Sergio Ferraz
“Direito Administrativo. Delegação de serviço público. Transporte intermunicipal de passageiros. Contrato administrativo. Limitações ao exercício de ‘poderes exorbitantes’ pela Administração Pública. Manutenção do equilíbrio econômico e financeiro do contrato. Direito adquirido. ”1
Xxxxxx Xxxxxx
Doutor em Direito Pela Universidade Federa do Rio de Janeiro. Professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Ex-presidente do Instituto dos Advogados do Brasil e Decano do Conselho Federa da Ordem dos Advogados do Brasil. Advogado e consultor jurídico.
Os eminentes advogados do Paraná, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, em nome da Empresa Transportadora Viação Garcia Ltda., me formularam minuciosa consulta, arrematada por denso questionário. Xxxxxxxxxx, para maior e fiel compreensão deste Parecer, o inteiro teor da indagação, a mim dirigida.
“A Empresa Transportadora Viação Garcia Ltda., há aproximadamente 55 anos, mantém com o Estado do Paraná contratos de concessão para a execução do Transporte Intermunicipal de Passageiros, os quais, mediante Termos Aditivos, de comum acordo, têm sido prorrogados.
Tais contratos encontram-se em vigor sob a égide do Decreto nº 5.246, de 29 de março de 1974, que aprovou o Regulamento dos Serviços de Transportes de Passageiros no Estado do Paraná.
Em sua parte dispositiva diz o Decreto:
‘Os serviços serão outorgados sob forma de concessão, mediante concorrência pública, para atender a implantação do plano de que trata o artigo 6º, ou cumprimento do parágrafo 1º do artigo 8º’
Os serviços de transporte seriam executados através de um plano competente (art. 5º), que obrigatoriamente discriminaria todas as linhas necessárias existentes.
Embora inexistente na prática, o plano global competente, na medida em que criadas novas e necessárias linhas, os seus serviços têm sido objeto de contrato de concessão, precedidos de concorrência pública.
Fato novo e surpreendente ocorreu recentemente, que coloca em perigo a sobrevivência comercial da empresa ora consulente, vez que editado pelo Poder Executivo do Estado do Paraná o Decreto nº 2.435, de 09 de fevereiro de 1988, e a nosso ver, em completo desacordo com as garantais jurídicas do direito adquirido, da estabilidade concreta do contrato, do equilíbrio e igualdade das partes contratantes perante a lei, com irreparável prejuízo econômico às concessionárias.
O Exmo. Sr. Governador do Estado do Paraná, através do já mencionado Decreto nº 2.435, de 09 de fevereiro de 1988, aprovou o novo Regulamento dos Serviços de Transportes Intermunicipal de Passageiros, entregues às diversas empresas do Estado, sob o regime jurídico da concessão, contratadas sob a égide do Decreto nº 5.246/77 e em plena vigência.
O artigo 5º do Regulamento, publicado na forma do anexo que faz parte integrante do referido decreto, dispõe que:
1 Parecer exarado em 1988
‘Para que a execução dos serviços previstos neste Regulamento visando o interesse público, será, mediante Decreto, aprovado um plano competente.’
E, o artigo 6º do novo Regulamento determinada que:
‘Obedecidos os dispositivos previstos neste Regulamento, o plano, de que trata o artigo anterior, deverá, obrigatoriamente, discriminar todas as linhas ou ligações existentes e estabelecer critérios para a implantação das ligações futuras, bem como parâmetros e prioridades a serem observados no cumprimento do caput e itens do artigo 8º.’
O texto do Regulamento sugere (art. 9º) que as linhas ou ligações serão exploradas mediante concessão através de concorrência pública.
Tal assertiva, entretanto, não corresponde com a realidade, pois que o parágrafo único do artigo 10 estabelece que, uma vez elaborado o plano competente (art. 5º), somente as ligações ou linhas, que atendam aos critérios nele fixados, ‘serão outorgadas mediante concorrência pública’.
Ora, isto está a significar que em verdade será o tal plano competente que determinará o que será objeto de concorrência pública, através de ato absolutamente discricionário, pois neste Regulamento, e para este efeito, não foi lançado nenhum critério, mesmo porque, entrará em vigor ‘o plano’ por Decreto do Chefe do Poder Executivo Estadual.
Verifica-se, destarte, que se remete a este plano – que não se sabe se será editado – a complementação dos requisitos para a concessão dos serviços de Transporte Coletivo Intermunicipal no Estado do Paraná.
Porém, e o que é mais grave, no Regulamento se acena com a possibilidade concreta de atribuir-se a exploração do transporte coletivo, sem qualquer concorrência. E não se diz por que a linha não será objeto de concorrência, sob qual regime jurídico será explorada, e que critério determinará qual será a transportadora que a irá explorar. As transportadoras, até então, eram titulares de concessões exclusivas de linhas intermunicipais.
Pelo artigo 116 do novo Regulamento, as concessões até então contratadas ficaram ressalvadas, mas respeitadas – e a elas aplicada – as disposições do Regulamento com a participação no mercado ‘que lhes couber’, atendidas as exigências técnico- operacionais.
Conforme o artigo 115 do Regulamento novo, no prazo de 12 meses, as empresas detentoras de concessão, na sistemática do regulamento anterior, ficam obrigadas compulsoriamente a enquadrar-se às disposições do atual regulamento, sob pena de terem os respectivos contratos rescindidos.
Há dispositivos novos, conflitantes com o regulamento anterior, sob cuja égide a consulente mantém seus contratos de concessão e cujos dispositivos, numa afronta ao instituto do direito adquirido, pretende-se tenham efeito retroativo, para atingir a situação jurídica consolidada e não sujeita a normas elaboradas ad futurum.
Assim para melhor situar-se o problema, a consulente Viação Garcia Ltda., toma a liberdade de efetuar as indagações abaixo, na certeza de que Vossa Excelência bem irá discernir as dúvidas que o malsinado Decreto trouxe à comunidade paranaense.
1ª Indagação:
O artigo 8º, §1º do regulamento anterior (vigente à época da lavratura dos contratos de concessão da consulente) estabelece que o aumento do número de transportadoras para o trecho explorado só seria possível ‘quando não atendido o mercado’.
Outrossim, o §2º normatiza que na eventualidade de ocorrerem situações excepcionais que aumentasse a demanda, à empresa transportadora titular da concessão dar-se-ia a preferência no aumento de veículos para suprir viagens de reforço. Só em último caso – não tendo a empresa condições de atender ao crescimento da demanda com seus veículos ou arrendados de terceiros –, é que o DER autorizaria que empresas outras executassem viagens de reforço, em concorrência a titular da concessão.
Tais dispositivos, como se verifica do artigo 8º, inciso I, II e III, não foram banidos do ordenamento regulamentar, criando-se concretamente a possibilidade de exploração concorrente, no mesmo trecho, desde que os novos critérios (ausentes no regulamento anterior) estejam patenteados.
Tais regras, a seu ver, não ferem o direito adquirido, o princípio da estabilidade contratual e a cláusula expressa da exploração do transporte coletivo intermunicipal?
2ª Indagação:
No anterior regulamento, o contrato de concessão poderia ser unilateralmente rescindido pelo Poder Concedente, ‘comprovada a incapacidade administrativa ou técnico-operacional EM PROCESSO REGULAR’ (parágrafo único do art. 15), que pressupõe obediência aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
O texto inovador, de forma inusitada, prescreve que ocorrendo necessidades de interesse público (sic) comprovado, o Secretário dos Transportes, por proposição do DSTC (Divisão do Serviço de Transportes Coletivos) do DER, poderá determinar a abertura de concorrência independentemente da média mensal de passageiros (§7º do art. 8º do novel regulamento), o que significa que até os critérios dos incisos I a III do art. 8º poderão ser ignorados, com a possibilidade da proposital e arbitrária pulverização de determinada linha.
É legítima ou viável tal inovação oposta em relação a contratos de concessão em vigor?
3ª Indagação:
A consulente, quando firmou seus contratos de concessão – em vigor ainda na data de hoje –, aderiu às condições gerais do regulamento então vigente. Através dele (art. 18) vê-se que só por quatro razões as condições expressas da concessão poderiam ser alteradas (incisos I a IV do artigo 18 e artigo 111).
O novo regulamento, que só poderia vigorar para os novos contratos, firmados a partir da entrada em vigência do texto publicado em 09 de fevereiro de 1988, contém em seu artigo 107 regra de direito sui generis, vez que pretende sejam os contratos anteriores ‘adaptados às disposições deste regulamentos’ (sic).
As normas de direito intertemporal não têm aplicação nos contratos administrativos? É possível exigir-se unilateralmente a alteração contratual em prejuízo evidente da Transportadora?
4ª Indagação:
Se uma empresa de transporte titular de concessão exclusiva para a exploração de linhas determinadas, de inopino vê suprimido o seu direito de exclusividade; se pelos novos critérios estabelecidos no art. 8º do Decreto malsinado, inexistentes à época da assinatura dos vigentes contratos, estabelece o poder concedente que mesmo nas ligações com mercado inferior a 6.000 passageiros/mês as operações de transporte serão efetuadas por várias empresas, dispondo ainda os incisos II e III que serão duas e três empresas no mínimo, respectivamente, que deverão concorrer no serviço; se nesta última hipótese a transportadora, que era até então titular exclusiva da concessão, passará a atender somente 40% da linha objeto do contrato em vigor: Não ocorreu, com tais regras unilaterais e violadoras do contrato, verdadeira desapropriação indireta, causando o Poder Público violento prejuízo ao direito de propriedade da empresa concessionária, que passará a ter 60% de sua frota, seus investimentos, bens materiais e folha funcional em completa ociosidade, com reflexos sociais graves?
A redução ex abrupto do mercado (passageiros/mês), até então explorados pela concessão em vigor, por dispositivo legal posterior, é cabível no caso concreto?
5ª Indagação:
A nova legislação, que se pretende aplicar aos contratos em vigor, acresceu que as concessões agora passam a ficar ‘condicionadas’ a um período de carência de dois anos (art. 15), sendo que, se resultar comprovada incapacidade administrativa ou técnico-operacional da empresa transportadora, a concessão fica resolvida sem direito a indenização, com perda da caução (parágrafo único do artigo 15).
Logo a transportadora de passageiros, que era titular de concessão exclusiva, aparentemente seria, pelo novo regulamento, titular agora de concessão parcial, mas na realidade, por dois anos irá operar a título precário como mera permissionária e não como detentora de contrato de concessão exclusiva.
São nulos tais dispositivos, ou têm eles aplicabilidade com relação às concessões em vigor?
6ª Indagação:
O regulamento revogado (Decreto Estadual 5.246/74), vigente à época da assinatura dos contratos de concessão da consulente, dispunha em seu artigo 113 que ‘O SERVIÇO OUTORGADO na forma do Dec. nº 17.859, de 23 de abril de 1965, sob o regime de concessão, será executado até o vencimento do respectivo contratos e sua continuidade, após essa data, subordinar-se-á aos dispositivos do presente regulamento, desde que a transportadora esteja nele enquadrada’.
O serviço existente, pois, outorgado sob a forma de concessão, era legitimamente respeitado, em obediência ao instituto do direito adquirido, contendo assim o regulamento norma absolutamente legítima.
O atual regulamento (De. 2.435, de 09 de fevereiro de 1988), nas disposições transitórias, ao tratar dos serviços contratados existentes, maliciosamente, dispôs de forma esdrúxula a temática, rezando o seu artigo 107 que ‘os serviços de transporte coletivo intermunicipal de passageiros que tenham sido outorgados sob o regime do regulamento anterior, bem como os processos que estiverem em tramitação no DSTC/DER, serão adaptados às disposições deste regulamento”.
Tendo em vista a disparidade de tratamento entre os dois dispositivos (art. 113 do Dec. 5.246/74 e art. 107 do Dec. 2.435/88), indaga-se: ao campo do direito administrativo qual deles encerra norma de eficácia legítima e plena?
7ª Indagação:
Ao baixar o atual Decreto nº 2.435/88, que aprovou o Regulamento dos Serviços de Transporte Coletivo Intermunicipal de Passageiros, o Exmo. Sr. Governador do Estado mencionou que o fazia com base nas atribuições conferidas pelos incisos II, XVI e XVII, do artigo 47, da vigente Constituição Estadual, e, ainda, letra ‘m’ do artigo 2º da Lei Estadual nº 1.052/52, que dispõe sobre a reorganização do DER.
A Constituição Estadual, no seu artigo 47, estabelece competência privativa do Governador, especificamente nos incisos antes mencionados:
II – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução;
XVI – prover em geral às necessidades da administração do Estado;
XVII – dispor sobre a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração estadual.
Já a letra ‘m’, do artigo 2º da Lei Estadual nº 1.052/52, dispõe:
m) conceder e fiscalizar, de acordo com a legislação respectiva, serviços de transporte coletivo de passageiros nas estradas estaduais, de acordo com a respectiva regulamentação.
Considerando que a Constituição Federal no seu artigo 167 estabelece que apenas ‘a lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias de serviços públicos federais, estaduais e municipais’, indaga-se:
1) Confere a Lei Estadual nº 1.052/52, ao Sr. Governador, competência não-prevista na Constituição Estadual, para o efeito de dispor por decreto sobre o regime das empresas concessionárias deste serviço público estadual?
2) Indaga-se, mais, se o Decreto nº 2.435/88 é constitucional em face da expressa menção, no artigo 167, da Constituição Federal, de que apenas a lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias de serviços públicos federais, estaduais municipais?
3) Indaga-se, outrossim, se a Lei Estadual nº 1.052/52 dispõe sobre o regime das empresas concessionárias deste serviço público, e, em caso negativo, se poderia o Executivo Estadual baixar mero Decreto com tal finalidade?
8ª Indagação:
O Poder Judiciário poderá, no caso concreto, ante a cristalina ilegitimidade e evidente abuso de poder da autoridade pública coatora, de forma liminar, suspender, e de forma definitiva, cassar, os efeitos do Decreto Estadual 2.435/88 com relação às concessões em vigor?
9ª Indagação:
Que outras considerações pode Vossa Excelência tecer, no que tange à ilegalidade do Decreto nº 2.435/88, publicado no Diário Oficial do Estado do Paraná de 09 de fevereiro de 1988?
Passo a responder.
A contratação do particular, para execução dos serviços de utilidade para a população, é uma das técnicas que se serve o Estado, para cumprir com suas finalidades. A escolha não é, contudo, revestida da mesma amplitude de liberdade, que no tema se reconhece aos particulares. Serviços há que o Estado deve diretamente executar, até mesmo por disposição constitucional (serviço diplomáticos, magistratura, etc...); outros podem ser delegados, mas a entidades vinculadas à administração pública (pesquisa e extração de minérios nucleares); outros, por fim, podem ter sua realização cometida a particulares. A roupagem jurídica, nesta última categoria, quando não ditada em textos legais, há de ser reverente às condições que envolvem a execução do serviço (assim, por exemplo, em empreendimentos para os quais significativos investimentos ou riscos caibam, correta será a contratação, sob qualquer de suas modalidades; para outras de menor porte ou módica repercussão econômica, a unilateralidade da simples permissão de revelará suficiente). Cabível que seja a via contratual, ainda haverá se observar a estrita observância a dois ditames:
a. Não pode a contração (salvo casos específicos, taxativamente previstos em lei) ser realizada ao livre alvedrio da Administração. Aquele, que há de ser escolhido para contratar com a Administração Pública, deverá ter sido destacado de um universo de candidatos, a todos assegurando-se igualdade na competição. Daí que o contrato, como técnica de execução das atividades administrativas, tem de ser precedido de licitação, verdadeira imposição dos princípios constitucionais da moralidade e da igualdade.
b. Doutra parte, celebrado o contrato, comparece ele com a mesma qualidade, que lhe assinala a teoria geral do Direito, de fonte de direitos (e, correlatamente, de deveres).
Neste segundo ponto, importa fazer uma reflexão mais profunda.
Durante longo tempo se controverteu quanto à existência de uma categoria jurídica denominável contrato administrativo. Dizia-se, com frequência cansativa, que os pontos específicos do chamado contrato administrativo, revelados no conteúdo das chamadas “cláusulas exorbitantes”, revestiam-se de natureza puramente unilateral, correspondente
tais cláusulas à expressão de poderes incontrastáveis da Administração Pública, que ela poderia, de sua exclusiva vontade, impor ao administrado-contratante.
Nos dias presentes, quando copiosa é a legislação expressamente referente a contratos administrativos, a querela perde sentido. Mas essa perda de sentido tem um outro alcance mais profundo, inteiramente coerente à vivência de um efetivo Estado de Direito, aspiração suprema de qualquer ordem jurídica genuína: o contrato é fonte de direito e obrigações. Como tal, a seu padrão também está submissa a Administração contratante. Mesmo quando atue ela dentro do plano das chamadas cláusulas exorbitantes (isto é, faculdades de, unilateralmente, impor penalidades contratuais, extinguir o pacto e alterar seu conteúdo), este exercício há de sempre ser oneroso para a Administração, ainda nos casos em que legitimamente desempenhado, desde que importe em acarretar ao particular-contratante encargos e cargas superiores aos contratualmente assumidos.
Todas as considerações, acima expostas, aplicam-se irrestritamente à hipótese da Consulta, que versa sobre um típico contrato administrativo, a saber, a concessão de serviço público. No caso, serviço público de transporte de passageiros, entre municípios de um mesmo Estado.
Como contrato que é, a concessão de serviço público se estipula mediante uma teia de direitos e obrigações, que vinculam e reciprocamente subjugam as partes convenentes. Mas este ponto é de uma suma importância: trata-se de um “acto que confere a un particular un derecho”57. Pouco importam, para tal configuração, os chamados “poderes exorbitantes”: conforme antes assinalado, se são eles de um lado incontestáveis, à vista do interesse público que viabilizam, doutra parte há de ser prudentemente exercidos, de sorte a salvaguardar, tanto quanto possível, a integridade do contrato.
Pondo de par a faculdade de extinção unilateral do contrato, pela Administração, bem como a de aplicar penalidades contratuais (temas não debatidos na Consulta), impende, porém, meditar sobre o denominado “poder exorbitante de alterar unilateralmente o conteúdo do contrato administrativo”.
À toda evidência, não estamos aqui em face de um poder absoluto, pois a tanto se opõem expressos princípios constitucionais. Um há, inclusive, de ordem expressa e antiga consignação em nossas leis magnas: estamos a tratar do equilíbrio financeiro da concessão, taxativamente ordenado, no artigo 167, II, da Constituição Federal. Esse tema tem amplo trânsito, tanto na doutrina brasileira, quanto na comparada. Cuida ele de recomendar que haja, no contrato de concessão de serviço público, adequada correspondência, favorável ao concessionário, entre seus investimentos, encargos e riscos e sua remuneração e a expectativa de percebê-la condizentemente. Afirma enfaticamente CAIO TÁCITO:
“(...) (O Estado) (...) não poderá deslocar a relação entre os termos da equação econômica ou financeira, nem agravar os encargos ou as obrigações do concessionário, sem reajustar a remuneração estipulada” (meus os grifos)”
Não menos claro e veemente era o eminente XXXXXXXXX XXXXXX:
“A equação entre os encargos e a remuneração constitui a causa (no sentido jurídico) da concessão, tanto para o concessionário como para o concedente”.
Não se questiona quanto a poder a Administração, unilateralmente, modificar aspectos técnicos da execução do serviço. Mas nem isso lhe será livremente ensejado, se do seu exercício decorrer ameaça ou lesão ao equilíbrio financeiro do contrato, eis que este é constitucionalmente tutelado. E, como tal, constitui “direito subjetivo, oponível a
terceiros, à própria administração”58. Xxxx, ainda uma vez, o magistério de XXXXXXXXX XXXXXX:
“A equação econômica constitui o conteúdo da situação jurídica individual do concessionário, ou é, na nossa terminologia legal, um ato jurídico perfeito, ou um direito adquirido”.59
Vale, como arremate, citação do ilustra XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX XX XXXXX:
“Perante o concedente, os direitos do concessionário cifram-se ao respeito à parte contratual da concessão, isto é, à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro e também a que não lhe seja exigido, sob cor de cumprimento de suas obrigações, o desempenho de atividade estranha ao objeto da concessão, pois é o objeto que identificará tal ou qual concessão.”60
Deixo, agora, o plano das considerações gerais e, com base nelas, passo a enfrentar as questões quesitadas pelos ilustres Consulentes.
Dedico-me, agora, ao primeiro quesito.
O contrato de concessão, assinado entre o Estado do Paraná e a Viação Garcia Ltda., se encontra ainda em vigor. À época de sua celebração, e sucessivas renovações, vigorava o Decreto 5.246, de 29.3.74, cujo artigo 8º e parágrafos, assim rezavam:
“Art. 8º. Considerar-se-á atendido o mercado de transportes, quando o coeficiente de utilização do serviço existente, verificado mediante procedimento estatístico, não for superior em 20% (vinte por cento) ao estipulado na composição tarifária.
§1º. Quanto não atendido o mercado, será elevado o número de transportadoras que o exploram, obedecido o critério de outorga deste regulamento.
§2º. Quando condições excepcionais derem causa a maior demanda, não podendo a transportadora satisfazê-la com seus próprios veículos ou arrendados, poderá o DER/PR autorizar a execução, por terceiros, de viagens de reforço, observada a tarifa vigente.”
Assim, quando a Viação Garcia se apresentou à licitação e arrebatou o contrato, estruturou-se técnica e administrativamente para atender, com exclusividade, ao transporte de passageiros no trecho contratado. E também sabia que tal exclusividade só cederia passo se, amentada a demanda, não pudesse atendê-la, com veículos seus ou arrendados de terceiros.
Vem, entretanto, de ser baixado novo Regulamento dos Transportes de Passageiros, através do Decreto 2.435, de 8.2.88. No bojo desse diploma, decanta-se, de seu artigo 8º, que passa a existir a possibilidade de concessões concorrentes, em um mesmo trecho. À TODA EVIDÊNCIA, CONTUDO, TAL REGIME DE MÚLTIPLA EXPLORAÇÃO SÓ VALE PARA PERCURSOS QUE NÃO SEJAM OBJETO DE CONTRATOS DE
CONCESSÃO AINDA VIGENTES. E fácil é justificar essa conclusão:
1. A exclusividade assegurada no contrato vigente integra a equação financeira e econômica da concessão e, pois, para assegurá-la, a Viação Garcia teve de equipar-se material, técnica e administrativamente. Porque contraiu tais encargos, recebeu a remuneração em espécie da tarifa e a remuneração potencial da exclusividade;
2. Nos termos da consideração supra, a exclusividade em causa constitui direito adquirido da concessionária, insuscetível, a teor do artigo 153, §3º, da Constituição Federal, de ser atingido por disposições normativas
supervenientes ao contrato. Ademais disso, tais disposições supervenientes também seriam inaplicáveis, à luz do artigo 167, II, ainda da Constituição Federal, eis que afetariam elas, pelo exposto, o equilíbrio financeiro da concessão.
Examine-se, em sequência, o segundo quesito. Como aqui se cuida também de exploração concorrente, e com mais amplitude até, incidem as mesmas considerações deduzidas para o quesito anterior. Daí concluo que a inovação, referida na consulta, inscrita no parágrafo 7º do artigo 8º do novo regulamento, é inaplicável aos trechos objeto de concessões ainda em vigor.
Chega a vez do quesito terceiro.
O problema da alteração unilateral do contrato administrativo já foi exaustivamente ventilado na primeira parte deste Parecer. Como ali se viu, tal faculdade cinge-se tão apenas aos aspectos técnicos da execução do serviço e, ainda assim, quando não afetado o equilíbrio financeiro da concessão.
Destarte a “adaptação” dos contratos em vigência, às disposições do novo regulamento, prescrita no artigo 107 deste, tem o limite traçado no parágrafo anterior: restringe-se aos aspectos técnicos da execução dos serviços e, mesmo aqui, desde que não atingida a equação financeira do contrato.
O quarto quesito tem resposta parcialmente contida nos textos antecedentes. Às escâncaras, o ato da Administração, redutor abrupto do mercado contratualmente assegurado à concessionária, é claramente ilícito, sujeitando o Poder Público às reparações até constitucionalmente previstas (artigo 107) e que, por isso, não podem ter sua investigação judicial subtraída do mundo por mera disposição regulamentar.
Também, em parte, as questões apresentadas nas quinta e sexta indagações foram objeto, anteriormente, de enfoque. O contrato de concessão resulta de uma licitação, que lhe pretraça o conteúdo e a natureza. Normas supervenientes que lhe alterem a natureza da contratação (transformando-a, por exemplo, de por prazo determinado em precária), são inaplicáveis aos pactos em curso, à vista da garantia constitucional do artigo 153, §3º. Admissíveis são apenas as novas regras atinentes à execução do serviço e, repita-se, desde que não afetem a economia da equação financeira do contrato.
A sétima indagação, de cristalina redação, já traz em seu bojo os elementos para a resposta.
A Constituição Federal, em seu artigo 153, §2º, proclama o princípio da reserva legal. É dizer, ninguém é obrigado a fazer, ou deixar de fazer, algo, que não em virtude de lei (em sentido estrito).
No caso da Consulta, o princípio em causa é explicitado e reforçado, pois o artigo 167, caput, da Constituição Federal, enfatiza caber à lei (outra vez em senso estrito) “dispor sobre o regime das empresas concessionárias de serviço público federais, estaduais e municipais” (meu o grifo). O Governador do Estado do Paraná, ao baixar o recente regulamento contido no Decreto 2.435, disse fazê-lo com base no artigo 47, II, XVI e XVII da Constituição Estadual. Ora, a leitura atenta de tais preceptivos, já transcritos na Consulta, em nada fundamenta a expedição de regulamento autônomo, como o por sua Excelência assinado. Ali se cogita, apenas, de regulamento subordinado (i. e., para execução de leis – inciso II) e de estruturação administrativa (incisos XVI e XVII), jamais do que contenha normas genéricas, novas, abstratas e cogentes para os administrados. E nem poderia fazê-lo, pois tal amplitude regulamentar não foi acolhida no artigo 81 da Constituição Federal, de obrigatória observância para os Estados.
É verdade que, na epígrafe do Decreto, também se faz a menção à Lei Estadual 1.052, de 20.11.52. Fiz detidamente leitura do aludido diploma, que cuida,
exclusivamente, da reorganização do DER. Lá não encontrei uma linha que fosse, que pudesse sustentar o ousio do Decreto 2.435, cuja inconstitucionalidade, por isso tudo, me parece patente.
Não se extraia, ad terrorem, dessa assertiva que semelhante mácula viciaria o contrato de concessão celebrado com a Consulente, ainda em vigor, eis que conectado ao anterior regulamento, baixado com as mesmas máculas do presente. O contrato administrativo, a partir de sua celebração, adquire vida própria, como fonte de obrigações e direitos per se. Sua invalidade só pode ser discutida, pois, se em seu próprio conteúdo se constataram infringências legais. E uma vez plantado como realidade no mundo jurídico, inadmissível é cogitar de sua extinção ou modificação, por força de um novo regulamento, manifestamente inconstitucional, como visto.
À oitava, e derradeira, pergunta, resposta simples se impõe: sem dúvida que o Poder Judiciário deve, e pode, ser acionado, para expungir do mundo jurídico os atos praticados com fundamento no Decreto 2.435. E também por certo o Judiciário conferirá aos lesados a tutela liminar, sem o que até a insolvência ou morte das empresas concessionárias interessadas poderá acontecer, antes da decisão final.
Rio de Janeiro, 25 de abril de 1988. XXXXXX XXXXXX