DE FACTO SOCIETY AND INCOMPLETENESS IN SOCIAL CONTRACTS
SOCIEDADE DE FATO E OS DEFEITOS E
INCOMPLETUDES DO CONTRATO SOCIETÁRIO1
DE FACTO SOCIETY AND INCOMPLETENESS IN SOCIAL CONTRACTS
Xxxxxx xxx Xxxxxx-Xxxxx 2
RESUMO
O objetivo desta apresentação é a investigação das consequências dos defeitos e incompletude dos contratos societários em contraste com a teoria da sociedade de fato. O escopo da análise é o falseamento teórico da sociedade de fato como modelo explicativo e propositivo para casos de defeito ou deficiência nos contratos que constituem as sociedades. Ao fim é apresentada uma proposta de solução dogmática para o tema, superando a verticalização teórica da pessoa jurídica e permanência de alguns problemas de adequação funcional e estrutural das situações coletivas à tipologia associativa legal.
PALAVRAS-CHAVE: sociedade de fato; contrato societário; incompletude
ABSTRACT
The focus of this study is the investigation of the consequences od the defects and incompleteness of social contracts in contrast to the theory of de facto societies. The purpose of the analysis is the theorical falsification of de facto societies as an explanation and propositional model for cases of defects or deficiency of the contracts that constitute societies. In conclusion, the paper proposes a dogmatic solution to this question to surpass the theoretical model of the legal person and some problems of functional and structural adequation of collective entities to a legal typology of association.
KEY-WORDS: de facto society; social contract; incompleteness
1 Trabalho submetido em 21/06/2018, pareceres de análise em 22/06/2018 e 22/06/2018 e aprovação comunicada em 23/06/2018.
2 Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. E-mail: xxxxxxxxxxxxxx@xxxxx.xxx
SUMÁRIO
1 Sociedades contratuais e contrato societário. 2 A construção doutrinário-jurisprudencial da sociedade de fato. 3 O problema da incompletude e defeito negocial no direito societário. 4 Teoria da invalidade nos contratos societários. 5 Proposta de solução normativa do problema. 6 Conclusão.
INTRODUÇÃO
O objetivo desta apresentação é a investigação das consequências dos defeitos e incompletude dos contratos societários em contraste com a teoria da sociedade de fato. O escopo da análise é o falseamento teórico da sociedade de fato como modelo explicativo e propositivo para casos de defeito ou deficiência nos contratos que constituem as sociedades.
Para se empreender tal estudo, primeiro será realizada uma distinção dogmática entre sociedades contratuais e contratos societários, demonstrando-se o processo e iteração lógica na constituição e personificação societária.
Em segundo lugar será apresentado o conteúdo teórico da sociedade de fato e os efeitos jurídicos a ela atribuídos. Demonstra-se que esse modelo é uma construção heurística pura, cuja função precípua não é universalizar sistematicamente o conteúdo legislativo e perfil normativo dos institutos, mas sim oferecer uma resposta valorativamente adequada a problemas com alguma identidade entre si.
Em sequência é apresentada uma dinâmica mais rigorosa da invalidade nos contratos societários, calcada na teoria do fato jurídico, em conjunto com os vários mecanismos criados para a solução dos problemas convencionalmente resolvidos pela sociedade de fato.
Ao fim será apresentada uma proposta de solução dogmática para o tema, superando a verticalização teórica da pessoa jurídica e permanência de alguns problemas de adequação funcional e estrutural das situações coletivas existências à tipologia associativa legal.
1 SOCIEDADES CONTRATUAIS E CONTRATO SOCIETÁRIO
A idéia de que sociedades necessitariam de contratos para sua formação foi um postulado que provavelmente teve seu início nas categorias romanistas (derivadas do discurso sobre as fontes romanas). Interessantemente, essa tipologia das “fontes” do direito incluía o contrato como formador da sociedade com personalidade jurídica e o quase-contrato como formador da sociedade de fato. Essa distinção encontra defesa até em épocas recentes (FÉRES, 2011, p. 141-143)
Posteriormente se abandonaram as categorias romanas para se colocar a discussão em uma dicotomia entre contrato e instituição, dependendo da forma organizativa e substrato das sociedades (ASCARELLI, 2001, p. 376-387). A dicotomia contrato/instituição, um exemplo das várias dicotomias geradas ao longo da história do direito societário, se pautou nas diferenças basilares entre a sociedade pessoal (que congregava sócios com afectio societatis para exploração do fim comum) com a sociedade de capital (cujos sócios eram indiferentes à estrutura e a organização e controle se davam exclusivamente pelo capital investido) (FÉRES, 2011, p. 46).
É importante ressaltar que parte do interesse em se definir dados modelos societários como contratuais é exatamente fazer o uso dos mecanismos e teorias próprias do contrato (LEONARDO, 2005, p. 144). Nisto se inclui a recente evolução da teoria dos contratos empresariais que diferencia os contratos societários dos de cooperação, apesar de ambos terem como elemento cerne a comunhão (solidariedade) de interesses e mesmo fim (FORGIONI, 2010, p. 152-155).
Inegável, entretanto, que o modelo contratual se manteve vivo na teoria e legislação atuais em virtude da ampla repercussão e prestígio do trabalho de Xxxxx Xxxxxxxxx e sua hipótese do contrato plurilateral (ASCARELLI, 2001, p. 372 e ss). Esta idéia foi a primeira fórmula que conseguiu distanciar o fato que funda e estrutura da sociedade dos moldes tradicionais do contrato bilateral, comutativo e obrigacional.
Por esta evolução particular acredita-se que se manteve o contrato societário como figura típica na legislação. Nem todos os modelos societários, entretanto, tem o contrato como elemento típico para sua constituição. Associações, fundações e as sociedades não personificadas não tem a locução “contrato” como elemento de seu suporte fático. Somente a
partir do modelo geral da sociedade simples é que se exige “contrato escrito” como elemento do suporte fático constitutivo. Daí a razão de se falar em sociedades contratuais.
Este fato permite se postular a seguinte dinâmica: como o núcleo do suporte fático do art. 45, que confere os efeitos da personificação aos modelos societários, fala em registro do “ato constitutivo”, ato constitutivo muito provavelmente é gênero de um rol de espécies que incluem o contrato societário, o ato de instituição da fundação e negócios jurídicos associativos (como o das associações) e societários (como o da sociedade em comum e por conta de participação, que na linguagem da norma “se provam por qualquer meio”).
Assim logo compreendemos o sistema societário como uma série de tipos societários com diversas e distintas exigências e formas negociais para seu aperfeiçoamento. Este panorama é marcado por duas lógicas. A primeira é da tipologia ou pensamento tipológico. Na argumentação de Xxxx Xxxxxx (XXXXXX, 0000, p. 508-509) a tipologia seria distinta do método conceitual pois enquanto o conceito elenca elementos fundamentais que excluem tudo aquilo que não lhe corresponde, o tipo elenca elementos de identidade aos quais o fato pode maior ou menor identidade. Nesta lógica os modelos societários não seriam conceitualmente excludentes, mas compreensivamente tipológicos, o que permite a inclusão não estrita ao tipo e a resolução das “zonas cinzentas” ou “casos intermediários” (VASCONCELOS, 1995, p. 37-38).
A segunda lógica é dos sistemas de reconhecimento das pessoas jurídicas. A fonte mais remota dos sistemas de reconhecimento é em Enneccerus, Kipp e Wolff (ENNECCERUS; KIPP; XXXXX, 1943, p. 457). Para os autores existiriam três sistemas de reconhecimento da pessoa jurídica. O primeiro é da livre constituição corporativa, no qual o mero ato de associação é o suficiente para a criação da pessoa jurídica. O segundo é a autorização absoluta estatal, que afirma que só existiriam juridicamente as pessoas jurídicas com e a partir do ato de autorização do Estado. O terceiro, por nós incorporado, é o sistema de previsões legais. Este afirma que a legislação ofereceria critérios que uma vez cumpridos constituiriam a pessoa jurídica.
O registro, para nós, seria então um elemento do sistema de reconhecimento, cuja orientação precípua é a tutela dos interesses de terceiros e aparência da sociedade, conferindo não só a eficácia externa e vinculabilidade autônoma da pessoa jurídica, mas também a publicidade e informação necessárias à identificação do plano interno dos sócios e contrato societário (controle e subscrição e integralização de quotas).
Nesta curta apresentação sobre a formatação do contrato societário pudemos antever os seguintes vetores da tutela societária: 1. a distinção negocial do “ato constitutivo” de cada modelo societário; 2. a estrutura tipológica dos modelos societários; 3. a distinção dos planos interno e externo da sociedade em conformação com o sistema de previsão legal da pessoa jurídica.
Tais vetores nos levaram à constatação da distinção entre pessoa jurídica e sociedade. Na defesa de Pontes de Miranda (XXXXXXX, 1965, p. 316-317), pessoa jurídica não se confundiria com sociedade (nem seria sociedade somente a forma de organização da pessoa jurídica), mas antes existiria a sociedade (que se constitui) e a posterior personificação desta. Isto será explorado melhor adiante.
Tomemos como exemplo as associações. As mesmas se constituem (de forma plena) através da incidência do art. 53 no suporte fático triplo da união de pessoas, organização e fins não econômicos. Aqui já se encontra a associação no plano da existência. A personificação só ocorrerá quando de sua incidência no suporte fático do art. 45, que confere eficácia adicional (sobre-eficácia) (MELLO, 2010, p. 174-177) à associação na figura da personalidade jurídica. O registro, núcleo do suporte fático do artigo 45, representa o sistema de previsão legal no que tange à tutela externa ínsita à personalidade jurídica.
O mesmo ocorre com as sociedades na figura da sociedade em comum, constituindo- se tal modelo através de negócio jurídico, ele passa a surtir efeitos independentemente da personificação. Isto nos permite postular uma segmentação entre a constituição e personificação. Suas naturezas seriam distintas: negócio jurídico (para associação) e ato jurídico (com elementos públicos de registro e publicidade). Seus efeitos e suportes fáticos são igualmente diferentes (sendo a sociedade constituída núcleo do suporte fático da personificação).
Se a explicação anterior dá conta da atual formatação legal para as sociedades, no que pode se chamar de íter constitutivo das sociedades, como se explicar e interpretar a idéia de sociedade de fato? A seguir poderemos compreender como foi criada e quais problemas esse modelo propunha solucionar.
2 A CONSTRUÇÃO DA SOCIEDADE DE FATO
Xxxxxxx Xxxxx define a sociedade de fato como fruto do caos (SACCO, 1995, p. 62). O autor inicia seu estudo sobre o tema analisando com minúcias dogmáticas todas as consequências obrigacionais, reais e negociais que adviriam de uma sociedade que atua sem personalidade jurídica para depois indagar qual seria o intérprete ou juiz que desataria este nó e encontraria a natureza precisa destas operações.
O autor, neste sentido, coloca a sociedade de fato como uma estrutura teórica que serve de modelo de resolução dos problemas advindos da não-personificação da sociedade. Todas, ou a maior parte, das consequências da ação de uma sociedade sem personalidade poderiam ser resolvidas se se tratasse o fenômeno analogicamente a uma sociedade com personalidade jurídica.
Xxxxx, entretanto, só afirma a possibilidade da sociedade de fato no que tange à ação da sociedade antes do registro, chamada por José Lamartine (XXXXXXXX, 1979, P. 177-178) de pré-vida associativa.
A construção teórica da sociedade de fato, em seu uso posterior, incorporou um rol maior de situações do que somente a pré-vida societária. A idéia de antinomias surgidas pela falta do mecanismo de unidade de sujeito e sentido da personalidade não era adstrito somente à pré-vida societária.
Os outros problemas com o mesmo escopo eram: 1. os defeitos do contrato societário (nulidade ou anulabilidade); 2. a vinculação de sócios aparentes ao contrato societário; 3. a imputação de uma sociedade a pessoas que a exerciam (de forma concreta ou aparente); 4. a imputação dos efeitos da sociedade nos casos em que faltasse solenidade ou registro do contrato societário (incompletude do negócio).
Para melhor identificar a sobreposição teórica destes elementos analisemos historicamente a teoria da sociedade de fato.
A primeira construção da sociedade de fato se deu na França - notícia trazida por Xxxxx Xxxxxx (TEMPLE Apud FÉRES, 2011, p. 138) criando-se em julgado da Corte de Paris em 1825, que rejeitou os efeitos retroativos da nulidade da sociedade com base na figura para proteção de terceiros, em julgados posteriores ampliando seu escopo para a proteção dos próprios sócios. A ampliação de seu conteúdo e efeitos continuou ao longo do tempo.
No Brasil a teoria foi incorporada tanto na doutrina quanto jurisprudência. O conteúdo da teoria foi igualmente ampliado pelos tribunais. O julgado mais antigo no STF sobre sociedades de fato é de 1956 (BRASIL, Supremo Tribunal de Federal (STF) Recurso Extraordinário (RE) nº. 31.402, 1956), sobre um pedido de declaração de sociedade de fato com imediata dissolução e apuração de haveres de uma pessoa que desenvolvia atividade de indústria de granito somente com firma individual de um dos sócios. Percebe-se que os primeiros julgados focaram na imputação do vínculo societário pessoas que desenvolviam atividades conjuntas. O julgado em questão foi improcedente por não ter o requerente apresentado prova escrita da sociedade (art. 1.366, Código Civil de 1916), tendência que se manteve, mas foi criticada pela doutrina, como se constata do julgado de destaque da Revista de Direito Mercantil (LOTARRACA, 1987, p. 71-77). O acórdão avaliado no periódico, de 1986, afirmou ser impossível se reconhecer sociedade de fato entre duas sociedades anônimas que cooperam. O comentário doutrinário, entretanto, discorda do julgado afirmando a possibilidade da constituição da sociedade de fato pela contribuição de uma companhia (S.A.) na consecução do objeto social da outra.
Ao passo que os julgados anteriores negassem a atribuição do vínculo societário a partes que não o expressamente desejassem, outros julgados se faziam uso da figura para atribuição de efeitos típicos das sociedades a sócios que não formalizaram sua união. É o caso do Recurso Especial n. 43.070 de 1994 do STJ (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 1994), que afirma capacidade processual de sócio para requerer em seu nome bem em poder de outro sócio, sem que a sociedade em questão tenha se personificado.
Mas talvez a principal característica da teoria da sociedade de fato foi sua extensão para casos fora do escopo do direito societário. As particularidades do direito de família no início do Século XX, ainda fundado no casamento indissolúvel, tornaram as questões proprietárias nas uniões afetivas de difícil solução. Logo percebeu-se a conveniência da aplicação do regime de divisão de bens ínsito ao direito societário e hipostasiou-se a teoria para solução destes problemas. Assim nos exemplifica o Agravo n. 16.955 de 1954 do STF (BRASIL, Supremo Tribunal de Federal, 1954) - como aliás a grande maioria dos acórdãos deste tribunal, em que se postulava a declaração de uma companheira como sócia de seu marido, requerendo o pagamento de remuneração de serviços domésticos em virtude da atividade de costureira que desenvolveu durante mais de 20 anos de casamento. A inadequação da
hipostasiação teórica3 é emblemática neste julgado, ao que o pedido foi indeferido por não haverem se provados os serviços domésticos ou a sociedade e não haver constatação de que o serviço contribuiu para o patrimônio do requerido.
Como se percebe, a suposta unidade propositiva da sociedade de fato jamais foi um fator real de simplificação do problema. Os tribunais foram bastante reticentes na aplicação da teoria em todos os casos que a sociedade não fosse muito bem provada (leia-se, tenha decorrido de uma manifestação de vontade ou comportamento concludente dos sócios comprovados por escrito).
A doutrina, entretanto, não se apegou às minúcias da argumentação judicial e buscou a construção de uma teoria hígida e sistematicamente adequada da sociedade de fato. Os principais problemas que se tentavam superar com o modelo das sociedades de fato eram a centralidade da forma escrita (e outras solenidades menores) e registro para a personificação (e consequente existência da pessoa jurídica). As formas diversas de sociedade de fato, deve se ressaltar, eram divergentes em boa parte da doutrina. Parte afirmava ser a sociedade irregular aquela que se personifica, mas perde a personalidade por algum defeito e a sociedade de fato a condição anterior à personificação (registro); e outra parte afirma exatamente o inverso, tendo a sociedade irregular como a não constituída e a de fato como aquela com defeito (KALANSKY, 2009, p. 513). Note-se que ambas as posições têm como posição central a formalidade como elemento basilar para a constituição da sociedade e que existem sistemas normativos, como o francês, nos quais o registro é suporte fático da constituição das sociedades (não só da personificação). Isto gera o problema lógico do que se fazer com tudo que vem antes, isto é a pré-vida das sociedades (OLIVEIRA, 1979, p. 248 e ss).
O papel do registro no íter constitutivo das sociedades teve grande centralidade no uso teórico da sociedade de fato. Denominavam-se as sociedades sem registro como sociedades irregulares, eivadas por uma insuficiência (incompletude) nos atos que levam à sua constituição. A confusão é emblemática mesmo em direito comparado (NEVES, 2011), sempre se antevendo uma confusão basilar entre personificação, constituição da sociedade e pessoa jurídica. No trabalho analisado (NEVES, 2011) a noção de sociedade de fato do direito argentino trata tipicamente da sociedade de fato com o intuito de favorecer sua
3 Sobre a hipostasiação como uma adaptação inadequada de institutos jurídicos: LEONARDO, 2014. p. 191.
personificação, mas termina por lhe atribuir os exatos efeitos da constituição societária e incidir no mesmo erro da essencialidade do registro (e obrigatoriedade de prazos e formas).
Já apresentamos no primeiro tópico a solução sistemática deste problema. A obra Pontes de Xxxxxxx (XXXXXXX, 1965, p. 100) já apresentava essa distinção. O autor afirmava que a falta de registro não causa nulidade, mas só interessa ao plano da eficácia e excepcionalmente ao da existência. Na explanação de Xxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxx os contratos de sociedade não têm o efeito de criar a pessoa jurídica, que depende do registro. Este fato é comprovado mesmo pela superveniência da personalidade jurídica quando dissolvida a sociedade (art. 51, CC) (MELLO, 2010, p. 174-175).
Mesmo José Lamartine já antevia a autonomia dos negócios quando afirmava que “Para nós, há pessoa jurídica quando já há capacidade de direito, embora limitada, o que, como vimos, ocorre antes mesmo do arquivamento dos atos constitutivo. O arquivamento marca uma segunda etapa de crescimento da capacidade de direito, e a publicidade uma terceira” (OLIVEIRA, 1979, p. 249).
Foi, entretanto, o advento do Código Civil de 2002 e a tentativa de resolução dogmática da sociedade em comum que afastou a idéia do registro como fator fundamental da constituição, na locução do art. 986 do Código Civil. Apesar de alguns pensadores afirmarem que a sociedade em comum englobou tanto as sociedades “irregulares” quanto as de fato, como se postulou no enunciado 58 da Jornada de Direito Civil (FÉRES, 2011, p. 86), muitos estudiosos mantiveram a distinção dentro do recorte de pré-vida/vícios de constituição da sociedade.
Esta parte da doutrina afirma não ser a sociedade em comum o ponto central da pré- vida societária, por ser esse estado alheio à formalidade (forma escrita) da constituição societária (FÉRES, 2011, p. 90; mamede, 2010, P. 41). Sociedade de fato seria a fórmula de resolução para sociedade sem contrato escrito; sociedade em comum com contrato escrito mas sem vocação para se personificar; e sociedade irregular registrado mas com algum defeito (FÉRES, 2011, p. 95) . De outro lado, a segmentação lógica entre sociedade de fato, irregular e em comum serve a um modelo tipológico que reproduz os equívocos do modelo da sociedade de fato, como será demonstrado a seguir.
3 O PROBLEMA DA INCOMPLETUDE E DEFEITO NEGOCIAL NO DIREITO SOCIETÁRIO
Como explicado, pode-se realizar a redução do escopo da sociedade de fato por dois acidentes no negócio que lhe é basilar: 1. defeito (nulidade ou anulabilidade); 2. incompletude (inexistência ou ineficácia por ausência de suporte fático suficiente ou completante). Tomemos um a um os casos em confronto com a teoria das nulidades em perspectiva dogmática.
Um dos primeiros trabalhos que buscou reconstruir a idéia de nulidade fora do escopo do modelo da sociedade em comum, deslocando o problema para o cerne do negócio societário foi Xxxxxx Xxxxxxxxx (XXXXXXXXX, 2001, p. 372 e ss). O autor desenvolveu a figura do contrato plurilateral como modelo explicativo da constituição da sociedade, ganhando seu pensamento ampla repercussão e adesão.
Para Ascarelli uma das características distintivas do contrato plurilateral é a forma como este equaciona os vícios contratuais segmentadamente dos vícios de adesão. Para o ator, enquanto a teoria geral dos contratos imputa a nulidade da formação de uma vontade concorrente na formação do contrato a todo o contrato, o contrato plurilateral permitiria a distinção entre a forma e validade da adesão de cada parte ao contrato e desde em seu conjunto (ASCARELLI, 2001, p. 413).
Esta posição fundamental de Xxxxxxxxx permitiu a postulação de que a anulabilidade ou nulidade de uma manifestação somente surtiria efeitos para aquela parte enquanto as vontades remanescentes poderiam continuar a consecução do objeto. O princípio que recobre essa dinâmica é o da conservação dos contratos (ASCARELLI, 2001, p. 414). Já no que tange a invalidades do contrato em si, o autor aponta a impossibilidade de se distinguirem causas de nulidade e anulabilidade e sempre quando se ocorrerem vícios existirá uma causa de dissolução do contrato (ASCARELLI, 2001, p. 416-417). Tal posição é sustentável em nosso sistema pela disposição do art. 1034 do Código Civil.
O problema fundamental, na opinião de Xxxxxxxxx, é a tutela de terceiros no que tange aos efeitos retroativos da anulação da adesão do sócio ou do contrato. Sobre isto Xxxxxxxxx apenas aponta a tendência jurisprudencial de impedir tais consequências atendendo a princípios de maior tutela dos credores (ASCARELLI, 2001, p. 417). O autor, neste espírito, conclui pela nulidade ex nunc para a adesão do sócio e ex tunc para o contrato social em sua plenitude (XXXXXXXXX, 2001, p. 199).
Note-se que a solução de Xxxxxxxxx resolve duas facetas do problema. Primeiro, abstrai-se a contaminação de nulidade da adesão do sócio. Segundo aponta que a sanção da nulidade (o desfazimento dos efeitos do fato) para a sociedade é a liquidação. Remanesce a nulidade total do contrato societário e a imputação do vínculo societário e de responsabilidade frente a terceiros do sócio cuja adesão foi anulada.
A teoria da aparência, neste segundo âmbito (responsabilidade frente a terceiros), substituiu o modelo da sociedade de fato como modelo de solução dos vícios de adesão dos sócios. Mesmo quando viciada ou simulada a adesão do sócio, esta poderia gerar efeitos se gerasse uma “aparência” legítima perante terceiros. A construção lateral da teoria da aparência sofreu igualmente alterações com o tempo, hoje tendo grande peso o elemento da boa-fé (FRANÇA, 2013, p. 126).
O problema da incompletude resolveu-se então pelo uso de novos instrumentos. A os defeitos do contrato societário continuaram na órbita da teoria das nulidades, mas agora com âmbito de aplicação e modulação de efeitos mais adequado. Neste momento pode-se concluir que a teoria da sociedade de fato passou a ter pouco domínio sobre os problemas que inicialmente resolveu. Sua função tornou-se cada vez mais “residual” na medida em que se desenvolviam novas normas, superavam-se entraves (como do registro) e encontravam- se mais adequados princípios.
Aqui podemos concluir investigando a razão de ser da teoria da sociedade de fato dentro de uma perspectiva científica. Em primeiro lugar Canaris distingue o sistema interno do Direito do externo. Enquanto o sistema interno seria composto das normas, o sistema externo se definiria aos conceitos jurídicos, ou “a unidade de sentido interior do Direito” (CANARIS, 1989, p. 26).
Inserindo-se a sociedade de fato no sistema externo, uma vez de sua criação fora da tipicidade legal, podemos submetê-la os critérios de falseamento de validade a que são passíveis todas as teorias científicas (CANARIS, 1995). Logo de início percebemos uma tautologia (XXXXXXX, 1995, p. 71-72) na teoria da sociedade em comum (autorreferência, só explica a si mesma). Criada para atribuir efeitos da sociedade personificada a situações existenciais a locução “de fato” colide com a noção “de direito” trazendo consigo uma série de impropriedades em sua operacionalização (em especial nos tribunais). Ademais, existem os vícios já aludidos de defeito de identificação dos problemas aplicáveis e desconformidade
com seus enunciados de base (a sociedade de fato não se conforma com os efeitos que busca surtir) (XXXXXXX, 1995, p. 71-84).
De fato, podemos antever na sociedade de fato o modelo teórico heurístico (CANARIS, 1995, p. 30), isto é, o uso da teoria como forma de obtenção de novas regras, ou de alterações judiciais da interpretação normativa. Parece claro ter sido este o caso, construindo-se um modelo teórico que desse conta de modificar a tutela do interesse de terceiros no que tange aos problemas de incompletude e defeitos no negócio societário.
Tomado como conceito heurístico puro, podemos aplicar à construção da sociedade em comum a crítica de Xxxxxx (LARENZ, 1969, p. 516-520) sobre a tendência do pensamento abstratizador (conceitual) de esvaziar de sentido os conceitos para produzir antíteses. Para Xxxxxx quanto mais abstrato o conceito mais distante ele será do problema que busca resolver. Além de sua distância, os conceitos abstratos perdem força na medida que incidem em situações intermediárias, tendendo a produzir antíteses externas em seu seio. Essa dinâmica também é evidente no caso da sociedade de fato.
4 SUPERVENIÊNCIA DOS PROBLEMAS DA SOCIEDADE DE FATO E INADEQUAÇÃO DE SUA SUPERAÇÃO
A idéia de sociedade de fato foi marcada pela sua persistência. Até hoje encontraremos seu uso como forma de solucionar problemas jurídicos específicos. Entretanto, como exposto, já existem uma série de resoluções sistemáticas para os problemas imputados à sociedade de fato. A razão então de sua persistência pode se quedar na superveniência de algumas facetas dos problemas que buscou resolver originalmente.
Primeiro, o problema da imputação do vínculo societário (e condição de sócio) a pessoas que não explicitamente participam da sociedade foi suprido pela delimitação própria do problema e a aplicação dos instrumentos da teoria da aparência e da simulação. Por delimitação própria do problema denota-se o afastamento dos casos de concubinato (e comunhão patrimonial do direito de família em geral) do núcleo jurídico do direito societário. A evolução do direito de família e a consagração de uniões familiares diversas do modelo patriarcal oitocentista tornaram ineficientes e valorativamente incongruentes as soluções patrimoniais pela imputação societária.
Já no direito societário a teoria da aparência se demonstrou o modelo mais próprio para a imputação de vínculo societário e condição de sócio a pessoas que aparentemente figuravam como sócios. Este ponto já foi mencionado.
A segunda solução para o problema do vínculo societário foi a teoria da simulação. Xxxxxxxxx já se debruçava sobre o tema quando estudava o negócio indireto. Na teoria do autor, a imputação do vínculo societário se resolve satisfatoriamente pelo instituto da simulação (XXXXXXXXX, 2001, p. 193) . Esta posição, contudo, é construída sobre a noção de uma eficácia declaratória do registro (publicidade) cujos efeitos não se maculam pela simulação original, que pode ser sanada nas relações entre os contratantes (ASCARELLI, 2001, p. 195-196).
A manutenção da idéia da sociedade de fato para a questão dos defeitos dos negócios, em especial a nulidade, tem continuidade por sua defesa (com ressalvas) de Pontes de Xxxxxxx (MIRANDA, 1965, p. 98-100). O autor é um pouco ambíguo em sua incorporação da figura. Sua exposição inicialmente coloca a sociedade de fato como uma de três teorias (que em verdade se confundiria com uma das outras) sobre as consequências da nulidade dos contratos societários. As proposições seriam basicamente nulidade desde o início e a sociedade de fato (como modelo de não-retroativiade da nulidade). Para o autor o uso da teoria seria determinado caso a caso. Se a causa da sociedade é ilícita vence a primeira teoria. O uso da sociedade de fato teria razão quando fosse necessária a atribuição de efeitos para proteger os interesses de terceiros e partícipes de boa-fé.
Ao fim de sua exposição Pontes de Xxxxxxx adota a postura um tanto ambígua de defender a solução do problema da nulidade pela própria teoria da nulidade e suas teses conexas (conversão negocial, incidência posterior, ineficácia do registro) e conclui pela natureza da sociedade em comum de “tipo ordinário” da sociedade em nome coletivo. Observa-se, então que a postura Ponteana é semelhante à de Xxxxx, afirmando a validade da solução propositiva heurística da teoria mesmo que admitindo a solução convencional (e parcelar) do problema.
No entanto, o ponto comum da manutenção da figura da sociedade de fato foi aquele para o qual ela foi inicialmente criada. A pré-vida societária é o elemento que permanece insolúvel na visão da grande maioria dos estudiosos, mesmo em expoentes da área.
A crítica de Xxxxxxxxx (XXXXXXXX, 1979, p. 246-251) às sociedades em comum (no ainda projeto de Código Civil) é fundamental para compreender a disfunção. Lamartine rejeita
a figura da sociedade em comum por sua solução de imputar o patrimônio “em comum” aos sócios. Para o autor a sociedade em comum seria uma espécie de comunhão, contrária à natureza, que dependeria de um efeito transformador do registro para tornar a comunhão em sociedade (OLIVEIRA, 1979, p. 246). A posição de Xxxxxxxxx tem sentido e é criticável devido a sua posição ontológico-institucionalista (LEONARDO, 2005, p. 144) da pessoa jurídica. Para o autor não haveria nem mesmo sentido em se arguir se a pessoa jurídica surge antes ou depois do registro. Em seu pensamento a pessoa jurídica existe quando se manifesta capacidade de direito, denotando que é a “realidade” da constituição societária que teria como consequência a personalidade (XXXXXXXX, 1979, p. 249-251).
O problema do modelo de Xxxxxxxxx é o semelhante ao que se encontra em Sacco (XXXXX, 1995, p. 60-61) e Xxxxx (FÉRES, 2011, p. 95), obras que tomam a centralidade teórica da pessoa jurídica em detrimento da figura jurídica (ou efeitos) da sociedade. Em comum a cada um destes pensamentos está a tendência de só se considerar a figura da pessoa jurídica, sem conferir-se efeito jurídico autônomo à sociedade, acarretando um problema insolúvel de justificar as formalidades do sistema de previsões normativas dentro dos efeitos intermediários das coletividades não personificadas e buscar a saída na ampliação da tipologia societária.
É esta mesma solução de Xxxxxx Xxxxx (XXXXXX, 1989, p. 171), retomada por Xxxxx (FÉRES, 2011, p. 62-63), da possibilidade de se criarem modelos societários atípicos, em especial em âmbito anterior à personificação (fase contratual ou pré-vida das sociedades). Busca-se solucionar a gradação das diversas formas e complexidades organizativas das sociedades criando-se uma tipologia aberta e compreensiva. Tal solução parece ser igualmente imprópria, porquanto confunde os efeitos internos e externos da sociedade, como se verá ao fim do trabalho.
Em verdade, a pessoa jurídica não pode em si conferir resposta à pré-vida societária em virtude de seu componente externo, de vincular e gerar efeitos perante terceiros. A publicidade é elemento essencial á personificação por esta razão necessita da categoria organizativa da sociedade como entreposto lógico para a tutela de interesses a ela prévios.
Uma solução dogmática efetivamente sistemática deve tomar em conta então esta dualidade da pessoa jurídica. Os passos preliminares para tal estão em Ascarelli (XXXXXXXXX, 2001, p. 420-427), quando o autor distingue o contrato plurilateral externo, que cuida dos efeitos da personalidade jurídica e divisão do patrimônio; e do contrato interno, que cuida das relações entre as partes.
5 UMA PROPOSTA DE SOLUÇÃO DOGMÁTICA PARA O PROBLEMA
A continuidade do problema se imiscui com o próprio sistema da sociedade em comum. Não há dúvida que este modelo abrange toda a pré-vida societária, aplicando-se por sua própria disposição (art. 986 do Código Civil) “enquanto não inscritos os atos constitutivos”. Tal hipótese, dentro de uma lógica tipológica, aponta uma tipicidade “conglobante” da sociedade em comum (como a do tipo penal, ela incorpora situações menores ou intermediárias que não ganham grau mais elevado de autonomia).
Isto gera uma antinomia aparente em sua aplicação. O art. 998, que rege as sociedades afirma que as mesmas devem inscrever seu contrato nos trinta dias subsequentes à constituição. Pela lógica da divisão entre constituição e personificação encontramos uma barreira. Se a sociedade simples se constitui pelo contrato, então seria o não-registro em 30 dias fato transformador de sociedade simples em sociedade em comum? Ou seria o inverso verdadeiro, existindo uma sociedade em comum até que o registro a transformasse em sociedade simples (praticamente extinguindo-se aqui a possibilidade de uma sociedade simples não personificada)4.
A lógica correta parecer ser outra. De fato, um contrato de sociedade simples (ou limitada, mais propriamente) só deveria ser traduzido na constituição de uma sociedade simples (ou limitada). O escopo da sociedade em comum seria anterior à da própria constituição da sociedade (redação do contrato), remetendo aos atos e vínculos entre os sócios que antecedem a própria composição do plano interno da sociedade (inscrito e definido no contrato).
A distinção dos diferentes negócios jurídicos que integram a relação societária é então a única forma de se compreender plenamente o cerne do problema. São a princípio identificáveis dois vetores de manifestação de vontade que darão ensejo a duas situações jurídicas basilares, correlacionadas aos chamados dois planos de relações societárias: interno e externo. Xxxx vetores são consagrados na teoria societária como os planos internos e externos da sociedade, mais explicitamente no que diz respeito às relações dos sócios entre si e com a sociedade e da sociedade com terceiros (ASCARELLI, 2001, p. 426 e ss).
4 Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx cita duas críticas à restrição temporal da sociedade em comum prevista no art. 998 do Código Civil. Primeiro, que não é compatível com o fato que as partes escolhem o tipo societário no momento da constituição da sociedade. Segundo, que o regime do registro público confere retroatividade aos efeitos da personificação (FRANÇA, 2013, p. 162).
O primeiro vetor é a o acordo cujo escopo é a união organizada de pessoas para um fim. A natureza disto é um negócio jurídico de cunho associativo. Sua situação jurídica basilar é a constituição de uma subjetividade jurídica distinta da de seus membros. Esta situação é semelhante ao negócio organizativo das associações. Sua diferença é o conteúdo pessoal do negócio nas sociedades, em oposição ao conteúdo corporativo daquele (sem vínculo entre associados, art. 53, p. ún.).
O segundo vetor é o que mais propriamente define as sociedades e em especial a natureza contratual destas. Correlacionado ao plano interno dos sócios, o contrato societário é uma relação jurídica plurilateral que vincula os sócios entre si e com a subjetividade societária, tendo sua situação jurídica basilar a atribuição e afetação patrimonial e obrigacional que compõem o núcleo do negócio societário (art. 981).
Enquanto o negócio associativo tem estrutura vertical, com a universalização dos sócios se traduzindo em um vínculo vertical com a subjetividade societária, o negócio societário gera vínculo horizontal entre os sócios e dá os contornos de suas prestações e atividades internamente à subjetividade criada. Para facilitar a exposição, nomeemos provisoriamente os negócios como negócio interno e externo, em confluência com seus vetores. Registre- se também que a segmentação negocial é quase impossível de se conotar no escopo da declaração em si, uma vez que pragmática e existencialmente serão conjugadas a subjetivação com a divisão negocial interna à sociedade.
A distinção estrutural dos dois negócios apresenta assim interessantes repercussões teóricas e sistemáticas. Em primeiro lugar podemos nos pautar nela para distinguir a separação entre estrutura corporativa e pessoal pelo recorte da unidade de associação (comunidade) e unidade de ação. Ao passo que o negócio externo das associações gera subjetividade, esta tem natureza corporativa, indistinguindo os associados no plano interno e não possibilitando relações jurídicas entre eles. No que tange às sociedades o negócio interno criaria a mesma subjetividade, mas teria natureza pessoal, vinculando a pessoa dos associados e os termos do contrato societário.
Pode-se igualmente registrar a distinção feita por Xxxxxxx Xxxxx (SACCO, 1995, p. 66- 67), que depois da analogia da função da caça e sua divisão nas sociedades primitivas registra na societas romana três elementos: 1. que a sociedade se vincula ora com o desenvolvimento da atividade em comum, ora com a declaração; 2. que o vínculo societário não obriga para o futuro, durando enquanto quiser o sócio; 3. que a intervenção do jurista geralmente só pode
ser a da repartição. Aqui antevê-se os elementos do negócio externo, que cria a subjetividade através da união de escopo e em si pode gerar esferas de interesse diversas da do negócio interno (sócio aparente e imputação da sociedade).
Nesta compreensão, deve se notar que o mecanismo de vinculação do negócio externo, sua declaração por assim dizer, é gerada de forma muito mais basilar do que o negócio interno (contrato societário). Xxxxxxx Xxxxxxx (TEUBNER, 1988) definirá melhor o mecanismo ao aproximá-lo ao próprio mecanismo psicológico do afastamento da subjetividade de um sócio (ou de todos) para a de um ente intelectualmente criado. Basicamente, o processo de subjetivação é feito em torno de uma designação que vai do nome próprio para outro nome criado pela coletividade. Este pensamento é acompanhado pelos diplomas legislativos ao longo do tempo. Enquanto o Código Comercial focava o cerne da sociedade no negócio externo, buscando imputar a todo indício de conduta subjetivante a sociedade; o novo Código Civil se preocupou mais com a relação interna dos sócios e a distribuição obrigacional entre eles como o cerne da sociedade.
Os elementos do atual diploma legal que ainda legitimam a distinção entre os negócios
são:
1. O art. 987 do Código Civil, que permite a terceiros provarem de qualquer modo a sociedade em comum, mas aos sócios só pela forma escrita. Isto dá sentido à segmentação negocial na medida que aos terceiros só interessa o plano externo, ou seja, o negócio externo entre os sócios. Já aos sócios interessa o plano interno, ou seja, o completo de relações jurídicas e obrigacionais entre eles pactuados, que legalmente só podem advir do instrumento do contrato, ou do negócio interno.
2. A da possibilidade do contrato societário sem o negócio externo. Isto expressa a criação das situações jurídicas internas à sociedade sem que para tal haja uma subjetividade jurídica distinta da dos membros. Isto ocorre na sociedade em conta de participação. Nessa sociedade não existe o “plano externo” da sociedade. A subjetividade que dá autonomia à sociedade é a do sócio ostensivo. Esta relação parasitária entre contrato societário e sujeito de direito denota uma interação particular entre os negócios, a pesar de sua separação.
3. A possibilidade do negócio externo (união de pessoas para fins econômicos) sem negócio interno, que seria a exata hipótese da sociedade em comum, cujos efeitos são aqueles próprios (e exclusivos) do plano externo.
4. A limitação de responsabilidade seria advinda do negócio interno, uma vez que isto só existe nas sociedades, e ainda assim só algumas delas. Não só, existe a possibilidade de se alterar o esquema de responsabilidade nas sociedades em comum, vinculando a terceiros quando do conhecimento destes, mesmo sem publicidade (art. 989 do Código Civil).
A sociedade em comum seria assim o negócio associativo basilar, cujo escopo da tutela é somente o plano externo dentro da perspectiva subjetivante. Os arts. 986 a 990 do Código Civil se preocuparão exclusivamente com a criação de um mecanismo de compartilhamento da propriedade, gestão e responsabilidade codependentes da subjetividade criada pela união dos sócios. Aqui o vínculo entre os sócios é amplo, mas despido de conteúdo negocial que vincula e gera obrigações específicas dos sócios uns com os outros. O vínculo se aproxima da comunhão não por um critério proprietário, mas sim por inexistir vínculo interno entre os sócios (apto inclusive a ser estendido a terceiros, i.e. art. 989 do Código Civil).
Todo acréscimo eficacial que compõe a sociedade simples seria derivada do contrato (negócio interno), que estrutura o plano interno da sociedade. A criação do contrato, independentemente do registro, gerará o vínculo interno da sociedade, ligando os sócios às obrigações, responsabilidades e limitações destas pactuadas.
A sociedade em comum, assim, seria não o modelo da pré-vida societária, mas o momento do “grau zero” de associação econômica. Em grau zero a sociedade não tem elementos organizativos formais suficientes para se incluir tipologicamente em qualquer outro tipo societário. Não existe pacto ou vinculação interna dos sócios (por omissão destes). A sociedade em comum seria o modelo do negócio externo da sociedade simples não registrada, passando a sofrer pós-eficácia pela personificação. Existe, contudo, a união voluntária qualificada pela organização para fins econômicos que em si geraria os efeitos basilares da sociedade em comum.
Isto, a seguir, nos permitiria retomar de forma mais sistemática os problemas remanescentes da sociedade de fato.
Esta distinção interessaria aos casos supracitados de atribuição de vínculo societário e simulação do negócio societário. A constatação de participação no plano externo da sociedade no que tange à teoria da aparência seria atribuível ao negócio externo. Já a simulação parece incidir primordialmente no plano interno, sendo assim traduzido no negócio interno.
A teoria da nulidade deve ser aplicada a essa dinâmica. A doutrina sempre postulou a necessidade pragmática de não se desconstituir os atos da subjetividade ou personalidade da sociedade em caso de nulo o contrato social. Isto, entretanto, não se compatibiliza com a nulidade do contrato societário como um todo. Entretanto, se se segmentar o negócio externo do negócio interno pode-se aplicar de forma mais direcionada a teoria. Um caso de nulidade absoluta em uma disposição obrigacional ou patrimonial do contrato social poderia ser nula em si sem que se desconsidere o mecanismo de união que ensejou a subjetividade. Os efeitos recaem basicamente no escopo do art. 1.034, I, do Código Civil que afirma poder ser dissolvida judicialmente a sociedade quando anulada sua constituição. Aqui se entenderia a nulidade da constituição como a nulidade do negócio externo, que seria independente do negócio interno, cujas disposições poderiam continuar a valer entre as partes.
Restam, é claro, amplas dúvidas quanto a esta tese. A natureza pessoal seria componente do negócio ou contrato? Existe conexão entre negócio interno e externo? A validade e eficácia do negócio interno seria totalmente independente da personificação? Estariam os negócios totalmente livres de uma eficácia modificativa no percurso até a personificação?
Pode mesmo se fazer uma grave objeção quanto a atomização dos componentes negociais até um momento em que os mesmos percam seu sentido funcional ou operacional fundamental: o de criar um centro de imputação autônomo de direitos e deveres que permita a segregação dos riscos dos sócios (STAJN, 2005, p. 71).
Em verdade, já existe uma resposta sistemática para muito do problema na constatação da autonomia das cláusulas do contrato social. A hipótese fica exposta para seu falseamento científico.
6 CONCLUSÃO
Como conclusão apresentamos este repensar das categorias da pessoa jurídica, sociedade e sociedade de fato. Estas categorias se criaram em um momento em que as construções teóricas no direito tinham particular relevância na construção legal e na solução dos problemas.
O panorama atual, entretanto, rejeita a idéia codicilar de construção de solução universais, enveredando nos microssistemas e legislações especiais. Mede-se mais o mérito dos institutos pela sua adequação e especialidade do que pela construção abstrata de verdadeiros “institutos”.
Nesta medida a sociedade de fato não mais se sustenta. Não é coerente se afirmar um instituto que basicamente cria um tipo societário próprio para as situações basilares de negócio societário quando tais situações já encontram tutela nas disposições normativas.
Afirma-se também que a centralidade da pessoa jurídica como porta de entrada e função primordial do sistema societário igualmente não se sustenta. A separação negocial entre o negócio societário e o ato de personificação são ponto primeiro da idéia de sociedade em nosso sistema.
Mas pode-se ir além, afirmando que a superação do monólito da pessoa jurídica nos deixaria libertos para uma indagação mais profunda sobre os efeitos e os espaços problemáticos do direito societário. Assim, podemos indagar sobre se estruturas negociais são declarativamente conexos (ou vinculados), mas operacionalmente (eficacialmente) distintos.
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