RESENHA
Desafios Jurídicos na Implementação de "Programas Tarifa Zero" em Contratos de Concessão Vigentes.
Xxxx Xxxxxxxxx;1 Xxxx Xxxxx;2
Xxxxxxxx Xxxxxxxxx P. G. Gil.3
RESENHA
A presente Comunicação Técnica analisou a implementação de “Programas Tarifa Zero” em contratos de concessão vigentes. Identificadas as cidades que se enquadram na metodologia de pesquisa, o trabalho avaliou como esses contratos foram adequados à proposta de isenção tarifária, considerando os limites jurídicos para a alteração dos contratos de concessão.
PALAVRAS-CHAVES
Tarifa Zero; Financiabilidade; Transporte Público; Concessões; Mutabilidade.
1. INTRODUÇÃO
Atualmente, está em evidência o tema da implantação de “Programas Tarifa Zero” nos sistemas de transporte público coletivo, especialmente em âmbito municipal. Tal proposta tem por objetivo eliminar a cobrança da tarifa arcada pelos usuários, sob a justificativa de contribuir à universalização dos serviços. De acordo com levantamento recente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), há 74 cidades brasileiras que já possuem Programas Tarifa Zero em operação.4 Evidentemente, cada município adaptou essa política à sua realidade, sobretudo pela perspectiva de capacidade fiscal para suportar tal operação. A abrangência da isenção tarifária e a fonte de custeio são variáveis. Além disso, cada município traçou caminhos diversos para viabilizar o Programa: enquanto alguns optaram por realizar novos procedimentos licitatórios dos serviços de transporte coletivo, com editais contendo especificidades às pretendidas isenções tarifárias, outros incorporaram a política tarifária em contratos de concessão vigentes, mediante a celebração de aditamentos voltados a alteração das estruturas de remuneração dos operadores.
A implantação do Programa por si só já é bastante desafiadora pela perspectiva do custeio. A complexidade, contudo, é ainda maior quando o poder público pretende viabilizar o Programa para contratos em pleno curso. É que diferentemente de novas licitações, a implantação da Tarifa Zero em contratos vigentes pressupõe alterações na estrutura de remuneração e riscos, hipótese essa que atrai entraves relativos aos limites jurídicos para alteração das concessões. Assim, o objetivo do trabalho será identificar como o Programa foi implementado em contratos em vigor, de modo a avaliar se os limites para a alteração dos contratos foram considerados e como o problema foi endereçado nos casos em questão.
De modo a viabilizar o estudo, adotou-se como metodologia de pesquisa um levantamento empírico sobre informações das cidades que conseguiram implementar a Tarifa Zero, com foco nos casos cuja implantação se materializou mediante a celebração de aditivos contratuais. Para tanto, foi formalmente requisitado aos municípios, com fundamento na Lei
1 Sócio do escritório Cordeiro, Lima e Advogados, e-mail: xxxx@xxxxxxxxxxxx.xxx.xx, com endereço na Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxx, xx 000, Xxxxx X, 0x xxxxx, telefone (00) 0000-0000, XXX 00000-000, xxxxxx xx Xxx Xxxxx/XX.
2Advogado associado do Cordeiro, Lima e Advogados, e-mail: xxxx.xxxxx@xxxxxxxxxxxx.xxx.xx, com endereço já indicado.
3 Advogada, com endereço na Xxx Xxxxxxxx, xx 000, xxx. 81, Higienópolis, CEP 01240-001, cidade de São Paulo/SP, telefone (00) 00000-0000.
4 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS – NTU. Transporte público por ônibus: impactos da pandemia de COVID-19 (fevereiro/2023 até abril/2023). Disponível em
<xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxx/Xxxxxxxxxx/Xxx000000000000000000.xxx>. Acesso em 18/06/2023.
Federal nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), acesso aos contratos, aditivos e processos que culminaram na Tarifa Zero. Foi a partir desse levantamento e análise que os autores buscam contribuir com os estudos sobre a Xxxxxx Xxxx, tal como proposta nesta Comunicação Técnica. Como se verá, a pesquisa identificou que aspectos jurídicos relevantes não foram considerados quando da alteração dos contratos, reforçando o entendimento de que a implementação do Programa não pode perder de vista que há desafios à implantação dessa política.
2. O PROGRAMA TARIFA ZERO E SUAS IMPLICAÇÕES
Antes de adentrar na hipótese de pesquisa deste trabalho, é necessário fazer uma breve contextualização sobre como o tema da Xxxxxx Xxxx se tornou pauta da agenda institucional de diversos entes federativos, sendo no setor, sem dúvida, um dos assuntos mais em voga na atualidade. Em suma, é possível atribuir as raízes do assunto da Tarifa Zero a dois momentos marcantes dos últimos tempos: às manifestações sociais de junho de 2013 e aos efeitos da pandemia de Covid-19.
Ainda que 15 municípios brasileiros5 já tivessem isenção tarifária no transporte público desde a década de 90 – como, por exemplo, os municípios de Agudos-SP, Ivaiporã-PR, e Monte Carmelo-MG –, o clamor social pela isenção tarifária ganhou mais força com os protestos populares de junho de 2013, quando milhares de brasileiros foram às ruas reivindicando melhorias no transporte público e a diminuição do valor da tarifa pública.6 Naquele momento, a qualidade dos serviços e o custo tarifário do transporte público coletivo tornaram-se símbolos de insatisfação dos usuários.7 No decurso do tempo, as pautas das manifestações foram se modificando, porém, no que concerne ao objeto de pesquisa, é suficiente dizer que os entes federativos, a partir desse evento, passaram a prestar mais atenção no setor de mobilidade urbana.
Com mais debates em âmbito municipal, estadual e federal, outras cidades foram adotando Programas Tarifa Zero. De acordo com os dados da NTU, entre 2013 e 2019 mais 14 cidades passaram a contar com isenção tarifária, total ou parcialmente. Contudo, o número do aumento de cidades que implementaram Tarifa Zero nesse período não foi tão expressivo quanto o do período da pandemia – segundo momento que influenciou os debates sobre a necessidade de implementação de uma política de isenção tarifária.
O impacto da pandemia no setor de transporte de passageiros foi grande. As restrições de locomoção para evitar a disseminação do vírus, o fechamento de comércios e locais públicos, implicaram uma queda vertiginosa do volume de passageiros transportados e da arrecadação tarifária, afetando, consequentemente, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. Não bastasse os efeitos negativos ocasionados pelas medidas restritivas da pandemia, houve, em fevereiro de 2022, a eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, fator este que acarretou o aumento desarrazoado do preço do óleo diesel, principal insumo utilizado nos serviços de transporte público sobre pneus. Esse período caótico do setor de mobilidade urbana foi inclusive reconhecido pelo Governo Federal, quando da edição da Emenda Constitucional nº 123, de 14 de julho de 2022.
5 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS – NTU. Transporte público por ônibus. Tarifa Zero nas cidades brasileiras. Atualizado em abril/2023. Disponível em
<xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxx/Xxxxxxxxxx/Xxx000000000000000000.xxx>. Data de acesso: 24 de setembro de 2023.
6 XXXXXXXX, Xxxx. “Protestos de 2013: como a tarifa zero do transporte vem sendo aplicada no Brasil?”. Disponível em <xxxxx://xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxx-xx-0000-xxxx-x-xxxxxx-xxxx-xx-xxxxxxxxxx-xxx- sendo-aplicada-no-brasil/>. Acesso em 20/09/2023.
7 Trata-se, aliás, de insatisfação que se reflete ainda hoje, conforme se verifica da pesquisa de campo promovida pelo Instituto Pesquisa de Reputação e Imagem – IPRI e pela Confederação Nacional da Indústria – CNI, divulgada em agosto de 2023. Segundo os resultados alcançados, a redução da tarifa (25%) e do tempo de espera (24%) seriam os fatores de maior incentivo ao uso do transporte público. Disponível em <xxxxx://xxxxxxxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxx/xxxxxxx-xx-xxxxxx-x-xx- tempo-de-espera-incentivariam-uso-do-transporte-publico/>. Acesso em 21/09/2023.
Neste contexto de imbróglios entre municípios e operadoras do serviço, o tema da Xxxxxx Xxxx voltou a ser levantado como alternativa para reestruturação do sistema de transporte público e, propositalmente ou não, para satisfazer a opinião pública. Mostram os dados da NTU que de 2019 para cá, mais 43 municípios passaram a contar com Tarifa Zero, total ou parcialmente, sendo cada projeto adaptado à realidade da respectiva cidade.8
Os argumentos em favor da implementação de Programas Tarifa Zero são os mais variados: redução de trânsito nas cidades mediante a expansão do uso do transporte público, conscientização sobre questões ambientais e redução de gases tóxicos, universalização do serviço de transporte público, dentre outros. Contudo, a implementação da Tarifa Zero é, na realidade, um processo complexo e em constante transformação. Embora o tema esteja no centro das atenções e seja muito atrativo, sua implementação efetiva requer um debate aprofundado, considerando não apenas os potenciais benefícios à população, mas também os desafios financeiros e operacionais associados a essa política – como, por exemplo, um possível aumento expressivo e imediato da demanda sem um correspondente aumento na oferta de serviços, resultando em superlotação e queda na qualidade do serviço de transporte; a coordenação entre sistemas metropolitanos e municipais para evitar o uso predatório do serviço beneficiado em detrimento do serviço tarifado, entre outros.
Hoje, diversos municípios brasileiros estão envidando esforços para compreender os desafios que envolvem a viabilização da Tarifa Zero. Para fins ilustrativos, são alguns dos desafios: entender qual será a fonte de custeio da isenção tarifária (recursos orçamentários próprios, parcerias e transferências voluntárias de recursos com Estados/União, criação de taxas ou de outras fontes de receitas para custear o Programa); delimitar a abrangência da isenção tarifária (se ela abarcaria a totalidade do sistema de transporte público coletivo municipal, ou se restringir-se-ia a apenas parcela do sistema); e até mesmo o que fazer nos casos em que já existem contratos de concessão em vigor, cujo prazo está longe de vencer, e se pretende implementar o Programa através de aditamentos contratuais – hipótese que foi estudada no presente trabalho. Antes de se avaliar como esses contratos foram adequados para viabilizar a política tarifária, convém pontuar as hipóteses e limites para a alteração dos contratos de concessão, já que refletem os desafios enfrentados – ou que assim deveria ter sido considerado – pelos titulares dos serviços de transporte público mapeados.
3. AS HIPÓTESES E LIMITES PARA A MUTABILIDADE DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO
Como visto, a abrangência da isenção tarifária e a fonte de custeio representam alguns dos principais obstáculos para a adoção em larga escala da Tarifa Zero. Mas é no contexto prático de implantação do Programa em contratos de concessão em curso que surgem desafios ainda mais complexos, sobretudo porque a alteração na estrutura de remuneração dos operadores implica avaliar a legalidade da proposta segundo os limites jurídicos para a alteração dos contratos de concessão.
Inicialmente, é preciso ter claro que as concessões de serviços públicos são estruturas contratuais de longo prazo, razão pela qual não se pode deixar de lado que a dinâmica social e a evolução tecnológica influenciarão, inevitavelmente, os seus termos no decurso do tempo, exigindo sua adequação frente à realidade.9 É o que a doutrina jurídica denomina de
8 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS – NTU. Transporte público por ônibus. Tarifa Zero nas cidades brasileiras. Atualizado em abril/2023. Disponível em
<xxxxx://xxx.xxx.xx/xxxx/xxxxxx/Xxxxxxxxxx/Xxx000000000000000000.xxx>. Data de acesso: 24 de setembro de 2023.
9 Assim já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7048, quando da análise da constitucionalidade de Decretos editados pelo Estado de São Paulo, os quais autorizaram a prorrogação antecipada de contrato de concessão do serviço de transporte coletivo intermunicipal por ônibus e trólebus no Corredor Metropolitano São Mateus-Jabaquara. Tal operação propiciou a inclusão de novos investimentos, mediante a implantação de novo Sistema BRT e a operação de linhas alimentadoras até então operadas por empresas em caráter precário.
mutabilidade dos contratos administrativos,10 e que confere a prerrogativa ao poder público de modificar esses instrumentos, unilateralmente, desde que preservado o equilíbrio econômico-financeiro contratual (dicção que está prevista expressamente no artigo 9º, § 4º da Lei 8.987/1995, a Lei Geral de Concessões).11 Mas nem todos os aspectos da relação contratual poderão ser alterados dessa maneira. É que a legislação também assegura que apenas o teor das cláusulas regulamentares – isto é, aquelas que dão o contorno do modo de fornecimento e prestação dos serviços – poderão ser alvo de alteração unilateral, enquanto as cláusulas de caráter econômico-financeiro somente poderão ser modificadas de forma consensual (comando que se extrai da Lei 14.133/2021, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos).12
Dito isso, não nos parece que a implantação do Programa Tarifa Zero em contratos vigentes tenha condições de ser viabilizada apenas pelo “querer” do poder público, muito em razão de estratégias políticas populistas, porque tal operação transfiguraria a estrutura de remuneração do operador, que deixa de ser remunerado pela tarifa pública arcada pelos usuários e passa a receber diretamente do seu contratante. Isto é, nesse cenário, haverá mudanças sobre as condições econômico-financeiras pactuadas, sobretudo pela exposição a novos riscos, não podendo, por essa razão, ser promovida em caráter unilateral.
Por outro lado, há que se discorrer sobre as hipóteses que a legislação autoriza a modificação consensual dos contratos de concessão. Antes, contudo, é preciso deixar algo claro: o cuidado do legislador em delimitar quando e o que pode ser alterado em um contrato encontra fundamento na própria licitação que o originou, devendo-se observar a vinculação da proposta aos termos licitados, em respeito à isonomia e impessoalidade. Assim, as alterações do contrato posteriormente à licitação devem ser promovidas com certa cautela, na medida em que outros licitantes poderiam ter ofertado proposta distinta, caso tivessem conhecimento da situação futura.
Conquanto não se adote as mesmas bases e parâmetros para alteração dos contratos administrativos convencionais,13 fato é que a legislação de concessões e de parcerias público- privadas não estabeleceu limites objetivos estanques, servindo a doutrina e jurisprudência como fonte jurídica à fixação de limites para tanto, dentre eles o dever de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e a vedação à descaracterização do objeto licitado.
Retomando-se a Tarifa Zero como proposta, tem-se, em uma primeira leitura, que a alteração sobre a estrutura de remuneração pode parecer simples e sem grandes impactos aos limites então mencionados, seja porque poderia preservar a lógica de remuneração por passageiro transportado a partir da fixação de uma tarifa sombra para cada usuário, seja
10 Sobre o tema, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx leciona que “[n]ão seria exagero afirmar que a mutabilidade é uma circunstância anormal na vida dos contratos administrativos comuns, mas é da própria inerência da concessão. Ou seja, a característica da mutabilidade não apresenta idêntica relevância nos diferentes contratos administrativos. Se é verdade que os contratos ditos de colaboração (que envolvem obras, serviços, compras) comportam alteração unilateral, é inquestionável que a mutabilidade é essencial às concessões. A diferença reflete a natureza das prestações assumidas pelas partes. Tem vínculo direto com as características do próprio serviço público. (...) Esse vínculo inafastável entre a concessão de serviço público e a satisfação de necessidades coletivas essenciais conduz à necessidade de permanente adequação da atividade desenvolvida pelo concessionário à obtenção da melhor alternativa para realização dos interesses em jogo. Isso respalda a concepção de que a mutabilidade da concessão não pode ser enfrentada com os mesmos critérios atinentes àquela consagrada a propósito dos demais contratos administrativos. As condições de desempenho da atividade objeto da concessão são essencialmente mutáveis, tal como se passa com o serviço público prestado diretamente pelo próprio Estado.” (XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Teoria Geral das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Dialética, 2003, p. 75-76).
11 “Art. 9º (...) § 4º Em havendo alteração unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração.”
12 “Art. 104 (...) § 1º As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.”
13 São aqueles fixados em termos quantitativos, por exemplo, pela Lei 14.133/2021 (art. 125), replicando o teor da antiga Lei 8.666/1993 (art. 65), ao estabelecer a viabilidade de acréscimos e supressões de até 25% sobre os quantitativos do valor inicial atualizado do contrato.
porque não afeta a natureza dos serviços de transporte público coletivo. No entanto, ao olhar com maior criticidade sobre a política tarifária proposta, é possível cogitar que os seus efeitos podem gerar distorções em relação à alocação de riscos pactuada entre as partes, quando existente, para além do próprio regime jurídico contratual.
Uma primeira reflexão nesse sentido reside na variação dos custos operacionais inerentes à explosão de demanda provocada pela gratuidade. Parte relevante dos contratos de concessão atrelam ao operador o risco pela variação de preços dos insumos, como também pelo dimensionamento da frota, respeitados os coeficientes de ocupação por veículo e o intervalo da grade do itinerário. Um aumento imprevisível do número de passageiros poderá impor dificuldades operacionais relevantes, a exemplo da disponibilidade imediata de novos veículos em grande escala, mão de obra, insumos entre outros elementos. Caso não sejam devidamente dimensionados em uma fase de transição – que pode ser objeto de pactuação no aditamento responsável pela operação – é certo que as partes poderão entrar em conflito para debater se o evento resultante da nova política tarifária se enquadra no conceito de álea ordinária ou não da categoria do risco alocado ao operador.
Para contornar tais discussões e gerar os incentivos adequados aos operadores, pode- se cogitar da alteração do modelo convencional de pagamento por usuário – mesmo no arranjo do tipo tarifa sombra – para fixar um valor por disponibilidade ou utilização dos serviços, considerando a disponibilização de veículos operacionais e/ou a quilometragem operacional realizadas, respectivamente. Conquanto possa atenuar as discussões em razão do aumento de custos operacionais resultantes da Tarifa Zero, essa alteração também não será trivial, já que poderá ser objeto de questionamentos acerca do esvaziamento do risco de demanda, que não raro costuma ser alocado exclusivamente – e indevidamente, no nosso entendimento – aos operadores. É dizer, a modificação poderia incorrer no embate ingrato sobre a alteração da matriz de riscos contratual, constituindo benefício em favor do operador e violando as premissas da licitação. Ainda que hoje já se tenha bons argumentos para sustentar uma matriz de riscos dinâmica, fato é que a indefinição de um regramento claro do ordenamento jurídico sobre as hipóteses e os limites à mutabilidade dos contratos pode trazer insegurança às partes interessadas.
Outra reflexão quanto à alteração de riscos na estrutura contratual está atrelada a forma de remuneração dos operadores exclusivamente pelo contratante. É que a Tarifa Zero agrega risco antes inexistente a esses contratos: o risco de receita consubstanciado na possível inadimplência do poder público contratante. Sendo concessões comuns, geralmente, a remuneração dos operadores é oriunda da arrecadação da tarifa pública. Nesses casos, o risco incorrido pelos operadores se centra na volatilidade da demanda, com diluição da inadimplência entre os inúmeros usuários. Quando a fonte de custeio passa a ser o orçamento do poder concedente, agrega-se o risco de inadimplência do poder público, que hoje, pode- se afirmar, já existente frente aos atrasos no pagamento de subsídios decorrentes de gratuidades e outros benefícios tarifários. Não por acaso que alguns contratos de concessão comum já admitem a instituição de garantias públicas para fazer frente a esse risco,14 a exemplo do que se pratica nas parcerias público-privadas. Ainda assim, tal circunstância não deixa de ser um novo elemento que também não pode ser ignorado quando da implementação da Tarifa Zero.
Partindo da premissa de que o pagamento devido aos operadores será realizado integralmente pelo poder público, subsiste, como outro ponto de reflexão, a hipótese da alteração do regime de contratação inerente aos serviços (de uma concessão comum, regida pela Lei nº 8.987/1995, para uma concessão administrativa, segundo a Lei nº 11.079/2004). É que a modificação da forma de pagamento poderá ensejar questionamentos nesse sentido, já que não se estará mais diante de remuneração de natureza tarifária, mas sim algo mais voltado ao regime jurídico de uma contraprestação pública. Embora a doutrina encampe essa
14 Tal possibilidade foi admitida pelo Estado de São Paulo, conforme previsto na Lei Estadual nº 16.933/2019, ao admitir expressamente a possibilidade de se instituir garantias públicas em favor do parceiro privado, mesmo no âmbito de concessões comuns.
possibilidade,15 tendo como fundamento autorizativo a própria Lei de Licitações e Contratos Administrativos, surgem algumas complexidades inerentes ao regime das PPPs, como a observância do nível de comprometimento da Receita Corrente Líquida do poder concedente, a constituição de garantias públicas, a obrigatoriedade de constituição de Sociedade de Propósito Específico para exploração dos serviços, o prazo de vigência limite de 35 anos, dentre outros.
É claro que nem todo aporte constante tenha que necessariamente se sujeitar ao regime das PPPs, pois ainda é viável optar pela concessão comum subsidiada, tendo autorização na própria setorial, no caso a Lei 12.587/2012, que institui a Política Nacional de Mobilidade Urbana. A escolha do modelo subsidiado em detrimento da PPP não implica abandonar os preceitos de Direito Financeiro, já que mesmo o pagamento de subsídios deve observar atentamente as regras dispostas na Lei de Responsabilidade Fiscal assim como a Lei 4.320/1964.
Em síntese, a adequação de contratos de concessão comum para albergar a Tarifa Zero perpassa por uma série de reflexões de cunho jurídico, todas inerentes aos limites para mutabilidade desses ajustes. Não nos parece que seja impraticável sustentar as operações de adequação de contratos em curso, desde que o poder público saiba como enfrentar os limites aqui exemplificados como parte da motivação exigida no controle posterior das decisões administrativas.
4. DIAGNÓSTICO, PROPOSIÇÕES E RESULTADOS DO PROGRAMA TARIFA ZERO EM CONTRATOS DE CONCESSÃO VIGENTES
Seguindo com a metodologia de pesquisa proposta neste trabalho, identificamos que das 74 (setenta e quatro) cidades listadas pela NTU que têm Programas Tarifa Zero que abarcam a totalidade do sistema, apenas 11 (onze) foram implantadas na vigência de contratos de concessão, materializando-se mediante a celebração de apostilamento e/ou atos administrativos infralegais. Contudo, apesar da proposição de requerimentos a todos esses municípios para obter acesso aos contratos, aditivos e cópia dos processos administrativos que deram base à política tarifária dos respectivos Programas, fundamentados na Lei de Acesso à Informação,16 apenas 3 (três) municípios responderam aos requerimentos com a apresentação parcial da documentação solicitada: Ibirité-MG, Itapeva-SP e Ribeirão Pires-SP.
Figura 1 - Quadro sintético das solicitações encaminhadas.
15 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx, Guia jurídico das parcerias público-privadas. In XXXXXXX, Xxxxxx Xxx (Coord.). Parcerias público-privadas. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
16 Requerimentos realizados por meio das plataformas E-SIC, e-mails e contatos por telefone.
Nenhum município, portanto, disponibilizou acesso integral aos autos dos processos administrativos e as demais localidades sequer responderam aos pedidos realizados. Deste modo, os municípios de Ibirité – MG, Itapeva – SP e Ribeirão Pires – SP representam o universo dos municípios que apresentaram materiais para fins de apuração da forma como procedida a implantação da política tarifária.
A) Ibirité – Minas Gerais
Segundo se verifica das informações disponibilizadas, o Município concedeu os serviços de transporte coletivo em agosto de 2020. Apenas em 2022 foram adotadas medidas de transição na forma de pagamento da remuneração da concessionária: a Divisão de Engenharia e Fiscalização da Secretaria de Transporte emitiu “Relatório Técnico” pela viabilidade da implantação da “Tarifa Zero”, com fundamento na previsão contratual de remuneração por tarifa ou custo por quilômetro rodado.
Neste contexto, o Poder Público instituiu a referida política pública por meio de Decreto Municipal,17 o qual determinou a supressão de cobrança da tarifa pública cobrada dos usuários, além de alterar a forma de cálculo de remuneração da concessionária para o valor do custo por quilômetro rodado mensalmente. Para fins de registro, foi realizado termo de apostilamento que apontou a alteração na forma de cálculo de remuneração da concessionária.
Com base nos documentos disponibilizados, não ficou claro se a alteração promovida por força de ato normativo do Concedente se deu unilateralmente, o que já poderia sinalizar um ponto de alerta frente aos apontamentos jurídicos aqui retratados. Além disso, as alterações foram promovidas com base em apostilamento simples, sem a celebração de aditivo, o que reforça a percepção de que tal alteração tenha ocorrido a revelia do concessionário. Não foi possível identificar se na constância dessas alterações foram consideradas discussões jurídicas mais profundas acerca da possibilidade de alteração do cálculo de remuneração do contrato e suas implicações sobre a alocação de riscos.
B) Itapeva – São Paulo
Quanto ao município de Itapeva – SP, tem-se que o contrato de concessão se iniciou em 2011 e desde o princípio previu o pagamento mensal à concessionária por meio de tarifa de remuneração (tarifa pública cobrada do usuário, suplementada por subsídio), sendo calculada por meio de “Planilha de Custos” apresentada no momento do processo licitatório. De modo a regular o pagamento à concessionária, a Lei Municipal nº 4.039/2017, por sua vez, autorizou o pagamento de subsídio tarifário ao serviço de transporte público e, em junho de 2021, houve a edição do Decreto Municipal nº 11.829/2021 que suprimiu a cobrança da tarifa pública. Com isso, desde então, foi promovida a operação pela Tarifa Zero, sem qualquer tipo de adequação do contrato ou discussão em processo administrativo para sua efetivação.
No caso, há também indícios de que tal medida tenha ocorrido de forma unilateral, pela ausência de discussões em sede administrativa. No caso, aparentemente o contrato inicialmente foi custeado por rubricas genéricas das Lei Orçamentárias do Município e, após a edição da lei autorizativa em 2017, passou a ser custeado integralmente pelo orçamento da Secretária de Transportes e Serviços Rurais. Considerando as informações apresentadas, também não foi possível identificar se na constância dessas alterações foram consideradas as discussões jurídicas aqui apresentadas em relação à alocação de riscos pactuada entre as partes ou ao regime jurídico contratual.
C) Ribeirão Pires – São Paulo
Por fim, em Ribeirão Pires – SP a concessão do serviço de transporte público foi firmada em 2010 e, inicialmente, considerava a tarifa pública como única fonte de
17 Decreto n° 7.859/2022 do Município de Ibirité – MG.
remuneração da concessionária. Com a assinatura de termo aditivo em 2020 foi permitida a realização de pagamento através de tarifa de remuneração, de acordo com a Lei Federal n° 12.587/2012. Deste modo, semelhante ao município de Itapeva, o poder público determinou a realização da Tarifa Zero, por meio de Decreto Municipal, suprimindo a cobrança da tarifa pública nos domingos e feriados, sem qualquer formalização em processo ou registro de alterações contratuais.
Assim como nos casos anteriores, os indícios são de que as alterações foram promovidas unilateralmente, sem qualquer reflexão acerca das repercussões jurídicas em relação às alterações promovidas.
5. CONCLUSÕES
Não é novidade que a implementação da Tarifa Zero em municípios de pequeno, médio e grande porte é um desafio a ser pensado em todas as esferas de governo. Esse assunto tem sido amplamente discutido desde 2013, quando da ocorreram as manifestações sociais de junho daquele ano, e ganhou ainda mais força recentemente, em razão das repercussões da pandemia Covid-19. Com um apelo popular cada vez mais acalorado em prol dessa política pública, os munícios encontraram diversas formas para viabilizar a implementação do Programa. Uma delas, é a implementação da Tarifa Zero em contratos de concessão em curso, por meio de aditivos contratuais.
Contudo, a modificação de contratos de concessão de serviços públicos suscita um conjunto de desafios de natureza jurídica que transcende a mera vontade do poder público. A conjuntura de longo prazo das concessões, aliada à complexidade inerente à modificação da estrutura remuneratória dos concessionários, impõe a necessidade de uma abordagem diligente e fundamentada na legislação aplicável e, embora sejam outorgadas prerrogativas legais para a alteração de tais contratos, essa empreitada deve preservar o equilíbrio econômico-financeiro e evitar a descaracterização do objeto licitado, em consonância com os preceitos normativos vigentes. Evidente que o vazio normativo concernente às balizas precisas da mutabilidade contratual enseja potenciais incertezas e disputas em torno da alocação da matriz de riscos contratuais. Portanto, a transição para o regime de Tarifa Zero demanda uma profunda análise das implicações contratuais nos ajustes vigentes, incluindo a reconfiguração da modalidade remuneratória, a distribuição de riscos e a consideração de distintos modelos de pagamento.
Ademais, cumpre ressaltar que para além de a consecução da Tarifa Zero transcender o âmbito estrito da modificação contratual, ela demanda a consideração atenta dos impactos operacionais, tais como o imprevisível acréscimo na demanda e os custos operacionais correlatos. Lembra-se que a alteração na fonte de custeio, com o poder público assumindo o papel exclusivo de pagador, acrescenta um novo risco à equação, qual seja, a eventual inadimplência do poder público, fator que agrega à discussão se a operação não estria convertendo o regime contratual, migrando de uma concessão comum para uma parceria público-privada, introduzindo complexidades adicionais. Com isso, o êxito desta empreitada está intrinsecamente vinculado à habilidade das instâncias públicas em administrar tais desafios de forma eficaz e transparente, com vistas a assegurar o equilíbrio dos interesses em jogo e o estrito cumprimento das obrigações legais.
Por consequência, quanto aos casos de Ibirité, Itapeva e Ribeirão Pires, observa-se uma possível desconformidade com os princípios legais e as práticas de gestão contratual no contexto da implementação da política pública de “Tarifa Zero” nos serviços de transporte coletivo. Pois, pelo teor da documentação enviada por esses municípios, constata-se que mudanças substanciais na remuneração das concessionárias e na estrutura tarifária parecem ter sido implementadas de forma unilateral, sem uma discussão formal em processos administrativos com a celebração de aditivos contratuais. Essa situação pode demonstrar, pelo menos à primeira vista, uma falta de transparência entre o poder público e a respectiva concessionária, colocando em risco tanto a legalidade quanto a estabilidade dos serviços de transporte público nessas localidades e suscitando incertezas quanto às implicações jurídicas e à alocação de riscos pactuada entre as partes contratantes.
Indo além, vale comentar que a possível ausência de um processo de tomada de decisão transparente e participativo pode levantar sérias dúvidas sobre a conformidade da implantação do Programa nos referidos municípios com a legislação vigente. Isto porque, a falta de análise aprofundada das implicações jurídicas e contratuais das mudanças implementadas, aliada à não formalização por meio de aditivos contratuais, cria um ambiente de incerteza jurídica, tal como mencionado acima.
Dessa forma, de modo geral, é possível observar que nenhum dos municípios estudados formalizaram, por aditivos contratuais, as alterações de transição de modelos remuneratórios nos contratos de concessão para implantação da Tarifa Zero. As alterações, em sua maioria, aparentam ter sido promovidas de maneira unilateral, por força de instrumento normativo (decretos municipais) e sem qualquer tipo de discussão acerca das repercussões jurídicas decorrentes dos efeitos de uma isenção tarifária. Houve apenas um caso de modificação do contrato, em que apenas mencionou-se que a forma de remuneração poderia ser realizada por meio de pagamento por custo do serviço/tarifa de remuneração – não havendo maiores deliberações sobre os efeitos práticos dessa modificação contratual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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