ESTUDO
ESTUDO
Licitude da cobrança de tarifa mínima para manutenção de serviços públicos de fornecimento de água e de coleta de esgoto
SOLICITANTE
ARES-PCJ
Contrato n. 25/2016 Ordem de Serviço de 13.11.2017
PESQUISADOR RESPONSÁVEL
Prof. Thiago Marrara
Professor associado de direito administrativo da Universidade de São Paulo (USP) na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP). Livre- docente (USP). Doutor pela Universidade de Munique (LMU). Editor da Revista Digital de Direito Administrativo (RDDA). Advogado-consultor inscrito na OAB/SP sob o n. 280.490.
Janeiro de 2018
SUMÁRIO
1 Do estudo solicitado e sua contextualização 3
2 Tarifação de serviços públicos: aspectos teóricos gerais 5
2.1 Remuneração de serviços públicos 5
2.2 Natureza da tarifa de serviços públicos 8
2.3 Estrutura ou composição tarifária 10
2.4 Custos fixos e tarifação mínima 13
3 Tarifação dos serviços de água e de esgoto 16
3.1 Adoção do modelo de remuneração pelo usuário 16
3.2 Regras de estruturação da tarifa de água e esgoto 19
3.3 Quantidades e tarifas mínimas na legislação setorial 22
4 Tarifação e normas de defesa do usuário (CDC e CDUSP) 24
4.1 Prevalência da norma regulatória diante do CDC 24
4.2 CDC: aceitação de tarifa mínima por justa causa 30
4.3 Legalidade da tarifa mínima na jurisprudência 31
EMENTA
CUSTEIO DE SERVIÇOS PÚBLICOS – FORMAS – TARIFAÇÃO – ESTRUTURA – FATORES INTERNOS E EXTERNOS DE GERAÇÃO DE CUSTOS – PRESENÇA DE CUSTOS FIXOS E VARIÁVEIS – COBRANÇA DE TARIFA MÍNIMA – LICITUDE – NECESSIDADE DE COBERTURA DE CUSTOS FIXOS – REGIME DA TARIFA DOS SERVIÇOS DIVISÍVEIS DE ÁGUA E DE ESGOTO – PREVISÃO DE REGRAS DE ESTRUTURA TARIFÁRIA NA LEI SETORIAL – NECESSIDADE DE CONSIDERAÇÃO DE MÍNIMO DE OFERTA E DE CUSTOS DE MANUTENÇÃO – COMPETÊNCIA DA AGÊNCIA REGULADORA PARA DEFINIR A ESTRUTURA TARIFÁRIA – AUSÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE COM O CDC E O CDUSP – PREVALÊNCIA DA NORMA ESPECIAL E POSTERIOR AO CDC – EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA NOS TERMOS DO ART. 39, I DO CDC – JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA FAVORÁVEL À TARIFA MÍNIMA DE ÁGUA E ESGOTO.
1 Do estudo solicitado e sua contextualização
O estudo a seguir baseia-se na Ordem de Serviço de 13 de novembro de 2017, pela qual a ARES-PCJ (Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, consórcio intermunicipal com personalidade jurídica de direito público) solicita à FADEP (Fundação para o De- senvolvimento do Ensino e da Pesquisa do Direito, entidade de apoio à Facul- dade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FDRP/USP) subsídios legais, doutrinários e jurisprudenciais à resolução das duas indagações a seguir:
1 - Com base na legislação de saneamento brasileira e nos preceitos de direito administrativo é lícito instituir a cobrança de tarifa mí- nima (de que é espécie a tarifa básica operacional – TBO) para ma- nutenção dos serviços de água e esgoto?
2 - As tarifas dos serviços de água e esgoto estão vinculadas à legis- lação consumerista, devendo cobrar do usuário somente o serviço efetivamente usufruído ou tal preceito do Código de Defesa do Con- sumidor pode ser afastado?
A agência reguladora consulente, ARES-PCJ, constituída no modelo de con- sórcio público com personalidade de direito público interno e responsável pela regulação de serviços de saneamento básico em dezenas de Municípios do Estado de São Paulo, esclarece que as tarifas mínimas configuram preços públicos cobra- dos das unidades usuárias com base ora em um volume mínimo de consumo dos serviços de água/esgoto, ora nos valores fixos para manutenção da infraestrutura em pleno e adequado funcionamento (caso em que se utiliza a expressão “tarifa operacional básica”), somada ou não à cobrança por um mínimo de consumo.
Apesar de suas diferentes formas, no geral, a cobrança das tarifas mínimas se mostra fundamental para a cobertura de custos fixos de capital e operacionais, ou seja, valores que não variam no curto prazo a despeito de variações de demanda e servem à realização de investimentos essenciais para promover a universaliza- ção, a integralidade, a eficiência e a sustentabilidade econômica (art. 2º, incisos I,
II e VII, da Lei Federal nº 11.445/2007), bem como à manutenção da operação da rede e da disponibilidade do serviço público à sociedade.
Apesar de essas tarifas exercerem uma função objetiva e alinhada à legisla- ção setorial, a consulente revela que os órgãos de controle, como o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, têm questionado a lega- lidade das cobranças mínimas e levantado outros questionamentos sobre a estru- turação tarifária para serviços de saneamento básico, de sorte a colocar em risco sua autonomia regulatória e, em última instância, comprometer a eficiência das atividades de fornecimento de água e coleta de esgoto.
A partir dos fatos narrados, para se verificar a licitude da referida tarifa mí- nima, de que é espécie a chamada “tarifa básica operacional”, e para se atestar se e em que medida a autonomia da agência reguladora pode ser limitada por ór- gãos de controle externo, sobretudo com apoio em normas de defesa do consu- midor, o presente estudo divide-se em três partes:
• A primeira trata de aspectos gerais acerca da remuneração de serviços públicos, explicando os modelos existentes no Brasil, os critérios que ne- cessitam ser considerados na definição do modelo remuneratório e os elementos de custos que permeiam a chamada “estruturação tarifária”, oferecendo-se assim a base teórica para a compreensão dos serviços de saneamento e suas tarifas;
• A segunda parte ingressa no exame da legislação setorial para delinear o regime jurídico das tarifas de saneamento básico, dando especial desta- que para os serviços públicos de água e esgoto e para as normas que cui- dam da estruturação tarifária. Nessa parte se revela a opção preferida pelo legislador quanto à tarifação de água e de esgoto e se destacam as normas autorizativas da cobrança de tarifas mínimas para garantir o ser- viço público adequado; e
• A terceira e última parte cuida da relação entre normas regulatórias e normas de defesa do usuário e dos consumidores. Nela se apontam as razões pelas quais normas técnicas acerca da estruturação tarifária cons- truídas por agências reguladoras prevalecem sobre normas básicas pre- vistas em diplomas genéricos de defesa do consumidor, como o CDC.
Em complemento, sistematiza-se a jurisprudência específica acerca da le- galidade de cobrança de tarifas básicas de água e esgoto no Brasil, confe- rindo-se especial atenção às decisões do Superior Tribunal de Justiça.
2 Tarifação de serviços públicos: aspectos teóricos gerais
2.1 Remuneração de serviços públicos
Toda e qualquer tarefa estatal gera custos elevados. E não poderia ser dife- rente com os serviços públicos, atividades cuja extensão, complexidade e modo de funcionamento os torna frequentemente mais dispendiosos que ações corri- queiras de mercado. Não é à toa que, embora alguns serviços estejam por vezes abertos à livre iniciativa (serviços impróprios ou não monopolizados) ou, quando monopolizados, o Estado busque privatizá-los por meio de técnicas de delegação, poucos agentes econômicos mostram-se capazes de assumi-los.
Em termos financeiros e igualmente políticos, a questão central que se co- loca de modo constante aos titulares estatais dos serviços públicos é a seguinte: quem assumirá seus elevados custos? Em certas ocasiões, o próprio legislador responde à pergunta com a escolha de um modelo de custeio. Em outras ocasiões, ele apenas oferece, por meio do direito positivo, alternativas de respostas, cada qual com impactos e implicações distintas sobre os mais diversos agentes envol- vidos. Em hipóteses como essa, deixa-se margem de escolha para a Administra- ção desenvolver o modelo de geração das receitas que sustentarão o serviço.
No âmbito dos chamados serviços econômicos, comerciais ou industriais, é usual que o ordenamento preveja o custeio dos serviços direta e exclusivamente pelos usuários, pessoas físicas ou jurídicas. Predominam as receitas tarifárias, como se vislumbra nos setores de energia, telefonia, assim como de água e de esgoto. Em serviços dessa natureza, não há previsões genéricas e absolutas de gratuidade, senão meras e ocasionais determinações infraconstitucionais de tari- fas sociais ou de gratuidade restrita a grupos vulneráveis específicos.
Já no campo dos denominados serviços públicos sociais, a estipulação geral de gratuidade é mais comum, como se vislumbra na regra constitucional que veda o pagamento de ensino em estabelecimentos públicos (art. 206, IV da CF) ou na regra legal que torna gratuitos os serviços de saúde no SUS (art. 43 da Lei
n. 8.080/1990). A opção da gratuidade comumente encontrada nos serviços soci- ais desloca o custeio que seria assumido pelo usuário final para outros atores, em geral para a população como pagadora de impostos. Utiliza-se um modelo de receitas não tarifárias.
Em qualquer situação, a despeito da categoria do serviço público, opção por uma ou outra forma de remuneração resta sempre condicionada pela natureza indivisível (uti universi) ou divisível (uti singuli) da prestação. Em poucas pala- vras, os indivisíveis, como os de limpeza urbana e drenagem de águas pluviais, não aceitam taxa, nem tarifa, dada a impossibilidade de se verificar o consumo ou o potencial de consumo de cada usuário. Daí a necessidade de que sejam cus- teados por meio de impostos e, eventualmente, por meio de receitas alternativas geradas no âmbito de contratos de concessão (receitas não tarifárias) – salvo quando o legislador, contrariando toda a lógica, previr cobranças individualiza- das para sua manutenção, como a esdrúxula contribuição de iluminação pública, prevista no art. 149-A da Constituição da República, incluído pela Emenda Cons- titucional n. 39/2002.1
Em contraste, a modelagem de custeio dos serviços divisíveis, como distri- buição de água e de coleta de esgoto, é muito flexível. Além do uso de impostos, de receitas alternativas (autorizadas em contratos de concessão ou de permissão) e de subsídios cruzados provenientes de outros usuários (conforme previsão em certas leis), é possível cobrar taxa ou tarifa do usuário final para cobrir total ou parcialmente os custos de estruturação, manutenção e prestação do serviço pú- blico, ou seja, todos os custos fixos e variáveis, de capital ou de operação. A mar- gem de discricionariedade do titular do serviço para combinar inúmeras técnicas de custeio variará de acordo com as opções do legislador, frequentemente con- signadas na legislação setorial, como se demonstrará ao longo da análise do setor de água e de esgoto.
Por ora cumpre simplesmente registrar que, em termos gerais, os altos e variados custos que um serviço público adequado gera – tanto para sua manu-
1 Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das res- pectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica.
tenção e operação quotidiana, quanto para sua universalização e atualização tec- nológica – podem ser sustentados por diferentes fontes e conforme modelos que se diferenciam pela natureza do serviço e pelas amarras dadas pelo ordenamento. Grosso modo, no Brasil frequentemente se identificam três modelos:
• O do “serviço público remunerado integralmente pelos usuários”. Aqui, a taxa ou tarifa cobrada do usuário abarca todos os custos internos e ex- ternos, fixos e variáveis, de operação e de capital. Para tanto, é preciso que: i) o serviço se caracterize pela divisibilidade; ii) a taxa esteja pre- vista em lei ou, alternativamente, a tarifa conste de contrato de delega- ção; iii) a cobrança retrate os custos para a prestação do serviço ade- quado e iv) a cobrança não seja abusiva, excessiva ou exageradamente elevada (princípio da modicidade). Esse é o modelo prioritário para ser- viços de água e esgoto, como se demonstrará oportunamente.
• O do “serviço público remunerado parcialmente pelos usuários”. Nessa hi- pótese, a remuneração do usuário para custear o serviço será deficitária, exigindo receitas não tarifárias como o pagamento de subsídios previs- tos em contrato (art. 17, caput da Lei n. 8.987/1995), uma contraprestação do parceiro público, caso se trate de PPP patrocinada (art. 2º, § 1º da Lei
n. 11.079/2004), e/ou a geração de receitas alternativas (art. 11 da Lei n. 8.987/1995). Como esse modelo pressupõe que o serviço se caracterize pela divisibilidade, ele é perfeitamente aplicável também nos setores de água e de esgoto.
• E o modelo do “serviço não custeado pelo usuário final”, que se aplica em duas situações. A primeira se refere aos serviços uti universi, cuja cober- tura financeira ocorre via de regra por impostos ou receitas alternativas, salvo no caso da iluminação pública, que dispõe de contribuição espe- cífica. A segunda situação se refere a serviços divisíveis, mas a que o ordenamento expressamente atribui gratuidade, ou seja, proíbe a co- brança individualizada de taxas ou tarifas por norma constitucional ou infraconstitucional. É igualmente concebível que referida gratuidade venha determinada por decisão administrativa. Em qualquer hipótese, fato é que a gratuidade não faz desaparecer os custos dos serviços. Ela simplesmente altera a fonte de custeio. O serviço terá que ser suportado ou pela coletividade, ou por receitas alternativas ou por subsídios cru- zados de outro grupo de usuários, ou seja, por receitas não tarifárias.
2.2 Natureza da tarifa de serviços públicos
Os modelos baseados na remuneração dos serviços pelo usuário – como o empregado no campo dos serviços públicos de água e de esgoto por força da legislação setorial a ser oportunamente examinada – sustentam-se na cobrança de taxa ou de tarifa (preço). Ambos os institutos desempenham função análoga, embora com sensível diferença no tocante ao regime jurídico.
A “taxa” é espécie tributária cabível apenas para a prestação direta e sub- metida à legalidade forte (previsão estrita de alíquota, base de cálculo, fato gera- dor e outros elementos em lei em sentido formal). A seu turno, a “tarifa” confi- gura um preço regulado, instituído na delegação do serviço e inserido num re- gime mais flexível que excepciona o direito tributário por força de norma consti- tucional expressa. A esse respeito, o STF esclareceu na Súmula 545 que “preços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente, daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentá- ria, em relação à lei que as instituiu”.
A diferença fundamental entre os regimes da taxa e da tarifa se ancora na Constituição, cujo o art. 175 prevê a possibilidade de que os serviços públicos sejam executados diretamente pelo seu titular estatal ou indiretamente por dele- gatário (i.e. concessionário ou permissionário) escolhido por meio de processo licitatório. Além disso, referido dispositivo cria o sistema de remuneração por tarifa para a execução indireta, submetendo-o a reserva legal ao exigir que lei dis- ponha, entre outras coisas, sobre a política tarifária (art. 175, parágrafo único, III).
Ao tratar das formas possíveis de execução das atividades em questão, Xxx- xxxxxx Xxxxxx de Aragão afirma que o artigo 175 da Constituição abre uma exce- ção ao regime tributário previsto pela Constituição para os serviços públicos que seriam remunerados por taxa, de forma que, sempre que o serviço público, com- pulsório ou não, tiver sido delegado, a sua remuneração se dará por tarifa.2 Isso significa, como reforça Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx, que a tarifa será o único instituto cabível para a cobrança direta do usuário quando o serviço for prestado
2 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Direito dos serviços públicos, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
por meio de concessão ou permissão.3 E não poderia ser diferente. Impor a insti- tuição de taxa para serviços delegados inviabilizaria sua execução, já que a taxa é incapaz de assegurar, pela rigidez de seu regime, o respeito ao direito de equi- líbrio econômico-financeiro atribuído pela legislação ao prestador.4
Não há outra conclusão possível a partir do exame da disciplina infracons- titucional do assunto. Em respeito à reserva legal prevista na Constituição, o Con- gresso Nacional editou a Lei Geral de Concessões e Permissões de Serviços Pú- blicos (Lei n. 8.987/1995), assim como leis especiais para cada setor, como a Lei de Saneamento Básico (Lei n. 11.445/2007), no intuito de explicar o emprego da tarifa na execução delegada dos serviços públicos.
Na Lei Geral de Concessões, diploma nuclear para a compreensão dessa matéria, dedicou-se todo o capítulo IV ao tema “da política tarifária”. Seus dis- positivos gerais, entre outras coisas, preveem que: i) a tarifa será fixada de acordo com as normas da licitação e do contrato, observando-se a proposta do licitante vencedor; ii) a tarifa será preservada em seu valor por revisão ou reajuste no in- tuito de garantir o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de delegação do serviço; iii) sua cobrança poderá ser condicionada a serviço alternativo e gratuito ao usuário somente quando houver previsão em lei para tanto; iv) o valor gerado pelas tarifas para custeio do serviço poderá ser complementado por “fontes pro- venientes de receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos as- sociados, com ou sem exclusividade (...)”; e v) a tarifa pode ser diferenciada em razão de características técnicas ou dos custos específicos provenientes do aten- dimento aos distintos segmentos de usuários.
A partir daí se evidencia, conforme preleciona Xxxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx- rães, que a tarifa consiste num preço ou contraprestação que os usuários praticam em face da utilização do serviço e da infraestrutura pública disponibilizada pelo delegatário.5 Ela deve ser compreendida, por conseguinte, no entrecruzamento
3 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas, 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 384.
4 DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 385.
5 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 178.
de três relações jurídicas coordenadas entre si: a que se estabelece entre usuário (e não usuários) e o poder concedente, quando da concepção e idealização do serviço público e de sua tarifação; a travada entre o delegatário e o titular do serviço, bem como a existente entre concessionário e usuário, assumindo a tarifa, aqui, o papel de contraprestação arcada pelo usuário como contrapartida à prestação do ser- viço adequado.6
A essa pluralidade de relações se deve adicionar uma quarta, a saber: a que envolve o prestador, delegado ou não, e o regulador, como entidade pública do- tada de autonomia para encontrar as melhores soluções técnicas com o objetivo de viabilizar um serviço adequado e capaz de satisfazer os direitos e interesses juridicamente tutelados de todos os atores envolvidos. Somente com a consciên- cia dessa multiplicidade de relações, inclusive com o regulador, é que se poderá compreender a tarefa de estruturação tarifária, inclusive no setor de saneamento.
2.3 Estrutura ou composição tarifária
A complexidade da prestação de serviços públicos e a pluralidade de atores e relações jurídicas que a caracteriza revelam que a tarifa não pode ser estrutu- rada, examinada nem questionada sob perspectivas reducionistas, microscópicas ou de curto prazo. Da mesma forma que sua precificação não poderia ser reali- zada com a mera consideração dos interesses do prestador, ela jamais poderia ser calculada a partir da consideração exclusiva da quantidade ou volume de serviço diretamente consumido por um ou outro usuário final (mera fruição individua- lizada).
A estruturação tarifária como método de definição das tarifas cobradas dos mais diferentes grupos de usuários necessita levar em conta uma série de outros fatores que se extraem do plexo mencionado de relações jurídicas. Dentre tantos fatores, cabe destacar: a modelagem adotada na fase interna e vinculante do pro- cesso licitatório; a garantia do equilíbrio econômico-financeiro ao prestador; a existência ou não de regras de gratuidade para grupos de consumidores; o dever de prestação do serviço adequado para as gerações presentes e futuras; a conse- quente necessidade de expansão de rede para atendimento a usuários em pontos
6 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxx. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 178.
territoriais diversos e de manutenção da infraestrutura existente em bom funcio- namento; a previsão de subsídios; o pagamento de taxas regulatórias pelo pres- tador etc.
Em outras palavras, a precificação abarca necessariamente fatores de custo externos e inerentes ao serviço. Os fatores internos se referem a custos exclusivos do serviço em si, incluindo os custos fixos e variáveis de produção (como os de construção e expansão de rede), os de operação (como de energia elétrica e trans- porte) os de manutenção (como os de verificação de segurança e de avaliação de qualidade), bem como os custos da efetiva oferta ao usuário final (e.g., volume consumido do bem ou quantidade de serviços solicitados). Já os fatores externos dizem respeito a custos não derivados das operações do serviço em si, mas rela- cionados à sua existência, como os de retorno esperado do executor, de cobertura de projetos elaborados no PMI, de subsídios cruzados entre os usuários atuais ou de diferentes gerações etc. Alguns desses custos externos são naturais em dele- gações de serviços, como os de remuneração do prestador, outros são eventuais e dependem de previsão, como os de cobertura de projetos escolhidos em PMI ou o pagamento de subsídios cruzados para sustentar usuários vulneráveis.
A partir dos vários fatores que cada legislação setorial entende cabível e que o regulador mensura na prática, concebem-se três tipos básicos de tarifa: a supe- ravitária, a deficitária e a justa. Além disso, mesmo em serviços divisíveis e tari- fados, é igualmente possível a definição de gratuidade limitada a certos grupos de usuários (por força de decisão constitucional, legal ou administrativa), ou seja, a isenção seletiva e justificada de tarifa.
A ideia de tarifa superavitária e deficitária há que se pensada sempre a par- tir da “tarifa justa”, aqui entendida como o valor pago pelo usuário para cobrir com exatidão todos os custos internos e externos naturais da delegação, como a remuneração do prestador. Diferentemente, entende-se como superavitária a ta- rifa que gera recursos excedentes aos necessários para cobrir os custos internos e externos naturais. Como ela comporta um excedente que geralmente serve para cobrir custos externos eventuais, como os subsídios cruzados em favor de usuá- rios em situação de vulnerabilidade, a exemplo do que se vislumbra no setor de transporte urbano (art. 9º, § 5º da Lei n. 12.587/2012 ou Lei de Mobilidade Urbana) ou custos de construção de infraestruturas para usuários futuros, sua previsão geralmente necessita de previsão legal.
A tarifa deficitária, a seu turno, representa um preço incapaz de suportar os custos internos e os custos externos naturais (geralmente, o valor de produção, manutenção, operação e prestação do serviço em si somado à remuneração do prestador). Por isso, tanto a tarifa deficitária, quanto as hipóteses de gratuidade a certos grupos de usuários geram o mesmo efeito econômico. A parcela não paga pelos usuários beneficiados acarreta uma transferência dos custos para outros agentes. O custo não desaparece pelo fato de o usuário ter deixado de cobri-lo em virtude de desconto tarifário ou da gratuidade; ele simplesmente é deslocado para outro agente social ou econômico.
Considerando a relação complexa e as amarras que a delegação de serviços envolve no direito brasileiro, esses custos descobertos por conta da tarifa defici- tária ou da gratuidade somente podem ser transferidos para os seguintes atores:
i) a coletividade, que os assume por meio de seus impostos convertidos em subsí- dios ou contraprestações ao prestador a depender da modelagem contratual (concessão comum ou PPP); ii) os outros usuários, desde que a legislação autorize subsídios cruzados baseados em tarifas superavitárias ou iii) outros agentes econô- micos, caso o contrato preveja receitas alternativas e elas se mostrem possíveis na prática diante das características dos serviços – o que, aliás, dificilmente ocorre nos serviços de água e esgoto.
Reitere-se, pois, que sempre que o usuário final deixar de custear qualquer parcela dos custos de produção, operação, manutenção e oferta de um serviço – nisso se incluindo, portanto, os de sustentação da infraestrutura disponível –, o valor faltante terá que ser compensado por algum outro agente. E caso essa com- pensação não ocorra, o serviço se tornará insustentável financeiramente e, por consequência, inadequado ou, em pior situação, inexequível, deixando de ser prestado a parcela dos usuários.
Dessa maneira, conquanto possa haver serviço gratuito ou parcelas defici- tárias a um ou outro grupo de usuários, não há serviço sem custo! Serviço gra- tuito ou serviço a preço deficitário é sinônimo de serviço sustentado por outras fontes que não a de pagamento pelo usuário com base exclusiva no benefício re- cebido ou colocado à disposição. Daí se conclui que, em grande parte dos cená- rios, ao se impossibilitar a cobrança de uma tarifa justa, causa-se sempre um im- pacto nocivo: ou se onera mais ainda a sociedade, ou se torna o serviço precário
em desfavor do próprio usuário final. Não são outras, senão essas as consequên- cias causadas por ocasionais ações levianas de órgãos de controle contra normas de tarifação em setores regulados.
2.4 Custos fixos e tarifação mínima
Os fatores ou custos internos envolvem os gastos para a existência, o funci- onamento e a disponibilização do serviço ao usuário final. Em todas essas etapas, os custos se sujeitam a diversas classificações. Há custos de capital, necessários a investimentos, e custos de operação, necessários ao funcionamento do que já existe. Além disso – e o que mais importa a esse estudo –, há custos variáveis e fixos, ou sejam, custos que respectivamente variam ou não no curto prazo con- forme a demanda efetiva das unidades usuárias conectadas à rede.
No serviço de abastecimento de água (que envolve tarefas de captação, tra- tamento e distribuição) e de coleta de esgoto (que abrange atividades de afasta- mento, tratamento e disposição final), por exemplo, independentemente do con- sumo maior ou menor de cada domicílio em certo mês, o prestador arca com cus- tos constantes de remuneração de um corpo de empregados, custos com medição individualizada de consumo (leitura) e emissão de faturas, bem como de even- tual aluguel de suas instalações, impostos sobre a propriedade, valores para pa- gamentos de softwares, atendimento às metas de investimentos constantes do Plano Municipal de Saneamento, manutenção de equipamentos e da rede de in- fraestrutura, amortização de investimentos na construção de infraestrutura, aten- dimento telefônico ao usuário etc.
Esses e outros elementos de despesa configuram custos fixos, pois, a despeito das variações pontuais do consumo de água e de coleta de esgoto, eles permane- cem constantes por algum tempo. Para que o serviço funcione permanentemente e de modo adequado, custos dessa natureza se mostram inevitáveis. Eles existi- rão em igual medida a despeito das variações de consumo ou do fato de algumas dezenas de família, por exemplo, em razão de viagem nas férias de final de ano, não terem utilizado água em seus domicílios, nem gerado esgoto expressivo. É por isso que se faz necessária uma tarifa mínima, por exemplo, como forma de tarifa operacional básica, com ou sem pagamento de consumo mínimo.
Em tese específica sobre os serviços de saneamento básico, Valmir de Albu- querque Xxxxxxx confirma a diversidade de custos que os caracteriza e, ao fazê-
lo, ressalta os diversos custos fixos que as tarifas cobradas pelos prestadores desse setor espelham, ou seja, custos que não variam no curto-prazo com relação à quantidade de água ou esgoto, como os de manutenção das máquinas e repo- sição de equipamentos obsoletos.7 Aroldo Xxxx Xxxxx caminha no mesmo sentido ao explicar que, por definição, os custos fixos são aqueles que independem da quantidade produzida, incluindo-se nessa categoria, entre outros, os custos de área e instalações necessários aos serviços de saneamento básico.8
Diferentemente dos fixos, os custos variáveis aumentam ou diminuem con- forme a demanda concreta e atual do serviço. Exemplos disso são os custos com produtos químicos para tratamento da água ou do esgoto, bem como os custos de energia do maquinário necessário a tanto, como o funcionamento de bombas.9 Voltando-se ao exemplo dado, o fato de dezenas de famílias deixarem de consu- mir água e gerar esgoto por conta das viagens durante o período de férias de final de ano, ocasionará uma redução proporcional desses custos variáveis, mas os custos fixos, como dito, permanecerão idênticos.
A partir dessa simples classificação econômica entre custos fixos e custos variáveis, fica bastante evidente que o custo total que um usuário de serviço pú- blico acarreta ao Estado e, por consequência, à coletividade não se mede somente a partir da quantidade consumida pela unidade usuária. O custo do serviço de água e de esgoto, portanto, não se reduz ao mero volume de água fornecido e de esgoto coletado. Em todo serviço público, assim como ocorre nas atividades eco- nômicas, existem custos invariáveis, cuja inevitabilidade está atrelada à necessi- dade de se garantir que o serviço possa ser prestado com qualidade assim que o
7 XXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Tarifas nas empresas de saneamento. Tese (Doutorado em Engenharia de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Xxxxx Xxxxxx, 0000. Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxxx.xx/xxxxxxxxx/xxx/Xxxx- Valmir.pdf. Acesso em: 20 nov. 2017, p. 80.
8 XXXXX, Xxxxxx Xxxx. Metodologia para análise de tarifas de sistemas de abastecimento de água
– SAA com base nos custos de implantação e operação do sistema. Dissertação (Mestrado em Engenharia Ambiental da Universidade Federal de Santa Catarina). Florianópolis, 2003. Disponí- vel em: xxxxx://xxxxxxxxxxx.xxxx.xx/xxxxxxxxx/xxxxxx/000000000/00000/000000.xxx?xxxxxxxxx0. Acesso em: 20 nov. 2017, p. 39-40.
9 XXXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx. Tarifas nas empresas de saneamento. Tese (Doutorado em Engenharia de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Xxxxx Xxxxxx, 0000. Disponível em: xxxx://xxx.xxxx.xxxx.xx/xxxxxxxxx/xxx/Xxxx- Valmir.pdf. Acesso em: 20 nov. 2017, p. 80.
usuário desejar. Exatamente por isso, enquanto uma pessoa física ou jurídica es- tiver vinculada ao prestador na qualidade de usuário e não solicitar o desliga- mento da rede, esses custos fixos deverão ser por ela absorvidos sob pena de se transferi-los ilegitimamente à sociedade ou a outros usuários.
É essa lógica que torna lícita e legítima perante a sociedade a cobrança de tarifa mínima para manutenção de redes – em alguns locais, denominada de ta- rifa operacional básica. Essa cobrança é devida por todos os usuários ativos, co- nectados à rede de serviço, ainda que façam maior ou menor uso dele em um ou outro período. E isso se deve ao fato de que o valor da tarifa mínima não se des- tina a cobrir os custos variáveis, mas sim os custos fixos que o serviço acarreta e que, não fossem assumidos pelo usuário, onerariam indevidamente o patrimônio de outrem. Como técnica de justa divisão dos custos, a tarifa mínima incidirá sempre na razão do custo fixo total pelo número de usuários conectados à rede.
Essa técnica de cobrança, destinada a garantir a justiça da contribuição de cada um para o custeio da atividade estatal, não representa qualquer novidade ou peculiaridade do sistema tarifário em relação ao que já existia no modelo de prestação direta de serviço. Isso fica bastante evidente quando se considera que a Constituição da República e o Código Tributário Nacional explicitamente pre- veem que as taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gera- dor a “utilização, efetiva ou potencial”, de serviço público específico e divisível, “prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição” (art. 77 do CTN e art. 145, II da CF).
Ao ressaltar que a taxa será cobrada pelo serviço público independente- mente de sua utilização, o legislador não buscou criar uma fonte de receita inde- vida para o Estado. Ele simplesmente reconheceu o óbvio: todas as atividades, inclusive os serviços públicos, geram custos variáveis e fixos. Desse modo, sem- pre que uma pessoa física ou jurídica estiver conectada ao serviço na qualidade de usuário, deverá pagar pelo serviço ainda que não o tenha utilizado efetiva- mente, ou seja, pagará um valor básico, porque o serviço gerou custos fixos con- sideráveis.
3 Tarifação dos serviços de água e de esgoto
3.1 Adoção do modelo de remuneração pelo usuário
A tarefa de identificar o modelo escolhido no Brasil para a remuneração dos serviços divisíveis de água e esgoto se tornou relativamente simples após 2017, ano de edição da Lei nº 11.445, a Lei Nacional de Saneamento. Em seu capítulo VI, dedicaram-se inúmeros dispositivos aos aspectos econômicos e sociais dos referidos serviços e neles se determinou de modo expresso a adoção prioritária do sistema de remuneração pelo usuário final. Com efeito, o art. 29 explicita- mente prescreve que “os serviços públicos de saneamento básico terão a susten- tabilidade econômico-financeira assegurada, sempre que possível, mediante re- muneração pela cobrança dos serviços: I – de abastecimento de água e esgotamento sanitário: preferencialmente na forma de tarifas e outros preços públicos, que poderão ser estabelecidos para cada um dos serviços ou para ambos conjuntamente (...)”.
Do dispositivo transcrito se extraem inúmeras conclusões relevantes, a sa- ber: i) a não ser que se mostre impossível, os próprios usuários deverão custear os serviços de água e esgoto em cada localidade; ii) a cobrança deverá se dar pre- ferencialmente na forma de tarifa, submetida a um regime jurídico mais flexível, distinto do aplicável às taxas; e iii) a tarifa poderá ser comum ou única para os dois serviços ou individualizada para cada um deles. Em mais uma ocasião, essa opção pelo modelo tarifário, em detrimento da taxa, foi reafirmada pelos Tribu- nais brasileiros, inclusive pelo STJ (EREsp 69060910 e REsp 740967/RS11) e pelo
10 TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. CONTRAPRESTAÇÃO COBRADA PELO SERVIÇO PÚBLICO DE ÁGUA E ESGOTO. NATUREZA JURÍDICA DE TARIFA. PRECEDEN- TES DO STJ E DO STF. 1. Este Tribunal Superior, encampando entendimento sedimentado no Pretório Excelso, firmou posição no sentido de que a contraprestação cobrada por concessionárias de serviço público de água e esgoto detém natureza jurídica de tarifa ou preço público. 2. Definida a natureza jurídica da contraprestação, também definiu-se pela aplicação das normas do Código Civil. 3. A prescrição é vintenária, porque regida pelas normas do Direito Civil. 4.. Embargos de divergência providos. (EREsp 690.609/RS, Rel. Ministra XXXXXX XXXXXX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/03/2008, DJe 07/04/2008).
11 PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. TARIFA DE ÁGUA E ESGOTO. NATUREZA JURÍDICA DE TARIFA OU PREÇO PÚBLICO. DÍVIDA ATIVA. CRÉDITO NÃO- TRIBUTÁRIO. PRESCRIÇÃO DECENAL. CÓDIGO CIVIL. 1. O Colendo STF já decidiu, reiterada- mente, que a natureza jurídica da remuneração dos serviços de água e esgoto, prestados por concessionária de serviço público, é de tarifa ou preço público, consubstanciando, assim, contraprestação de caráter não- tributário. 2. Consectariamente, malgrado os débitos oriundos do inadimplemento dos serviços
STF (RE 488200/MS12).
A autorização legal para a cobrança da tarifa comum, mencionada no item iii acima, fundamenta-se em última instância na relação de quase equivalência do volume de água consumido ao volume de esgoto produzido. Fala-se de quase equivalência, pois, na prática, o retorno de esgoto se mostra ora levemente me- nor, ora levemente maior ao da água fornecida por uma série de razões técnicas, como captação de água de chuva e indevido lançamento de água pluvial na rede de esgoto (fatores que tornam o retorno de esgoto maior que o volume de água
de água e esgoto terem sido inscritos como dívida ativa, e exigidos mediante execução fiscal, em observância à Lei de Execuções Fiscais, não se lhes pode aplicar o regime tributário previsto nas disposições do CTN, in casu, os relativos à prescrição/decadência, porquanto estes apenas perti- nentes às dívidas tributárias, exatamente por força do conceito de tributo previsto no art. 3º do CTN. 3. A Execução Fiscal ostenta esse nomen juris posto processo satisfativo, que apresenta pe- culiaridades em razão das prerrogativas do exequente, assim como é especial a execução contra a Fazenda, não sendo servil apenas para créditos de tributos, porquanto outras obrigações podem vir a compor a "dívida ativa". 4. Recurso Especial provido. (REsp 740.967/RS, Rel. Ministro XXXX XXX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 11/04/2006, DJ 28/04/2006, p. 275)
12 DECISÃO: Os recorrentes insurgem-se contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul segundo o qual a contraprestação correspondente ao fornecimento dos ser- viços de água e esgoto possui caráter tributário. 2. Alega-se, no extraordinário, violação do dis- xxxxx xx xxxxxx 000, xxxxxx XXX, xx Xxxxxxxxxxxx xx Xxxxxx. 3. A jurisprudência do Supremo está conso- lidada no entendimento de que a remuneração pela prestação do serviço de fornecimento de água e coleta de esgoto não tem caráter de tributo, mas de preço público. Veja-se, v.g., o RE n. 54.491, Relator o Ministro Xxxxxx Xxxx, 2ª Turma, DJ de 15.10.63. Nesse mesmo sentido: RE n. 429.664, Relator o Ministro Xxxxx Xxxxxx, DJ de 24.3.06; RE n. 330.353, Relator o Ministro Xxxxxx Xxxxxx, DJ de 10.5.05; AI n. 397.797, Relator o Ministro Xxxxxx Xxxxxxx, DJ de 6.2.06. 4. Ainda que no caso discuta-se o serviço público compulsório, a remuneração cobrada pela empresa concessionária é contratual, de modo que a sua criação e majoração independem de lei. Note-se que a compulsoriedade referida pelo artigo 179, I, "b" do Código Tributário Nacional há de ser e só pode ser, como observou ALIOMAR BALEEIRO [4. Ainda que no caso discuta-se o serviço público compulsório, a remuneração co- brada pela empresa concessionária é contratual, de modo que a sua criação e majoração indepen- dem de lei. Note-se que a compulsoriedade referida pelo artigo 179, I, "b" do Código Tributário Nacional há de ser e só pode ser, como observou ALIOMAR BALEEIRO [Direito Tributário Bra- sileiro, 10a edição, Forense, Rio, 1.981, pág. 353], compulsoriedade de pagamento do tributo [taxa, no caso] e não de uso do serviço. O preceito do Código Tributário Nacional não afirma a impos- sibilidade da incidência de taxa pela utilização potencial de serviço público facultativo. A recí- proca é verdadeira. A concessão do serviço público pressupõe o pagamento, pelo usuário, ao concessionário, de preço público [= tarifa]. Dou provimento ao recurso extraordinário com fun- damento no disposto no artigo 557, § 1º-A, do CPC para reformar o acórdão recorrido, reconhe- cendo o caráter não-tributário da contraprestação de que se cuida, preço público e não taxa. Pu- blique-se. Brasília, 13 de setembro de 2006. Ministro Xxxx Xxxx - Relator – 1 (RE 488200, Relator(a): Min. XXXX XXXX, julgado em 13/09/2006, publicado em DJ 26/09/2006 PP-00095)
fornecido) ou utilização de água para atividades como irrigação de plantas, con- sumo humano etc. (fatores que reduzem o retorno). Justamente por isso, os Tri- bunais brasileiros já chancelaram essa técnica de cobrança em muitos julgados, não cabendo aqui, porém, maior aprofundamento sobre o tema.13-14
Imprescindível por ora é simplesmente atestar a clara opção do legislador pátrio pelo modelo de remuneração direta pelo usuário no art. 29, I da Lei de Saneamento. Essa opção encontra reforço em inúmeros outros dispositivos do diploma. Ao cuidar da delegação dos serviços por contrato de concessão ou de programa, por exemplo, a lei exige a observância de alguns requisitos, dentre os quais a existência de normas de regulação que cuidem das “condições de susten- tabilidade e equilíbrio econômico-financeiro da prestação dos serviços, em regime de eficiência, incluindo: a) o sistema de cobrança e a composição de taxas e tarifas; b) a sistemática de reajustes e de revisões de taxas e tarifas; e c) a política de subsí- dios” (art. 11, § 2º IV).
Em outro trecho, ainda ao tratar dos serviços atribuídos a diferentes presta- dores, a lei evidencia a escolha pelo sistema baseado primariamente na cobrança das unidades usuárias ao estipular que a entidade reguladora definirá “as nor- mas econômicas e financeiras relativas às tarifas, aos subsídios e aos pagamentos
13 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - FORNECIMENTO DE ÁGUA E COLETA DE ESGOTO - DECLARATÓRIA - Alegação da usuária de que a concessionária de serviços públicos exige in- devidamente a cobrança de tarifa de coleta de esgoto na mesma proporção do consumo de água, cobrando por serviço não prestado - Procedência da ação em primeiro grau, porém, com redução da tarifa de esgotos a ser estipulada na proporção determinada no laudo pericial, ou seja, em 80% da água consumida Afastamento – Tese lançada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça em sede de Recurso Especial Repetitivo sustentando a Legalidade e constitucionalidade da base de cálculo da tarifa do esgoto calculada sobre o consumo de água - Preliminar de nulidade proces- sual rejeitada - Discussão sobre a alegação de julgamento extra petita quanto à devolução dos valores, que fica prejudicada ante a resultante da ação - Recurso da concessionária ré provido para julgar improcedente a ação declaratória. (TJSP, Apelação Cível n. 0101432-78.2008.8.26.0100).
14 PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS TARIFA DE COLETA DE ESGOTO AÇÃO ANULATÓRIA DE
FATURAS CUMULADA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DA FORMA DE CÁLCULO DAS TARIFAS COBRADAS PELO SERVIÇO DE COLETA DE ESGOTO. ALEGAÇÃO DE QUE A TARIFA SERIA DESPROPORCIONAL AOS SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS. CONSTITUCIONALIDADE DA COBRANÇA POR SIMPLES AVALIAÇÃO, COM BASE NO VOLUME DE ÁGUA CONSUMIDO CRITÉRIO ADOTADO POR QUESTÕES DE POLÍTICA TARIFÁRIA TARIFA JUSTIFICADA PELA MERA COLETA DO ESGOTO, CONFORME DECIDIDO PELO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM RECURSO REPETITIVO (RESP. No 1.339.313/RJ, REL. MINISTRO XXXXXXXX XXXXXXXXX.). (TJSP, Apelação 1003171-91.2016.8.26.0161).
por serviços prestados aos usuários e entre os diferentes prestadores envolvidos” (art. 12, § 1º, II). A seu turno, dispõe o art. 22, IV que a regulação terá como obje- tivo, entre outras coisas, “definir tarifas que assegurem tanto o equilíbrio econô- mico e financeiro dos contratos como a modicidade tarifária, mediante mecanis- mos que induzam a eficiência e eficácia dos serviços e que permitam a apropria- ção social dos ganhos de produtividade”. Tanto este quanto os outros dispositi- vos apontados comprovam, a toda evidência, que o modelo primário de remu- neração é o tarifário, cabendo às receitas não tarifarias, como os subsídios, um papel secundário.
3.2 Regras de estruturação da tarifa de água e esgoto
Além de explicitar a escolha por um modelo de remuneração, a Lei de Sa- neamento atribui às agências reguladoras competentes a estruturação das tarifas dos serviços divisíveis que compõem o amplo setor em debate, como revelam os art. 11, § 2º, 12, § 1º e 22, IV. No mesmo sentido, o art. 23, IV dispõe que a entidade reguladora assume a incumbência de definir “requisitos operacionais e de manu- tenção dos sistemas” e o “regime, estrutura e níveis tarifários, bem como os pro- cedimentos e prazos de sua fixação, reajuste e revisão” (g.n.). Ao conferir a tarefa de estruturação tarifária a um ente autônomo composto por servidores especia- lizados, o legislador não agiu de forma ingênua. Ele buscou, em verdade, evitar táticas populistas, impedir a manipulação tarifária para gerar receitas indevidas ao titular do serviço e obstar decisões tecnicamente frágeis em prejuízo da sus- tentabilidade do sistema de saneamento.
Reitere-se: os dispositivos legais mencionados demonstram que, no orde- namento brasileiro, somente entidades dotadas de expertise técnica e certa blin- dagem político-partidária estão autorizadas a executar a tarefa de examinar os diversos elementos de despesa que os serviços de saneamento envolvem, conver- tendo-os em uma tarifa capaz de assegurar a prestação adequada ao usuário, a remuneração do prestador à luz da equação de equilíbrio econômico-financeiro e, simultaneamente, o funcionamento sustentável do setor em uma perspectiva transgeracional. Ao incumbir exclusivamente o regulador da definição das tari- fas, quis o legislador, em última instância, repelir a ingerência de órgãos não es- pecializados nos serviços de saneamento dadas as óbvias consequências nocivas desse tipo de intervenção.
Isso não significa que as agências do setor possam agir de modo aleatório,
não planejado ou abusivo. Em verdade, sua atuação há que ser sempre técnica e observar uma lógica semelhante por todo o território nacional a despeito de ser o serviço de saneamento, primariamente, um serviço de titularidade local. Para garantir a tecnicidade e esse mínimo de homogeneidade diante da pluralidade de entes reguladores, a Lei de Saneamento oferece alguns parâmetros mais deta- lhados acerca da “estrutura tarifária”, ou melhor, aponta diretrizes e elementos a orientar o regulador na fixação do valor da cobrança ao usuário final.
Em primeiro lugar, a estruturação é minudenciada no art. 29, § 1º da lei, segundo o qual a “instituição das tarifas, preços públicos e taxas para os serviços de saneamento básico observará as seguintes diretrizes: I – prioridade para aten- dimento das funções essenciais relacionadas à saúde pública; II – ampliação do acesso dos cidadãos e localidade de baixa renda aos serviços; III – geração dos re- cursos necessários para realização dos investimentos, objetivando o cumprimento das metas e objetivos do serviço; IV - inibição do consumo supérfluo e do desperdício de recursos; V - recuperação dos custos incorridos na prestação do serviço, em regime de eficiência; VI - remuneração adequada do capital investido pelos prestadores dos serviços; VII - estímulo ao uso de tecnologias modernas e eficientes, compatíveis com os níveis exigidos de qualidade, continuidade e segurança na prestação dos ser- viços; e VIII - incentivo à eficiência dos prestadores dos serviços” (g.n.).
Essas diretrizes delimitam, no setor de saneamento, os fatores internos e externos de custos dos serviços e, com isso, delineiam a razão e a destinação dos valores cobrados dos usuários finais. Em consonância com as diretrizes, os valo- res das tarifas jamais poderiam se resumir ao mero volume de água e de esgoto efetivamente consumidos, nem mesmo aos custos inerentes ao serviço. Elas con- firmam o que cerca vez escreveu Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx de modo bastante opor- tuno. A fixação do preço a ser individualmente pago não é o resultado de uma mera operação aritmética simples. Ele varia em função de muitos critérios.15
Como expressa a Lei de Saneamento, há fatores de custos externos diversos e que as tarifas necessitam cobrir, como a atualização das tecnologias emprega- das nos serviços, a recuperação de custos de investimento, a garantia de acesso à
15 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Pareceres: direito administrativo contratual, vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 81-82.
população de baixa renda (por subsídios tarifários ou não tarifários)16 e a remu- neração adequada do prestador. Adicionalmente, dois aspectos merecem desta- que: i) a tarifa de saneamento poderá desempenhar uma função preventiva, de maneira a ser aumentada sob certas condições com o objetivo de evitar que o usuário consuma o serviço em excesso ou desperdice recursos, sobretudo água e
ii) poderão ser adotados “mecanismos tarifários de contingência”, de acordo com o art. 46 da Lei, para cobrir custos adicionais em situações críticas de escassez ou contaminação de recursos hídricos que obriguem a adoção de racionamento.
Em segundo lugar, para além das diretrizes do art. 29, mas em harmonia com elas, a Lei de Saneamento enumera no art. 30 os fatores que poderão ser leva- dos em consideração pelo regulador na sua função de estruturação tarifária, in- cluindo: “I - categorias de usuários, distribuídas por faixas ou quantidades cres- centes de utilização ou de consumo; II - padrões de uso ou de qualidade requeri- dos; III - quantidade mínima de consumo ou de utilização do serviço, visando à garantia de objetivos sociais, como a preservação da saúde pública, o adequado atendi- mento dos usuários de menor renda e a proteção do meio ambiente; IV - custo mínimo necessário para disponibilidade do serviço em quantidade e qualidade adequadas; V - ciclos significativos de aumento da demanda dos serviços, em períodos dis- tintos; e VI - capacidade de pagamento dos consumidores” (g.n.).
O conjunto de fatores enumerados detém caráter reconhecidamente exem- plificativo para a estruturação tarifária a ser executada pelo regulador. Esses fa- tores, e também outros ali não previstos, serão empregados na medida em que se mostrem necessários ao cumprimento dos planos de saneamento e das diretrizes gerais de tarifação contidas no art. 29. Dada a tecnicidade do assunto, conforme exige a lei em mais de um artigo, caberá unicamente ao regulador o serviço de identificar os fatores determinantes para o alinhamento da tarifa cobrada às fina- lidades do sistema, devendo fazê-lo sempre de modo claro e objetivo (art. 39 da Lei).
16 Art. 31. Os subsídios necessários ao atendimento de usuários e localidades de baixa renda se- rão, dependendo das características dos beneficiários e da origem dos recursos: I - diretos, quando destinados a usuários determinados, ou indiretos, quando destinados ao prestador dos serviços; II - tarifários, quando integrarem a estrutura tarifária, ou fiscais, quando decorrerem da alocação de recursos orçamentários, inclusive por meio de subvenções; III - internos a cada titular ou entre localidades, nas hipóteses de gestão associada e de prestação regional.
3.3 Quantidades e tarifas mínimas na legislação setorial
A oferta de um mínimo de serviços de saneamento à população configura um direito do cidadão e um dever do Estado resultante tanto da Constituição da República (art. 196, caput da CF), quanto de documentos internacionais. Em no- vembro de 2002, o Comité da ONU para Direitos Econômicos, Sociais e Culturais aprovou o Comentário Geral n. 15, de acordo com o qual: “o direito humano à água prevê que todos tenham água suficiente, segura, aceitável fisicamente aces- sível e a preços razoáveis para usos pessoas e domésticos”. Quase dez anos mais tarde, em 2011, o Conselho de Direitos Humanos da ONU editou a Resolução 16/2, mais uma vez a reforçar o direito ao saneamento e, por conseguinte, à água como um direito à vida e à dignidade. A OMS, a seu turno, afirma serem “neces- sários entre 50 a 100 litros de água por pessoa, por dia, para assegurar a satisfação das necessidades mais básicas e a minimização dos problemas de saúde”.17
Esses documentos internacionais demandam que os sistemas e as redes de saneamento básico, sobretudo de fornecimento de água e coleta de esgoto, este- jam permanentemente preparados a oferecer o mínimo essencial assim que um indivíduo dele necessitar. E isso implica ao Estado tomar as providências neces- sárias para manter a rede em constante funcionamento a despeito de uma ou ou- tra variação de demanda, de sorte a garantir a capacidade de atendimento exi- gida. Para tanto, deverá consequentemente recolher os valores necessários a cus- tear o bom estado da infraestrutura, garantindo a sustentabilidade do sistema.
É partir dessa lógica que se deve interpretar o art. 30, incisos III e IV da Lei de Saneamento. Como dito, o artigo em questão enumera fatores a serem levados em conta na estruturação da tarifa, incluindo a observância de “quantidade mínima de consumo ou de utilização do serviço, visando à garantia de objetivos sociais, como a preservação da saúde pública (...)” (inciso III) e o “custo mínimo necessário para disponibilidade do serviço em quantidade e qualidade adequadas” (inciso IV, g.n.).
Esses dois incisos estão umbilicalmente relacionados. Na medida em que o Estado tem o dever de garantir uma quantidade mínima do serviço na qualidade adequada sempre que o cidadão dele necessitar (inciso III), dispõe ele do poder-
17 ONU. O direito humano à água e saneamento. Disponível em: xxxx://xxx.xx.xxx/xxxxxxxxxx- fedecade/pdf/human_right_to_water_and_sanitation_media_brief_por.pdf
dever de calcular e cobrar o custo mínimo para que a rede esteja pronta a respon- der à demanda potencial. Pelo outro lado da moeda, ou melhor, sob a perspectiva do consumo, ao mesmo tempo em que se garante ao cidadão um direito ao ser- viço em quantidade e qualidade adequadas, recai sobre ele o dever de custear o serviço para que sua infraestrutura preserve a capacidade de atendimento nos padrões desejados. Em poucas palavras, na tarefa de construir e manter um sis- tema de saneamento preparado a garantir dignidade a todos e a proteção do am- biente, prestador e usuários têm deveres e direitos inter-relacionados. Ao regu- lador, nesse contexto, compete manter o equilíbrio entre esses deveres e estimu- lar a satisfação dos direitos envolvidos.
Ressalte-se: o acesso e a disponibilidade mínima dos serviços de água e de esgoto decorrem de uma necessidade humana reconhecida no contexto interno e pela comunidade internacional, daí porque não pode o cidadão se recusar a co- laborar, dentro do modelo de remuneração escolhido pelo legislador brasileiro, com a estruturação e manutenção da infraestrutura necessária a viabilizá-los, ou seja, com custos de capital e de operação que o sistema gera. A fixação e cobrança de uma tarifa básica capaz de arcar com os custos fixos mínimos dos serviços de saneamento, sobretudo os de disponibilização e de manutenção de uma rede em condições de operação conforme a quantidade e qualidade desejadas, não é uma escolha, senão um dever dos atores envolvidos no sistema.
Exatamente por isso, na medida em que o art. 45, caput da Lei de Sanea- mento determina que, salvo disposição contrária do titular, do regulador ou da legislação ambiental, “toda edificação permanente urbana será conectada às re- des públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário disponíveis”, é natural que os proprietários dessas edificações se sujeitem automaticamente “ao pagamento das tarifas e de outros preços públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços”. Observe-se com atenção a parte final do art. 45! O disposi- tivo se refere de modo muito claro tanto ao preço público de “uso desses servi- ços”, quanto ao de “conexão”, ou seja, aos valores resultantes do simples fato de a rede permanecer disponível e preparada a oferecer ao usuário a oferta do ser- viço na quantidade e na qualidade mínimas exigidas.
Sinteticamente, portanto, a tarifa mínima, reconhecida na legislação setorial de modo inquestionável (art. 30, IV e art. 45) necessita ser compreendida diante
da função social dos serviços de saneamento e da complexidade de sua disponi- bilização e de seu funcionamento tanto em termos econômicos quanto técnicos – aspectos cuja análise cabe, por lei, somente a órgãos regulatórios especializados. Vale aqui o alerta geral de Sundfeld. É preciso respeitar o sistema de cobrança instituído para o atendimento de uma política pública com suas justificativas eco- nômicas ou sociais.18 Sem isso, corre-se o risco de se inviabilizar a prestação ade- quada do serviço, sacrificando-se interesses públicos e, não raro, os próprios usu- ários finais.
4 Tarifação e normas de defesa do usuário (CDC e CDUSP)
4.1 Prevalência da norma regulatória diante do CDC
Para conferir segurança jurídica aos atores envolvidos na regulação e na prestação de serviços públicos, especialmente os de distribuição de água e de co- leta de esgoto, é imprescindível verificar se a cobrança de tarifas mínimas, bem como a definição de métodos de cálculo específicos pelos reguladores com base em diretrizes da legislação setorial se chocam com o Código de Defesa do Con- sumidor e outras leis básicas de defesa dos usuários. Em outras palavras: as nor- mas gerais do CDC e do recém-editado CDUSP são capazes de afastar normas especiais de regulação setorial em matéria tarifária ou, diversamente, as decisões regulatórias repelem a incidência das normas básicas de proteção do usuário?
A indagação é inevitável, em especial porque o CDC abarca inúmeras nor- mas que se referem de modo direto ou indireto aos serviços públicos. A título de exemplo, seu art. 39 dispõe ser “vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de ser- viço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos” (g.n.) e “VIII - colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais compe- tentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Téc- nicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Nor- malização e Qualidade Industrial (Conmetro)”.
18 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Pareceres: direito administrativo contratual, vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 82.
Os dois dispositivos citados a título de ilustração são capazes de afetar, so- bretudo por interpretações descuidadas ou apressadas, a instituição de tarifas básicas de serviços públicos e igualmente a autonomia das agências reguladoras para instituição de normas técnicas, como as relativas à estruturação tarifária. Daí advém a necessidade de se superar a indagação inicial, esclarecendo-se os moti- vos pelos quais normas básicas de defesa do usuário se tornam inaplicáveis di- ante de normatizações setoriais sobre um mesmo assunto.
A fim de se justificar essa conclusão, basta uma análise formal. Sob essa perspectiva, cumpre verificar se, de modo geral, o CDC rege serviços públicos e sob quais condições. Ao fazê-lo, dois momentos históricos necessitam ser dife- renciados: o de 1990 a 2017, ou seja, o período que se inicia com a edição do CDC e prossegue até a edição do Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos (Lei n. 13.460/2017, doravante CDUSP) e o momento atual, no qual ambos os Có- digos convivem.
Tomando-se em conta o cenário anterior à edição do CDUSP, a doutrina brasileira tendia a aceitar a convivência das normas privatistas com as normas administrativas e regulatórias regentes dos serviços públicos. Numa perspectiva comparada, Xxxxxxxxx Xxxxxx de Aragão identificou três teorias a respeito do as- sunto: a publicista, a privatista e a mista,19 que, a seu ver, seria a mais compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, mormente em face às disposições dos art. 7º, caput, da Lei n 8.987/1995,20 e dos art. 6º, X e 22 do CDC.21
Segundo Xxxxxx, à luz da teoria mista, é inaceitável o tratamento estrita- mente privatista dos usuários dos serviços públicos, já que eles sofrem um forte
19 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Serviços públicos e direito do consumidor: possibilidades e limites da aplicação do CDC. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 15, 2008,
p. 1.
20 Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários (...).
21 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficien- tes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.
influxo de normas de direito público. É verdade que o usuário se encontra unido à prestadora do serviço por um contrato. Contudo, o interesse público a ser sa- tisfeito através do serviço público justifica que o Estado estabeleça o seu regime jurídico.22 Em outras palavras, de acordo com o modelo misto ou híbrido, os ser- viços públicos se subordinam primariamente a normas de direito administrativo, a que se somam apenas subsidiariamente as normas do direito privado, sobre- tudo do direito do consumidor, tal como evidencia a Lei de Concessões e o CDC nos dispositivos mencionados no parágrafo anterior.
No modelo misto, ressalte-se, prevalecem as normas públicas. E isso tam- bém explica Xxxxxx. Os serviços públicos têm uma conotação coletiva muito mais ampla do que as atividades econômicas privadas, já que visam à coesão so- cial e, inclusive, são utilizados muitas vezes como instrumento técnico de distri- buição de renda e realização da dignidade da pessoa humana,23 por exemplo com o financiamento da expansão aos que ainda não têm acesso ao serviço por usuá- rios já conectados. Xxxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx segue a mesma linha de raciocínio ao ressaltar a necessidade de se considerar as peculiaridades dos ser- viços públicos quando da aplicação das normas de proteção do consumidor.24 Opinião semelhante é a de Xxxxxx Xxx Xxxxxxxx, para quem as normas gerais de proteção do consumidor constituem um arcabouço básico.25
Xxxxxxxx explica, nessa linha, que o próprio CDC reconhece a competência das autoridades administrativas para definir a política tarifária.26 Além disso, quando o Código de Defesa do Consumidor trata das condutas abusivas, menci- ona hipóteses genéricas referentes ao aumento injustificado de preços e à exigên-
22 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx de. Serviços públicos e direito do consumidor: possibilidades e limites da aplicação do CDC. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 15, 2008, p. 13.
23 XXXXXX, Xxxxxxxxx Xxxxxx xx. Serviços públicos e direito do consumidor: possibilidades e limites da aplicação do CDC. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, n. 15, 2008, p. 17.
24 XXXXXXX XXXX, Xxxxxxxx xx Xxxxxxx. A nova regulação dos serviços públicos. Revista de Direito Administrativo, vol. 228, 2002, p. 28-29.
25 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Pareceres: direito administrativo contratual, vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 83.
26 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Pareceres: direito administrativo contratual, vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 86.
cia de vantagens excessivas dos consumidores (art. 39, V e X), a abusividade de- verá ser medida pela desobediência às regras de regulação setorial.27 Em outras palavras, as normas consumeristas sempre cedem diante dos parâmetros de co- brança estabelecidos pelos órgãos estatais responsáveis por análises técnico-re- gulatórias.
Em 2017, com a edição da Lei n. 13.460, já conhecido como Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos, a relação do arcabouço de direito público com as normas privadas de proteção dos consumidores passou a ser objeto de regras de interação mais claras, porém não menos complexas. Apesar de algumas mu- danças, a edição do novo Código deixou intocados dois aspectos fundamentais:
i) a adoção do referido sistema misto no Brasil e ii) a primazia do sistema regula- tório sobre as normas gerais de proteção dos usuários.
Em consonância com posicionamento já defendido em estudo sobre o as- sunto,28 os mandamentos protetivos do CDUSP valem para todos os entes da ad- ministração direta e indireta em qualquer um dos três níveis federativos (União, Estados e Municípios). A cada um desses níveis compete a tarefa de minudenciar as normas gerais de proteção em diplomas próprios. No entanto, conforme dis- posição expressa (art. 1º, § 2º), a aplicação das normas do Código não deve servir de argumento para afastar o cumprimento de “normas regulamentadoras específi- cas”, nem de normas previstas no CDC quando efetivamente caracterizada uma relação de consumo.
Como se vislumbra, a edição do CDUSP em 2017 não altera a prevalência das normas regulatórias. Em verdade, a novidade trazida pelo Código consiste única e exclusivamente na modificação da ordem de aplicação do conjunto de normas básicas de proteção do usuário. Xxxxxx, como tanto o CDUSP quanto o CDC configuram corpos de normas nacionais e básicas, tornou-se imprescindível esclarecer qual deles incidirá no caso concreto de modo primário e qual se apli- cará apenas de maneira subsidiária.
27 XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Pareceres: direito administrativo contratual, vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 86.
28 MARRARA, Thiago. O Código de Defesa de Usuários de Serviços Públicos. Colunistas Direito do Estado, n. 383. Disponível em: xxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxx-xxx- rara/o-codigo-de-defesa-do-usuario-de-servicos-publicos-lei-n-13460-2017-seis-parametros-de- aplicabilidade.
Essa dúvida foi explicitamente esclarecida no art. 1º, § 2º do CDUSP, acima transcrito. Em casos de prestação do serviço público pela Administração Direta ou Indireta, o Código dos Usuários incidirá como o conjunto de normas básicas primárias, aplicando-se as garantias do CDC somente em sentido subsidiário ou residual. Já no âmbito dos serviços públicos prestados por particulares na quali- dade de delegatários (execução indireta), a ordem de aplicabilidade se inverterá: o CDC passará ao papel de diploma primário e o CDUSP incidirá de maneira subsidiária (art. 1º, § 3º).
Diante da pluralidade de diplomas básicos de proteção do consumidor e do usuário com validade em todo o território nacional, o CDUSP oportunamente definiu o corpo básico de normas protetivas que incidirá em um ou outro caso concreto conforme um critério que valoriza o tipo de prestador e, ao fazê-lo, in- seriu um novo critério para a discussão da relação do CDC com os serviços pú- blicos no Brasil (o critério subjetivo). Apesar disso, como já dito, nada mudou quanto à adoção do modelo misto na composição do regime jurídico, pois, a des- peito do prestador, o direito público se somará ao direito privado sempre que houver relação de consumo.
Ademais, e o que é mais importante para o presente estudo, restou intocada pelo CDUSP a primazia da regulação setorial. Isso se observa quando o novo Código: i) reconhece que suas normas de proteção, bem como as normas do CDC, configuram normas “básicas” e ii) expressamente prescreve que suas normas não afastam a necessidade de observância de “normas regulamentadoras específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos à regulação e à supervisão” (art. 1º, § 2º, I do CDUSP). Em outras palavras, se existir, para um determinado serviço pú- blico, entidade reguladora competente e atuante, suas normas prevalecerão sobre as existentes nos dois Códigos mencionados. Ao se verificar, por exemplo, a atu- ação de uma agência reguladora local ou regional sobre serviços públicos de água ou esgoto com base na lei setorial, as normas do CDC e do CDUSP restarão au- tomaticamente afastadas quanto a assuntos já disciplinados no âmbito regulató- rio. As normas incidirão somente para assuntos não disciplinados pelo regula- dor.
Essa conclusão, consagrada no CDUSP, compatibiliza-se em termos teleo- lógicos com o modelo de regulação adotado no Brasil e que, no setor de sanea- mento, é tido como obrigatório. Além disso, o modelo adotado pelo Código do
Usuário obedece à regra clássica da prevalência da norma especial sobre a norma geral (“lex specialis derogat legi generali”), técnica de superação de antinomias con- sagrada no direito e cujo fundamento é relativamente simples. A norma especial carrega as preocupações e os anseios do legislador sobre um contexto determi- nado, baseia-se num conhecimento mais aprofundado e verticalizado, daí porque se revela mais aderente às peculiaridades do objeto normatizado.
Note-se que o próprio CDC reconhece de modo explícito a prevalência da norma especial em inúmeros momentos e, indo além, evidencia que, na disputa entre normas igualmente técnicas, sempre prevalecerão as editadas pelo próprio Estado. Isso se observa no art. 39, VIII, de acordo com o qual os produtos e servi- ços devem estar de acordo com “as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normali- zação e Qualidade Industrial (Conmetro)”. Nesse dispositivo, entre outros que aqui poderiam ser citados, o legislador afirma de modo incontestável a preferên- cia pelas normas especiais “expedidas pelos órgãos oficiais competentes”. Assim, somente na ausência de normas especiais criadas por órgãos públicos dotados de expertise técnica, como os das agências reguladoras de saneamento, incidirá a norma básica do CDC que, a seu turno, remete a especificações não oficiais, como as formuladas pela ABNT (entidade privada sem fins lucrativos cujas normas por si só não capazes de gerar efetivo extroverso vinculante).
De igual forma e pela mesma lógica, no plano da tarifação, as normas espe- ciais editadas por agências reguladoras prevalecem sobre normas genéricas de tutela do consumidor e do usuário. Ressalte-se: essa conclusão resulta tanto da regra da especialidade, quanto do reconhecimento explícito, no CDUSP, do cará- ter subsidiário do CDC. Ademais, no âmbito dos serviços públicos de sanea- mento básico, como abastecimento de água e coleta de esgoto, referida conclusão é ainda fortalecida pela inquestionável prevalência da norma posterior sobre a norma anterior. As diretrizes e regras de estruturação tarifária da Lei de Sanea- mento não são apenas especiais em relação às do CDC. Elas são igualmente mais novas ou posteriores, já que o Código do Consumidor é de 1990 e a legislação setorial, de 2007.
4.2 CDC: aceitação de tarifa mínima por justa causa
Ad argumentandum tantum, a conclusão quanto à aceitabilidade da tarifa mí- nima não se alteraria ainda que a teoria do direito ocidental não consagrasse a prevalência da norma especial posterior sobre a norma genérica anterior, e ainda que o recente CDUSP não tivesse claramente explicitado que as normas setoriais demandam observância em qualquer caso. E isso por conta de um aspecto de direito material, ou seja, por uma norma expressamente contida no corpo do CDC e já transcrita anteriormente.
Diz o art. 39, inciso I do diploma de proteção do consumidor ser vedado ao fornecedor do serviço, dentre outras práticas abusivas, “condicionar o forneci- mento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos” (g.n). Isso significa, ao avesso, que a fixação de limites quantitativos é aceitável quando houver uma razão justa para tanto. Não há, pois, uma vedação absoluta e definitiva no Código para co- brança de tarifas mínimas, de que são espécies as chamadas tarifas operacionais básicas. A cobrança é possível desde que haja alguma justificativa aceitável para tanto.
Essa justificativa, como visto anteriormente, existe de modo inquestionável no âmbito dos serviços de fornecimento de água e coleta de esgoto. Na medida em que eles se mostram imprescindíveis ao exercício de direitos fundamentais, como à vida e à saúde, interna e internacionalmente se reconhece a necessidade de se garantir um mínimo de prestação ao indivíduo assim que ele necessitar do serviço. Como já dito e repetido, o Estado detém o dever de manter uma rede em bom funcionamento com uma capacidade de atendimento de acordo com a quan- tidade e qualidade adequadas e, por consequência, dispõe do poder de cobrar do usuário final os valores necessários para tanto.
Ressalte-se: a despeito de qualquer discussão sobre a especialidade ou a posterioridade das normas setoriais diante das normas genéricas de defesa do consumidor ou do usuário, fato é que a cobrança de uma tarifa mínima de água e esgoto detém no mínimo duas causas justas e inter-relacionadas, quais sejam:
i) o dever de se garantir um serviço adequado em termos quantitativos e qualita- tivos sempre que a unidade usuária necessitar e ii) a dependência desse dever em relação à cobertura de custos fixos que os serviços geram, sobretudo em ter- mos de manutenção da infraestrutura, a despeito de variações de demanda de
curto prazo pelas unidades conectadas à rede existente.
Desse modo, conquanto alguns desejem a todo custo afirmar que o CDC incide integralmente mesmo na presença de normas setoriais – vale repetir, de modo esdrúxulo e ao arrepio da teoria jurídica e da análise sistemática da legis- lação brasileira –, a tarifa mínima permanecerá lícita, pois há duas causas justas que a sustentam, configurando-se as condições da válvula de escape do art. 39, I do referido Código. A esse respeito, como se verá, não é outra a conclusão da jurisprudência brasileira.
4.3 Legalidade da tarifa mínima na jurisprudência
Os Tribunais brasileiros, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça, também corroboram o quanto exposto nesse estudo a partir das análises da teoria dos ser- viços públicos, do regime jurídico de remuneração, da legislação setorial e das normas gerais contidas no CDC e no CDUSP. Em inúmeros julgados, o STJ rea- firma não somente a possibilidade de cobrança de tarifa mínima no setor de sa- neamento, como esclarece que a cobrança da tarifa não pressupõe que já se tenha sido estruturado o sistema por completo. É o que revelam os julgados a seguir:
ADMINISTRATIVO. SERVIÇO DE ESGOTAMENTO SANITÁRIO. PRES- TAÇÃO DE ALGUMAS ETAPAS. COLETA E ESCOAMENTO DE DEJETOS. TARIFA DE ÁGUA E ESGOTO. LEGALIDADE DA COBRANÇA.
1. No julgamento do REsp 1.339.313/RJ, submetido à sistemática do art. 543- C do CPC, o STJ firmou o entendimento de que se afigura legal a cobrança de tarifa de esgoto, ainda quando detectada a ausência ou deficiência do tra- tamento dos resíduos coletados, se outros serviços, caracterizados como de esgotamento sanitário, forem disponibilizados aos consumidores. 2. Res- salta-se que, mesmo antes da vigência da Lei 11.445/2007, havia posiciona- mento desta Corte no sentido de que "a lei não exige que a tarifa só seja co- brada quando todo o mecanismo do tratamento do esgoto esteja concluído", e "o início da coleta dos resíduos caracteriza prestação de serviço remune- rado" (REsp 431.121/SP, Rel. Ministro Xxxx Xxxxxxx, Primeira Turma, DJ 7/10/2002). 3. Agravo Regimental não provido.
(STJ – AgRg no REsp: 1505228 PR 2014/0059453-0. Relator: Ministro Xxxxxx Xxxxxxxx. Data de julgamento: 07/05/2015. T2 – Segunda Turma. Data de pu- blicação: 05/08/2015).
ADMINISTRATIVO. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. TARIFA DE ÁGUA. COBRANÇA COM BASE EM CONSUMO MÍNIMO
MENSAL. LEGALIDADE. I - É lícita a cobrança de tarifa de água, em valor cor- respondente ao consumo mínimo presumido mensal, mesmo que o hidrômetro regis- tre volume menor do que o cobrado, de modo a possibilitar a sustentabilidade do sis- tema. (Precedentes: EDREsp n° 95.920/SC, Relator Xxxxxxxx XXXXXX XXXXXX, DJ de 14/09/1998, p. 9; REsp nº 533.607/RJ, Relator Ministro XXXX XXXXXXX, DJ de 28/10/2003, p. 220; REsp n° 20.741/DF, Rel. Min. ARI
PARGENDLER, DJ de 03/06/1996, p. 19230). II - O agravante deixou de infir- mar os fundamentos da decisão agravada e se limitou a pedir o julgamento do feito pelo colegiado. Aplica-se, pois, a Súmula n.º 182 desta Corte, se- gundo a qual “é inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada”. III - Agravo regi- mental improvido.
(AgRg no REsp 843.970/RJ, Rel. Ministro XXXXXXXXX XXXXXX, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 19/09/2006, DJ 16/10/2006)
PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. FORNECIMENTO DE ÁGUA E DE ESGOTO. TARIFA MÍNIMA.
LEGALIDADE. I - Versa a demanda sobre a cobrança da tarifa mínima de fornecimento de água e de esgoto e não sobre a legalidade da cobrança do valor estimado. II - Esta Corte entende legítima a cobrança da tarifa mínima quando o consumo não atinge o patamar relativo a essa importância. III - Preceden- tes: REsp nº 648248/PB, Rel. Ministro TEORI XXXXXX XXXXXXXX, DJ de 19.12.2005; EDcl nos EDcl no REsp nº 533607/RJ, Rel. Ministro XXXX XXXXXXX, DJ de 05.08.2004; AgRg no REsp nº 140230/MG, Rel. Ministro Xxxxxxxxx Xxxxxx, DJ de 21.10.2002. IV - Agravo regimental improvido.
(AgRg no REsp 858.908/RJ, Rel. Ministro XXXXXXXXX XXXXXX, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 19/09/2006, DJ 16/10/2006)
ADMINISTRATIVO. SERVIÇO PÚBLICO. TAXA DE ÁGUA. COBRANÇA DE TARIFA PELO CONSUMO MÍNIMO. LEGALIDADE. PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS. É lícita a cobrança da taxa de água pela tarifa mínima, mesmo que haja hidrômetro que registre consumo inferior àquele. Inteligência das disposições legais que regulam a fixação tarifária (artigo 4º, da Lei 6.528/78 e
artigos 11, caput, 11, § 2º e 32 do Decreto nº 82.587/78).
(REsp 416383/RJ; Relator: Ministro XXXX XXX; PRIMEIRA TURMA; Data do Julgamento: 27/08/2002)
ADMINISTRATIVO. PREÇO PÚBLICO. DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA.
TARIFA MÍNIMA. O preço público tem natureza diversa do preço privado, po- dendo servir para a implementação de políticas governamentais no âmbito social. Nesse regime, a tarifa mínima, a um tempo, favorece os usuários mais po- bres, que podem consumir expressivo volume de água a preços menores, e garante a viabilidade econômico-financeira do sistema, pelo ingresso indis- criminado dessa receita prefixada, independentemente de o consumo ter, ou não, atingido o limite autorizado.
(REsp 20.471-DF, Rel. Min. XXX XXXXXXXXXX; Data do Julgamento: 09/05/1996).
Além disso, em mais de uma ocasião, o STJ teve a oportunidade de debater a dúvida a respeito da compatibilidade da cobrança de tarifa mínima com a dis- posição constante no art. 39, I do CDC. Ao fazê-lo, reconheceu inexistir qualquer incompatibilidade entre a referida técnica de estruturação das cobranças e o dis- positivo genérico do Código, exatamente porque sua vedação não é absoluta, na medida em que aceita exceções por justa causa. Isso se verifica nos seguintes jul- gados:
ADMINISTRATIVO. SERVIÇO PÚBLICO. TAXA DE ÁGUA. COBRANÇA DE TARIFA. PROGRESSIVIDADE. LEGALIDADE. PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS. 1. É lícita a cobrança da taxa de água com base no valor correspondente a faixas de consumo, nos termos da legislação específica. 2. Inteli- gência das disposições legais que regulam a fixação tarifária (artigo 4º, da Lei 6.528/78 e artigos 11, caput, 11, § 2º e 32 do Decreto nº 82.587/78). 3. A Lei 8.987/95 autoriza a cobrança do serviço de fornecimento de água de maneira escalonada (tarifa progressiva), de acordo com o consumo (art. 13), e não co- lide com o disposto no art. 39, I, do CDC, cuja vedação não tem caráter abso- luto. Precedente: EDcl no REsp 625221/RJ, DJ 25.05.2006. 4. Agravo Regimen- tal desprovido. (AgRg no REsp 815.373/RJ, Xxx. Ministro XXXX XXX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/08/2007, DJ 24/09/2007, p. 255)
ADMINISTRATIVO. SERVIÇO PÚBLICO. TAXA DE ÁGUA. COBRANÇA DE TARIFA. PROGRESSIVIDADE. LEGALIDADE. PRECEDENTES
JURISPRUDENCIAIS. 1. É lícita a cobrança da taxa de água com base no valor correspondente a faixas de consumo, nos termos da legislação específica. 2. Inteli- gência das disposições legais que regulam a fixação tarifária (artigo 4º, da Lei 6.528/78 e artigos 11, caput, 11, § 2º e 32 do Decreto nº 82.587/78). 3. A Lei 8.987/95 autoriza a cobrança do serviço de fornecimento de água de maneira escalonada (tarifa progressiva), de acordo com o consumo (art. 13), e não co- lide com o disposto no art. 39, I, do CDC, cuja vedação não tem caráter absoluto. Precedente: EDcl no REsp 625221/RJ, DJ 25.05.2006. 4. Agravo Regimental desprovido.
(AgRg no REsp 815.373/RJ, Xxx. Ministro XXXX XXX, PRIMEIRA TURMA,
julgado em 16/08/2007, DJ 24/09/2007, p. 255)
5 Conclusões
1 - Com base na legislação de saneamento brasileira e nos preceitos de direito administrativo é lícito instituir a cobrança de tarifa mí- nima (ou criação de uma tarifa básica operacional – TBO) para ma- nutenção dos serviços de água e esgoto?
A cobrança de tarifa mínima para a manutenção de serviços públicos de fornecimento de água e de coleta de esgoto é lícita e compatível tanto com a legislação setorial, quanto com a legislação de defesa dos usuários de serviços públicos e de defesa do consumidor. A tarifa mínima está intima- mente relacionada ao cumprimento do dever – reconhecido no ordena- mento brasileiro e reforçado pelas organizações internacionais, como a ONU e a OMS – de se estruturar e se manter uma rede de prestação de ser- viços de água e de esgoto capaz de atender, com a qualidade e a quantidade adequadas, a demanda de todas as unidades conectadas. Nesse contexto, ao direito de obter o serviço adequado no momento desejado corresponde, para o usuário, o dever de contribuir para a cobertura dos custos internos e externos do serviço, incluindo não somente os custos variáveis (que flutuam ao sabor da demanda), com os fixos (que se mantém invariáveis no curto prazo). Isso se extrai da Lei de Saneamento (art. 29 e art. 30, incisos III e IV),
que expressamente estabelece diretrizes e regras detalhadas de estruturação tarifária do setor e requer do regulador competente pela tarefa de fixação da tarifa a consideração da disponibilidade mínima de serviço e dos custos daí derivados. Além de econômica e socialmente racional, pois imprescin- dível a garantir o bom funcionamento da infraestrutura de um sistema es- sencial à vida de todos, referida metodologia de cálculo encontra amparo em farta jurisprudência do STJ, que, em incontáveis oportunidades, reafir- mou a legalidade da tarifa mínima no setor de saneamento.
2 - As tarifas dos serviços de água e esgoto estão vinculadas à legis- lação consumerista, devendo cobrar do usuário somente o serviço efetivamente usufruído ou tal preceito do Código de Defesa do Con- sumidor pode ser afastado?
O art. 39, I do Código de Defesa do Consumidor de 1990 (CDC) considera abusivo condicionar o fornecimento de serviço a limites quantitativos sem justa causa. No entanto, nem o CDC, nem o Código de Defesa do Usuário de Serviços Públicos (Lei n. 13.460 de 2017 - CDUSP) obstam a cobrança de tarifa mínima para serviços de água e de esgoto, estruturada em linha com as previsões da Lei Nacional de Saneamento. Em primeiro lugar, as normas da legislação de sanea- mento são posteriores e especiais, sobrepondo-se às normas genéricas e anterio- res do CDC, inclusive à contida em seu art. 39, inciso I (“lex specialis derogat legi generali” e “lex posteriori derogat legi priori”). Em segundo lugar, o CDUSP, recen- temente editado, prescreve a observância de normas regulatórias independente- mente das normas básicas (art. 1º, § 2º, I). Melhor dizendo: o novo diploma revela que normas dos setores regulados, por sua especialidade, continuam a ter prefe- rência. Por conseguinte, se o prestador for público, sobre ele incidirão primaria- mente as normativas regulatórias, seguidas das disposições do CDUSP e, de ma- neira residual, das do CDC. Ao contrário, se o prestador for privado, novamente as normativas regulatórias incidirão de modo primário, mas seguidas das dispo- sições do CDC e, somente em último plano, das contidas no CDUSP. Em terceiro lugar, ad argumentandum tantum, mesmo que se ignorasse por completo a preva- lência da norma especial e posterior, a tarifa mínima para serviços de saneamento permaneceria lícita à luz do CDC, uma vez que o art. 39, I a autoriza contanto que se comprove uma “justa causa”. E não há dúvidas de que muitos motivos existem a justificá-la no setor de saneamento. De um lado, os valores mínimos
cobrados do usuário, a despeito de variações efetivas de consumo, baseiam-se no dever de o prestador organizar e manter uma infraestrutura capaz de suportar a demanda mínima de todas as unidades conectadas às redes de água e de esgoto a qualquer momento. De outro, essa capacidade de resposta, ou seja, de atendi- mento eficaz ao usuário tanto em termos qualitativos quanto quantitativos de- pende da cobertura não só de custos variáveis, senão igualmente de custos fixos incontáveis e de diversas ordens, ou seja, de custos que permanecem invariáveis no curto prazo a despeito de um ou outro usuário não se valer da prestação. Em conclusão, mesmo diante de uma interpretação isolada do art. 39, I do CDC – o que, vale dizer, não se harmoniza com a prevalência dos diplomas setoriais – a tarifa mínima de água e esgoto permanece lícita, pois inquestionavelmente las- treada em justa causa.
Thiago Marrara
Professor Associado de Direito Administrativo FDRP/USP