados e difundidos por diversas organizações internacionais, as quais, envolvidas em missões como as ocorridas em Angola, Ruanda, Nicarágua, ex-Iugoslávia e Camboja, apoiaram a transformações destes Estados destruídos pela guerra em democracias liberais de mercado32. A título de exemplo, pode-se citar a ONU, que ajudou a preparar, supervisionar e/ ou administrar as eleições dos países citados acima, bem como a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) que se comprometeu a supervisionar o processo eleitoral no Kosovo e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que reafirmou seu compromisso em defender os princípios da liberdade individual, da democracia e do Estado de Direito ao participar da operação na Bósnia33. Cabe ressaltar também o papel do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial que atuaram, sobretudo, através de assistências financeiras mediante condicionalidades impostas aos países. Segundo Paris, os desenvolvimentos da política global demonstram que a democracia se tornou um novo “standard of legitimate statehood in the post-Cold War period”34 e que “without exception, peacebuilding missions in the post-Cold War period have attempted to ‘transplant' the values and institutions of the liberal democratic core into the domestic affairs of peripheral host states”35.
30 Ibidem, p. 653.
31 Ibidem, p. 638.
32 Ibidem, p. 639.
33 PREÂMBULO do Tratado do Atlântico Norte apud PARIS, Roland. International peacebuilding and the ‘mission civilisatrice’. Review of International Studies, vol. 28, Cambridge, 2002, p. 640.
34 PARIS, Roland apud BAXEVANIS, Christos. International Community and its Responsibility to rebuild war- torn societies: Towards a Cosmopolitan Approach to Peacebuilding. 7th Conference of the Postgraduate and Early Professionals/Academics Network of the Society of International Economic Law (PEPA/SIEL), Nicosia, 2018, p. 6.
35 PARIS, Roland, op. cit., p. 638.
Este viés liberal de organizações internacionais, segundo Xxxxxx Xxxxx, se tornou mais evidente com o fim da Guerra Fria e, mais especificamente, com a desintegração do bloco soviético. Conforme argumenta
Da mesma forma que a ONU no pós-Guerra Fria, a União Europeia se tornou mais vigorosa na defesa de princípios democráticos liberais. Em 1993, a UE adotou o desenvolvimento, a consolidação da democracia, o Estado de Direito, as liberdades fundamentais e os Direitos Humanos como uns dos principais objetivos da PESC37. Igualmente, a OSCE, que anteriormente havia concordado com a não intervenção em aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais dos países, anunciou a sua intenção de promover a democracia liberal, estabeleceu o Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR) e prestou assistência a processos eleitorais e à elaboração de novas constituições às democracias emergentes do ex bloco soviético38.
Os mecanismos utilizados pelos peacebuilders para promover a democracia liberal de mercado variam de acordo com as operações de paz; entretanto, é possível dividi-los em quatro categorias. Em primeiro lugar, os peacebuilders moldam os conteúdos dos acordos de paz enquanto estes são redigidos: na Namíbia, por exemplo, as características principais do acordo de paz foram elaboradas por Estados como França, Estados Unidos e Grã Bretanha. Em segundo lugar, constata-se a difusão de normas liberais através de conselhos de especialistas externos no processo de implementação dos acordos. Este também é o caso da Namíbia, no qual a ONU recomendou o uso de uma linguagem específica que enfatizasse
36 PARIS, Roland, op. cit., p. 641.
37 PARIS, Roland, op. cit., p. 642.
38 Idem.
liberdades civis e eleições livres no processo de elaboração de uma nova constituição. Um terceiro mecanismo de promoção dos ideais democráticos liberais de mercado são as já citadas condicionalidades impostas por agências como o FMI e o Banco Mundial exigindo que os Estados adotassem reformas econômicas e políticas específicas como contrapartida da ajuda econômica. O quarto e último mecanismo diz respeito ao desempenho de funções estatais por parte de atores internacionais, sendo o caso do Kosovo o maior exemplo constatado. Nas palavras de Xxxxxx Xxxxx:
3. O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO CENÁRIO PÓS- CONFLITO DO KOSOVO
Após a Guerra do Kosovo, foram contabilizadas cerca de 120.000 casas e infraestruturas importantes destruídas ou danificadas e o colapso da ordem jurídica no território. Uma das coisas mais impressionantes depois de 1999 foi a rapidez com que a sua mentalidade geográfica e física mudou40. Durante os anos 1990, representações sérvias eram muito proeminentes no Kosovo: o uso do alfabeto cirílico, bandeiras, polícia, administração, documentos, televisão e rádio são alguns exemplos. Com a guerra, tudo isso foi rapidamente substituído41. De mesmo modo, qualquer forma de governança sérvia desapareceu em regiões de maioria albanesa – como no norte do país42.
A atuação da ONU no Kosovo teve início logo após a intervenção realizada pela OTAN em 1999, estreando uma nova fase de missões de paz por meio da administração de territórios. Momentos após o bombardeio da Operação Allied Force da OTAN ser realizado, o UNSC adotou a resolução 1244. Sob o capítulo VII da Carta de São Francisco, a resolução autorizava a presença internacional por meio do envio da Força do Kosovo (Kosovo Force –
39 PARIS, Roland, op. cit., p. 646.
40 XXXXX, Xxx. Kosovo: What everyone needs to know. Nova Iorque, Orxford University Press, 2008, p. 98.
41 Idem.
42 XXXXX, Xxx, op. cit., p. 93.
KFOR) sob a liderança da OTAN e da Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (United Nations Interim Administration Mission in Kosovo – UNMIK)43.
A principal função da UNMIK é governar a vida pública no território kosovar44, possuindo como principais objetivos: i) coordenar ações de assistência humanitária; ii) estabelecer uma administração civil interina; iii) auxiliar na reconstrução da infra-estrutura;
iv) promover o estabelecimento de um governo autônomo no Kosovo; e v) promover os Direitos Humanos45. Sua estrutura conta com quatro componentes essenciais: a ONU, a qual chefia a administração civil; a União Europeia que coordena a reconstrução; o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que tratava de assuntos humanitários – mas deixou de fazer parte da Missão em 2000; e a OSCE, encarregada da criação de instituições e da democratização46.
Nos primeiros dias da administração de transição, vários desafios foram encontrados para a reconstrução do sistema judicial e o estabelecimento do Estado de Direito. Conforme mencionado, a violência no Kosovo e os ataques aéreos da OTAN causaram danos significativos na infraestrutura de grande parte da região. Muitos textos legais, instalações, equipamentos e outros materiais necessários para um sistema judicial operar foram inviabilizados ou danificados. Além desta deficiência na infraestrutura física, constatou-se também a falta de conhecimento especializado no Kosovo: desde a revogação da sua autonomia em 1989, os profissionais jurídicos kosovar-albaneses tinham pouca experiência como juízes ou promotores e, após o conflito, foram poucos os juízes sérvios que decidiram permanecer no local e, os que fizeram, não estavam dispostos a contribuir.
Desta maneira, a administração demandava recursos humanos adequados e foi forçada, em alguns momentos, a contar com a expertise local em áreas que se faltava experiência. Apesar disso, o governo falhou em envolver a população local em áreas cruciais e, como consequência, esforços para estabelecer um sistema legal interino e estável
43 XXXXXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXXX, Xxx; XXXXXX, Xxxxx X. Law and Practice of the United Nations. Nova Iorque, Oxford University Press, 2016, p. 451.
44 XXXXX, X. X. X. A Administração Territorial na Prática da ONU: O Caso do Kosovo. 2013. 199p. Tese (doutorado em Direito) – Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 14.
45 BIGATÃO, Xxxxxxx xx Xxxxx, op. cit., p. 190.
46 XXXXX, Xxxxx; XXXXXXX, Xxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx. The Post-Conflict Transitional Administration of Kosovo and the Lessons-Learned in Efforts to Establish a Judiciary and Rule of Law, 2001, v. 22, issue 3, p. 373.
fracassaram ao encontrar resistência da população47. De acordo com Xxxx Xxxxx, a atuação
onusiana foi marcada por uma “deterioração progressiva de sua presença”48 e contribuiu
fortemente para um contexto de instabilidade49. O autor defende que além da administração da ONU ter sido abusiva em certos aspectos, principalmente ao excluir os kosovares de mecanismos institucionais, políticas públicas e processos decisórios, a organização também teria optado por um dos lados do conflito social50.
Xxxxx aponta, outrossim, dois fatores que dificultaram ainda mais o processo de definição do status político final do Kosovo. O primeiro deles foi a ascensão de uma nova elite política de kosovar-albaneses que desejava a independência e desconfiava do processo de reconciliação com os sérvios51. Esta elite incorporava uma das principais organizações armadas kosovar-albanesa: o Exército de Liberação de Kosovo (ELK, ou Ushtria Çlirimtare e Kosovë, “UÇK”, em albanês). O ELK foi inicialmente denominado por oficiais estadunidenses como um grupo terrorista e, segundo a resolução 1244, um objeto de desmilitarização. Além disso, este grupo "passou a ser considerado um dos responsáveis pela luta pela liberdade contra os sérvios e seus membros alçados a heróis de uma nação em construção”52. Membros de menor patente do ELK foram incorporados à polícia do Kosovo para atuar apenas em emergências mas, segundo Xxx Xxxxx, na prática funcionavam como um exército kosovar53. De outro modo, líderes do grupo fizeram parte da nova leva de políticos que ocuparam cargos representativos da estrutura burocrática fomentada pela ONU. Muitos foram eleitos para cargos altos da administração local, como por exemplo, o cargo de
47 Ibidem, p. 372.
48 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 150.
49 Ibidem, p. 151.
50 XXXXX, X. X. X. A Administração Territorial na Prática da ONU: O Caso do Kosovo. 2013. 199p. Tese (doutorado em Direito) – Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 14.
51 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 151.
52 Idem.
53 XXXXX, Xxx. apud XXXXX, J. H. R. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 151.
Primeiro-Ministro com: "Xxxxxx Xxxxx (1999 a 2000; 2009 a 2014); Xxxxxx Xxxxxxxxx (2004
a 2005), Xxxx Xxxx (2006 a 2008) e Bajram Rexhepi (2002 a 2004)”54.
Por sua vez, o segundo fator que dificultou ainda mais o processo de definição do status final do território foi a estrutura organizacional da missão que facilitou a concentração de poderes no cargo de Representante Especial do Secretário Geral (em inglês, Special Representative of the Secretary General) "[...] ao invés da criação de mecanismos de participação social e instituições democráticas – ao preço de muita insatisfação com a administração internacional”55. O SRSG, que concentra o processo decisório e o corpo burocrático da missão, é designado pelo Secretário Geral em consulta com o UNSC sem qualquer parecer da população local. Sua única limitação é o disposto na resolução 1244 e “em termos políticos, responde diretamente ao Secretário-Geral: não há qualquer mecanismo de accountability em relação à população kosovar ou aos Estados membros da ONU, incluindo a Sérvia”56.
Após a rápida atuação do brasileiro Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxx como Representante Especial do Secretário Geral interino, o europeu Xxxxxxx Xxxxxxxx foi escolhido. Xxxxxxx esteve no cargo de SRSG até 2001 e a sua administração foi fortemente marcada pela carência de diálogo público com a população local. Ademais, cabe ressaltar que a primeira regulação feita por Xxxxxxxx "concentrava todos os poderes em seu cargo ‘toda autoridade legislativa e executiva em relação ao Kosovo, incluindo a administração do judiciário, está investida na UNMIK e exercida pelo Representante Especial do Secretário-Geral’ (UNMIK, 1999, art. 1(1))“57.
Em maio de 2001, foi adotado um novo marco legal no Kosovo. Denominado um Quadro Constitucional para o Autogoverno provisório em Kosovo, o documento estabeleceu os principais arranjos institucionais que permaneceram até a proclamação de independência em 2008. Sob a alegação de fornecer autonomia aos locais, foram estabelecidas as Instituições
54 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 151.
55 Idem.
56 Idem.
57 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 151 - 152.
Provisórias de Autogoverno (“PISG", em inglês: Provisional Institutions of Self-Government). Conforme aponta Roriz,
As PISG constituíam: (i) a Assembleia, que elege o Presidente de Kosovo; (ii) o Governo, com o Primeiro-Ministro nomeado pelo Presidente e endossado pela
Assembleia; (iii) o Sistema Judiciário, apontado pelo SRSG após uma lista endossada pela Assembleia após a propositura do Conselho Judicial e Persecutório. Entretanto, a concessão de autonomia aos locais tinha limites claros. As PISG continuavam
subordinadas diretamente ao SRSG, que poderia simplesmente revogar suas decisões. As funções administrativas mais importantes não foram transferidas aos locais. Se as Instituições Provisórias regulavam áreas como cultura, saúde, proteção ambiental,
turismo, educação, ciência e tecnologia, a UNMIK teve seus poderes reafirmados, tais como: dissolver a Assembleia e conclamar novas eleições; manter a autoridade final sobre questões financeiras, orçamentárias e monetárias; controlar as fronteiras; designar juízes e promotores; em conjunto com a OTAN, exercer funções de defesa, manter a ordem e a segurança públicas; firmar acordos com outros países e organismos internacionais, assim como outras questões de relações exteriores; controlar bens e propriedades públicas, bem como empresas públicas; controlar transportes públicos, incluindo a aviação; e estabelecer limites dos municípios (UNMIK, 2001). O desequilíbrio era patente58.
Deste modo, a UNMIK foi organizada de uma maneira em que todos os poderes de administração pública estivessem centralizados no SRSG: não havia qualquer instituição em Pristina que limitasse o que o SRSG poderia fazer ou não: “ele concentrava de fato os poderes executivo, legislativo e judiciário, e inexistiam instrumentos de pesos e contrapesos, divisão de poderes e uma estrutura ramificada de tomada de decisões”59. Xxxxx ainda acrescenta que “o SRSG tinha o monopólio legítimo do uso da força, ao controlar a polícia e agir em cooperação com os militares da OTAN”60 e que da mesma forma, os kosovares não exerciam nenhum controle sobre a forma a qual eles gostariam de organizar a esfera pública. Por mais que indiretamente as Instituições Provisórias de Autogoverno e os líderes kosovares pudessem, de certa forma, influenciar a vida pública, as decisões finais eram sempre do SRSG61.
É importante ressaltar que, de outra forma, alguns autores como Xxxxx consideram que, apesar das críticas internas e externas a UNMIK, a organização “in effect it fulfilled its mandate of helping to create Kosovo’s institutions and giving its people the means to live as
58 Idem.
59 Idem.
60 Idem.
61 Idem.
much of an ordinary life as possible”62. Dentre as principais conquistas da UNMIK, o autor destaca a criação e o treinamento do Serviço de Polícia do Kosovo (KPS), o qual fornecia documentos às pessoas e o estabelecimento de uma assembleia e um governo63. No mais, Xxxxx também ressalta algumas datas importantes do que diz respeito a UNMIK: i) em janeiro de 2000, a UNMIK deu início a criação de proto-ministérios, os quais eram chefiados tanto por um estrangeiro quanto por um local; e ii) em maio de 2001, foi adotado um quadro constitucional que levaria à eleições gerais, à criação de uma assembleia, um governo e à presidência. Xxxxx defende que, a partir deste ponto, o poder foi gradualmente entregue às instituições do Kosovo, mesmo que, na prática, a palavra final sobre qualquer assunto permanecia sendo a do SRSG64.
Eventos de março de 2004, então, abalaram fortemente o cenário político no Kosovo, que naquele momento já presenciava uma conjuntura de provocações e protestos. Neste mês é celebrado o aniversário da campanha realizada pela OTAN em 1999 e, por isto, são comuns manifestações de grupos políticos adversários. Neste cenário de ânimos aguçados, três crianças kosovar-albanesas supostamente morreram por afogamento no Rio Ibar. Segundo os sérvios, tal evento nunca aconteceu ou as crianças apenas caíram e se afogaram no rio ao fugiram de cães. Por outro lado, kosovares-albaneses defendem que os garotos foram jogados por um grupo sérvio. As transmissões em televisões e rádios divulgaram "com informações
contraditórias e sem clareza total dos eventos”66 as mortes como crimes etnicamente
62 XXXXX, Xxx, op. cit., p. 95.
63 Idem.
64 Idem.
65 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 153.
66 Idem.
motivados e uma onda de extrema violência teve início por todo o território. Em poucos dias, o resultado foi – neste “pequeno território sob responsabilidade internacional, muito policiado e com a presença de milhares de militares fortemente armados da OTAN”67 – de 19 mortos, 29 igrejas e monastérios sérvios queimados e/ou danificados, aproximadamente 900 feridos e
3.000 pessoas forçadas a deixarem suas casas – a maioria de origem sérvia68.
A violência que se seguiu expôs a insatisfação no Kosovo e, mais que isso, a incapacidade das instituições políticas de a prevenir. Como reconhece Xxxxx, a estabilidade do Kosovo se encontrava em um momento extremamente delicado, em que não houve o avanço no apaziguamento divergências étnicas e em que resultados efetivos não foram alcançados através das poucas iniciativas de justiça de transição69. A insatisfação quanto ao despreparo em lidar com emergências e à administração pública se intensificavam de modo que a violência não mais se dirigia apenas à etnia inimiga como também a ONU. Segundo relatos de ex-funcionários da UNMIK, a população kosovar-albanesa “voltou sua fúria coletiva contra seus ‘senhores' internacionais, atirando pedras em prédios da ONU, queimando bandeiras da ONU e destruindo mais de 100 dos inconfundíveis [veículos] Toyota brancos 4x4”70.
Cabe ressaltar que os episódios de violência em 2004
Alteraram radicalmente a agenda dos países ocidentais sobre Kosovo e a pressão pela definição do status do território chega à ONU, organização vista como responsável por qualquer passo fora da cadência no processo de pacificação e de viabilidade organizacional do território. Liderado pelos Estados Unidos, um movimento de apoio à “causa kosovar” (que nesse caso significava àquelas que se identificavam como “albaneses”, pois isso significaria apoiar a independência de Kosovo) permeou os processos de negociação e o “último recurso” da independência política de Kosovo passa a ser defendido, às margens da resolução 1244 e com
argumentos que mesclavam o pretenso caráter sui generis de Kosovo com a referida tese da 'autodeterminação remediadora’"71.
67 Idem.
68 DE VRIEZE. apud XXXXX, J. H. R. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 153.
69 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 154.
70 XXXX, Xxx; XXXXX, Whit. apud XXXXX, J. H. R. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 154.
71 XXXXX, X. X. X. A Administração Territorial na Prática da ONU: O Caso do Kosovo. 2013. 199p. Tese (doutorado em Direito) – Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 23.
Neste sentido, o início da UNMIK "deu o tom de como a ONU conduziu sua primeira empreitada de administração de um território não oriundo de um contexto colonial”72. Um dos principais problemas enfrentados pela ONU em operações de paz é referente à governança e visões externas que desconsideram o histórico e o contexto sociocultural de cada território. De acordo com Xxxxxx Xxxxxxxx, pode-se afirmar que a ONU enfrenta um problema sério de falta de sensibilidade ao conflito73. Tal cenário é descrito pelo autor como uma "paz virtual”, a qual "looks far more coherent from the outside than from inside, and effectively builds the empty shell of a state, but neglects any notion of a social contract between the shell and its constituencies”74.
Padrões de comportamento aceitáveis pelo núcleo liberal ocidental do Sistema Internacional foram, então, transferidos para regiões em conflito – como Estados periféricos e Estados Falidos – sem se levar em consideração as peculiaridades e características locais existentes75. Os habitantes locais, vistos como incapazes de participar do processo de construção da paz, são tratados como meros receptores e não como parceiros iguais. É justamente neste sentido em que Xxxxxx Xxxxx analisa a construção da paz como, em partes, uma missão civilizatória que impõem a democracia liberal de mercado e o sistema de Vestfália76.
Por fim, a construção da paz inclui, em teoria, diferentes formas de intervenção, como por exemplo uma estratégia de segurança e reforma constitucional. Contudo, na prática, segurança humana e construção da paz costumam ser abordadas separadamente. Mais que isso, como defende Xxxxxxx Xxxxx, a segurança humana foi negligenciada e até mesmo subestimada quando organizações internacionais optaram pela priorização da construção do Estado no Kosovo77. O autor defende que a reconstrução de um Estado no pós-conflito requer,
72 XXXXX, X. X. X. Administrando a imparcialidade: a ONU e a independência de Kosovo. Carta Internacional, v. 10, n. 2, p. 146-162, 15 ago. 2015, p. 151.
73 XXXXXXXX, Xxxxxx. apud BAXEVANIS, Christos. International Community and its Responsibility to rebuild war-torn societies: Towards a Cosmopolitan Approach to Peacebuilding. 7th Conference of the Postgraduate and Early Professionals/Academics Network of the Society of International Economic Law (PEPA/SIEL), Nicosia, 2018, p. 7.
74 Idem.
75 DULIC, Dragana. Peace Building and Human Security: Kosovo Casa. Graz, HUMSEC Journal Issue 3, p. 6.
76 BAXEVANIS, Christos, op. cit., p. 8.
77 DULIC, Dragana, op. cit., p. 2.
Nas palavras do autor
4. A INDEPENDÊNCIA KOSOVAR E AS RELAÇÕES COM A UNIÃO EUROPEIA
A fase embrionária da relação entre a União Europeia (UE) e o Kosovo teve início na década de 1990, após a queda do Muro de Berlim e a democratização dos países da Europa Central e Oriental80. Seus vínculos – mínimos no período anterior a 1989 – emergiram como resultado da situação de crise política e econômica do país. Em outras palavras, com a crise humanitária enfrentada no território entre 1990 e 1999, o bloco passou a de fato dar importância ao kosovares81. Um segundo estágio desta relação foi correspondente ao ano de 1999 a 2007, momento em que o Kosovo encontrava-se sob a administração da ONU através da UNMIK. O bloco europeu foi responsabilizado pelo Pilar IV da missão e, como consequência, grupos como o European Commission Taskforce for the Reconstruction of Kosovo, European Humanitarian Aid Office (ECHO) e European Agency for Reconstruction foram protagonistas no processo de reconstrução kosovar82.
Através da Comissão Europeia e do Banco Mundial, a UE criou um programa de reconstrução e recuperação para consolidar a administração pública, fortalecer instituições eficazes e sustentáveis, coordenar melhorias de infra-estrutura e desenvolver uma economia
78 DULIC, Dragana, op. cit., p. 4.
79 DULIC, Dragana, op. cit., p. 9.
00 XXXXX, Xxxxxxx Xx. The Development of Kosovo and its Relationship with the EU. Hamburgo: Institute for European Integration, 2015, p. 4.
81 Idem.
00 XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx. Kosovo After Independence: Is the EU’s EULEX Mission Delivering on its Promises? Kosovo: Xxxxxxxxx Xxxxx Stiftung, 2009, p. 14.
de mercado aberta, próspera e transparente83. Por meio de instrumentos como o programa Community Assistance for Reconstruction, Development and Stabilisation (CARDS) e o Instrument for Pre-Accession Assistance (IPA) o grupo forneceu assistência financeira para a reconstrução econômica do Kosovo no pós-guerra. O CARDS, criado em 2000, era o principal instrumento de assistência financeira da União Europeia para os Bálcãs Ocidentais e foi substituído pelo IPA, um outro mecanismo de auxílio ao progresso político, econômico e às diretrizes dos padrões europeus. É sua prioridade, acima de tudo, o diálogo com os cidadãos.
Apesar das melhorias obtidas desde 1999, o país permanece sendo a região mais pobre dos Balcãs Ocidentais de tal modo que, em 2003, possuía um Produto Interno Bruto (PIB) extremamente baixo – aproximadamente 1.000 euros por pessoa84. Além disso, ainda que em 2007 o crescimento econômico kosovar tenha aumentado entre 3,5% e 3,8%, ele foi muito mais baixo do que nos outros países da região85. Segundo dados apresentados pelo Serviço de Estatística do Kosovo em 2003, a taxa de desemprego do país alcançava o nível de 50%86. Tão alarmante quanto, é o fato de o Kosovo ser uma das sociedades mais jovens da Europa mas seu índice de desemprego na juventude chegar a 70% em 200687. Em 2009, cerca de 44% dos jovens kosovares estavam dispostos a deixar o país88. Consequentemente, essa ausência de empregos acelerou o fenômeno de emigração em um cenário em que a União Europeia não estava em posição (e nem disposta) a acomodar os kosovares.
Nos anos de 2003 e 2004, o processo de privatização das empresas estatais kosovares se tornou a representação das políticas falhas da UNMIK e da União Europeia no país89. Nas palavras de Xxxxxx, “the Kosovo Trust Agency, which is responsible for privatisation, alongside Kosovo Energy Corporation, which is also run by the EU, has, over time, become
83 NEZAJ, Novitet Xh, op. cit., p. 10.
84 OFFICIAL JOURNAL OF THE EUROPEAN UNION. Council Decision (CFSP) 2020/792 of 11 June 2020
amending Joint Action 2008/124/CFSP on the European Union Rule of Law Mission in Kosovo. Disponível em:
<xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/XXX/?xxxxXXXXX:00000X0000&xxxxxXX>. Acesso em: 12 de nov. 2020.
85 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 12.
86 OFFICIAL JOURNAL OF THE EUROPEAN UNION. Council Decision (CFSP) 2020/792 of 11 June 2020
amending Joint Action 2008/124/CFSP on the European Union Rule of Law Mission in Kosovo. Disponível em:
<xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/XXX/?xxxxXXXXX:00000X0000&xxxxxXX>. Acesso em: 12 de nov. 2020.
87 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 10.
88 Idem.
89 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 14.
the very emblem of a corrupt and inefficient institution”90. O debate a respeito do processo de privatização foi lento e duramente criticado. Kosovares-albaneses insistiram na revogação de privatizações realizadas durante o governo de Xxxxxxxxx e, com o objetivo de estimular o desenvolvimento econômico, ansiavam por uma maior eficiência das antigas empresas estatais. Até 2008, foram privatizadas 417 das 551 (76%) empresas oferecidas, sendo que a maioria delas foi vendida por quantias abaixo dos seus valores de mercado. Ainda, os novos proprietários das empresas pouco fizeram para criar empregos, melhorar a infraestrutura e aumentar a produtividade local91.
Em novembro de 2005, com o objetivo de minimizar o impasse político kosovar, a ONU atribuiu ao ex-presidente finlandês Xxxxxx Xxxxxxxxx a responsabilidade de analisar opções para o futuro status do Kosovo. Simultaneamente, em dezembro do mesmo ano, Xxxxxx Xxxxxx (European Union High Representative for the Common Foreign and Security Policy) e Xxxx Xxxx (European Union Commissioner for Enlargement) apresentaram o relatório “The Future EU Role and Contribution in Kosovo” que evidenciou, em especial, uma possível missão integrada no âmbito da PESC. Neste sentido, a EUPT Kosovo (European Union Planning Team Kosovo), fundada em abril de 2006, abriu caminho para o que mais tarde viria a ser a XXXXX Xxxxxx00.
O Plano Ahtisaari, apresentado em março de 2007, recomendou a "independência supervisionada” como a única opção viável para o Kosovo e incluiu informações a respeito dos princípios e estruturas essenciais para o progresso do processo de independência93. Foi igualmente proposta uma missão (EULEX) que iria “'mentor, monitor and advise on all areas related to the rule of law in Kosovo’ and be invested with limited executive authority in the fields of justice, police and borders”94. Neste sentido, a proposta de independência supervisionada previa um importante papel para a União Europeia. A suposição de Xxxxxxxxx era de que a perspectiva de alargamento do bloco agiria como um incentivo e uma pressão à
90 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 15.
91 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 14.
92 GREVI, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D. European Security and Defence Policy: The First 10 Years
(1999-2009). Paris: The European Union Institute for Security Studies, 2009, p. 355.
93 UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. S/2007/168/Add.1. Disponível em: <xxxxx://xxxxxx.xxx/xx/X/ 2007/168/Add.1>. Acesso em 18 out. de 2020.
94 XXXXX, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 355.
normalização da relação entre o Estado do Kosovo e à República da Sérvia95. Contudo, não foi o que se sucedeu. Naturalmente, a Sérvia se opôs às recomendações de Xxxxxxxxx e a Rússia anunciou que vetaria qualquer tentativa do UNSC de aprová-la. Depois do falho empenho diplomático entre Estados Unidos, União Europeia e Rússia para uma solução consensual, o caminho para a declaração unilateral de independência foi aberto.
Após dois anos de negociações intensas, o Plano Xxxxxxxxx não foi aprovado unanimemente pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e em 17 de fevereiro de 2008 o Kosovo declarou unilateralmente a sua independência. Segundo Xxxxx Xxxxxx, o Kosovo pode ser definido como “an ‘unfinished state’, in which the government is able to exercise its authority only over parts of the country and in which five ‘protectorate masters’ – UNMIK, EULEX, ICO, KFOR and OSCE – operate”96. A declaração de independência kosovar, preparada sobretudo pelo Departamento de Estado dos EUA, foi lida em ambos os idiomas (albanês e sérvio) pelo primeiro ministro Xxxxxx Xxxxx e as celebrações foram planejadas meticulosamente afim de evitar incidentes. Igualmente, o novo governo kosovar teve cuidado
– em parte devido à pressão estadunidense e europeia – no processo de escolha da bandeira e hino nacional. Apesar disso, grandes protestos foram realizados em Mitrovica (parte norte do Kosovo de maioria sérvia). A declaração kosovar repercutiu de maneira violenta também em Belgrado, onde embaixadas e bandeiras ocidentais foram queimadas e, sob incentivo de políticos (como o primeiro ministro Xxxxxxxx Xxxxxxxxx e o presidente do Radical Party Xxxxxxxx Xxxxxxx), lojas e comércios locais identificados como ocidentais foram saqueados e vandalizados97. Ainda, apesar de não seguir adiante com as ameaças de boicote econômico e de fornecimento de energia e água, o governo sérvio implementou medidas diplomáticas contra países que reconheceram a independência kosovar98.
O Estado kosovar se depara com importantes limitações. A primeira, relativa ao campo interno, concerne a sua autonomia, “severamente tolhida não apenas pela precariedade da máquina estatal, mas por razões mais graves, como a ausência do Estado em partes do
95 HOOGENBOOM, Jitske. The EU as a Peacebuilder in Kosovo. Utrecht: IKV Pax Christi, 2011, p. 4.
96 SURROI, Veton. Xxxx XXXXXX, Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxx. Kosovo After Independence: Is the EU’s
EULEX Mission Delivering on its Promises? Kosovo: Xxxxxxxxx Xxxxx Stiftung, 2009, p. 2.
97 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 5.
98 Idem.
território, inexistência de meios de defesa e precário controle das fronteiras”99. A segunda, referente ao plano externo, diz respeito ao reconhecimento parcial da sua soberania (e não universal), impedindo-o de participar plenamente como membro da comunidade internacional. O governo kosovar esperava que a independência fosse reconhecida pela maioria dos países que integram a ONU, entretanto, tal desejo não foi concretizado. Apesar do número de reconhecimentos ter aumentado, o seu ritmo têm apenas reduzido; leva-se em consideração, também, a alta improbabilidade de alguns países mudarem de posição (como por exemplo a própria Sérvia)100.
Para Xxxxxx e Visoka, no geral, os Estados que optaram pelo não reconhecimento defendem a soberania e integridade territorial da Sérvia e argumentam que uma desintegração unilateral estabelece um precedente negativo no Sistema Internacional101. Já os países que reconhecem e apoiam a independência do Kosovo fundamentam tal posicionamento em fatores como a capacidade estatal kosovar e o comprometimento do país em respeitar o direito de minorias e aceitar uma independência supervisionada. Mais que isso, a maioria dos Estados que reconhecem a declaração argumentam que esta, um caso sui generis que não abre precedentes para outros, é a única forma de proporcionar a paz e estabilidade regional102.
Até o final do ano de 2015, apenas 108 dos 193 (56%) Estados integrantes das Nações Unidas reconheciam a declaração unilateral de independência do Kosovo103. Destaca-se, aqui, a posição dos países por agrupamentos em blocos. Em março do referido ano, reconheciam a independência do Kosovo: i) 23 dos 27 integrantes da União Europeia, correspondente a cerca de 85% do bloco – Chipre, Espanha, Eslováquia, Grécia e Romênia têm como principal motivo para o não reconhecimento questões referentes às suas minorias locais; ii) 7 dos 8 membros do G-8; iii) nenhum dos 5 membros dos BRICS; iv) 11 países do G-20; e v) 14 dos 22 integrantes da Liga Árabe – sendo que a Palestina, cujo reconhecimento como Estado soberano não é universal, não reconhece a declaração kosovar104.
99 XXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 173.
100 Ibdem, p. 268.
101 XXXXXX, Xxxxx; VISOKA, Gësim. apud XXXXXXXX, Xxxxxx X. X. Kôssovo: Província ou País? Brasília: Fundação Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, 2015, p. 274.
102 XXXXXX, Xxxxx; VISOKA, Gësim. apud XXXXXXXX, Xxxxxx X. X. Kôssovo: Província ou País? Brasília: Fundação Xxxxxxxxx xx Xxxxxx, 2015, p. 270.
103 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 2.
104 XXXXXXXX, Xxxxxx, op. cit., p. 269.
Isto posto, verifica-se que há uma propensão dos países ocidentais desenvolvidos a reconhecerem a declaração unilateral de independência kosovar. Da mesma forma, observa-se que o não reconhecimento é maior por parte dos países em desenvolvimento – como os BRICS. Vale destacar que a Rússia, ao mesmo tempo em que apoiou o princípio de preservação da integridade territorial da Sérvia no caso do Kosovo, contraditoriamente passou a defender o desmembramento da Ossétia do Sul e da Abkhazia da Georgia sob os mesmos fundamentos antes apresentados pelos países do ocidente ao defenderem a independência do kosovar. Semelhantemente, evidencia-se o posicionamento dos Estados Unidos, da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte em favor da integridade territorial da Georgia – o qual anteriormente não fora concedido à Sérvia105.
Assim sendo, o Kosovo busca, acima de tudo e, aproximando-se da União Europeia, obter reconhecimento internacional total e progredir seu processo de transição democrática106. Conforme mencionado anteriormente, as relações políticas e econômicas entre o Kosovo e a UE se desenvolveram em diferentes períodos históricos. Seu envolvimento integracional é evidenciado em diversos documentos oficiais – como por exemplo, a Constituição do Kosovo que em seu preâmbulo destaca a total intensão do país em participar do processo de integração Euro-Atlântico e que as pessoas do Kosovo estão convencidas de que "the state of Kosovo Will contribute to the stability of the region and entire Europe by creating relations of good neighbourliness and cooperation with all neighbouring countries”107.
O Processo de Estabilização e Associação (Stabilization and Association Process, SAP), através da gradual incorporação dos países ao bloco, é um dos componentes centrais da estratégia da União Europeia para estabilizar a região dos Bálcãs Ocidentais. Porém, a rejeição por parte de cinco membro da UE em reconhecer a independência do Kosovo impossibilitou que o país integrasse o SAP. Os eventos em torno do reconhecimento do Kosovo e as dificuldades encontradas pelo país e pelo bloco sinalizam que a promessa de adesão à UE no futuro já não é mais suficiente para fomentar o desenvolvimento regional108. Evidentemente, a maneira pela qual o Kosovo progride no processo de adesão depende
105 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 7.
106 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 153.
107 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DO KOSOVO. Assembleia da República do Xxxxxx, 0000, p. v.
108 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 19.
também da política da Sérvia quanto ao país. Neste sentido, segundo Xxxxxx, a promessa da União Europeia de intensificar a integração da Sérvia não será suficiente para que o país ceda à causa kosovar109. O Kosovo é o único país dos Bálcãs que ainda não assinou o acordo de Estabilização e Associação (Stabilization and Association Agreement, SAA) e, para isso, Xxxxxx defende ser imprescindível desenvolver uma estratégia política para lidar com os cinco Estados membros que não reconhecem a independência do país110. Da mesma forma, o autor considera que o maior obstáculo para uma melhora da cooperação com a Sérvia é a política da EULEX com a população do norte do Kosovo.
Conforme mencionado anteriormente, o Plano Ahtisaari previa, após a declaração de independência do Kosovo em 2008, que a UNMIK deveria ser sucedida por uma missão internacional sob a égide da União Europeia (EULEX). A partir de 2009, a missão da ONU passou a rapidamente perder a credibilidade que ainda possuía, se vendo cada vez mais marginalizada e desempenhando um papel apenas no norte do país. No mesmo ano, o apoio da população kosovar à missão onuesca, segundo a United Nations Development Programme
(UNDP), foi reduzido a 16%111 e dos cerca de 3.329 funcionários na área de Estado de
Direito, 3.307 foram demitidos – muitos dos quais passaram a integrar a EULEX e a OSCE112.
Enfatiza-se, também, que em 31 de maio de 2009, o corpo operante da EULEX dispunha de
2.569 pessoas, ao passo que 1.651 eram servidores internacionais e apenas 918 eram locais113. Logo, com a UNMIK já enfraquecida pela existência de fato de um governo kosovar e pelas suas restrições financeiras e de recursos humanos, o vácuo político foi ocupado pela EULEX.
Com base jurídica na Ação Comum 2008/124/CFSP de 4 de fevereiro de 2008 do Conselho da União Europeia, a EULEX tem como objetivo principal contribuir para o Estado de Direito kosovar e, principalmente, reforçar as capacidades da polícia, do judiciário e dos serviços aduaneiros. Segundo a ONU, o Estado de Direito pode ser definido como
principle of governance in which all persons, institutions and entities, public and private, including the State itself, are accountable to laws that are publicly promulgated, equally enforced and independently adjudicated, and which are
109 Idem.
110 Idem.
111 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 17.
112 Idem.
113 Idem.
consistent with international human rights norms and standards. It requires, as well, measures to ensure adherence to the principles of supremacy of law, equality before the law, accountability to the law, fairness in the application of the law, separation of powers, participation in decision-making, legal certainty, avoidance of arbitrariness and procedural and legal transparency114
Procura-se, desta maneira, desenvolver o Kosovo para agir independentemente e sem interferências políticas – evidentemente, ainda de acordo com os padrões internacionais e europeus115. Como um “país-recém nascido”, o apoio da União Europeia através da EULEX foi fundamental no que diz respeito, principalmente, à polícia, alfândega e ao judiciário116. Mais especificamente, a EULEX dispõem de funções como:
De acordo com Xxxxxxxx Xxxxx, Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxxxxx, a XXXXX representa uma profunda mudança de ambição da ESDP (European Security and Defence Policy) e se torna uma missão única por quatro motivos principais118. Primeiro, a análise realizada anteriormente pela EUPT possibilitou uma clara visão a respeito da dimensão e grandeza necessária para se cumprir o que seu mandato se propôs a atingir. A abordagem da XXXX foi considerada extremamente detalhista no que tange às atividades da sua sucessora, bem como aos seus indicadores de desempenho em competências como justiça e serviços alfandegários. Ainda neste aspecto, a EULEX também foi a única missão civil da ESDP que incorporou funcionários de outros países. Em terceiro lugar, ela é considerada singular em razão do seu abrangente mandato, o qual a torna a primeira missão de Estado de Direito que contempla as esferas da polícia, alfândega e da justiça criminal e civil. Ademais, corresponde também à
114 UNITED NATIONS AND THE RULE OF LAW. What is the Rule of Law? Disponível em: <https:// xxx.xx.xxx/xxxxxxxxx/xxxx-xx-xxx-xxxx-xx-xxx-xxxxxxxx/>. Acesso em: 8 de set. de 2020.
115 XXXXX, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 357.
116 NEZAJ, Novitet Xh, op. cit., p. 14.
117 XXXXX, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 353.
118 XXXXX, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 350.
primeira missão civil responsável tanto por tarefas tradicionais de monitoramento, orientação e aconselhamento quanto por tarefas executivas mais sensíveis119. Por último, a singularidade da missão também decorre do importante papel que as unidades encarregadas da EULEX assumem quanto à gestão de funcionários e treinamentos.
A EULEX, que entrou em sua fase operacional em 9 de dezembro de 2008 e assumiu total capacidade em 6 de abril de 2009, teve um papel importantíssimo ao orientar o Conselho Judicial e o Supremo Tribunal do Kosovo, bem como ao contribuir na elaboração de estratégias nacionais no que concerne à gestão de fronteiras, combate ao terrorismo, crime organizado e narcóticos120. Para mais, tendo em vista que o combate à lavagem de dinheiro e à corrupção foram questões vitais para a cooperação com as autoridades do Kosovo, a missão também acompanhou a reestruturação do serviço policial e da seleção de funcionários de alto escalão. Em julho de 2009, após um dos mais importantes relatórios da missão, a atenção do seu corpo organizacional se voltou às notáveis fragilidades institucionais em toda justiça, polícia e alfândega. Nas palavras dos autores
Entre 1999 e 2008, o gasto da União Europeia com o Kosovo foi de aproximadamente 2,3 bilhões de euros mas, ainda assim, os efeitos reais sobre a economia kosovar foram mínimos. Se por um lado a reconstrução de casas, escolas e outras instalações públicas foi rapidamente bem sucedida, por outro, a instituição de uma economia funcional e viável em
119 GREVI, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 360.
120 GREVI, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 363.
121 Idem.
um cenário de subdesenvolvimento e de carência de infraestrutura foi quase impossível122. De acordo com Xxxxxx, em sua intervenção no Kosovo (caracterizada por uma série de defeitos estratégicos), a União Europeia não soube definir corretamente as suas prioridades123. Ele destaca que, assim como na Bósnia, o bloco não privilegiou o desenvolvimento econômico e, mais especificamente, desconsiderou o desenvolvimento rural kosovar – o qual representa cerca de 40% da força de trabalho local124. Embora o Kosovo seja um país agrário (aproximadamente 3/4 da população vive em áreas rurais e 60% da terra produtiva é agrícola), a maioria dos alimentos são importados de países vizinhos (como a Sérvia). Ao deixar de fornecer suporte para pequenos agricultores, os europeus ampliaram fortemente a dependência do Kosovo a alimentos externos.
A corrupção é um dos maiores obstáculos para a melhoria da situação econômica, social, política e democrática do Kosovo. Os abusos de Direitos Humanos no Kosovo decorrem, em parte, do seu fraco sistema de justiça e da falta de empenho da administração da ONU quanto à violência política. Bem como crimes comuns, grande parte dos abusos nos meses de guerra, do crime organizado e da corrupção não foram punidos. Segundo a Human Rights Watch, não há como o Estado de Direito ser estabelecido e criar raízes em um ambiente como este125. Para a organização, as deficiências da justiça criminal no Kosovo têm muitas causas, entre elas: i) pouca coordenação entre as diferentes partes do sistema, incluindo polícia, promotores e juízes; ii) falta de integração entre elementos nacionais e internacionais;
iii) carência de treinamento para juízes; e iv) supervisão inadequada por órgãos independentes126. Segundo o documento
122 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 14.
123 Idem.
124 Idem.
125 HUMAN RIGHTS WATCH. A Human Rights Agenda for a New Kosovo. Disponível em: <https://
xxx.xxx.xxx/xxxxxx/0000/00/00/xxxxx-xxxxxx-xxxxxx-xxx-xxxxxx>. Acesso em 10 nov. de 2020, p. 2.
126 Idem.
127 Idem.
Xxxxxxxxxx defende que, no geral, a situação do Estado de Direito no Kosovo não melhorou significativamente, sendo que em alguns aspectos, ela até se deteriorou128. A EULEX não detém a confiança de grande parte da população bem como de funcionários kosovares. D
À vista disso, é possível citar três debilidades principais vivenciadas durante este processo. Em primeiro lugar, a expectativa de que a implementação da EULEX se daria em todo o Kosovo não foi concretizada. Ao norte do Rio Ibar, sérvios-kosovares destruíram dois locais de fronteira e ocuparam o edifício do tribunal no norte de Mitrovica, tornando temporariamente impossível cobranças alfandegárias e o exercício da jurisdição130. Em outras palavras, na parte habitada pela maioria sérvia, as autoridades kosovares e a EULEX não exercem soberania, estando a supervisão a cargo da UNMIK131. Segundo, uma grande desordem quanto à lei aplicável nas atividades alfandegárias, judiciais, policiais e outros serviços públicos resultou em uma maior fragmentação política: enquanto autoridades sérvias do Kosovo se baseavam nas “leis da UNMIK” (implementadas pelo SRSG) ou até mesmo nas normas da antiga Iugoslávia, as autoridades kosovares vigentes promulgavam nova legislação. E terceiro, o fato de se “reconfigurar" a UNMIK para a EULEX foi uma drástica dificuldade enfrentada pela missão. A redistribuição de tarefas e competências no período de transição foi superficialmente colocada em prática e, mais que isso, havia uma profunda falta de clareza jurídica132. Ou sejap, uma efetiva transição de autoridade e equipamentos da UNMIK para a EULEX não ocorreu. No decorrer do ano de 2008, ambas as missões coexistiram lado a lado sendo muitas vezes alvo de atritos e desconfortos133. Uma análise minuciosa dos objetivos, do
128 HOOGENBOOM, Jitske, op. cit., p. 12.
129 HOOGENBOOM, Jitske, op. cit., p. 13.
130 GREVI, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 358.
131 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxx, op. cit., p. 162.
132 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 15.
133 GREVI, G; XXXXX, D; XXXXXXX, D, op. cit., p. 358.
mandato legal e das atividades da missão da União Europeia levam alguns estudiosos a crerem que, em sua natureza, a XXXXX nada mais é que uma continuação da política da UNMIK134. Xxxxx Xxxxx, ex-primeiro ministro kosovar, defende que
Dez anos após o estabelecimento da EULEX, o Conselho Europeu aprovou (CFSP 2020/792) o quinto mandato da missão, com validade em 14 de junho de 2021136. Com funções executivas limitas e realizando atividades de monitoramento, a missão executa seu mandato através dos pilares de operações e de monitoramento. O pilar de monitoramento fiscaliza casos e julgamentos selecionados do sistema de justiça do Kosovo e, mais especificamente, centraliza esforços nos casos que foram anteriormente tratados pela EULEX em seu último mandato e nos que podem afetar de alguma maneira a atuação europeia no país. Por sua vez, o pilar operacional fornece apoio contínuo à polícia do Kosovo, incluindo controle de revoltas e tumultos e facilitação da troca de informações entre a Polícia Kosovar, a Interpol, a Europol e o Ministério do Interior da Sérvia.
Apesar de a missão ter alcançado relativo progresso no que tange às questões alfandegárias, policiais, legislativas e de estrutura, a análise que prevalece é a de que a EULEX tem um fraco histórico de sucesso em todas as suas esferas de atuação137. Como afirma Xxxxxxx, algumas reformas foram promovidas e a justiça do Kosovo pôde melhor se alinhar às normas da União Europeia – contudo, com um efeito prático limitado138.
5. CONCLUSÃO
134 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 18.
135 XXXXXX, Vedran, op. cit., p. 19.
136 OFFICIAL JOURNAL OF THE EUROPEAN UNION. Council Decision (CFSP) 2020/792 of 11 June 2020
amending Joint Action 2008/124/CFSP on the European Union Rule of Law Mission in Kosovo. Disponível em:
<xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx-xxxxxxx/XX/XXX/XXX/?xxxxXXXXX:00000X0000&xxxxxXX>. Acesso em: 12 de nov. 2020.
137 NAIM, Rashiti. Ten Years After EULEX: Key Principles for Future EU Flagship Initiatives on the Rule of Law. Liberty and Security in Europe, n. 2019-7, p. 1.
138 Idem.
A atuação da ONU no Kosovo teve início imediatamente após a interferência da OTAN em 1999 quando, horas após o bombardeio da Operação Allied Force da OTAN ser realizado, o UNSC adotou a resolução 1244 que autorizou a missão UNMIK. Por meio desta, a ONU e outras organizações internacionais como a OSCE e a UE se tornaram governantes da gestão da vida pública da população kosovar. A literatura acerca do papel da ONU e da União Europeia no Kosovo é contraditória, à medida em que há quem considera as experiências bem sucedidas e quem julga seus resultados aquém do ideal.
Apesar de vivenciar episódios de violência como os ocorridos em 2004, o Kosovo não mais presenciou conflitos armados generalizados e nem o enfrentamento entre grupos militares sérvios e kosovar-albaneses. Segundo uma parcela da literatura, a guerra havia, de fato, terminado em 1999. Ainda, a contribuição da UNMIK e da UE foi também satisfatória no que diz respeito ao estabelecimento de um quadro de funcionários públicos e infraestrutura. Mas, de outra forma, a atuação das organizações deixou a desejar no tocante à reconstrução econômica e à construção de uma “comunidade kosovar”. Ademais, a ONU e a União Europeia, em particular, não alteraram suficientemente a economia local, a qual contou com alta taxa de desemprego, desigualdade socioeconômica e miséria. Ressalta-se, ainda, que as aversões entre sérvios e kosovar-albaneses ainda dividem os habitantes, resultando em regiões em que o Estado é impedido de atuar.
Neste sentido, o Kosovo enfrenta cinco principais desafios relacionados ao peacebuilding: i) o enorme vácuo entre o Estado e os cidadãos, verificado até mesmo nas gestões da ONU e da União Europeia; ii) a falta de um Estado de Direito; iii) a complexa relação entre o Kosovo e a Sérvia; iv) as desastrosas relações interétnicas; e v) a atuação do governo no norte do país. Notadamente, a União Europeia atua em todas estas questões. O país representa um enorme desafio para a União Europeia e, mais especificamente, para a sua política externa e de alargamento. Todavia, apesar do exorbitante financiamento e esforços externos, o Kosovo não apresenta grande evolução. Em 2009, a situação kosovar permaneceu extremamente crítica e merecedora de preocupação da comunidade internacional, especialmente, tendo em vista o desenvolvimento do Estado de Direito, o índice de corrupção, a condição econômica e social do país, a relação entre kosovares-albaneses e sérvios e o crescimento de máfias. Como defende Xxxxxx, apesar de instituições políticas que funcionassem razoavelmente bem terem sido estabelecidas a ponto de eleições parlamentares
e municipais ocorrerem, o desenvolvimento de uma cultura política democrática não foi devidamente colocada em prática.
Desta maneira, as estratégias utilizadas pela UNMIK e a contribuição da OSCE e da União Europeia para a construção da democracia foram relativamente sucedidas tendo em vista o seu extenso direito de intervenção que, de certa maneira, minou a autonomia do Kosovo. A economia kosovar é catastrófica e o país permanece extremamente dependente de ajuda externa. As expectativas que os kosovares possuíam quanto a suposta melhoria da economia local em decorrência da resolução da questão do seu status também não foram atingidas. Além disso, a percepção de incapacidade da XXXXX em combater o crime organizado e combater a corrupção fortaleceu a concepção de ineficácia da missão e enfraqueceu imensamente a sua credibilidade.
Assim como na atuação da Organização das Nações Unidas no território, as estratégias da União Europeia para democratização e reconstrução econômica não foram ajustadas para a realidade e condições kosovares. Consequentemente, mais uma vez instituições, capacidade estatal e atores locais não foram suficientemente desenvolvidos. A título de exemplo, é possível referenciar os ocorridos em grandes projetos da União Europeia e, especificamente, o caso da Kosovo Energy Corporation, no qual dentre os 400 milhões de euros fornecidos pelo bloco desde 1999, milhões de euros foram desviados em função de controles inapropriados e casos de corrupção. Neste sentido, os esforços da União Europeia deveriam se voltar para uma investigação sobre casos de corrupção por funcionários internacionais a fim de restaurar a credibilidade e aceitação das organizações internacionais pela população kosovar.
Em suma, o caso do Kosovo é interessante não apenas em razão da intervenção realizada em 1999 no território como também da administração internacional que se seguiu. O seu estudo nos apresenta uma oportunidade de extrair lições que podem fornecer orientação para futuras administrações de territórios pós-conflito. Ele revela que o processo de reconstrução de um Estado deve incluir atores locais no processo de construção da paz a fim de promover condições necessárias para que a população local promova sua agenda de paz e também conduza o processo. Em outras palavras, o processo de construção de paz deve ser baseado e estruturado pelo consentimento e participação local: a população kosovar não pode ser excluída da gestão dos negócios públicas. Por fim, constata-se necessário também que a
diversidade de modelos de desenvolvimento e sistemas políticos tenha espaço no processo de
peacebuilding ao invés de se impor um modelo de desenvolvimento padrão externo.
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