CONTRATO DIDÁTICO EM UMA AULA DE MATEMÁTICA DO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE SUAS MANIFESTAÇÕES E INFLUÊNCIAS
CONTRATO DIDÁTICO EM UMA AULA DE MATEMÁTICA DO 6º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE SUAS MANIFESTAÇÕES E INFLUÊNCIAS
Xxxxxx Xxxxxxxx dos Anjos Programa de Pós-Graduação em Educação Científica
e Tecnológica (PPGECT/UFSC) xxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx
Xxxxxxx Xxxxx xx Xxxxx Programa de Pós-Graduação em Educação Científica
e Tecnológica (PPGECT/UFSC)
Natan Savietto Programa de Pós-Graduação em Educação Científica
e Tecnológica (PPGECT/UFSC)
Resumo
As relações que ocorrem no interior da sala de aula, entre professor e alunos mediadas pelo saber escolar, são regidas por regras, mais implícitas do que explícitas, que estabelecem o que cada indivíduo terá a responsabilidade de cumprir perante o outro, em um espaço-tempo definido, com intuito de proceder ao duplo projeto: de ensino e de aprendizagem. Estas regras firmam o Contrato Didático estabelecido por Xxxxxxxxx (1986). Partindo deste pressuposto, apresentaremos aqui, um recorte de uma pesquisa que tem como objetivo geral: analisar as relações didáticas estabelecidas entre uma professora de matemática e os alunos do 6º ano do ensino fundamental durante uma aula sobre o sistema de numeração decimal. Especificamente, analisaremos os elementos e efeitos presentes na referida aula. Para isso, gravamos, em áudio, uma aula de 45min da turma e, posteriormente, fizemos uma análise qualitativa sobre a transcrição dos diálogos estabelecidos, baseados em Brousseau (1986, 1996) e Flores e Xxxxxxx (2008). Por fim, dentre outras conclusões, entendemos que há a necessidade de elaboração e implantação de um contrato diferente: em que o diálogo e a construção da matemática sejam aceitos pelos alunos, assim como, possam ser inseridos na prática do professor.
Palavras-chave: Contrato Didático. Aula de Matemática. Ensino Fundamental.
Introdução
As relações didáticas estabelecidas entre professor e alunos mediadas pelo saber em sala de aula são permeadas por obrigações recíprocas, as quais geram expectativas sobre o que cada um virá a desempenhar neste ambiente.
No caso da matemática, o professor deve, segundo Xxxxxxxxx (1996), devolver ao aluno um problema de matemática adequado. Se o aluno consegue resolver o problema, ele acaba por aprender. Caso contrário, se recusa ou não o resolve, o professor tem a obrigação social de ajudá-lo. Desta maneira, espera-se do professor que ele crie condições suficientes para que o aluno consiga aprender. Se esta aprendizagem não ocorre, cobra-se do aluno o que ele não fez e do professor a obrigação que ele tinha de ensinar. Nesses casos, o professor se vê diante de um paradoxo: se facilitar corre o risco de o aluno não aprender, mas também se não o faz, trai a sua função.
Diante deste jogo de relações, Xxxxxxxxx interessado em desvelar “[...] os aspectos que ocorrem durante a resolução de problemas e a elaboração de conceitos pelos alunos” (XXXXXXX, 1999, p. 81) na aprendizagem matemática, criou a noção de Contrato Didático (CD) para modelar este conjunto de regras e convenções. Para ele, este Contrato estabelece:
[...] uma relação que determina, - explicitamente por uma pequena parte, mas sobretudo implicitamente, - a cada parceiro, professor e aluno, a responsabilidade de gerir aquilo que, de uma maneira ou de outra, ele terá de prestar contas perante o outro. Esse sistema de obrigações recíprocas assemelha-se a um contrato. Aquilo que nos interessa é o contrato didático, ou seja, a parte deste contrato que é específica do conteúdo: o conhecimento matemático visado. (XXXXXXXXX, 1996, p. 51)
Em outras palavras, isto significa que é a existência deste CD que mantêm a relação didática possível. Ele estabelece os papeis, os lugares e as funções de cada uma das partes. Além de apresentar especificidades que possibilitam compreender mediante seus elementos, tais como: a assimetria em relação ao saber, a divisão de responsabilidades e a tomada de consciência do implícito; toda a dinâmica do ambiente escolar.
Quando uma das partes transgride as regras, isso ocasiona conflitos no interior da relação didática. Essas regras, em sua maioria, “podem ter sido solidificadas silenciosamente, de forma implícita”, conforme aponta Flores e Xxxxxxx (2008), e com o descumprimento acabam gerando rupturas neste contrato. Por fim, há a necessidade de renegociação, que nem sempre é feita. Com a ruptura do CD e a renegociação surgem os efeitos e as consequências que observamos em sala de aula.
Partindo desses pressupostos, o que será aqui apresentado é um recorte de uma pesquisa que tem como objetivo geral: analisar as relações didáticas estabelecidas entre uma professora de matemática e os alunos do 6º ano do ensino fundamental durante uma aula de correção de exercícios sobre o sistema de numeração decimal. Especificamente: apontar as regras estabelecidas no CD da aula analisada; verificar a existência de rupturas neste contrato
por meio da ocorrência de efeitos, e, ainda, identificar a existência de cláusulas do contrato vigente do ensino de matemática, citadas por Xxxxxx e Xxxxxxx (2008). No entanto, optamos por não apresentar aqui as análises sobre a existência das cláusulas do contrato vigente de matemática, apenas mencionaremos as mesmas, pois acreditamos que tais análises proporcionariam, por si só, assunto para outra discussão.
O lócus investigado foi uma turma do 6º ano de uma escola particular de Florianópolis. A aula de matemática analisada tratou da correção de exercícios que tinham sido solicitados como deveres pela professora na aula anterior. Os problemas solicitados como deveres pela professora ainda não tinham sido trabalhados em sala de aula e objetivavam a verificação de padrões nos números do sistema de numeração decimal.
Para a obtenção dos dados, foi realizada a gravação em áudio de uma aula de 45 minutos. As transcrições foram realizadas na íntegra. Para a interpretação das falas, realizamos as análises, tendo por base, a noção de CD de Xxx Xxxxxxxxx, seus elementos e efeitos, no que tange os objetivos a que nos propomos responder nesse artigo.
Elementos do Contrato Didático
O Contrato Didático permite compreender o dinamismo e a complexa relação estabelecida entre os parceiros da relação didática diante do saber escolar mediante a observação dos elementos que o compõe. Xxxxxxx e Xxxxxx (2002) destacam quatro:
I) A ideia de divisão de responsabilidades: Na relação didática, o professor é responsável por administrar o ambiente escolar com objetivo de ensinar o aluno determinado saber, mas o aluno também tem suas responsabilidades. Cabe a ele, aceitar seu ofício de estudante e confiar o aprendizado nas determinações colocadas pelo professor.
II) A conscientização do implícito: a relação didática funciona muito mais pelo “não dito” do que sob as regras explícitas, ou seja, para o bom andamento da aula é natural que a maior parte das regras se mantenha implícitas. Cada sujeito possui relações privadas com o saber e, necessariamente, não é preciso explicitá-las. “A função de um contrato didático não é de transformar todo o implícito em explícito, mas de equilibrar os dois a fim de criar uma zona de trocas entre as partes.” (XXXXXXXX, 1996, p. 06). Deste modo, o importante é que cada parceiro da relação esteja consciente que existem regras implícitas no ambiente escolar seguida por ambos.
III) A relação com o saber: para análise do CD é fundamental o reconhecimento da assimetria existente entre aluno e professor diante de um saber. O professor, por sua experiência e formação profissional, possui conceitos mais elaborados do que os dos alunos. Estes ainda possuem conceitos prévios que precisam ser adaptados. Portanto, deve haver um espaço comum de significações, em que professor e aluno possam dialogar, visto que no fundo isto jamais será verdadeiramente comum devido à assimetria existente. Este paradoxo é considerado “o motor da própria relação didática”.
IV) A construção da comunicação didática: a comunicação é estabelecida entre professor e alunos mediante a utilização de metodologias e estratégias de ensino. Assim, pode-se analisar o que impede ou favorece o acesso dos alunos ao conhecimento e, ainda, o que pode estar bloqueando a entrada deles na aprendizagem.
Os elementos apresentados mostram que da ideia de CD, subtende-se uma relação organizada em torno da divisão de responsabilidades com regras muito mais implícitas construídas na comunicação didática entre as partes, em que o cumprimento das normas se mantém intactos. No entanto, e se uma das partes quebra este contrato? A seguir, discutiremos os impactos desse ato.
E se o Contrato Didático for rompido? Apontando pontos de ruptura no CD
Para Xxxxxxxxx (1996, p. 51), “são as rupturas do contrato didático que são realmente importantes”, levando em conta as obrigações recíprocas (professor e aluno) contidas no mesmo. Estas obrigações ou regras que, em sua maioria são implícitas, quando não são respeitadas por uma das partes da relação didática (professor e aluno), fazem com que o contrato didático se manifeste. É neste momento de manifestação do CD que há a necessidade de uma renegociação, ou seja, é na transgressão de regras que se percebe a existência de um CD e há a necessidade de se renegociá-lo. Para Xxxxxx e Xxxxxxx (2008, p. 65), “a cada ruptura, uma renegociação do contrato didático deve ser construída”.
Analisando o que Xxxxxxxxx (1986, apud PAIS, 2011) fala sobre o contrato e suas regras e por fim, aspirando ao bom andamento das aulas, pensa-se então, em seguir um manual de regras e assim, encontrar um modelo para guiar-se. Mas, infelizmente não podemos apontar nem explicitar todas as regras de um contrato, pois para Xxxxxxxxx o mais importante não é: “[...] tentar explicitar a totalidade das regras que constituem o contrato
didático e, xxx, delinear alguns de seus possíveis pontos de ruptura.” (XXXXXXXXX, 1986 apud PAIS, 2011, p. 80).
Seguindo o que foi orientado por Xxxxxxxxx, podemos nos nortear nesta difícil tarefa de refletir sobre nossa prática pedagógica, analisando alguns pontos de ruptura no que diz respeito ao CD. Um deles refere-se ao papel do implícito na transgressão de regras. Os conflitos que surgem em sala de aula quando as obrigações ou regras do contrato são transgredidas nos mostram o papel que o implícito tem em uma relação didática, segundo Xxxxxx e Xxxxxxx (2002, p. 2), “o lugar do implícito é muito importante numa relação didática, ele é fundamental para a aprendizagem”. Ainda, segundo Xxxxxx e Xxxxxxx (2008, p. 61), o ideal é “equilibrar esses dois pólos [sic] a fim de criar uma zona de trocas entre os parceiros: um espaço de diálogos.”.
Outro ponto que podemos analisar encontra-se na relação de oposição das regras implícitas com as explícitas. Segundo Xxxxxx e Xxxxxxx (2002), é nessa oposição que se iniciam as transgressões – os sujeitos envolvidos na relação didática sentem-se prejudicados de alguma forma. Ainda para Xxxxxx e Xxxxxxx (2002), o conflito na relação didática realmente emerge, quando há a mudança na relação com o saber por parte tanto do professor como do aluno.
Ainda, outro ponto importante, que se enquadra no fracasso da relação didática e, por sua vez, no fracasso do contrato, é apontado por Xxxxxxxxx (1996) e diz respeito às regras de comportamento tanto de professores como de alunos. Para Xxxxxxxxx (1996, p. 52), “se o contrato apenas diz respeito às regras do comportamento do professor ou do aluno, o seu respeito escrupuloso condenará a relação didática ao fracasso.”.
E por fim, um último ponto citado na análise da ruptura de um contrato didático encontra-se na total exposição das regras explícitas. Dizemos isso, pois para Xxxxxxxxx (1996), “as cláusulas de ruptura e o enquadramento do contrato não podem ser descritos antecipadamente”, ou seja, um CD totalmente voltado às regras explícitas está tendendo ao fracasso.
Analisando estes quatro pontos de ruptura do contrato citados acima, podemos pensar em prever uma totalidade de causas destas rupturas, persistindo na ideia de seguir um manual e “facilitar” a nossa atuação em sala de aula. Mas isso também não é possível, pois, da mesma forma que acontece com as regras do contrato, não existe possibilidade de mapear todos os pontos de ruptura: “[...] as causas, os momentos e as condições dessa ruptura não podem ser previstos totalmente, pois ocorrem no transcorrer da dinâmica das situações didáticas e
também estão relacionadas à dimensão subjetiva dos sujeitos envolvidos.” (PAIS, 2011, p. 81).
Também, no mesmo sentido do que foi proposto, anteriormente, apontamos algumas consequências imediatas da ruptura de um contrato mostradas por Xxxxxxxxx (1996, p. 51-52), que são elas:
Espera-se que o professor crie condições suficientes para a apropriação dos conhecimentos e que <<reconheça>> esta apropriação quando ela se produz;
Espera-se que o aluno seja capaz de satisfazer estas condições; A relação didática deve <<prosseguir>> custe o que custar;
O professor xxxxxxx, pois, que as aquisições anteriores e as novas condições dão ao aluno a possibilidade da aquisição.
Para finalizar, Xxxxxxxxx (1996, p. 53) nos faz refletir apontando que “o conceito teórico em didáctica não é, pois, o contrato (o contrato adequado, desadequado, verdadeiro ou falso), mas o processo de busca de um contrato hipotético”. Sendo assim, tudo nos leva a concluir, assim como fez Xxxxxxxxx (1996), que mais importante do que as rupturas, amplamente apontadas neste texto, regras e o próprio contrato em si, é o caminho da construção deste contrato.
Contrato vigente no ensino formal de matemática
Mesmo sabendo da não totalidade das condições de ruptura de um contrato e também, que não é possível mapear todas as regras do mesmo, elencamos aqui algumas cláusulas do contrato vigente no ensino formal de matemática. Essas cláusulas foram citadas por Xxxxxx e Xxxxxxx (2008) e podem nos esclarecer em relação a muitas respostas dadas pelos nossos alunos e consideradas erros por nós e que, muitas vezes, nos levam a acreditar que os alunos não raciocinam para responder o que é proposto. Em muitos casos, não conseguimos detectar que essas situações se relacionam a problemas no contrato vigente (rupturas) e não na aprendizagem dos estudantes. Essas cláusulas dizem respeito às seguintes situações:
I) Os problemas em matemática são resolvidos por meio de operações matemáticas. O que é preciso fazer é encontrar a operação certa e fazê-la sem erro. Certas palavras presentes no problema são indicativas de alguma operação;
II) Xxxx questão em matemática tem uma resposta e o professor a conhece;
III) Os dados necessários para resolver um problema encontram-se no enunciado. Não há dado inútil que não possa ser usado;
IV) As operações são simples, os números se enquadram para dar sempre “certinho”;
V) Os problemas colocados não precisam ter relação com a realidade, eles existem apenas para ver se os alunos entenderam o assunto.
Os efeitos do Contrato Didático
Como vimos anteriormente, o CD funciona muito mais pelas regras não ditas do que pelas explícitas. Dentre elas, as expectativas entre os parceiros da relação didática são motivo de muitos conflitos no ambiente escolar. Estas rupturas do contrato didático levam a renegociação do mesmo e ao avanço da aprendizagem, porém a constante negociação pode resultar na diminuição dos conteúdos e dos objetos de aprendizagem como apontam Flores e Xxxxxxx (2002). Assim, o professor, desejando que os alunos acertem as tarefas propostas, facilita a aprendizagem destes. Estas atitudes, por parte do professor, foram denominadas por Xxxxxxxxx (1996) de “Efeitos do Contrato” que são eles:
I) Efeito Pigmaleão: este é o efeito das expectativas. Quando o CD é estabelecido, o professor assume como parâmetro a imagem que construiu sobre um aluno, se o mesmo tem dificuldades ou é um aluno aplicado, isso também vale para um conjunto de alunos (classe boa ou ruim). Desta forma, o sucesso ou o fracasso dos alunos depende do que o professor espera deles facilitando ou não os caminhos da aprendizagem.
II) Efeito Xxxxxx: diz respeito à maneira como o professor conduz os alunos às respostas esperadas por ele, fornecendo explicações em excesso. Além de macetes, truques, algoritmos e técnicas de memorização, em que existe o uso abusivo de analogias.
III) Efeito Jourdain: uma variação do efeito Topaze. Este efeito se manifesta quando o professor percebe o fracasso da aprendizagem e, mediante o emprego de estratégias de ensino, o professor atribui a um comportamento banal ou a alguma resposta dada pelo aluno uma manifestação de saber sábio, e isso termina por desviar a aprendizagem do conhecimento visado. (FLORES; MORETTI, 2002)
IV) Efeito Papy: este efeito ocorre quando o professor substitui o conhecimento em questão por suas próprias explicações trocando assim o objeto de estudo. Ele faz isso no momento que percebe que uma atividade de ensino não obtém o êxito desejado.
Procedimento metodológico e análises dos resultados
De acordo com Xxxxxxx (1999, p. 81) “por meio da análise das situações didáticas é possível investigar a problemática da aprendizagem matemática e desvelar aspectos que ocorrem durante a resolução de problemas e a elaboração de conceitos [...]” Ainda sobre isso, D’Amore (2007, p. 200) defende que o CD “trata-se [...] de um instrumento poderoso para analisar os eventos de sala de aula [...]”. Logo, a opção pela noção do CD se justifica pelo fato de desejarmos analisar as relações estabelecidas entre a professora de matemática e os alunos do 6º ano em uma aula de correção de exercícios quando está em jogo o estudo das classes do sistema de numeração decimal. Assim, quais são as especificidades deste ambiente quando os parceiros da relação didática se reúnem com o objetivo de aprender o referido conteúdo?Quais as regras estabelecidas? Há algum efeito realizado pela professora para facilitar a aprendizagem?
Para responder a esses questionamentos, a pesquisa foi realizada em uma Escola de Educação Básica Privada de Florianópolis durante o mês de fevereiro de 2014. A professora da turma é licenciada em matemática e especialista em metodologia do ensino de matemática. Atua há cinco anos no magistério. A turma é composta por 16 alunos, sendo sete meninos e nove meninas. A média da idade dos alunos é de 11 anos.
No dia escolhido para a gravação, os alunos tinham apenas uma aula de matemática reservada para a correção da tarefa. O conteúdo ministrado pela professora dizia respeito às classes do sistema de numeração decimal, as quais ainda não tinham sido trabalhadas em sala de aula e objetivavam a verificação de padrões nos números do sistema de numeração decimal.
Para a obtenção dos dados, optou-se pela gravação em áudio de (1) uma aula de 45 minutos, a fim de captar os diálogos estabelecidos e as manifestações das regras, rupturas ou efeitos que, porventura, viessem a acontecer. Além disso, foi aplicado um questionário a professora com o objetivo de perceber suas concepções de ensino e aprendizagem matemática que influenciarão na gestão da sala de aula. Isto estará diluído nas interpretações das aulas.
A transcrição do áudio foi realizada na íntegra pelos pesquisadores. Alguns entraves ocorreram no início e no fim da aula devido ao ruído existente impossibilitando escutar as falas. A identificação dos alunos e da professora será mantida. Utilizaremos nomes fictícios para ambos, a fim de preservar suas identidades conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido entregue à escola.
Deste modo, na sequência apresentaremos as análises efetuadas tendo em vista os objetivos propostos.
Identificando as regras do Contrato Didático
Na identificação das regras estabelecidas entre a professora e os alunos do 6º ano, decidimos agrupá-las tomando como referência os quatro elementos que compõem o CD. Os recortes de a transcrição a seguir procuram identificar e discutir estes pontos.
I) A ideia de divisão de responsabilidades: Cada sujeito da relação didática tem as suas obrigações e direitos. Na análise da aula, verificou-se que a maior parte das responsabilidades é dos alunos.
Regra 1: Os alunos devem prestar atenção durante a correção: O momento da correção serve para que os alunos possam dirimir suas dúvidas sobre o conteúdo. Assim, a classe deve prestar atenção para que a aprendizagem possa prosseguir. Nos trechos abaixo, a professora tem que solicitar várias vezes para que fiquem em seus lugares além de chamar atenção dos alunos para que escutem os colegas.
P: Tá. Tem outras formas de responder. A Xxxxxxx disse que não tinha entendido. Então, vamos prestar atenção!
Regra 2: Os deveres de casa são obrigações dos alunos. No excerto abaixo, a professora reforça a resolução das tarefas de casa, mas não enfatiza a contribuição no aprendizado deles de tarefas extraclasse. Ela insiste na questão da nota como se o ponto a ser acrescentado na média fosse o mais importante.
P: Essa nossa tabelinha de deveres é bem importante na média final de vocês do primeiro bimestre. Ela é uma nota. Como se fosse uma nota de prova. Tem que prestar atenção. Tem que fazer todos os deveres em casa, sempre.
Regra 3: A professora deve ajudar os alunos quando eles não entendem o conteúdo: quando o aluno não entende o conteúdo, ele espera que o professor possa lhe dar novas explicações. Conforme Xxxxx (1999, p. 45) “[...] o professor deverá ajudá-lo, dirigindo o sue trabalho através de indicações que esclareçam suas dúvidas ou de pequenas questões elementares que conduzam ao resultado”.
No trecho abaixo, a professora chama a aluna que tem dificuldades para que responda a questão, mas ela diz que não sabe. A professora tenta lhe ajudar refazendo o raciocínio da questão.
P: Xxxx, Xxxx respondendo. Xxxx: não sei.
P: Xxxx, voltando, vamos voltar. Do 1 para o 3, nós somamos 2; do 1 para chegar ao 3 nós somamos 2, certo? Do 3 para chegar ao 6 nós somamos?3; do 6 para chegar ao 10 nós somamos? 4. Seguindo este padrão aqui embaixo somar 2, somar 3, somar 4, nós vamos somar quanto aqui?
II)A tomada de consciência do implícito: esta característica do Contrato Didático passa despercebida pelo professor e alunos. Ela aparece quando as regras são quebradas e um dos parceiros da relação já não sabe se pode confiar no outro. Podem surgir renegociações.
Regra 1: A professora espera que ao final da explicação os alunos saibam responder as questões: A professora após explicar mais de uma vez o conteúdo acredita que o aluno já tenha condições de responder. No excerto abaixo, a professora já tinha corrigido a questão com os padrões de números quadrados e volta a explicar detalhado para números triangulares, como no trecho abaixo. Ela esperava que os alunos respondessem corretamente:
P: Sim, então, tá. Na número 2, as bolinhas estavam sendo agrupadas um pouquinho diferente. Elas não estão formando quadradinhos. Elas estão ali formando?
Alunos: Triângulos.
P: Triângulo, né? Vamos continuar. Na 1ª sequencia ali, o 1º elemento da sequencia é? Alunos: 1.
P: 1. No segundo?
Alunos: 3.
P: No terceiro?
Alunos: 5. Júlia: 6.Victor: 9.
P: Opa! Deu problema!(Vários alunos responderam discordando entre si.) ·.
Regra 2: Os exercícios devem ser corrigidos na sequência do livro: A professora e os alunos estão corrigindo as questões de acordo com a sequência do livro. Esta é uma regra implícita. Quando alguém tenta antecipar as questões, a professora continua na questão e não antecipa.
P: Beleza. Todo mundo afiado com a tabuada, né? Xxxx: E esse aqui óhh?
P: A b a gente já vai chegar.
III) A relação com o saber:as relações do professor e do aluno diante do saber são assimétricas. O professor tem suas concepções de matemática, de ensino e de aprendizagem e segundo elas prepara suas aulas e avalia seus alunos. Para os alunos, o professor deve saber da solução dos problemas que propõe e não exigirá nada que eles não consigam resolver.
Regra 1: Todo conhecimento é questionável: No questionário, a professora respondeu que segundo as concepções dela, [...] o professor em sala de aula deve desempenhar um papel de orientador. Ele deve construir com o aluno o melhor caminho para responder as variadas situações cotidianas, ou mesmo, as situações exclusivamente escolares. Observamos isso no diálogo da professora durante a correção de exercícios, em que ela sempre procura inquirir os alunos sobre as soluções encontradas, ao mesmo tempo, em que mostra a eles as várias respostas para uma mesma pergunta.
P: Todo mundo pensou dessa forma. Alguém pensou diferente? Vários alunos falando ao mesmo tempo.
Regra 2: Na matemática, os caminhos para as soluções podem ser variados para a professora: Durante a correção, a professora procura questionar os alunos a respeito da forma como resolvem os exercícios e deixa claro que eles não precisam seguir somente o modelo do exercício. Eles podem usar de outras formas para chegar à resposta, mesmo que a orientação do livro fosse somente observar o que acontece com os padrões. No excerto a seguir, a professora estabelece suas orientações:
Vários alunos responderam discordando entre si.
P: Calma. 1, 2, 3, 4, 5,6, (professora contando) então deu 6! Não tem problema contar, gente! Quando a gente tá analisando, quando a gente tá analisando um exercício, a gente tem que fazer o que precisa para resolver. Nesse caso, contar.
IV) A comunicação didática: Por meio das metodologias e estratégias de ensino o professor coloca em cena o saber e busca um retorno do entendimento dos alunos.
Durante a aula de correção de exercícios, a professora tentou manter um diálogo com os alunos sempre questionando a tarefa e convidando-os a responder. Na maior parte do tempo, guiou a correção não dando muito espaço para os alunos dispersarem.
Regra 1: O diálogo se estabelece por meio de questionamentos da professora: Podemos verificar isso também nas respostas dadas pela professora ao questionário. Para ela, a matemática está em construção e procura manter com os alunos diálogos constantes sobre o conteúdo, a fim de dirimir as dúvidas e provocar a aprendizagem.
P: ...Como é que vocês escreveram aqui? P:... Alguém fez de forma diferente? P: O que é um padrão para vocês? P: Aonde a gente escuta muito falar em padrão?
Regra 2: A professora usa expressões para confirmar o seu raciocínio com os alunos: Para obter o retorno dos alunos a professora usa muito as expressões: “Certo” e “tá”. Contabilizamos durante as conversas aproximadamente 17 usos do Certo, como no trecho e 10 usos do tá:
P: Pode ser pensado assim também, certo? Tudo bem nesse caso aqui?
Regra 3: Resposta correta tem um reforço positivo da professora: A professora utilizou as expressões “Ótimo”, “Muito bem” para encorajar a participação dos alunos na correção. De acordo com Xxxxxxx (1995) o acerto do aluno é visto pelo professor como um ganho em seu repertório de conhecimentos.
Leticia: 1 centena de milhão, 9 dezenas de milhões, 7 centenas de milhares, 3 dezenas de milhares, 2 unidades de milhares e 6 centenas, 9 dezenas e 4 unidades.
P: Ótimo. Alguém fez de forma diferente?
Identificando os efeitos do Contrato Didático
Na aula observada foram encontrados os seguintes efeitos do CD:
I) Efeito Xxxxxxxx: este é o efeito que mais aparece na aula analisada, uma vez que esta aula é de exercícios. A professora reconhece nas respostas dos alunos evidências do conhecimento sábio, como se pode notar no trecho abaixo:
P: Xxxx, voltando, vamos voltar. Do 1 para o 3, nós somamos 2; do 1 para chegar ao 3 nós somamos 2, certo? Do 3 para chegar ao 6 nós somamos 3; do 6 para chegar ao 10 nós somamos 4. Seguindo este padrão aqui embaixo somar 2, somar 3, somar 4, nós vamos somar quanto aqui?
Silêncio.
Xxxxxxx: Pode falar, professora? P: Que que vem depois do 4?
Sara: 5.
P: Este é o padrão. Padrão tá vindo de 1, certo? Mas se a gente somar 5 a gente vai sair do 10 e vai chegar em quanto?
Sara: 15.
P: 15. É isso aí!
A turma bateu palmas para ela. Alguns falaram: Aleluia! Outros riram.
II) Efeito Pigmaleão: no trecho da fala da professora abaixo, nota-se claramente o que ela espera que seus alunos façam, e utiliza das regras já pré-estabelecidas para fazer uma cobrança aos alunos:
P: .Oh! tô vendo que tem pessoas que não estão completando a tabelinha, gente. Essa nossa tabelinha de deveres é bem importante na média final de vocês do primeiro bimestre.
P: Lá no primeiro dia de aula, a prof. falou que quem preenchesse essa tabelinha por completo, na soma das notas para fechar o primeiro bimestre, ainda ganharia 1 ponto excedente.
III) Efeito Xxxxxx: A professora, na tentativa de dirimir a dúvida da aluna, acaba por dar variadas explicações. Não tendo sucesso, ela explica pormenorizadamente o raciocínio dando praticamente a resposta à aluna que, mesmo assim, ainda não tinha entendido. Caberá à professora renegociar com a aluna uma nova abordagem para que o entendimento ocorra. No excerto abaixo, fica claro este fato:
Xxxxxxx: O que é isso ai? P: Números Primos?
Leticia: É. Não entendi.
P: Primos são todos aqueles números que só podem ser divididos por 1 e por eles mesmos. P: Xxxxx Xxxxxx, por favor. Mais um tempinho!
Leticia: Com resto zero?
P: Só com resto zero. Por exemplo: Eu vou te perguntar. O 9 é primo? Tu só divide o 9 por ele mesmo e por 1ou tu divide por algum outro número?
Tem bagunça na sala. A aula está próxima de terminar.
P: Deixa a Leticia falar, gente! Tu divide o 9 por 1 dá? tu divide o 9 por 9 dá? e se tu dividir o 9 por 3 dá quanto? 9 na tabuada do 3 dá quanto? O que é 9 dividido por 3? Achar o 9 na tabuada do 3, certo?
Xxxxxxx: Ai, não consigo!
IV) Efeito Papy: ao longo da transcrição não foram identificadas falas que deixem claro a presença deste efeito, pois, aparentemente, a atividade de ensino obteve êxito, os alunos participaram efetivamente da aula e resolveram os exercícios propostos pela professora.
Considerações finais
O Contrato Didático é o que torna possível a relação didática. Por meio dele, o professor consegue por em prática o seu projeto de ensino. Ele se mostra um importante instrumento de reflexão mostrando os pontos fortes e fracos de uma aula ministrada. Logicamente, a reflexão acontecerá nos casos em que o professor tem acesso a esta teoria e pode perceber as contribuições trazidas por ela na interpretação de uma relação didática.
Muitas vezes, o professor espera que determinada atividade tenha um encaminhamento e o que acontece no dia-a-dia é diferente; ou que determinado exemplo contemple o entendimento de tal assunto; ou ainda que determinada turma seja muito boa.
Estas “frustrações” do professor vão moldando o seu jeito de ministrar a aula e mostrando ao aluno o que o professor espera dele.
O que observamos com esta análise, são alunos que se acostumaram a esperar do professor as respostas prontas, o modelo a seguir. Foram condicionados, durante muitos anos, a um ensino de matemática focado na memorização de fórmulas e exercícios repetitivos, e consequentemente, quando confrontados com atividades abertas, ficam entediados, sem querer parar para pensar. Isso se mostra em nossas análises do CD, quando a professora diz que não é necessário seguir o padrão da apostila, falando aos alunos que eles podem encontrar outras maneiras de chegar à resposta, que, no caso citado, tratava do próximo termo de uma sequência.
Outro ponto a destacar é que o CD analisado aponta que muitas das regras estabelecidas em sala refletem a posição da professora como gerenciadora deste ambiente. Ela controla, por meio de perguntas, a participação dos alunos e também a atenção deles, procurando não deixar espaço para dispersões. Conduz a correção, buscando fechar as ideias com os alunos tentando sanar todas as dúvidas. Isto pode a ter levado, durante a correção, a frisar e repetir mais de uma vez as explicações sobre a solução das questões.
A respeito dos efeitos do CD, convém destacar o efeito Topaze, pois em vários momentos, a professora quase deu a resposta ao aluno que tinha dificuldades. Isso se enquadra em uma situação paradoxal, como menciona Xxxxxxxxx (1986), pois uma das responsabilidades do professor é fazer com que o aluno aprenda, mas o professor não pode privar o aluno de ele próprio construir esta aprendizagem. “Tudo o que ele [professor] lança mão para fazer com que o aluno produza, os comportamentos que ele espera, tende a privar o aluno das condições necessárias à compreensão e a aprendizagem da noção visada.” (p.33)
Os alunos, por sua vez, participaram da correção, mas demonstraram estarem presos a modelos da apostila, não aceitando do professor, mais de uma resposta correta para certas questões. Isso reflete um Contrato Didático tradicional, em que já é possível perceber as cláusulas apontadas por Xxxxxx e Xxxxxxx (2008) do contrato vigente no ensino formal de matemática.
Ressalvamos, ainda, que as regras identificadas na seção anterior permitiram vislumbrar estas interpretações do CD da referida turma. Entretanto, elas não esgotam todas as possibilidades dos dados obtidos, ou seja, poderá haver mais regras que não foram levantadas tendo em vista o caráter subjetivo da interpretação de cada pesquisador. Além disso, não adentramos neste artigo sobre as análises efetuadas a respeito das cláusulas do
contrato vigente conforme Xxxxxx e Xxxxxxx (2008), mas já podemos antecipar que um trabalho nessa direção poderá ser realizado.
Por fim, depois de todos estes apontamentos gerados pela análise, entendemos que há a necessidade de elaboração e implantação de um contrato, onde o diálogo e a construção da matemática precisam ser aceitos pelos alunos, assim como, devem ser inseridos na prática do professor. No entanto, estamos cientes do percurso ainda a ser trilhado para que isso aconteça. Esperamos que este caminho seja realizado conjuntamente pelos parceiros da relação didática em função do saber adquirido e visado, construindo um diálogo produtivo durante todo o processo de ensino-aprendizagem.
Referências
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