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[TEXTO PUBLICADO NA OBRA COLETIVA CORONAVÍRUS E RESPONSABILIDADE CIVIL. IMPACTOS CONTRATUAIS E EXTRACONTRATUAIS. XXXXXXXX XXXXX, XXXXXX XXXXXX DO RÊGO. XXXXXXXXX, XXXXXX. XXXXX, XXXXXXX. (COORDS.) 2ª ED. SÃO PAULO: FOCO, 2021 – P. 139-160]
CORONAVÍRUS E O CONTRATO DE SEGURO
Xxxxxx X. Polido
Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP; Árbitro em seguros e resseguro; Sócio e professor da Co- nhecer Seguros; Coordenador Acadêmico do Curso de Especialização de Direito do Seguro e Resseguro da ESA- OAB-São Paulo; Autor de livros; Consultor e Parecerista.
Sumário: 1. Introdução: riscos, seguros e resseguro – 2. Questões concernentes ao tema seguros e coronavírus – 3. Coronavírus enquanto fato gerador de sinistros: 3.1. Ramos de seguros e a possível cobertura do risco; 3.1.1. Segu- ro Saúde; 3.1.2. Seguro de Vida; 3.1.3. Seguro Fiança Locatícia; 3.1.4. Seguro de Xxxxxx Xxxxxxxxx; 3.1.5. Seguro de Responsabilidade Civil Estabelecimentos Médicos e Odontológicos; 3.1.6. Seguro de Responsabilidade Civil dos Profissionais da Área de Saúde e RC Profissional de Síndicos de Condomínios Comerciais e Residenciais; 3.1.7. Se- guro de Responsabilidade Civil de Diretores e Administradores – D&O; 3.1.8. Seguro de Responsabilidade Civil de Corretores de Seguros e de Brokers de Resseguro; 3.1.9. Seguro de Crédito Interno e Externo. Seguro Garantia;
3.1.10. Outros Seguros – 4. Resseguro – 5. Conclusões –. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO: RISCOS, SEGUROS E RESSEGURO
O seguro representa, na contemporaneidade, a ferramenta mais eficaz de transferência de riscos, até o momento criada pelo homem. Se, na fase que antecede ao seguro, o gerenciamento demonstrar a impossibilidade de o risco ser neutralizado ou mesmo extinto, a melhor alternati- va será justamente a de transferi-lo para o seguro. Neste sentido, a preleção do professor Men- des: “o ser econômico racional tem a obrigação de se segurar, pois, o seguro tem por finalidade, exatamente, transformar as perdas aleatórias em simples despesas certas e previsíveis”1. A álea, de acordo com a definição reproduzida, está pautada tão somente no risco e, mais precisamente, no momento da incidência do evento danoso garantido pelo seguro, naqueles de natureza patrimo- nial, assim como nos seguros de pessoas (vida, saúde, acidentes pessoais). Em razão, também, de a garantia do seguro ter como objeto o “interesse” do segurado sobre o bem ou a pessoa, deixou de ter qualquer importância a diferenciação que existia estre um segmento e outro (seguros de danos e seguros de pessoas). Na pós-modernidade, a doutrina especializada propugna pela co- mutatividade do contrato de seguro, mesmo porque a prestação e a contraprestação das partes celebrantes são simultâneas e imediatas. O proponente paga o prêmio à seguradora e ela garante ao então segurado, desde logo, a indenidade – uma vez sobrevindo os eventos predeterminados durante a vigência da apólice. Todavia, não repousa apenas na materialização do sinistro a efeti- vidade do seguro. O contrato oferece proteção ampla ao segurado: estado de segurança e de tran- quilidade, além da sustentabilidade econômico-financeira, independentemente da ocorrência do
1 . XXXXXX, X. X. xx Xxxxx. Bases Técnicas do Seguro. São Paulo: EMTS, 1977, p. 12.
sinistro.
A segurabilidade dos riscos está pautada na ciência relativa aos grandes números, guiada pela estatística e atuária, principalmente. A atividade seguradora, profissional, se desenvolve exclusivamente no campo do estudo das probabilidades, afastada a incerteza na operação, sendo que esta baseia o jogo e a aposta e não o seguro. A álea, na atualidade, centrada no risco, passa por processos de modelagens estatísticas e afins a tal ponto requintados, que permitem às segu- radoras conhecer perfeitamente a exposição dos riscos ao longo dos anos e continuamente. Os sistemas eletrônicos atualmente disponibilizados para a análise e a projeção sistêmica dos riscos e dos resultados, são muito desenvolvidos e podem prover as seguradoras de margem de certeza quase absoluta nas suas operações.
Para consolidar esta introdução acerca da atividade seguradora na atualidade, emerge o contrato de resseguro, sendo necessário explorar dois aspectos sobre este modelo, extremamen- te complexo. Em primeiro lugar, compete definir o resseguro: através dessa operação, a segura- dora (denominada “Cedente” neste tipo de negócio jurídico), transfere (cede) parte de suas res- ponsabilidades assumidas através dos contratos de seguros a uma outra empresa, a ressegura- dora ou a várias delas, simultaneamente, de maneira proporcional ou não-proporcional. Este instituto, o resseguro, tem como função precípua indenizar a cedente, uma vez sobrevindo o si- nistro2. Através dessa operação, as seguradoras adquirem várias vantagens: “a de maior capaci- dade de operação ou o aumento do volume de captação de negócios no mercado competitivo; subs- tituição efetiva de capital (“surplus relief”); estabilização dos resultados por conta da homogenei- zação da sinistralidade; proteção contra riscos catastróficos; transferência de “know how” na subscrição de riscos (“underwriting”) e nos ajustamentos dos sinistros3 (“claims handling”); ou- tras”4. Em segundo lugar, é necessário ressaltar a internacionalidade do resseguro: a pulveriza- ção de riscos em âmbito global é salutar na medida em que minimiza a concentração de perdas em um determinado mercado doméstico, especialmente quando os riscos estiverem relaciona- dos a catástrofes. Terremotos no Japão, no Chile e no México são exemplos de preocupações constantes encontradas naqueles países, sendo que programas especiais de seguros e resseguro são elaborados em face dos riscos inerentes. Furacões no Caribe, tornados nos EUA, enchentes em países europeus, são outros exemplos reincidentes5. Também endemias e até mesmo pan- demias são passíveis de coberturas através do resseguro, como de fato acontece em vários paí- ses. Dessa forma, os contratos de resseguro, “protegem a Seguradora não somente contra o risco de perda individual, mas também contra eventos, catástrofes e acumulação”6.
No Brasil, perdurou o monopólio estatal do resseguro de 1939 a 2007, sendo que a abertura se deu a partir da edição da Lei Complementar n.º 126, de 15 de janeiro de 2007. A cobertura de resseguro para catástrofes não teve evolução acentuada naquele período: o ressegurador mono- polista oferecia a garantia para as carteiras dos seguros de pessoas, agrícolas e automóveis, mas não havia a preocupação, no tocante aos seguros de pessoas, com os riscos de endemias ou pan- demias. Permaneceu, no período, apenas a garantia do resseguro para as coberturas clássicas e tradicionais: morte natural e acidental, sob o prisma de um mesmo evento poder atingir várias pessoas seguradas ao mesmo tempo. O mercado segurador nacional não se desenvolveu neste aspecto, mesmo após a abertura do resseguro, sendo que os maiores e mais importantes resse-
2 . XXXXXX, Xxxxxx X. Resseguro. Cláusulas Contratuais e Particularidades sobre Responsabilidade Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Funenseg, 2011, p. 23.
3 . Processo administrativo de regulação de sinistros, assim como é conhecido no Brasil.
4 . XXXXXX, Xxxxxx X. VILLAS BÔAS, Regina Vera. O contrato atípico de resseguro e as discussões contemporâneas sobre a sua natureza jurídica, fontes jurídicas que o fundamentam e função social exercida: garantia do efetivo equilíbrio do mercado se- gurador e do resseguro. In: Revista de Direito Privado, RDPriv n. 61, Ano 16. São Paulo: RT, janeiro-março 2015, p. 193-230.
5 . Idem, p.29.
6 . BERTSCHINGER. P. P. Know How en Seguro y Reaseguro. Madrid: Editorial Mapfre, 1979, p. 133.
guradores internacionais já operam no país, desde 2007 ou mesmo antes disso como retrocessi- onários7 do então ressegurador monopolista. A garantia para catástrofes, atualmente buscada pelas seguradoras do país, não difere muito do estágio que se observava no regime de monopó- lio do resseguro. As razões podem ser assim resumidas: a crença de que no Brasil não há eventos naturais; a falta de conhecimento das seguradoras locais sobre a cobertura e, na maioria das vezes, também pela ausência de bases estatísticas bem estruturadas; a busca pela garantia se dá apenas para aqueles riscos mais evidentes, assim como alagamentos e inundações que podem danificar vários automóveis e(ou) outros bens segurados por uma mesma seguradora e, no ramo de pessoas, eventuais acúmulos em decorrência de determinados eventos, como a queda de avi- ões. Não ficam totalmente isentos os demais países a respeito dessa situação de não cobertura de resseguro para os riscos de catástrofes, sendo que apenas diante de acontecimentos emble- máticos como o do coronavírus determinadas políticas e procedimentos acabam sendo alterados por alguns deles8. A mídia especializada internacional tem noticiado este tema em relação ao coronavírus e sobre os mais variados países e mercados de seguros. A reputação da indústria mundial seguradora e resseguradora, inclusive, está em jogo diante dessa pandemia que atingiu todos os mercados. Para um setor que “vende expectativa de proteção em momentos difíceis”, não poderá haver recuo, tampouco indefinições.
As seguradoras nacionais e também aquelas de capital estrangeiro, apesar de ter ocorrido a abertura do mercado de resseguro em 2007, continuaram a ofertar garantias de seguros tradici- onais aos segurados brasileiros e não trouxeram, ainda, com raras exceções pontuais, outros modelos mais sofisticados, os quais elas comercializam nos respectivos países de origem. Este estágio atual do mercado de seguros brasileiro, pujante em produção de prêmios, mas não com a mesma medida em tecnologia de produtos securitários colocados à disposição dos consumido- res, traz consequências num momento crítico como este, da pandemia do coronavírus. Do mesmo modo, a falta de conhecimento exato por parte dos executivos das seguradoras locais acerca das funções do resseguro, propicia a inexistência de programas especialmente elaborados e visando a garantia de riscos de natureza catastrófica, os quais também acontecem no Brasil. Outro ponto que desfavorece a busca por programas de resseguro contra catástrofes, deixando de desenvol- ver o mecanismo garantidor, o fato de que grande parte dos desastres que ocorrem no país aca- bam atingindo as populações mais pobres, as quais não contratam seguros de nenhuma espécie e pela simples falta de recurso financeiro para tanto: desmoronamentos de encostas de morros com ocupações residenciais ilegais; alagamentos em várzeas de rios nas cidades, são os exemplos recorrentes. São questões que desafiam o mercado de seguros e que deverão passar por novo olhar a partir da pandemia do coronavírus e, necessariamente, também no tocante ao resseguro.
Sem esta introdução, a qual definiu as operações de seguro e de resseguro de acordo com os elementos essenciais de cada tipo de contrato, seria impossível retratar o tema objeto deste tex- to, no seguimento deste trabalho.
2. QUESTÕES CONCERNENTES AO TEMA SEGUROS E CORONAVÍRUS
Há, até o momento, clima de insegurança jurídica no tocante aos possíveis procedimentos
7 . Quando o ressegurador transfere a outro ressegurador parte dos riscos aceitos por ele.
8 . Mesmo diante de fatos relevantes já vivenciados, os mercados acabam negligenciando a respeito e parece ser inerente ao homem, de qualquer nacionalidade, não antever todos os possíveis acontecimentos e que podem prejudicar os negócios. Ante- rior ao atentado de 11 de setembro de 2001, praticamente todos os contratos de seguros e mesmo de resseguro excluíam “os danos resultantes de guerra civil ou internacional, declarada ou não, rebelião, insurreição, etc.”, sem se referirem expressamente ao “terrorismo”. Desse modo, “a exclusão de atos terroristas deve estar expressamente consignada na apólice de seguro para que seja oponível ao segurado”, conf. BOTERO M. Xxxxxxxx. Seguro, Reaseguro y Terrorismo. In: Anais do VIII Congresso Ibero Lati- no-Americano de Direito de Seguros do Comitê Ibero Latino Americano da AIDA. Rio de Janeiro: AIDA, 2003, p. 14. [AIDA – Asso- ciação Internacional de Direito de Seguros] A partir do trágico acontecimento, inusitado quanto a sua causa, os países passa- ram a adotar vários modelos de garantia para o risco de terrorismo, unindo esforços públicos e privados, assim como a consti- tuição de pools de proteção. No Brasil, diversamente, o mercado de seguros excluiu a cobertura do risco de terrorismo em to- dos os tipos de apólices, para todos os ramos, até este momento.
que serão adotados pelas seguradoras em relação às apólices já em vigor, envolvendo os mais diversos ramos de seguros. Desde a deflagração do isolamento social, vários procedimentos en- volvendo os contratos de seguros já ocorreram e nem todos eles favoráveis aos consumidores, sendo que a judicialização já começou também no Brasil9. Em face da pandemia do coronavírus, repise-se, está em jogo também o aspecto reputacional do mercado de seguros no país e no mun- do, uma vez que o sistema apresenta forte apelo de proteção social e, neste momento crucial e inusitado, todos os olhares estão voltados para a postura dos agentes que operam no setor. As seguradoras, mais especificamente os – produtos e serviços – oferecidos por elas, serão medidos com esta régua, firmemente. Todas as deficiências porventura existentes nas bases contratuais e que possam prejudicar a expectativa dos consumidores dos diversos tipos de seguros afetados, estarão muito mais expostas e em razão das especiais características do momento, de “aflição” e com prejuízos contabilizados para muitos. Parte considerável do questionamento que se apre- senta para o tema pode ser resumida com as seguintes indagações:
As seguradoras, podem simplesmente recusar o pagamento de indenizações a título de exclusões pontuais porventura exis- tentes nos contratos de seguros?
Ou elas podem, discricionariamente, desconsiderar a exclusão em razão do momento crítico representado pela pandemia, sem qualquer tipo de consequência em face da regulação à qual a atividade deve se submeter?
Quais são, efetivamente, os limites objetivos da atuação da iniciativa privada, positivados no ordenamento jurídico nacional?
A hermenêutica aplicável ao contrato de seguro, nessa situação pontual, pode variar para cada caso a ser analisado e de- pendendo, por exemplo, da (hiper)vulnerabilidade do segurado?
A exclusão para pandemia pode ser vista como uma cláusula “surpresa” ou “abusiva” em face dos segurados, consumidores hipossuficientes, na relação contratual securitária?
A seguradora pode alegar que não indenizará os segurados devido ao fato de que o contrato de resseguro não garante o ris- co de pandemia?
E os corretores de seguros, intermediários comissionados, podem ser responsabilizados pelo fato de que não indicaram para os proponentes-segurados apenas aquelas seguradoras que poderiam ter atendido adequadamente em relação à garantia dos riscos?
Quais os ramos de seguros mais expostos a este tipo de questionamento e de incidência de reclamações provenientes do co- ronavírus, enquanto fato gerador dos sinistros?
Os resseguradores podem ser acionados diretamente pelos segurados, na ausência de atendimento por parte das segurado- ras?
No seguimento deste texto serão apresentadas as possíveis respostas para essas indagações e outras que porventura surgirem.
3. CORONAVÍRUS ENQUANTO FATO GERADOR DE SINISTROS
São vários os aspectos que podem ser analisados e todos eles envolvendo situações que tangenciam os diferentes contratos de seguros. Podem ser verificados os elementos de natureza intrínseca relacionados àquele determinado objeto de cobertura do interesse segurado e sob o olhar da teoria geral dos contratos, envolvendo também o Direito consumerista e a regulação da atividade seguradora. Por outro lado, podem ser verificados em relação a situações extrínsecas ao contrato em si, mas que envolvem os agentes e a respectiva atuação de cada um deles, nota- damente sob o viés da responsabilidade civil que permeia a atividade de intermediação10. O res-
9 Ver Processo: 0030714-92.2020.8.19.0209 – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – 18/09/2020 - Tutela de urgência diante do questionamento acerca da modificação dos termos iniciais da cobertura securitária, bem como do valor inicialmente ajustado entre as partes. Com a suspensão provocada pela pandemia da COVID, a Seguradora vinculou o prosseguimento do contrato de seguro a determi- nadas modificações nos termos iniciais.
10 Nos países desenvolvidos os corretores são fortemente questionados acerca da performance profissional em razão do desempenho da atividade de intermediação: “a reclamação afirma que a empresa havia obtido anteriormente cobertura de doenças transmissíveis como parte de seu seguro de cancelamento de eventos, mas devido à documentação errada enviada por um corretor inexperiente e não supervi- sionado, a cobertura não foi renovada para este ano...”, conf. Business Insurance, matéria postada em 14.10.2020 (xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx). (Último acesso em 22.10.2020)
seguro, por sua vez, constitui negócio contratual apartado do contrato de seguro e deve ser xxx- xxxxxx com base deste fator determinativo.
3.1 Ramos de seguros e a possível cobertura do risco
3.1.1 Seguro saúde
A eventual não cobertura para o atendimento de segurados contaminados pelo coronavírus e suas consequências parece estar fora de questão. No tocante à assistência inicial e pertinente à feitura do exame investigativo, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS se posicionou, desde logo, sendo que, em princípio, seria desnecessária a intervenção do Estado nessa questão, uma vez que cabia à iniciativa privada primar por suas responsabilidades perante os consumi- dores, sem mesmo este tipo de admoestação regulatória. De todo modo é sabido, mundialmente, que o “mercado de Saúde não está submetido ao jogo livre dos mercados, uma vez que existem vá- rias regulações estatais que impedem em grande medida o pleno desenvolvimento das forças do mercado”11. O exame para detecção do coronavírus foi incluído no “Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde”, tornando-se, portanto, cobertura obrigatória para os beneficiários de planos de saúde com segmentação ambulatorial, hospitalar ou referência. A medida teve validade a par- tir de 13.03.2020 – data de publicação da Resolução Normativa nº 453, da ANS, no Diário Oficial da União. Interessa, neste tipo de intervenção estatal, o fato de que não se cogita se o preço do seguro cobrado dos aderentes-segurados poderá suportar ou não mais a parcela de risco com- pulsoriamente incluída e que deve ser considerada pelas operadoras. Na linha oposta, operado- res do Direito têm questionado o fato de determinadas seguradoras virem a público declarar que desconsiderarão a exclusão da cobertura referente ao risco de pandemia nas apólices de Seguro de Vida, por exemplo, e justamente em razão de possíveis implicações regulatórias que poderi- am proibir a medida e com sansões para a infratora. O momento de crise propicia, de fato, con- tradições lógicas e a ponto de não haver razoabilidade em determinadas declarações, mas que deverão passar por crivo mais acurado, e, muito provavelmente, em sede judicial.
3.1.2 Seguro de vida
O ramo Seguro de Vida será, juntamente com o Seguro Saúde, dos mais atingidos pela pan- demia. Há, contudo, a controvertida questão da exclusão explícita dos riscos de endemia e pande- mia, sendo que muitas seguradoras vieram a público anunciar que desconsiderarão a referida limitação contida nos contratos de seguro. Vozes contrárias também se levantaram e com as mais diferentes justificativas: a exclusão deve simplesmente ser observada; a impropriedade administrativa dos dirigentes da seguradora ao acolherem a cobertura; o poder sancionatório do Órgão Regulador; o desequilíbrio das contas da seguradora, na medida em que ela não considerou o risco coberto quando da precificação do seguro; a determinação compulsória e extensiva a todos os demais ramos na hipótese de a seguradora oferecer tratamento permissivo para um determina- do ramo; o reconhecimento da seguradora referente à cobrança de prêmio superestimado, uma vez que não previa a cobertura expressa para o risco; outros.
Todas essas justificativas devem ser analisadas individualmente à luz do Direito, assim co- mo das demais áreas que compõem a atividade seguradora: atuária, contabilidade, matemática, investimentos e, neste caso específico, também os profissionais da saúde. Não há padrão único de aplicação, lembrando, prioritariamente, que o Seguro de Vida é o único contrato de seguro no qual o risco aleatório fica reduzido à data da morte, uma vez que há absoluta certeza sobre a ocorrência. Desse modo, as reservas matemáticas são específicas e levam, necessariamente, em conta também esta particularidade. Assim, pretender fundamentar o pretenso não pagamento da indenização por conta de o sinistro ter se dado em razão da pandemia, não se mostra plausí- vel e sequer razoável. Há também, neste ramo, na formatação de seu preço, fator prevendo a
11 . XXXXXXXXXX, Xxxxxx. XXXXX, Xxxxx. Gestionar inteligentemente a los partipantes del mercado. In: Topics 1/2008. Cambio climático y responsabilidade. Daños de repercusión. Mercado de Salud. München: Munich Re, 2008, p. 28.
possibilidade de ocorrer a antecipação da morte da pessoa segurada e este elemento é essencial nas considerações de natureza muito mais amplas e que devem ser observadas, abandonando- se, na condição de fator preponderante, a letra fria do contrato, a qual exclui o risco de pande- mia. Desde a promulgação do Código de Defesa do Consumidor no Brasil, e sob a natureza de direito fundamental constitucional, o diálogo das fontes se tornou a metodologia hermenêutica vigente e requerida, sem retrocesso, tornando também possível a relativização dos contratos. O repertório jurisprudencial, neste sentido, é extenso.
Análises têm sido divulgadas pelas Agências de rating, assim como a Fitch, mostrando que no curto prazo haverá a deterioração dos mercados acionários e o declínio nas taxas de juros pressionarão os lucros, reservas e capital das seguradoras, notadamente nos segmentos de Saú- de e Vida, cujos ganhos serão achatados pelo efeito direto dos custos elevados com os sinistros relacionados ao tratamento de pacientes infectados e pelas indenizações por morte, respectiva- mente. Essa é a natureza do mercado de seguros: tomar riscos e administrá-los da melhor forma possível, mas ficando sujeito a períodos bons e períodos ruins, conhecidos internacionalmente por “soft market” e “hard market”.
Para fechar este tópico, convém informar o volume de prêmios e sinistros recebidos/pagos no ano de 2019 pelo mercado de seguros brasileiro: “o seguro de vida movimentou R$ 43,1 bi- lhões, um crescimento de 14% em relação a 2018. O volume de indenizações pagas não chegou a R$ 10 bilhões. Neste ano, no entanto, a previsão é de alta significativa. Tanto por mortes, como tam- bém por inadimplência no crédito em bancos, operação que geralmente conta com um seguro pres- tamista12 que é acionado em caso de não pagamento da dívida. Esse seguro tem um peso conside- rável nas seguradoras ligadas a bancos, que são as maiores do ranking do setor.”13 Passados al- guns meses, desde a deflagração da pandemia, a previsão anunciada de alta significativa não foi observada em face dos resultados estatísticos divulgados pela Susep14. No Seguro de Vida em Grupo, no período de janeiro a agosto de 2019, foram arrecadados prêmios de R$ 7,4 bilhões e a sinistralidade se situou na ordem de 48,85%. No mesmo período, considerado o ano de 2020, os prêmios atingiram o patamar de R$ 7,5 bilhões e a sinistralidade foi de 50,92%. O Seguro Pres- tamista apresentou, no mesmo período considerado no Vida em Grupo, prêmio de R$ 8,7 bilhões
– sinistralidade de 17,37 (2019) e R$ 8,8 bilhões – sinistralidade de 21,85% (2020). No caso do Seguro de Vida Individual, a arrecadação no período de janeiro a agosto de 2019 foi de R$ 3,7 bilhões e a sinistralidade ficou em torno de 26,71%. No mesmo período, considerado o ano de 2020, os prêmios atingiram o patamar de R$ 4,8 bilhões, com sinistralidade de 29,21%.
Diante deste quadro numérico-financeiro, a preocupação já demonstrada por alguns opera- dores do Direito quanto ao dever de as Seguradoras “salvaguardarem a solvência do sistema, cuja mais grave ameaça é a quebra da base técnica-atuarial”, não parece corresponder à realidade e o argumento, que seria um pretenso filtro de impedimento, foi completamente rompido. A base atuarial já levou em conta a morte de cada um dos segurados, inclusive. Considerando-se, tam- bém, que o Seguro Vida não é disseminado de forma abrangente na sociedade brasileira até o momento, ainda que a pandemia tenha se apresentado de forma catastrófica no país, mesmo assim não se vislumbra a pressão e o comprometimento anunciado em relação aos resultados das seguradoras que operam no país. Longe disso, parte significativa delas anunciou a renúncia ao risco excluído relativo a pandemias, sendo que o procedimento não só mantém o nome e a reputação das respectivas empresas, como também permite que elas cumpram o papel social que o seguro tem, notadamente em momento de crise como este, no qual todos os partícipes da sociedade são chamados a contribuir com o seu quinhão. O positivismo kelseniano do Direito, o
12 . Neste seguro, necessário ressaltar, que o interesse segurado é da instituição bancária, sendo que é a favor dela que o seguro é emitido e o prêmio pago pelo financiado.
13 . xxxxx://xxx-xxxxxxxxxxx-xxx-xx.xxx.xxxxxxxxxx.xxx/x/x/xxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx/0000/00/xxxxxxxxxx-xx-xxxx-xxxxxx- primeiros-pedidos-de-indenizacao-por-covid-19/amp/ (Último acesso em 31.03.2020).
14 xxx.xxxxx.xxx.xx (Último acesso em 21.10.2010).
qual prescinde do valor social das normas, jamais poderia contrariar esta posição empresarial tomada e os dispositivos normativos de natureza meramente administrativa, emanados do Ór- gão Regulador, jamais teriam, cumprida a hierarquia legal, o condão de justificar qualquer pena- lização às seguradoras. “Listas de Verificação”15 da Susep, inclusive, foram derrogadas pela Lei n.º 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), redentora de parcela significativa do atraso tec- nológico e normativo no qual o mercado de seguros nacional se situa. Nessa mesma linha pro- gressista, a Superintendência de Seguros Privados, Susep, está promovendo a abertura do mer- cado nacional e visando atribuir a liberdade na estipulação das bases contratuais de seguros, até então reduzida a modelos padronizados engessados, os quais repercutiram em prejuízo aos con- sumidores nacionais, ao longo das últimas décadas. O mutualismo, por sua vez, princípio ineren- te à atividade seguradora, não pode servir de sucedâneo e tampouco pode ser utilizado de ma- neira reversa para a negativa, pura e simples, de pedidos de indenizações apresentados às segu- radoras. A hermenêutica conclama e determina o olhar sistêmico do Direito, mesclado com as normas concernentes aos seguros, sob pena de ser prestigiada a injustiça, uma vez abandonado este critério. O princípio geral de Direito indicado no artigo 5º da LINDB16, consolida este tópico: “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem co- mum”.
3.1.3 Seguro fiança locatícia
Este seguro, massificado na sua comercialização, tem se mostrado um dos protagonistas no ranking de reclamações de sinistros por conta da pandemia. Esta constatação pode ser visuali- zada numericamente: no período de janeiro a agosto de 2019 a arrecadação do prêmio foi de R$ 335 milhões, com sinistralidade em torno de 27,38%; no mesmo período, considerado o ano de 2020, os prêmios atingiram o patamar de R$ 541 milhões, com sinistralidade de 60,58%. Apesar de determinações legais emergentes disporem sobre pagamentos de aluguéis e de certa forma beneficiando também as seguradoras, a sinistralidade aumentou significativamente no período analisado. Neste tipo de seguro, é necessário registrar que as condições contratuais brasileiras não são essencialmente objetivas e, por este motivo, podem gerar conflitos e possíveis questio- namentos em sede judicial. Exemplo de risco excluído encontrado no mercado, nas Condições Gerais do referido seguro:
i) incapacidade de pagamento consequente de fatos da natureza ou atos do poder público. Ou,
m) atos de autoridade pública, atos de hostilidade ou guerra, operações bélicas, revolução, rebelião, insurreição, confisco, tumultos, motins, greves e outros atos relacionados ou decorrentes destes eventos;
A interpretação a ser dada à exclusão pode se apresentar de maneira diversa. No caso de lojas em shoppings centers, por exemplo, há instrumentos legais de diversas esferas da administração pública e que efetivamente suspenderam as atividades comerciais. Mas mesmo assim, de que adi- antaria o seguro se ele não oferecer proteção adequada ao locador no momento de crise? Para os imóveis residenciais, por sua vez, a subsunção à norma não é facilmente estabelecida, sendo que os inquilinos podem perder a capacidade financeira para cumprir os contratos de locação em decor- rência das medidas adotadas pelo Poder Público.
Em outra apólice deste mesmo segmento, ela apresenta determinadas disposições contra- tuais que podem dificultar ainda mais o deslinde das questões que poderão surgir neste cenário. A seguir, a reprodução de uma das cláusulas que faz parte da apólice, sendo que há a obrigação de o Locador ingressar com a ação judicial contra o Locatário, sem que a seguradora indenize ou
15 . Receituário emanado pela Superintendência de Seguros Privados ao mercado de seguros, determinando a “padronização” das bases contratuais de seguros no país. “A iniciativa no setor de seguros é privada e está contemplada na Constituição Federal a sua livre atuação”, conf. XXXXXX, Xxxxxx X. Contrato de Seguro e a Atividade Seguradora no Brasil: direitos do consumidor. São Paulo: Roncarati, 2015, p. 33. A Lei 13.874/19, apenas renovou a referida determinação constitucional.
16 . Lei n.º 4.657/1942 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.
reembolse as respectivas despesas decorrentes, sob pena de perder o direito à indenização:
9. DA EXPECTATIVA DE SINISTRO
Considera-se como expectativa de sinistro o período que compreende o 1º (primeiro) aluguel ou encargos não pagos até a decretação de despejo através de sentença judicial. O Segurado deverá comunicar a inadimplência à Seguradora, imediata- mente após o vencimento do 2° (segundo) aluguel e/ou encargos previstos na apólice, nos casos em que o Garantido deixe de pagá-los no prazo fixado no contrato de locação.
9.1. O Segurado obriga-se, sob pena de perder o direito a qualquer indenização, a providenciar e executar no tempo devido, todas as medidas necessárias a fim de minimizar os prejuízos, dando imediata ciência à Seguradora.
9.2. O Segurado deverá manter a Seguradora ciente da propositura e do andamento das ações judiciais e seguir suas even- tuais instruções, sob pena de perda do direito ao recebimento de qualquer indenização.
9.3. Embora as negociações e demais atos relativos às ações judiciais ou procedimentos extrajudiciais com o Garantido se- jam feitos pelo Segurado, a Seguradora poderá assistir tais negociações, quando julgar conveniente. O Segurado fica obriga- do a fazer e permitir que se faça todo e qualquer ato que se torne necessário, ou possa ser exigido pela Seguradora, com o fim de efetuar-se a cobrança do débito. A intervenção desta e os atos relativos às negociações, não podem, em caso algum, acarretar-lhe maior responsabilidade do que as constantes dos limites previstos nas condições da apólice.
O Judiciário poderá interpretar que as determinações contidas na cláusula supra não se aplicarão em face das circunstâncias que envolvem o momento peculiar da pandemia, sendo que o seguro foi contratado justamente para a garantia do inadimplemento contratual, sendo este o seu objeto principal, a essência do risco coberto. A “cláusula 9”, particularmente a “perda de di- reito” especificada mais de uma vez no corpo do referido dispositivo contratual, e sequer sob a condição de “risco excluído”, na verdade desconstrói em grande parte a garantia essencial17 men- cionada no parágrafo anterior. Do mesmo modo, o clausulado não identifica se a Seguradora colocará à disposição do segurado os serviços advocatícios necessários, assim como as custas judiciais, para a persecução da ação de despejo, por conta dela, sendo que em princípio seria o procedimento mais adequado para a proteção efetiva daquele que tem o interesse no seguro. Simplesmente exigir do locador que interponha a ação de despejo logo no segundo mês da ina- dimplência, sem assumir as despesas correspondentes e, ainda, sob condição prévia taxativa para o reconhecimento posterior da cobertura do sinistro, pode ser visto como uma exigência excessivamente onerosa para com o segurado, descaracterizando a garantia essencial do contra- to de seguro de fiança locatícia. Este entendimento sequer estaria condicionado ao fato da pan- demia, ora em estudo neste texto, mas de ordem geral, desde sempre e para qualquer situação que se apresentasse diante de um clausulado com este tipo de determinação. Em função do fato representado pelo coronavírus, inclusive, o ordenamento jurídico nacional permite que seja feita a renegociação da dívida de aluguel, conforme a inteligência contida nos artigos 18 e 59 da Lei n.º 8.245/1991. Em face da importância deste assunto, repise-se, a necessidade de as apólices de fiança locatícia serem estruturadas de forma tal que possam apresentar, no âmbito das cobertu- ras, também a assistência jurídica devida aos locadores em face do envolvimento judicial neces- sário para as ações de despejo, inerentes a este tipo de seguro. Simplesmente exigir a medida por conta e risco dos segurados não constitui, em princípio, um procedimento de boa formação técnica. Conforme Calmeiro, “o contrato de seguro tem de ser útil”18 para quem o contrata. A one- rosidade, sendo excessiva para com o segurado, pode e deve ser contestada, inclusive sob a re- gência do CDC, art. 51, inciso IV.
Impende, diante da discussão desse tema e em face da narrativa, apresentar a lição da pro- fessora Xxxxxxx-Xxxxx, quando ela lembra a todos que ”para a seguradora, que é a <<profissional do risco>>, há dever de informação acerca do objeto do contrato, das limitações e dos riscos não
17 . Através do REsp n.º 1.635.238-SP, o STJ considerou abusivas e por conseguinte nulas, as exclusões contidas nas Condições Gerais do Seguro de Acidentes Pessoais Coletivo e referentes a “gravidez, parto ou aborto e suas consequências; perturbações e intoxicações alimentares de qualquer espécie; todas as intercorrências ou complicações consequentes da realização de exa- mes, tratamentos clínicos e cirúrgicos”. As cláusulas de contrato-padrão da Seguradora violam o Código de Defesa do Consu- midor, ao impor desvantagem exagerada aos aderentes-consumidores, por confiscar-lhes justamente o conteúdo para o qual se dispuseram ao pagamento do prêmio. Este argumento foi a base do julgamento proferido pela Corte Superior de Justiça.
18 . XXXXXXXX, Xxx Xxxxx. Das Cláusulas Abusivas no Contrato de Seguro. Coimbra: Almedina 2014, p. 49.
abrangido na cobertura, das circunstâncias ocasionadoras do pagamento da indenização etc.”19. Questiona-se, então, se o seguro de fiança locatícia, com este tipo de cláusula limitativa, e uma vez dada a oportunidade de fato ao locador de conhecer os exatos termos da cobertura e as exi- gências requeridas, se ele manteria o interesse na contratação. Considerando-se, todavia, que na maioria das vezes o seguro é agenciado por imobiliárias e não por corretores de seguros profis- sionais, dificilmente as referidas circunstâncias são esmiuçadas.
Oportuno informar que tem crescido em importância e demanda o Título de Capitalização – Notificação de Caução em transações imobiliárias, na condição de substitutivo do Seguro Fiança Locatícia. Apesar de a capitalização, pura e simples, poder representar prejuízo ao consumidor se comparada a qualquer outro tipo de investimento financeiro, cuja situação nem sempre é per- feitamente esclarecida ao consumidor de baixa renda no momento da angariação deste negócio, na área locatícia ela tem suprido as deficiências encontradas no seguro fiança: menor preço e ausência do pré-requisito da demanda judicial.
3.1.4 Seguro de lucros cessantes
A questão que envolve este ramo de seguro, apesar de possuir forte conotação social neste momento de crise em relação à pandemia do coronavírus, não tem possibilidade de prosperar de maneira positiva para os segurados, em qualquer contrato de seguro. Os clau- sulados do Seguro de Lucros Cessantes comercializados pelo mercado de seguros brasileiro, praticamente sem exceção, acobertam a referida garantia apenas quando consequente de danos materiais ou danos físicos sofridos pelos segurados, ou seja, quando os prédios e(ou) instalações também seguradas através de apólice de riscos de propriedades tiverem sofrido um sinistro decorrente de um risco coberto: incêndio, explosão, desmoronamento, colapso, alagamento, etc. Assim formulada, a apólice de Xxxxxx Xxxxxxxxx tem como pressuposto o dano material em primeiro plano, o qual não só danifica as propriedades, como também de- termina a paralização das operações empresariais. Com base nesses pressupostos técnicos do seguro, a inoperância proveniente da paralisia das atividades empresariais por conta do isolamento social, não constitui elemento para justificar o mecanismo indenizatório da apóli- ce de Xxxxxx Xxxxxxxxx. Esta condição, inclusive, se apresenta de forma muito clara nos dis- positivos contratuais, não podendo ser contestada sob este aspecto, uma vez que não apre- senta lacunas, contradições ou dubiedades. De qualquer forma, somente a partir da análise cuidadosa de cada clausulado constante da apólice é que esta certeza pode ser confirmada.
A partir da deflagração do isolamento social o tema passou a sofrer toda a sorte de in- vestigação também no mercado de seguros brasileiro, com posicionamentos diversificados. Questões intrincadas, antes deixadas de lado, agora se apresentam de forma primordial, as- sim como a definição exata da cobertura adicional de “impedimento de acesso”, usual nas apólices de seguros de propriedades. Em princípio, a referida cobertura prescinde do dano material sofrido diretamente pelo bem segurado, mas há que ser investigada, exaustivamen- te, a redação da cláusula. No Reino Unido, este tema relativo às “non-damage covers” tem movimentado as Cortes de Justiça e a discussão ainda não terminou20.
Em alguns países, há a possibilidade de o Seguro de Xxxxxx Xxxxxxxxx garantir também as perdas provenientes de outras situações que não apenas os danos materiais sofridos pelas pro- priedades seguradas (non-damage covers), mas este fato não auxilia na construção de qualquer tipo de justificativa que possa obstruir o critério atualmente vigente no mercado de seguros na- cional. Também naqueles outros mercados, mesmo os mais desenvolvidos, é comum a limitação da cobertura de Lucros Cessantes decorrente de danos físicos (property damage), sendo que a diferença em relação ao Brasil repousa no fato de que a ampliação para outros tipos de eventos é
19 . XXXXXXX-XXXXX, Xxxxxx. A Boa-Fé no Direito Privado. Critérios para a sua aplicação. São Paulo: Xxxxxxx Xxxx, 2015, p. 346
20 Leia mais: Pagar ou não o seguro de lucros cessantes em decorrência da pandemia? por Xxxxxx Xxxxx, Xxxxx Xxxxxx, 19.10.2020. xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxx.xxx.xx (Último acesso em 23.10.2020).
mais facilitada, uma vez submetido o pedido aos subscritores das seguradoras. Tema, inclusive, que necessariamente deverá ser objeto de tratativas entre os diversos agentes do mercado de seguros brasileiro, no período pós-coronavírus, e com vistas no aprimoramento das bases das coberturas atualmente praticadas e que demonstraram, incontestavelmente, obsolescência e nenhuma serventia em face da necessidade de maior amparo da garantia do seguro. A nomencla- tura empregada nos contratos de seguros tem relevância absoluta quanto a sua abrangência e(ou) significado, inclusive sobre o aspecto da conformidade técnica e jurídica, sendo que essa consideração nem sempre foi objeto de preocupação no mercado de seguros nacional. A pande- mia e seus diferentes desdobramentos tende a modificar este cenário, fortalecendo a exigência da observação máxima dos princípios técnicos quando da redação das bases contratuais de se- guros.
Segundo a Agência Moody’s, na “Alemanha, o seguro que protege as empresas também limita as compensações a riscos como incêndio, roubo, danos causados por elementos da natureza, mas não obriga a indenizar perdas ligadas a pandemias. Poucas empresas terão contratado a cobertura para risco de doenças transmissíveis, explica a Moody’s citando a autoridade local de supervisão Gexxxxxxxxxxx xxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx (XXX)”00. A matéria se referiu ao seguro de lucros cessantes, objeto deste tópico. Diante desta constatação, até mesmo os países nos quais os mercados de seguros são mais desenvolvidos do que o brasileiro, foram todos surpreendidos pela pandemia do coronavírus. A Moody’s informou que também o Reino Unido, a França e a Suíça apresentam o mesmo cenário alemão e lembrou que diante do volume de reclamações de sinistros que se concretizará, a recusa do pagamento das indenizações correspondentes poderá malucar a reputação das grandes empresas de seguros e de resseguro europeias.22.
Verificando ainda mais as especulações que vêm ocorrendo nos países desenvolvidos e em razão da pandemia do coronavírus, constata-se que todos os tipos de seguros estão passando por filtros mais estreitos quanto ao real alcance das coberturas oferecidas pelas apólices vigen- tes. Discute-se, juridicamente, em outro nível de especulação, se a simples presença do coronaví- rus caracteriza ou não um dano material efetivo no âmbito das apólices que garantem riscos de propriedades. Perguntas abertas poderão despertar a necessidade de haver alterações na defini- ção de “dano físico”23, dependendo das decisões das cortes de justiça, quando o questionamento chegar até elas. Embora a maioria das apólices dos riscos de propriedades sejam omissas a res- peito deste tipo de situação, algumas delas podem garantir, ainda que excepcionalmente, danos provocados por fungos, mofo e outras bactérias e, através deste tipo de abertura, pode-se chegar à conclusão que pelo fato de o coronavírus estar presente na propriedade segurada, o dano ma- terial estará estabelecido e com todos os reflexos dessa interpretação: cobertura para as despe- sas de descontaminação, por exemplo, assim como para as perdas financeiras e(ou) lucros cessan- tes decorrentes da paralisação das operações empresariais. A cobertura para as despesas com a descontaminação de fungos, bactérias e vírus pode ser encontrada, por exemplo, nos Programas de Seguros Ambientais nos EUA, país no qual o segmento é o mais desenvolvido mundialmente, e em alguns países da UE, com destaque para o centro internacional de seguros e resseguro que é a cidade de Londres24, especialmente para estabelecimentos hospitalares. Diante da crise sem
21 . xxxxx://xxx.xxxx.xx/0000/00/00/xxxxx-00-x-xxxxxxxxxxx-xx-xxxxxxx-xxxxxx-xxxxxxxxxxx-x-xxxxx-xxxxxxxxxxxx-xxx-xxxxxx/ (Último acesso em 31.03.2020).
22 . Idem.
23 . xxxxx://xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx/00000000/XXXX00/000000000/Xxxxxxxxxxx-xxxxxxxx-xxxx-xx-xxxxxxxx- damage-definition-Experts (Último acesso em 29.03.2020).
24 . Descontaminação de Estabelecimentos de Saúde – Seguro → PPL (Premises Pollution Liability com cobertura para Despesas de Contenção de Sinistros e de Condição de Poluição Ambiental no Interior do Estabelecimento Segurado, incluindo as despe- sas para transportar e alojar ocupantes dos hospitais para outras dependências seguras, até a completa descontaminação do local atingido [fungos, vírus, bactérias, descarga, dispersão, liberação, escape, migração ou infiltração de legionella numa edifi- cação ou estruturas]. (Healthcare Amendatory Endorsement – Decontamination Conditions) – Ocupações compreendidas: hospitais, clínicas, clínicas de repouso para idosos, manicômios, casas de tratamento de saúde em geral. Conforme, XXXXXX, Xxxxxx. Programa de Seguros de Riscos Ambientais no Brasil. Estágio de desenvolvimento atual. 4ª ed. Rio de Janeiro: ENS-CPES, 2019, p. 144.
precedentes, não há dúvida de que muitas questões atualmente abertas em relação aos termos e condições dos clausulados das apólices vigentes estão sendo colocadas em cheque e até mesmo em sede judicial, motivado pelo comportamento das seguradoras nos departamentos de análises de sinistros e também em razão do valor das perdas, que pode não suportar respostas simplifi- cadas e sem argumentos bem fundamentados. Os diferentes informativos eletrônicos encontra- dos nos mercados internacionais de seguros têm noticiado o movimento dos tribunais acerca das ações já interpostas contra as Seguradoras: “juiz do tribunal da Carolina do Norte decidiu a favor de um grupo de restaurantes em litígio de interrupção de negócios relacionado à pandemia, sustentando que a ordem do estado para fechar os restaurantes era uma perda física coberta por suas apólices” – Business Insurance – 22.10.2020 (xxx.xxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx); “tribunais fe- derais em Atlanta e Los Angeles rejeitaram as ações judiciais relacionadas ao COVID-19 movidas por restaurantes contra as unidades Nationwide Mutual Insurance Co. e Travelers Co., respectiva- mente, mas um tribunal estadual decidiu a favor de um restaurante em Ohio contra a Cincinnati Insurance Co.” - Business Insurance – 07.10.2020 (idem); “painel judicial dos EUA consolida al- guns casos de interrupção de negócios COVID-19” – Business Insurance – 05.10.2020 (idem); “tri- bunal federal decide contra advogado em caso de interrupção de COVID-19” - Business Insurance – 02.10.2020 (idem); “uma pandemia é muito grande para a indústria segurar” – The Telegraph – 25.10.2020 (xxx.xxxxxxxxx.xx.xx), sendo que “o chefe do Lloyd’s de Londres, Xxxxx Xxxxxxxx- Xxxxx, conclama o governo a intervir, assim como o fez após os ataques terroristas dos anos 90.” (último acesso 26.10.2020). Também no Brasil, os textos começam a se multiplicar: “como con- sequência da Covid-19, há cobertura securitária para lucros cessantes?”, por Xxxx Xxxxxxxx, Con- sultor Jurídico, 17.08.2020 – xxx.xxxxxx.xxx.xx (Último acesso 23.10.2020); “empresas querem indenização por paralisações na pandemia”, por Xxxxxx Xxxxxx e Xxxxxx Tauhata, Valor Econômico, 21.07.2020 – xxxxx.xxxxx.xxx (último acesso 23.10.2020). Dos casos que eventualmente já foram judicializados no país, ainda não se tem notícia sobre qualquer decisão firmada.
Uma vez verificada a possível judicialização do tema no Brasil, o resultado dependerá e muito da redação a ser observada em cada contrato de seguro. A doutrina especializada tende a acolher a tese de que a expressão “dano material” absorve não só a ideia de dano físico propri- amente dito, como também a impossibilidade de utilização (fruição, disposição) do bem tangí- vel e, neste particular, a cobertura de impedimento de acesso, usualmente encontrada nas apólices de seguros patrimoniais, pode propiciar o entendimento abrangente da cobertura. O disposto no artigo 402 do CC, fundamenta em grande parte este entendimento. Para De Xxxxxxx, o “dano material se diz da perda ou prejuízo que fere diretamente um bem patrimonial, diminuindo o valor dele, restringindo a sua utilidade, ou mesmo a anulando”.25 O dicionário da Escola Nacional de Se- guros prevê o seguinte: “toda alteração de um bem corpóreo que reduza ou anule seu valor econômico”. 26 Aprofundando a análise do termo, a doutrina especializada de Xxx Xxxxx: “dano material – é o prejuízo causado em coisas, isto é, em direitos ou interesses relativos a coi- sas”27, sendo que sob esta perspectiva o significado e a abrangência ampliam consideravel- mente. O seguro, conforme o disposto no art. 757, CC, tem como objeto garantir o interesse do segurado e não a coisa propriamente dita. Com base nessa premissa, o conceito determinado pela ilustre jurista portuguesa, traz lume à questão do significado da expressão danos materiais, mesmo porque ela complementa afirmando que o dano patrimonial “traduz a lesão de inte-
Legionella pneumophila, bactéria que pode causar o mal dos legionários, sendo que a pessoa adquire a doença uma vez exposta a ambiente infectado. Segundo a professora Xxxxxx, “a proliferação desta bactéria ocorre em geral, em fábricas, hotéis, hospi- tais, museus, torres de resfriamento de sistema de climatização de ambientes, tanques de abastecimento de residências, hi- dromassagem, umidificadores, fontes decorativas e sistema de combate a incêndio”, in: DILGUERIAN, Xxxxxx Xxxxxxxxx. O Mal dos Legionários: diálogo entre o Direito Ambiental e o Direito Sanitário. São Paulo: Xxxxxx xx Xxxxxxxx, 2010, p. 68.
25 XXXXX, Xx Xxxxxxx e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Xxxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 410.
26 Dicionário de Seguros. Vocabulário conceituado de seguros. 3ª ed. Rio de Janeiro: Funenseg, 2011, p. 80.
27 PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. 5ª ed. v. I – Direito Civil. Coimbra: Almedina, 2013, p. 437.
resses de ordem patrimonial”.28 Não faltarão recursos doutrinários para a justificação de eventuais pedidos extensivos de indenizações, quer no âmbito administrativo, quer em sede judici- al também no Brasil, cujo debate segue acalorado em outros países.
Nas apólices de riscos patrimoniais brasileiras, é comum encontrar expressões na cláusula de riscos cobertos e referentes à ocorrência de “danos físicos” ou “danos materiais” aos “bens e locais segurados”, como consequências de eventos predeterminados ou nem sempre nomeados um a um, na hipótese de a apólice ter sido contratada sob o conceito “todos os riscos – all risks”. As apólices usualmente definem alguns termos, assim como “dano físico”, “dano material” e ou “locais segurados”, embora nem sempre isso ocorra e, mesmo existindo, as definições podem não ser perfeitamente conexas com a legislação e a doutrina regentes. A definição do termo “aci- dente”, por exemplo e sob a condição de “avaria, perda ou dano material de origem súbita, impre- vista e acidental sofrida pelo bem segurado”, usualmente encontrada em determinadas Condições Especiais das apólices de seguros patrimoniais no país, tem gerado confusão interpretativa, mesmo porque tende a restringir muito mais do que ela realmente significa. A confusão, inclusi- ve, se maximiza quando muitas vezes há outra definição contida no glossário das Condições Ge- rais da mesma apólice, segundo a qual “acidente” é o “acontecimento que deriva de causa súbita, imprevista e ocasional, que provoca danos materiais aos bens e direitos segurados, passíveis de reparação e construção ou reposição”. Neste particular, o disposto no art. 423 do CC, pode resol- ver a questão em face do segurado.
Já se sabe, também, que Seguradoras no Brasil estão sendo instadas a oferecer a garantia de per- das decorrentes dos lucros cessantes, independentemente do dano material, cujo pressuposto deverá sofrer alterações pontuais. Não há como imaginar que os procedimentos e(ou) as práticas atualmente utilizadas nos seguros de propriedades possam continuar intactas na pós-pandemia em face do malo- gro experimentado com o advento dos sinistros não indenizados em consequência da Covid-19. Não há como deixar, também, a magnitude deste tema permanecer apenas sob os limites da redação das atuais apólices vigentes e dos possíveis reflexos da boa ou da má defesa dos segurados pelos seus res- pectivos corretores de seguros e(ou) advogados. Tampouco sob o alvitre das cortes de justiça. As in- consistências redacionais das apólices de seguros são notórias no país. O assunto, por sua vez, é muito mais amplo do que isso e não pode permanecer circunscrito a meras discussões domésticas, até porque o mercado de seguros, assim como o de resseguro são globalizados. Quando do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, os mercados internacionais estabeleceram diferentes mecanismos de garantia contra possíveis e futuros eventos semelhantes, inclusive de natureza mista, ou seja, com a assunção de riscos pela iniciativa privada seguradora-resseguradora e também com a participação dos governos. Especiais fundos foram criados e se mantêm operantes. O mercado de seguros brasileiro, por seu tur- no, simplesmente excluiu o risco de terrorismo de todos os tipos de apólices, com o beneplácito do governo, representado pela Susep, não mais discutindo o assunto até os dias atuais. Este comporta- mento não poderá ser repetido na pós-pandemia, sendo que a discussão sobre os mecanismos proteti- vos deverá ser a pauta das diferentes entidades do setor, de forma ampla e objetiva. Não se trata, inclu- sive, de assunto apenas voltado aos grandes riscos e sob a tutela exclusiva dos resseguradores, mas de todos os tipos de seguros, invariavelmente. A mencionada pauta, portanto, é de importância inquestio- nável.
O mercado de seguros deve responder positivamente a esta demanda, até porque não está des- cartada a possibilidade de ocorrer outras situações pandêmicas.
3.1.5 Seguro de responsabilidade civil estabelecimentos médicos e odontológicos
Neste segmento, conhecido internacionalmente por Medical Malpractice Insurance, a garan- tia da apólice repousa na responsabilidade civil proveniente de erros ou omissões dos estabele- cimentos e dos profissionais da saúde que neles atuam. Este seguro tem sido contratado em lar- ga escala no Brasil nos últimos anos e a sinistralidade também tem se elevado, na medida em que a população reclama, cada vez mais assiduamente, e em razão não só do nível de consciência
28 Op. cit., p. 438.
sobre os direitos que tem crescido, como também em função do elevado número de casos de sinistros consumados.
Com a crise estabelecida diante do número de pacientes acometidos pela contaminação do coronavírus, apesar do programa de isolamento social, a atuação dos profissionais da saúde se maximiza em relação às exigências e, em tais circunstâncias, as falhas podem acontecer com maior exposição. O seguro garante, ainda, as falhas e os danos causados aos pacientes em razão dos equipamentos utilizados nos estabelecimentos de saúde, os quais podem apresentar defeito, ou situações decorrentes do mal-uso, por exemplo. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (13.709/2018), também pode ensejar algum tipo de dano aos pacientes, expondo ainda mais os estabelecimentos e os profissionais da saúde, com repercussões no Seguro RC Profissio- nal, apesar de que os “danos morais”, na grande maioria das apólices brasileiras, somente se encontram garantidos se decorrentes de danos pessoais cobertos pelo seguro, salvo se a apólice dispuser, taxativamente, da cobertura para os chamados “danos morais puros”.
Questões relacionadas com a recusa de atendimento de pacientes, usualmente estão excluí- das do escopo de uma apólice RC Profissional. A “mistanásia”, cujo termo denota a morte mise- rável, antes da hora, conhecida também como “eutanásia social”, não entra em discussão neste tipo de seguro, na medida em que a cobertura da apólice repousa nas consequências em si de um ato médico praticado, o que não é o caso na mistanásia.
Neste seguro de RC Profissional, a “contaminação hospitalar” constitui um risco usualmente garantido pelas apólices.
3.1.6 Seguro de responsabilidade civil dos profissionais da área de saúde e RC profissional de síndicos de condomínios comerciais e residenciais
Na mesma linha do Medical Malpractice, o Seguro de RC para o profissional autônomo ga- rante as consequências das falhas profissionais do referido segurado, representadas por erros ou omissões no desempenho das suas atividades. Em alguns países têm surgido discussões sobre a possibilidade de agravamento do risco profissional para os médicos, na medida em que cirur- gias eletivas foram adiadas, assim como o atraso de diagnósticos em razão da não realização de exames laboratoriais, entre outros fatores correlatos.
No Seguro de RC Síndicos, dentre os diversos tipos de seguros que garantem atividades pro- fissionais, os síndicos podem se ver arrolados com questões do coronavírus, por exemplo pela ausência de vigilância adequada quanto ao cumprimento de normas determinadas pelos condo- mínios. São questões ainda desconhecidas, mas que podem surgir diante do quadro de crise e pelas circunstâncias um tanto quanto inusitadas.
Outras categorias profissionais podem apresentar também algum tipo de exposição em re- lação à pandemia em análise, mas muito remota a possibilidade, além dos tipos já retratados nominalmente neste texto. Situações antes não imaginadas, sendo que algumas delas podem ainda ser suscitadas futuramente, movimentarão os departamentos de sinistros das seguradoras e também os corretores de seguros, uma vez que esses profissionais serão chamados a respon- der por série de questões relacionados ao tema e sob a perspectiva de possível enquadramento na cobertura do seguro já contrato e vigente ou a ser contratado, dependendo do tipo de respos- ta que será apresentada ao interessado consulente. Nem sempre os produtos de seguros padro- nizados darão respaldo para as possíveis particularidades de cada interessado, mas nem por isso deixará de existir solução para o caso, requerendo a análise também especial por parte do corre- tor e da seguradora.
3.1.7 Seguro de responsabilidade civil de diretores e administradores – D&O
O D&O, em franco desenvolvimento no Brasil, não só em número de apólices emitidas e pa- ra os mais diferentes segmentos (empresas em geral – privadas e públicas; operadoras de fun- dos de investimentos; instituições financeiras; seguradoras; outras), mas também em razão do volume de sinistros reclamados, tem movimentado o mercado de seguros. No tocante ao risco
representado pela pandemia do coronavírus, neste momento é ainda difícil estabelecer quadro completo das possíveis exposições dos administradores. De todo modo, em face também do iso- lamento social que a pandemia determinou, lembrando que a maioria dos empregados está atu- ando em home office, situações não antes ocorridas ou se foram, se apresentaram em grau de menor intensidade, agora estão maximizadas. Na projeção deste provável quadro, as possíveis violações de segredos e de direitos autorais; equipamentos (computadores e telefones) foram instalados às pressas, para viabilizarem acessos e a continuidade dos serviços; medidas e con- troles de segurança podem não ser possíveis com a mesma performance remotamente e diante de tamanha diversidade de locais de acesso aos sistemas; registros de utilização de cópias prote- gidas por copyright, etc. Todas as organizações de porte, particularmente aquelas que atuam em mercados regulados, passam por auditorias periódicas. Esses elementos poderão se tornar pon- tos de observação nas auditorias e relatados aos órgãos respectivos, com desdobramentos para os respectivos administradores e gestores.
No que concerne à responsabilidade civil dos administradores de Seguradoras, também su- jeitos à garantia do Seguro D&O, algumas considerações podem ser projetadas, desde logo. Uma vez que não será ultrapassada de maneira simples e em curto espaço de tempo a questão relati- va à discricionariedade que cada seguradora dispõe de fato para decidir sobre coberturas que se encontram taxativamente excluídas dos contratos de seguros, de Vida por exemplo, o D&O pode- rá ser acionado, invariavelmente. Acionistas minoritários, por exemplo, poderão questionar a deliberação dos administradores da Seguradora quanto à decisão de indenizar todos os sinistros reclamados, diminuindo a margem de lucro da empresa. Também o Órgão Regulador, de ofício, ao cumprir o seu papel fiscalizatório poderá fazer valer a sua competência e atribuição, por exemplo aplicando as sanções previstas29 na Resolução CNSP n.º 243, de 2011 (dispõe sobre sanções administrativas no âmbito da atividade de seguro, cosseguro, resseguro, retrocessão, capitalização, previdência complementar aberta, de corretagem e auditoria independente no âmbito da Superintendência de Seguros Privados) e também nas disposições normativas advin- das da Lei n.º 9.613/1998 (dispõe sobre os crimes de “lavagem” de dinheiro). A situação não poderá ser resolvida com base em sentimentos altruísticos ou mesmo sob o olhar de oportuni- dade em face da possível vantagem comercial que o procedimento representou, mas sim e, ne- cessariamente, pautado no Direito subjacente. O pretenso Direito dos acionistas, por sua vez, embora possa passar pelas normas legais positivadas, cujo resultado seria, em princípio, muito mais cômodo e fácil de ser matematizado, encontrará toda a sorte de resistência na defesa. A mencionada Resolução do CNSP, retro, por exemplo, determina no art. 2º, inciso VI, § 3º que “não há infração quando o descumprimento de norma ocorrer por motivo de caso fortuito ou força mai- or devidamente comprovado”. Do mesmo modo, a Resolução prevê o arrefecimento da sanção quando não houver dolo (art. 2º, VI, § 4º). O seguro tem regras técnicas próprias e elas também devem servir de base, necessariamente, para a composição dos eventuais conflitos.
3.1.8 Seguro de responsabilidade civil de corretores de seguros e de brokers de resseguro
Embora aparentemente remota a possibilidade de os corretores de seguros e os brokers de resseguro serem acionados em face de suas respectivas atuações, neste texto todas as situações plausíveis foram elencadas e de modo a fecharem o círculo de riscos que a pandemia propicia no segmento de seguros. A eventual reclamação do segurado contra o corretor de seguros e sob a alegação de que ele não buscou o melhor alcance possível de cobertura para os riscos afetos, embora seja possível, não tem ainda no Brasil qualquer representatividade. De igual alcance, a pretensão da seguradora que contratou o broker de resseguro para a colocação dos seus contra- tos junto aos resseguradores e se sente lesada agora pela ausência de coberturas mais consisten- tes, inclusive da garantia para o acúmulo de sinistros provenientes de uma mesma causa (catás- trofe). São situações que podem passar despercebidas neste momento no mercado de seguros
29 . Exemplo: Art. 63. Gerir a empresa de forma temerária, colocando em risco o seu equilíbrio financeiro ou a solvência dos com- promissos assumidos. Sanção: multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).
brasileiro ou sem a postulação de possíveis direitos com base nelas, mas certamente deixarão de ser inconsistentes no futuro próximo, uma vez experimentado o prejuízo agora. No âmbito do resseguro e para a arquitetura das coberturas dos programas, tudo leva a crer que tanto os bro- kers, assim como as seguradoras passarão a ter maior cuidado e senso de observação sobre aquelas carteiras de seguros sujeitas a eventos catastróficos e propensos, a partir desses fenô- menos, à acumulação de sinistros. Os corretores de seguros, por seu turno, deverão redobrar a atenção sobre as bases de coberturas dos diversos tipos de seguros, conforme as ofertas diversi- ficadas feitas pelo mercado segurador. Os momentos cruciais como este da pandemia do corona- vírus, determinam não só um olhar diferenciado e crítico sobre o status quo, como também sobre o porvir, necessariamente sem as mesmas falhas que forem detectadas agora. As exigências, em todos os níveis, galgarão outro patamar e, a partir dele, o mesmo grau para as respectivas res- ponsabilidades dos atuantes no mercado de seguros.
3.1.9 Seguro de crédito interno e externo. Seguro garantia
Pautado na garantia do crédito em razão das vendas a prazo, o Seguro de Crédito Interno, em que pese o perdão da moratória, assim como a postergação dos prazos de pagamento que vêm ocorrendo, a inadimplência acentuada é esperada. No tocante ao Seguro de Crédito Externo, importadores de bens e serviços brasileiros também deixarão de cumprir os compromissos, redundando em grau expressivo de sinistralidade para os exportadores.
No Seguro Garantia, os clausulados das apólices não preveem explicitamente a exclusão de pandemias no caso de a obrigação segurada (de fazer; de entregar; de pagar) não poder ser adimplida. Há, em determinados modelos de apólices, a exclusão genérica para caso fortuito ou força maior. Essas figuras jurídicas, todavia, em tempo de anormalidade, podem ser relativizadas ou mesmo desconsideradas. Seja como for, discussões ocorrerão neste segmento, o qual presen- ta volume expressivo de contratações no país.
3.1.10 Outros seguros
Vários outros tipos de seguros estão sendo atingidos, assim como o Seguro de Eventos – o qual prevê também a cobertura para as despesas decorrentes do cancelamento. Apresenta-se, neste caso, a emblemática transferência das Olimpíadas do Japão de 2020 para 2021; Seguros de Viagem; Seguro de RC Empregador – o qual estará especialmente exposto por conta da massifi- cação do home office em caráter de urgência; Seguros de Riscos Cibernéticos30 – em razão do mesmo motivo encontrado no Seguro RC Empregador, o fato de os empregados se concentrarem em suas respectivas residências e acessando remotamente os sistemas corporativos, pode au- mentar o risco de ataques; Seguro de Responsabilidade Civil de Produtos – comercialização de novos medicamentos, além da responsabilidade dos fabricantes de EPI (equipamentos de prote- ção individual) em razão de possíveis defeitos de fabricação e(ou) inadequação dos produtos; Seguro de Testes Clínicos (Clinic Trials Insurance) – responsabilidade civil em decorrência de experimentos de novos medicamentos.
Um segmento que tem se destacado na discussão dos seguros afetos neste contexto pandê- mico é o de filmagens. A apólice de Riscos Diversos Filmagens apresenta uma vasta gama de co- berturas as quais, além dos possíveis danos sofridos pelos equipamentos de filmagens, ilumina- ção e afins, mais cenários e bens de terceiros sob a custódia do segurado, garante também per- das financeiras pela interrupção das filmagens em razão de vários eventos, assim como a morte ou acidente com os protagonistas do elenco. Com a estabilização do cenário da pandemia, algu- mas atividades foram retomadas, inclusive a de filmagens, respeitadas as normas sanitárias. Determinada seguradora, ao ser avisada pelo segurado da retomada das filmagens, emitiu en-
30 . Esta categoria já tem sido classificada sob a condição de “mega-riscos” pelos mercados internacionais, na medida em que os ataques cibernéticos podem provocar perdas consideráveis, bastando que eles atinjam determinadas cadeias inteiras de pro- dução de bens ou de serviços: usinas hidrelétricas, sistemas viários com diversos modais interligados, rodovias, aeroportos, siderúrgicas, etc.
dosso alterando as apólices vigentes e incluiu a “cláusula de exclusão de doença transmissível”, sob a argumentação de ter havido agravamento do risco, conforme o disposto no art. 769 do CC. Sobre o referido procedimento, contestado por um segurado, já houve o acolhimento judicial de antecipação de tutela, conforme o Processo: 0030714-92.2020.8.19.0209, através do Tribunal de Justiça Regional da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, em 18.09.2020.
4. RESSEGURO
O contrato de resseguro não apresenta qualquer tipo de vinculação direta com os segurados e mesmo porque as partes celebrantes são Seguradora e Resseguradora. Este princípio, interna- cionalmente aceito, está normatizado na Lei Complementar n.º 126/2007, artigo 14º, com a se- guinte redação: “Os resseguradores e os seus retrocessionários não responderão diretamente pe- rante o segurado, participante, beneficiário ou assistido pelo montante assumido em resseguro e em retrocessão, ficando as cedentes que emitirem o contrato integralmente responsáveis por inde- nizá-los”. As relações e as responsabilidades decorrentes do resseguro são compartilhadas ape- nas entre as partes celebrantes. Diante dessa situação jurídica, os procedimentos que forem ado- tados pelas Seguradoras e que possam contrariar as bases dispostas nos contratos de seguros emitidos por elas, não serão automaticamente absorvidos pelos resseguradores, conforme os princípios e a legislação vigentes. Não há, portanto, solidariedade entre seguradora e ressegura- dor com base neste entendimento padrão, mundialmente acolhido. Aquelas seguradoras, portan- to, que assumirem situações de coberturas extraordinárias de riscos que não estiveram presen- tes quando das negociações para a celebração do contrato de resseguro, assumirão integralmen- te o ônus desse procedimento.
No que se refere aos riscos de endemia e pandemia, concluindo, é relevante destacar que os contratos tradicionais de resseguro para os seguros de pessoas podem excluir expressamente essas situações, usualmente catastróficas e que requerem análises particularizadas para a even- tual concessão de cobertura caso a caso.
5. CONCLUSÕES
Impossível ao Direito predeterminar a solução para todas as situações contratuais que emanam da sociedade, notadamente em razão de fato sem precedente como este da pandemia pelo coronavírus. Se não forem observadas as diversas fontes, a injustiça poderá ser prestigiada nesta hipótese, desconstruindo a base do Direito que visa, sob o domínio da equidade e da razo- abilidade, a busca do justo. Na acepção sempre douta e contemporânea de Xxxxxxx Xxxxx, “para atingir o objetivo de racionalização jurídica da realidade social, o jurista constrói incessantemen- te”31. E o professor Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx colmata, lembrando a todos: “o paradigma jurídico, portanto, que passara da lei ao juiz, está mudando, agora, do juiz, ao caso. A centralidade do caso é este, o eixo em torno do qual gira o paradigma jurídico pós-moderno”32. Os diferentes contratos de seguro devem ser tomados sob esta ótica e sobre a finalidade precípua contida em cada um deles, sendo que também o ordenamento civil colabora para esta metodologia hermenêutica, ao determinar no seu artigo 112: “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas con- substanciadas do que ao sentido literal da linguagem”. O contrato de seguro deve ser útil para quem o contrata e, havendo dubiedade ou lacunas nas bases contratuais, a interpretação deverá ser mais favorável ao segurado-aderente (art. 423, CC), prevalecendo ainda e necessariamente todos os demais elementos principiológicos contidos no Código de Defesa do Consumidor. Im- pende indicar, mais uma vez, e na condição de princípio hermenêutico fundamental estatuído
31 . XXXXX, Xxxxxxx. A Evolução do Direito Privado e o Atraso da Técnica Jurídica (1955). Revista Direito GV 1, n. 11, v. 1, maio 2005, p. 134.
32 . XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx. O Direito Pós-Moderno e a Codificação. Revista de Direito do Consumidor n. 33, São Paulo: RT, janeiro-março 2000, p. 127.
pela LINDB, o disposto no artigo 5o: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
A iniciativa privada, neste particular as Seguradoras, são chamadas para colaborar com a respectiva cota nesta guerra contra os efeitos nocivos da pandemia do coronavírus. Atitudes que podem satisfazer os acionistas, podem redundar em mais tragédia para as pessoas seguradas, famílias inteiras. As seguradoras devem satisfazer os seus acionistas, mas elas também atribuem parcelas nos cálculos matemáticos que lastreiam a atividade-fim, na condição de custos adminis- trativos, inclusive para o comissionamento de intermediários, além das remunerações internas para o pessoal de vendas e bônus para os executivos. Essas parcelas e outras podem ser pressio- nadas em tempos de crise. Nos seguros de pessoas, há ainda previsões matemáticas relativas a possíveis antecipações da morte dos segurados e, neste caso, especificamente, não haveria ne- nhum sentido técnico-jurídico em simplesmente negar o pagamento de indenizações aos benefi- ciários das vítimas do coronavírus, ainda que no texto das apólices se apresente a exclusão ex- plícita para o risco de pandemia. A provável existência de “reservas ocultas” é outro fator que poderá ser utilizado a favor dos beneficiários neste momento crucial. Este tema já foi objeto de acirradas discussões em outros países já há algum tempo: “no momento existem reservas ocultas das companhias de Seguros de Vida, isto é, a diferença entre os valores contabilizados e o valor real do mercado dos capitais aplicados, de aproximadamente 25 bilhões de Euros. A Corte Suprema alemã deliberou num acordo doutrinário, que os clientes devem futuramente ter uma participação ‘apropriada’ e compreensível nas reservas ocultas, que, até o presente momento, foram completa- mente omitidas no cálculo de participação nos benefícios”33. Todas as reclamações de sinistros, portanto, deverão ser analisadas individualmente, cada qual com sua particularidade e à luz das bases técnicas subjacentes em cada ramo de seguro. A investigação, neste sentido, deve ser mul- tidisciplinar, na medida em que a contabilização das contas, assim como a feitura das notas téc- nicas atuariais requerem conhecimentos especializados e que podem fugir do domínio dos ope- radores do Direito. Contadores, atuários, matemáticos e médicos devem atuar, simultaneamente e em conjunto, de modo a construírem as bases informativas para o possível reconhecimento de coberturas, diante de eventuais recusas injustificadas. Também os magistrados devem estar atentos a essas questões particularizadas, auxiliados por peritos especializados, sem açodamen- to nas decisões e com respaldo nos elementos ora indicados. A generalização e os paradigmas que foram utilizados até o momento, não mais condizem com a realidade do coronavírus. O mer- cado de seguros mundial não será, invariavelmente, o mesmo após a pandemia; o brasileiro tam- pouco.
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