A APLICAÇÃO DAS REGRAS DE ONEROSIDADE EXCESSIVA DO DIREITO CIVIL AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS.
Insper Instituto de Ensino e Pesquisa LLM em Direito dos Contratos
Thiago Santini Bisterso
A APLICAÇÃO DAS REGRAS DE ONEROSIDADE EXCESSIVA DO DIREITO CIVIL AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS.
São Paulo 2017
A aplicação das regras de onerosidade excessiva do direito civil aos contratos administrativos.
Monografia apresentada ao Programa de LLM em Direito dos Contratos do Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa, como parte dos requisitos para a obtenção do título de pós- graduação Latu-Sensu em Direito; Insper; Direito dos Contratos.
Orientador: Prof. Rodrigo Fernandes Rebouças
São Paulo 2017
Bisterso, Thiago Santini
A aplicação das regras de onerosidade excessiva do direito civil aos contratos administrativos. /
Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. – São Paulo, 2017. 51 f.
Monografia (Pós-graduação Lato Sensu em Direito dos Contratos – LLM) – Insper, 2017.
Orientador: Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx
1. Direito Privado 2. Contrato Administrativo 3. Teoria da Imprevisão 4. Onerosidade Excessiva.
A aplicação das regras de onerosidade excessiva do direito civil
aos contratos administrativos.
Monografia apresentada ao Programa de LLM em do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, como requisito parcial para obtenção do título de pós graduação em Direito.
Área de concentração: Direito dos Contratos
DATA DE APROVAÇÃO: / /
Banca Examinadora
Prof. Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxxx Orientador
Insper
Nome Completo Titulação Instituição
Nome Completo Titulação Instituição
A Deus, por mais esta oportunidade de evolução e aprendizado.
Aos meus pais, que me deram a vida e sempre me amparam nas horas difíceis.
A minha esposa, Xxxxxx, e a minha filha, Xxx Xxxxx, grandes amores da minha vida. A todas as pessoas que passaram por minha vida e me ensinaram algo.
Aos Ilustres Professores, pelas aulas magnificas que me foram ministradas e também pelas sábias orientações nos momentos de dúvida.
Aos colegas de curso, pela agradável companhia durante as aulas e também pelos debates saudáveis que me fizeram obter o conhecimento necessário à elaboração deste trabalho.
Ao Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER), Coordenadores, Palestrantes, Funcionários e demais integrantes dessa digna Casa de Ensino, pelo apoio incondicional e as lições que me foram transmitidas.
BISTERSO, Thiago Santini. A aplicação das regras de onerosidade excessiva do direito civil aos contratos administrativos. 2017. 51 f. Monografia (Pós-graduação Lato Sensu em Direito dos Contratos – LLM) - Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2017.
O presente trabalho tem por objetivo estudar a aplicabilidade da Teoria da Onerosidade Excessiva do Direito Privado aos contratos administrativos, regidos predominantemente pelo Direito Público, em caso de surgimento de fatos inesperados durante a execução contratual que possam tornar a prestação exorbitantemente gravosa para um dos contratantes e benefício desmoderado para o outro. Busca-se explicitar as características dos contratos regidos pelo Direito Privado, distinguindo-os dos contratos de Direito Público, bem como a integração de ambos os regimes, visando à promoção de justiça social e desenvolvimento econômico nacional. Ao final, mostra-se como o Código Civil de 2002 realçou-se a crescente interpenetração do direito público com o direito privado quando da ocorrência de fatos extraordinários e supervenientes que venham desequilibrar a equação econômico-financeira dos contratos da Administração, com base na Teoria da Imprevisão.
Palavras-chave: Direito Privado. Contrato Administrativo. Teoria da Imprevisão. Onerosidade Excessiva.
BISTERSO, Thiago Santini. The application of the rules of the civil law to onerous administrative contracts. 2017. 51 f. Monograph (LLM) – Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, São Paulo, 2017.
The present work aims to study the applicability of the theory of the Excessive Cost of private law to administrative contracts, governed predominantly by public law, in case of emergence of unexpected facts during the contractual execution can make provision for an onerous contractors exorbitantly and desmoderado benefit for each other. The aim is to clarify the characteristics of contracts governed by private law, distinguishing them from public procurement, as well as the integration of both regimes, aimed at the promotion of social justice and national economic development. At the end, shows itself as the Civil Code of 2002 enhanced-if the growing interpenetration of public law and private law in the event of extraordinary and incidental facts that may tip the economic equation of contracts administration, based on the theory of Oversights.
Keyword: Private Law. Administrative Contract. Theory of Oversights. Excessive Cost.
1 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS PRIVADOS 11
1.1 Definição e conceito de contrato 12
1.2 Princípios do direito contratual 14
1.2.1 Dignidade da pessoa humana 16
1.2.3 Obrigatoriedade dos contratos 18
1.2.4 Equivalência material 19
1.2.5 Função social dos contratos 20
1.3 Onerosidade excessiva e teoria da imprevisão nos contratos regidos pelo direito privado 22
1.3.2 Alteração dos contratos em face da onerosidade excessiva prevista no atual Código Civil
1.3.2.1 Revisão e resolução dos contratos por onerosidade excessiva 25
2 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS ADMINISTATIVOS 28
2.1 Aspectos históricos do contrato administrativo 28
2.2 O contrato administrativo como um dos instrumentos de realização do interesse público por parte do Estado 30
2.3 A teoria da imprevisão nos contratos administrativos 32
2.3.1 Do equilíbrio econômico financeiro do contrato administrativo 34
3 APLICABILIDADE DOS POSTULADOS DA ONEROSIDADE EXCESSIVA E DA TEORIA DA IMPREVISÃO DO DIREITO PRIVADO AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS 38
LISTA DE LEGISLAÇÃO E JURISPRUDÊNCIA 51
INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre o instituto da onerosidade excessiva, associado à teoria da imprevisão, previstos nos artigos 478 e 317, do Código Civil, aplicado aos contratos administrativos regidos pela Lei Federal nº 8.666/93, cuja temática está prevista modestamente no artigo 57, § 1º, no artigo 58, § 2º, no artigo 65, inciso II, alínea d, e § 6º.
É cediço que o Código Civil de 2002 foi substancialmente influenciado pela Carta Magna de 1988, contribuindo sobremaneira para a solução dos problemas socioeconômicos existentes na atualidade, de forma mais adequada, realista e humanitária, tanto na seara pública, como privada.
Os contratos administrativos são instrumentos essenciais de que se vale a Administração Pública para promover o bem estar da coletividade. Assim sendo, tanto eles, como também os contratos regidos pelo direito privado, exercem papel fundamental no ideal de busca pela justiça social. Em razão disso, eles devem garantir, desde sua celebração, até o término de sua vigência, a manutenção do seu equilíbrio econômico-financeiro, sem interferências que os tornem excessivamente onerosos para quaisquer das partes envolvidas.
No que tange especificamente aos contratos da Administração, é natural que, em determinadas situações, a sua equação econômico-financeira venha eventualmente a se deteriorar, motivada por circunstâncias imprevisíveis que até então eram desconhecidas pelos contratantes no momento de sua celebração, causando o desequilíbrio da equação econômico- financeira inicialmente estabelecida e consequente prejuízo a uma das partes contratantes, a qual necessitará se reequilibrar, valendo-se, para tanto, dos preceitos estabelecidos na Lei de Licitações e Contratos Administrativos, porquanto é a lei específica que rege a matéria.
Contudo, a Lei Federal nº 8.666/93 não abarcou todas as possíveis causas e soluções inerentes à desestabilidade contratual na esfera pública, forçando as partes envolvidas a se socorrerem, supletivamente, aos princípios da teoria geral dos contratos e às disposições de direito privado que normatizam a questão.
Nesse passo, o presente trabalho tem por finalidade delinear os ditames legais, jurisprudenciais e doutrinários acerca da aplicabilidade da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva, do Direito Civil aos contratos administrativos, ainda que esse tenha por objetivo a satisfação do interesse público e o Direito Civil, por sua vez, seja voltado ao interesse privado.
Pelo exposto, busca-se, neste estudo, traçar soluções face às consequências deletérias
que decorrem do surgimento de fatos inesperados durante a execução do contrato administrativo, que venham tornar a prestação exorbitantemente gravosa para um dos contratantes e benefício desmoderado para o outro, prejudicando uma das partes no cumprimento de sua obrigação, o que necessitaria de uma revisão judicial para recompor o equilíbrio contratual incialmente avençado, caso não houvesse a solução do litígio na esfera administrativa.
Fica evidente, portanto, a importância da interligação entre os institutos do direito público e privado, mormente após a Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, porquanto se tornou possível a aplicação das normas e princípios que regem os contratos privados aos contratos administrativos, propiciando o pleno alcance da justiça social em torno desse instituto.
1 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS PRIVADOS
Desde os primórdios, o ser humano sempre se amparou em instituições sociais para alcançar os seus objetivos, seja aglomerando-se a outros indivíduos por afinidades de parentesco, seja por objetivos religiosos ou por interesses meramente materiais. Tais sociedades tiveram e têm por objeto “assegurar ao homem o desenvolvimento de suas aptidões físicas, morais e intelectuais [...].”1
A evolução da sociedade resultou na ideia de Estado, instrumento social eleito para a realização dos fins e do desenvolvimento das potencialidades humanas.2
Essa ideia é bem demonstrada por Xxxxxxxxxxx, segundo o qual o Estado como uma “comunidade perfeita, formada pela pluralidade de grupos comuns, comunidade que, de certo modo, logrou o fim de inteira suficiência e surgiu mercê da vida, e, mercê da vida seu conjunto se mantém.”3 Assim, surgia, portanto, um modelo de Estado baseado na total concentração e centralização do poder4, instrumento supressor de liberdades individuais.
Em contrapartida, o jusnaturalismo passa a afirmar que o homem nasce com plena liberdade, a partir do qual o Estado surge para lhe atender às aspirações; instituiu-se, assim, a ideia de predomínio das liberdades individuais, “fazendo do Estado o acanhado servo do indivíduo.”5 Surge, portanto, o Estado calcado no contratualismo social, ou seja, o “aparelho de que serve o homem para alcançar na sociedade a realização de seus fins.”6
Esse novo modelo de Estado preocupou-se em devolver ao homem as liberdades de que lhes são próprias, por natureza, e das quais ele usufruía numa sociedade ante-estatal. Desse modo, esse Estado deveria se preocupar “primeiro que tudo, em organizar a liberdade no campo social7”.
Foram os jusnaturalistas, contudo, que desenvolveram a teoria contratualista, a qual é instituída, legitimada e protegida pelo Estado por meio dos seus poderes e órgãos administrativos, nos moldes em que conhecemos hoje. O contrato, portanto, é a reação do liberalismo individualista do século XIX contra as limitações impostas pelo Estado8,
1AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 35. ed. São Paulo: Globo, 1996. p. 1.
2 Conforme: DALARI, Xxxxx xx Xxxxx. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 55.
3 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Xxxxxx Xxxxxx, 2002. p.129.
4 Conforme: XXXXXX, Xxxxxxxx. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 115.
5 XXXXXXXXX, Xxxxx. Do estado liberal ao estado social. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 2.
6 Ibidem, p. 3.
7 Ibidem, p. 2.
8 Conforme: XXXX, Xxxxxxx. Obrigações e contratos. 14.ed.rev.,atualeampl. São Paulo: XX, 0000. p. 184.
representando instrumento de proteção às necessidades consideradas essenciais ao homem e aos princípios morais.9
Sendo assim, o contrato passou a ser cingido por garantias e princípios rígidos, como, por exemplo, o princípio do pacta sunt servanda, que tem por escopo assegurar a autonomia da vontade, traduzida na liberdade de contratar e na segurança jurídica de que a sociedade precisa. Mesmo sendo um meio de garantias individuais, em face da evolução de seus princípios, as restrições à liberdade no plano contratual10 devem ser analisadas com muito cuidado, a fim de se evitar o retrocesso nas conquistas humanas de liberdade e igualdade, em razão da perda ou, ao menos, do enfraquecimento jurídico nas relações sociais.
Ao se considerar as inovações legislativas mais recentes, aliada ao desenvolvimento da sociedade brasileira, não há como desvincular o contrato da atual realidade nacional, isto é, a consecução de finalidades que atendam aos interesses da coletividade.11
A possibilidade de aplicação da Teoria da Imprevisão do direito privado aos contratos administrativos retroage à origem histórica de tal instituto. Nesse sentido, Furtado aduz que:
Não obstante as diferenças existentes entre o regime do direito privado e o regime jurídico administrativo, devemos afirmar que os contratos administrativos são considerados uma modalidade de contrato, nada diferindo, em sua essência, dos contratos do direito privado.12
1.1 Definição e conceito de contrato
O contrato se caracteriza como uma espécie de negócio jurídico, regulamentador de interesses privados, de natureza bilateral ou plurilateral, e, por ser ato, dependente da vontade das partes para a sua formação, além da observância dos deveres jurídicos decorrentes dos postulados da boa-fé objetiva e da função social do contrato.
Contrato, portanto “é o acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinando a estabelecer uma regularização de interesses entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial.”13
9 Conforme: VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. 2 v. p. 29.
10 Conforme: WALD, op. cit., p. 40.
11 Conforme: TARTUCE, Xxxxxx. Manual de direito civil: volume único. 4. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 232.
12 XXXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Contratos Administrativos e Contratos de Direito Privado Celebrados pela Administração Pública. Disponível em:
<xxxx://xxxxxxx.xxx.xxx.xx/xxx/xxxxx.xxx/XXXX/xxxxxxx/xxxxXxxx/000/000>. Acesso em: 15 junho 2017.
13 XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Curso de Direito Civil Brasileiro, Volume III. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 22.
Na mesma vertente, é o ensinamento de Xxxxxxxxxx xx Xxxxxx Xxxxxxxx, quando afirma que contrato significa o acordo de vontades que tem por fim criar, modificar ou extinguir um direito.14 Ou seja, em outras palavras, a finalidade precípua dos contratos é de produção de efeitos na ordem jurídica.
Abstrai-se, portanto, dos conceitos anteriores, que não existe contrato sem que haja, por parte dos contraentes, a expressão clara de suas manifestações de vontade, que deverão estar compatíveis com as normas superiores de convivência social, assentadas na própria Constituição Federal, uma vez que o contrato, sendo uma das espécies mais relevantes de negócio jurídico, somente é admitido pela sociedade se compreendido como um meio de conciliação de interesses antagônicos, manuseado com intuito de promoção do desenvolvimento econômico e da pacificação social.
Nessa esteira de entendimento, o contrato não pode ser visto como um instrumento opressor, mas sim como meio viabilizador de sua função social, ainda que, de vez em quando, verifica-se que uma das partes tente utilizá-lo de forma a fustigar a parte mais fraca, em absoluta contrariedade à sua função social, consoante se depreende deste histórico ensinamento deixado por Clóvis Baviláqua:
Pode-se, portanto, considerar o contracto como um conciliador dos interesses collidentes, como um pacificador dos egoísmos em lucta. É certamente esta a primeira e mais elevada funcção social do contrato. E para avaliar-se de sua importância, basta dizer que, debaixo deste ponto de vista, o contracto corresponde ao direito, substitui a lei no campo restricto do negócio por elle regulado. Ninguém dirá que seja o contracto o único factor de pacificação de interesses, sendo o direito mesmo o principal delles, o mais geral e o mais forte, mas impossível será desconhecer que também lhe cabe essa nobre função socializadora. Vede uma creança em tenra idade. Appetece um objecto, com que outra se diverte; seu primeiro impulso é arrebatá-lo, num ímpeto de insoffrido egoísmo, das mãos frágeis, que, o detém. A experiência, porém, pouco e pouco, lhe ensina que encontrará resistência, sempre que assim proceder. Seu proceder vae amoldando-se às circunstâncias e, em vez de apoderar-se à força, pede, solicita, propõe trocas, seduz com promessas capitosas e, esgotados os meios brandos, passará, então, à violência, ou aos gritos, último recurso dos fracos. Assim foi o homem primitivo, assim seria o homem civilizado, se não o contivessem os freios do direito, da religião, da opinião pública, de todas as disciplinas sociaes empenhadas na tarefa de trazer bem enjaulada a fera, que cada homem traz dentro de si.15
Segundo Xxxxxxx, a Teoria do Direito, no século XIX, conceituou o individualismo econômico até então existente naquele tempo. Surgia, assim, a geração do contrato tradicional, trazendo à baila a existência da liberdade individual e o postulado da autonomia
14 MONTEIRO, Xxxxxxxxxx xx Xxxxxx. Curso de Direito Civil. 2ª parte. Vol. 5, São Paulo: Saraiva, 1995. p.5.
15 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações, Campinas: RED Livros, 2000, p. 211.
da vontade.
Esta definição, em princípio simples, tem grande valor para a nossa análise, pois nela já podemos encontrar os elementos básicos que caracterizarão a concepção tradicional de contrato até os nossos dias: (1) vontade (2) do indivíduo (3) livre (4) definindo, criando direitos e obrigações protegidos e reconhecidos pelo direito. Em outras palavras, na teoria do direito, a concepção clássica de contrato está diretamente ligada à doutrina da autonomia da vontade e ao seu reflexo mais importante, qual seja, o dogma da liberdade contratual.16
Havia, assim, duas questões primordiais para a formação do instituto. Um funcional, constituído pela composição de interesses contrários, porém concordantes. E, doutra banda, a questão estrutural, fundada na desproporção presente no conceito de negócio jurídico.
Logo, verifica-se que o contrato apenas atingirá a sua função social no momento em que, sem aviltar o exercício da autonomia privada, considerar a dignidade da pessoa humana, em fiel observância aos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados; permitir a igualdade das partes contratantes, existente tão somente nos contratos essencialmente paritários, que, por sua vez, são minoria; prever uma cláusula subentendida de boa-fé objetiva, inserta em todo o contrato bilateral, impondo aos contraentes os deveres acessórios de confiança, lealdade, informação e assistência; e, finalmente, figurar como uma ferramenta de proteção do valor social do trabalho e o meio ambiente.
Levando-se em conta, portanto, as críticas promovidas por alguns juristas, aliada à mudança estrutural e funcional pelas quais vêm passando essa regra, Xxxxx Xxxxx recomenda um novo modelo de contrato, contemporâneo, ao ensinar que:
o contrato constitui-se em uma relação jurídica subjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicos existenciais e patrimoniais, não só entre os titulares subjetivos da relação, como também perante terceiros.17
1.2 Princípios do direito contratual
As fontes do direito contratual podem ser divididas, em relação à sua origem, em (i) fontes normativas, oriunda da Constituição da República e da legislação infraconstitucional, pela vontade das partes e pelos usos e costumes; e (ii) fontes gerais, formadas pela doutrina, jurisprudência e registros históricos. Consoante ensinamento de Verçosa “a par das fontes
16 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: XX, 0000, p. 42.
17 XXXXX, Xxxxx. Do contrato: conceito pós-moderno. 5. tir. Curitiba: Juruá, 2005, p. 255.
normativas [...] deve-se dar um destaque aos princípios contratuais gerais, encontrados de forma encoberta no ordenamento jurídico.”18
Vale ressaltar que tamanha é a relevância dos princípios no ordenamento jurídico pátrio que o artigo 4º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942), dispõe que o juiz poderá se amparar nos princípios gerais do direito, que é fonte do direito, se uma determinada regra não estiver positivada na lei, in verbis:
Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
A partir do conceito clássico de contrato surgiram vários outros princípios norteadores do Direito Contratual, como, por exemplo, os princípios da autonomia da vontade, da obrigatoriedade dos contratos, da boa fé objetiva e da função social. Com efeito, será dada ênfase aos princípios da teoria moderna do direito contratual, que foram avançando até se chegar ao conceito atual de imprevisão contratual.
Nessa ótica, vale citar o escólio de Bierwagen acerca do tema, para quem o atual Código Civil distanciou-se do modelo clássico de contrato, considerado individualista e pragmático, acabando por renová-lo:
A crise social gerada pela conjugação do individualismo jurídico e o liberalismo econômico do século XIX e início do XX ensejou uma reformulação dos seus princípios basilares tendentes à maior socialidade e publicização do direito das obrigações: o princípio da autonomia da vontade, cedendo parte de seu espaço para o dirigismo contratual, buscava resgatar a igualdade das partes perdida com o fenômeno da massificação das relações contratuais; o princípio da obrigatoriedade foi amenizado para admite a inexecução dos contratos pelo desequilíbrio contratual decorrente de acontecimento imprevisível e extraordinário; o princípio da relatividade dos efeitos foi remodelado por força do reconhecimento da função social dos contratos [...].19
Nota-se, assim, que os princípios clássicos da função social do contrato e da boa-fé objetiva foram amodernados pelo ordenamento jurídico pátrio, a partir da positivação desses institutos no Código Civil de 2002.
18 VERÇOSA, Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx. O Código Civil de 2002 e a crise do contrato: seus efeitos nos contratos mercantis (alguns aspectos relevantes). São Paulo: Xxxxxxxx Xxxxx, 0000, p. 23.
19 BIERWAGEN, Xxxxxx Xxxxxxxxx. Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil. 3. ed.São Paulo: Saraiva, 2007, p. 75.
1.2.1 Dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral e imprescindível à implantação do Estado Democrático de Direito, por constituir-se numa diretriz do solidarismo social, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. Em que pese a sua previsão no texto constitucional, trata-se, também, de um instituto basilar de direito privado. Caracteriza-se como fundamento primário da ordem jurídica constitucional e, por via de consequência, também do direito público. Por ser reconhecido como direito fundamental, leva a uma reflexão acerca de vários preceitos civilistas, notadamente daqueles que constituem o seu cerne, tais como: a autonomia, o patrimônio, a propriedade, os bens e a pessoa.
A dignidade consiste num valor intrínseco à consideração da existência humana, levando-se em conta as suas possibilidades e perspectivas patrimoniais e sentimentais, porquanto tem o condão de propiciar felicidade e realização pessoal ao indivíduo, em sua plenitude, sem quaisquer intromissões, seja do Estado, ou de particulares.
É sob esse enfoque que a nova vocação do Direito Civil se alicerça, porquanto fundado no princípio da dignidade da pessoa humana, visa à proteção da pessoa, sem resvalar no conjunto positivado de normas que garantem o direito ao patrimônio.
A existência desses direitos reflete, indubitavelmente, na seara contratual. Os valores constitucionalmente protegidos, como a vida, a integridade física, a propriedade etc. não podem ser desprestigiados sob o argumento de se exigir determinada prestação, pois, sob o pretexto de forçar o cumprimento de determinada prestação devida, o credor não se pode valer de atos que atentem contra a dignidade da pessoa humana, a não ser que a lei assim permitir. Isso não significa, por outro lado, que deva haver tolerância com o descumprimento daquilo que foi pactuado!
Enfim, é o predomínio da tutela constitucional dos direitos humanos, em detrimento de quaisquer outros princípios, sejam eles de ordem patrimonial ou não, que deve ser resguardado quando do eventual confronto com outros valores constitucionalmente assegurados.
A autonomia da vontade pode ser classificada como sendo o alicerce do contrato, embora esteja restringido por normas indeclináveis pelas partes, traduzidas nas normas de ordem pública, que limitam diretos em prol do bem-estar comum, conforme nos esclarece
Pontes de Xxxxxxx: “é o direito que a vontade dos interessados não pode mudar. Uma vez composto o suporte fático, a regra jurídica incide, ainda que o interessado ou todos os interessados não no queiram.”20
Cumpre esclarecer, ademais, que Xxxxxxx prefere substituir a expressão autonomia da vontade por autonomia privada, consoante se verifica adiante:
Foi a crítica aos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual que permitiu que desabrochassem os princípios da boa-fé e da justiça contratual – os quais, aliás, nunca deixaram de estar latente em todos os ordenamentos: apenas eram ofuscados pelo brilho artificialmente acrescentados ao princípio da (velha) autonomia da vontade21.
Essa constrição da manifestação da vontade por parte dos contratantes, motivada pelas normas de ordem pública, fez-se imperiosa para impedir o abuso desse direito. Todavia, essas limitações não significam a derrocada da autonomia privada, sem a qual as relações de direito privado ficariam estanque, provocando, assim, a decadência da sociedade moderna.
Nessa linha de entendimento, impende destacar as lições de Xxxxxx, para o qual o princípio da autonomia da vontade multiplica-se nas seguintes vertentes:
a) Todos são livres para contratar ou não. Ninguém está obrigado a celebrar contrato contra a sua vontade. Assim, o sujeito de direito motiva-se a contratar exclusivamente pelo interesse que identifica, segundo seus próprios e subjetivos critérios, no resultado da troca em negociação. Se por qualquer motivo, ainda que emocional, irracional ou intuitivo, a pessoa não considera vantajoso o negócio (porque toma a obrigação que assumiria por menos interessante que a prestação prometida pelo outro contratante ou simplesmente porque não o deseja), não há como obrigá-la a contratar. Mesmo quando se encontra compromissado a celebrar o contrato, em virtude de um contrato preliminar, é a vontade do sujeito (manifestada no primeiro negócio) que o obriga. Outra decorrência do primado da liberdade de contratar é a instabilidade dos vínculos contratuais por prazo indeterminado. O contratante pode rescindir unilateralmente os contratos sem prazo, a qualquer tempo: se ninguém é obrigado a contratar, também não pode ser obrigado a ficar vinculado ao contrato para sempre. b) Todos são livres para escolher com quem contratar. Em razão do princípio da autonomia da vontade, ninguém pode ser obrigado a contratar com quem não quer. De novo, os motivos que se levam em conta para afastar a hipótese de contrato com determinado sujeito podem ser irracionais, emocionais ou intuitivos, não interessa; se alguém simplesmente não quer vincular-se a certa pessoa, nada o pode forçar. Em decorrência do primado da liberdade de escolha do contratante, o sujeito vinculado a contrato não pode substituir-se no vínculo por ato unilateral de vontade. Caso o instrumento contratual não autorize
20 XXXXXXX, Xxxxxx. Tratado de Direito Privado. Atualizada por Xxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx.Tomo 1, 1. ed. Campinas: Bookseller, 1999, p. 105.
21 XXXXXXX, Xxxxxxxx. O Direito dos Contratos e Seus Princípios Fundamentais (Autonomia Privada, Boa-fé, Justiça Contratual). São Paulo, 1994. p. 122.
expressamente a sub-rogação ou cessão do contrato, essas operações não são válidas sem o consentimento dos demais participantes. c) Os contratantes têm ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as cláusulas do contrato. Como os sujeitos são livres para contratar ou não e para escolher com quem contratam, é consequência lógica dessa ampla liberdade a possibilidade de as partes definirem, de comum acordo, os termos e condições do contrato, sem nenhuma restrição externa ao encontro de vontades. Em consequência do primado da liberdade de estipular as cláusulas do contrato, a lei atinente à matéria contratual desdobra-se em dispositivos na sua maioria de natureza supletiva, isto é, são normas aplicáveis na hipótese de omissão das partes, quanto à composição de determinado interesse comum, no contexto do contrato. Somente se as partes se omitiram de detalhar certo aspecto do negócio entabulado, incide a lei para suprir a falta, definindo os direitos e obrigações dos contratantes22.
Sendo assim, vê-se que na formação do contrato há uma ligeira atenuação da liberdade contratual decorrente da ingerência estatal, traduzida pela imposição de regras que condicionam a liberdade dos contratantes à determinadas regras. De fato, segundo Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, “a liberdade de contratar é liberdade para o que possui esse poder; para aquele contra quem se insurge é, ao contrário, impotência. Não tem liberdade, não pode tê-la, quem possui como bem único a sua força-trabalho.”23
Verifica-se, assim, que a semelhança jurídica entre os contratantes nem sempre reflete a realidade dos fatos.
1.2.3 Obrigatoriedade dos contratos
Conhecido pela máxima latina pacta sunt servanda, que significa: “os pactos assumidos devem ser respeitados”, esse princípio foi consagrado por alguns respeitáveis Códigos Civis do ocidente, tais como o Italiano e o Francês.
Dessa máxima, exsurge a obrigatoriedade no cumprimento dos pactos assumidos, garantindo, assim, a segurança jurídica de um acordo que, feito livre de vícios, deve ter seu ordinário adimplemento, sem qual a parte inadimplente poderá ser sancionada, a exemplo de uma execução judicial, nos moldes da legislação vigente. Em suma, as partes devem saldar com as obrigações assumidas a fim de satisfazerem os interesses em torno da contratação.
A inalterabilidade dos contratos é a regra, pois, caso contrário, não seria possível exigir o seu fiel adimplemento, que é o seu objetivo primordial. Essa imutabilidade, por sua vez, não pode ser entendida de forma absoluta, mas sim relativa, haja vista a possibilidade
22 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de direito civil: contratos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 17-18.
23 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. História do Direito no Brasil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003, p. 31.
jurídica de as partes, em comum acordo, desmanchar o negócio jurídico motivado por alguma situação que configure caso fortuito ou força maior.
Nessa esteira, é possível aferir que a austeridade desse princípio foi mitigada, pois, até o final do século XIX, ele era aplicado de forma nociva sobre os negócios jurídicos.
Segundo a lição de Xxxxx Xxxxxx Xxxxx:
A força vinculante dos contratos somente poderá ser contida pela autoridade judicial em certas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias, que impossibilitem a previsão de excessiva onerosidade no cumprimento da prestação, requerendo a alteração do conteúdo da avença, a fim de que se restaure o equilíbrio entre os contraentes24.
O princípio em apreço traduz a natural necessidade de cumprimento da avença inerente ao próprio contrato, reconhecendo a sua utilidade social e econômica. Caso o acordo travado entre os contratantes não tivesse força obrigatória, consubstanciado na ideia de que o contrato faz lei entre as partes, o negócio jurídico de nada valeria.
Sem a noção de imperatividade dos contratos, a mera palavra pronunciada pelas pessoas, durante o ato negocial, não teria segurança jurídica, ocasionando sérios prejuízos aos negócios jurídicos. Não obstante, vale ressaltar que esse princípio não pode ser levado às últimas consequências, a fim de não se tornar um meio maléfico de opressão econômica.
Visando ao alcance do equilíbrio justo e real entre os deveres e direitos estipulados no contrato, antes, durante e após o seu encerramento, o princípio em apreço objetiva assegurar o justo equilíbrio contratual, quer para a manutenção da proporção preliminar dos direitos e obrigações contraídos, quer para ajustar os eventuais desequilíbrios posteriores, pouco importando se as modificações das circunstancias inicialmente presentes pudessem ser previsíveis ou não.
O que importa realmente não é mais a necessidade de cumprimento fiel do contrato, nas estritas circunstâncias em que foi pactuado, mas sim se não haverá vantagem excessiva para uma das partes e prejuízo extremo para a outra. O clássico princípio da obrigatoriedade dos contratos passou a ser compreendido na acepção de que o contrato impõe às partes um limite na constância dos direitos e deveres assumidos.
Assim, o princípio da equivalência material modificou a antiga acepção de igualdade
24 DINIZ, op. cit, p. 38.
jurídica e formal que caracterizava o conceito liberal do contrato. Dessa forma, o juiz ficava impossibilitado de levar em conta a real desigualdade dos poderes contratuais ou a instabilidade dos direitos e deveres, visto que o contrato fazia cegamente lei entre as partes, sendo indiferente se o elemento mais fraco era explorado pela mais forte.
1.2.5 Função social dos contratos
Previsto no artigo 421, do novel Código Civil brasileiro, essa norma princiológica preconiza, em poucas palavras, mas de alta carga valorativa, que a liberdade de contratar deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Nessa esteira, Xxxxxxxx Xxxxxx assevera que a função social do contrato “consiste em abordar a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes)25”.
Sendo assim, a norma ora mencionada leva ao entendimento que a liberdade contratual é fruto da autonomia da vontade legalmente conferida aos indivíduos; todavia, segundo Xxxxxx Xxxx Xx, a função social do contrato visa a atenuar o alcance desse princípio se porventura houver alguma afronta ao interesse social, notadamente se envolver interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.26
Afinal de contas, como visto anteriormente, a existência do contrato tem o condão de proporcionar que as pessoas se relacionem com o intuito de satisfazer os seus interesses, sem, contudo, afrontarem os preceitos de ordem pública.
Com efeito, o artigo 422, do Código Civil, consagra a regra de que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.
A boa-fé objetiva, perfilhada pelo Código Civil brasileiro, como por outros ordenamentos jurídicos, pode ser conceituada, portanto, como um princípio que exterioriza uma norma de conduta, que impõe a todos o dever de se agirem de acordo com um padrão
25 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx. O contrato e sua função social. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 31.
26 XXXX XX., Xxxxxx. Contratos no Código Civil. in Estudo em Homenagem ao Prof. Xxxxxx Xxxxx, coordenadores: Domingos Franciulli Netto, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxx, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx. São Paulo: LTr, 2003. p. 421.
ético de lealdade, confiança e probidade.
Conforme ensina Tartuce, ao se analisar o atual Código Civil, pode-se constatar que o princípio da boa-fé tem por objetivo três funções essenciais, quais sejam, a interpretativa, a de integração, e a de controle, apregoadas, respectivamente, nos artigos 113, 422 e 187, do mencionado códex:
1.º) Função de interpretação (art. 113 do CC) – eis que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da sua celebração. Nesse dispositivo, a boa-fé é consagrada como meio auxiliador do aplicador do direito para a interpretação dos negócios, da maneira mais favorável a quem esteja de boa-fé. 2.º) Função de controle (art. 187 do CC)
– uma vez que aquele que contraria a boa-fé objetiva comete abuso de direito (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”). Vale mais uma vez lembrar que, segundo o Enunciado n. 37 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil, a responsabilidade civil que decorre do abuso de direito é objetiva, isto é, não depende de culpa, uma vez que o art. 187 do CC adotou o critério objetivo- finalístico. Dessa forma, a quebra ou desrespeito à boa-fé objetiva conduz ao caminho sem volta da responsabilidade independentemente de culpa, seja pelo Enunciado n. 24 ou pelo Enunciado n. 37, ambos da I Jornada de Direito Civil. Não se olvide que o abuso de direito também pode estar configurado em sede de autonomia privada, pela presença de cláusulas abusivas. 3.º) Função de integração (art. 422 do CC) – segundo o qual: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Relativamente à aplicação da boa-fé em todas as fases negociais, foram aprovados dois enunciados doutrinários pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. De acordo com o Enunciado n. 25 CJF/STJ, da I Jornada, “o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual”. Nos termos do Enunciado n. 170 da III Jornada, “A boa-fé objetiva deve ser observada pelas partes na fase de negociações preliminares e após a execução do contrato, quando tal exigência decorrer da natureza do contrato”. Apesar de serem parecidos, os enunciados têm conteúdos diversos, pois o primeiro é dirigido ao juiz, ao aplicador da norma no caso concreto, e o segundo é dirigido às partes do negócio jurídico.27
Vislumbra-se, portanto, que os códigos civis da atualidade traçam as diretrizes do seu conceito, dando ao Juiz o norte para decidir uma controvérsia posta sob o seu juízo. Conforme ensina Xxxxx Xxxxx Xxxxxx, a boa fé-objetiva caracteriza-se como “um mecanismo do sistema jurídico”. Em complemento, aduz que:
A boa-fé exige um comportamento honesto das partes. E mais do que isso: exige a adoção de um comportamento que leve em consideração a pessoa do outro contratante. Esse elemento ético obriga as partes a agirem de modo colaborativo, unidas no intuito de dar ao contrato a sua verdadeira e
27 TARTUCE, op. cit., p. 442-443.
completa eficácia.28
No que tange à boa-fé, deve-se verificar as circunstâncias, a conjuntura histórica, o nível econômico e sociocultural das partes, a fim de interpretar a vontade prevalecente à época em que o contrato foi avençado.
Em princípio, crê-se que nenhum contratante aja deliberadamente com má-fé, que, se existisse, não pode passar impune. Assim, deve o juiz, diante de cada caso concreto, analisar em que fase houve o desvio dos contratantes e proferirá o seu julgamento levando-se em conta a interpretação e a hermenêutica, com o propósito de se evitar a abusividade do negócio jurídico e restabelecer a equação econômica que ensejou a celebração do contrato, protegendo a parte aviltada.
Em arremate, cumpre ressaltar que o princípio da boa-fé pode ser traduzido como um dever de conduta, amparado na confiança e na lealdade. A qualquer contratante não é dado o direito de frustrar as expectativas do outro.
1.3 Onerosidade excessiva e teoria da imprevisão nos contratos regidos pelo direito privado
Conforme estudos históricos realizados por Xxxxxxxx, o postulado da onerosidade excessiva teve origem no Código de Hamurabi, em meados do ano de 1690 a.C, o qual era composto por 282 (duzentos e oitenta e dois) artigos, além de um preâmbulo e um epílogo, os quais se pareciam mais com as ementas de julgados do que com a redação de artigos nos termos em que conhecemos hodiernamente.29 Esse códex era uma reunião de normas de direito público e privado existentes à época, abarcando matérias de cunho processual, administrativa, penal, comercial e civil.30
Nesse código, as questões inerentes ao postulado da imprevisão ficavam adstritas, basicamente, às circunstâncias que caracterizavam motivo de força maior ou de caso fortuito, se ficasse comprovado, de fato, que a prestação pactuada restara excessivamente onerosa para um dos contraentes. A Lei nº 48, do código em tela, previa a possível ocorrência de situações
28 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Responsabilidade pré e pós contratual à luz da boa-fé. Editora Xxxxxx xx Xxxxxxxx, São Paulo, 1° ed. 2003, p. 103.
29 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Código de Hamurabi e codificações anteriores. Revista Jurídica 30/21.
30 XXXXXXXX, Xxxxxxx. História do direito, especialmente do direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p.11.
imprevistas durante as colheitas, ao positivar que se “uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita, ou por falta de água não cresce o trigo no campo, ele [devedor] não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato.”31
O que a história ensina é que, muito embora essa matéria tenha conferido uma importante contribuição para o direito, a utilização dela ocorreu genérica e desordeiramente, de tal maneira que atingiu todos os atos jurídicos fundados na vontade, e não apenas os contratos que deveriam ser entendidos rebus sic stantibus.32
A teoria da imprevisão, portanto, representa vertente contemporânea da cláusula rebus sic stantibus, que, por seu turno, é a abreviação da máxima contractus qui habent tractu sucessivum et dependendum de futuro rebus sic stantibus intelligentur, significando, em vernáculo, o seguinte: “contrato que trata de prestações futuras e condicionais deve ser interpretado segundo as circunstâncias em que se encontra na atualidade.”33
A par das considerações já expendidas, convém destacar que o jusnaturalismo, corrente que preconiza que o direito não depende da vontade humana, tem sua importância para a expansão da cláusula rebus sic stantibus, ao restringir a aplicabilidade de tal preceito.
No que tange ao Brasil, não houve previsão, por parte do Código Civil de 1916, da cláusula rebus sic stantibus, bem como não há qualquer registro alusivo ao tema da revisão contratual ocasionada por circunstâncias imprevisíveis e onerosidade excessiva. Aliás, em contrapartida, o antigo Código Civil de 1916, no que tange aos seguros, previa, em seu artigo 1.45334, que os riscos agravados por circunstâncias não previstas não ensejavam ao segurador o aumento do prêmio, salvo se houvesse previsão expressa no contrato.
Somente quando entrou em vigor a Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, no ano de 1.942, hoje denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro35, é que a legislação passou a humanizar a doutrina oriunda do individualismo liberal apregoada pelo então vigente Código Civil36, conforme estabelece o seu artigo 5º, verbis:
Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.
31 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx da. A teoria da imprevisão e os contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 201, jul.-set. 1995. p. 35.
32 XXXXX, X. X. Othon. A revisão judicial dos contratos e outras figuras jurídicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 15.
33 XXXXXX, Xxxxxxxx. O latim do direito. vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 64.
34 Artigo 1.453. Embora se hajam agravado os riscos, além do que era possível antever no contrato, nem por isso, a não haver nele cláusula expressa terá direito o segurador a aumento do prêmio.
35 Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942.
36 Conforme: GUERREIRO, Xxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx. O Estado e a economia dos contratos privados. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 31, ano 17, p. 77-90, 1978. p. 86.
Por derradeiro, vale acrescentar a lição de Xxxxxxxxx (2009) sobre como esse preceito teórico adentrou ao ordenamento jurídico pátrio:
Entre nós, a teoria em tela foi adaptada e difundida por Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxxxx, com o nome de teoria da imprevisão, em sua obra Caso fortuito e teoria da imprevisão. Em razão da forte resistência oposta à teoria revisionista, o referido autor incluiu o requisito da imprevisibilidade para possibilitar sua adoção. Assim, não era mais suficiente a ocorrência de um fato extraordinário, para justificar a alteração contratual. Passou a ser exigido que fosse também imprevisível.37
Pelo que foi demonstrado nas linhas imediatamente anteriores, constata-se que houve uma considerável evolução do contrato no sentido de humanizar as relações contratuais ao se consagrar o predomínio de regras morais, em detrimento dos princípios basilares que o originou. Nessa seara, o novo Código Civil Brasileiro, publicado no ano de 2002, finalmente assinalou, em seus artigos 478 a 480, sob o título “Da resolução por onerosidade excessiva”, a questão inerente à revisão contratual motivada por fatores imprevisíveis que viessem a tornar o contrato excessivamente oneroso para um dos contratantes.
1.3.2 Alteração dos contratos em face da onerosidade excessiva prevista no atual Código Civil
O novel artigo 317, do Código Civil, encontra-se previsto no Capítulo “Do pagamento” e inovou o ordenamento jurídico pátrio ao permitir a revisão do contrato, positivando, assim, o postulado do equilíbrio econômico contratual.
Esse dispositivo se refere diretamente ao instituto da revisão judicial de prestação pecuniária, cujo valor econômico tenha se alterado de forma desproporcional, concedendo oportunidade à parte prejudicada de reestabelecer a equação rompida.
Consta no artigo 317, do Código Civil, que versa sobre revisão judicial dos contratos,
que:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Infere-se do próprio artigo supra que o legislador teve a intenção de regular a revisão
37GONÇALVES, Xxxxxx Xxxxxxx. Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. 6. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 30.
do contrato circunscrita ao valor da prestação38. Nesse elastério, mencionado dispositivo legal se traduz numa “autêntica cláusula tácita de correção do valor das prestações contratuais ou de escala móvel, na hipótese de silêncio do contrato a esse respeito.”39
Já o artigo 478, do Código Civil, prevê que:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Conquanto haja clara diferença na redação de ambos os artigos, num primeiro momento pode aparentar que a esfera de aplicação do artigo 317 é quase que idêntica ao do artigo 478, porquanto ambos os dispositivos versam acerca de eventos imprevisíveis ensejadores de desequilíbrio contratual.
No entanto, existem divergências marcantes entre os dois. O artigo 478 possibilita que a parte somente peça a resolução do contrato, à medida que o artigo 317 lhe confere a alternativa de solicitar a sua revisão judicial, objetivando o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro da relação contratual. Logo, a hipótese do artigo 317 não se coaduna com a aplicação do artigo 478, pois aquele tem o fito único de “equilibrar o custo da prestação no momento da celebração do contrato e o mesmo custo na sua execução40”, ao passo que a carga normativa do artigo 478 tem uma destinação mais abrangente, abarcando a teoria da imprevisão como um todo, tendo em vista que, ainda que trate do modo de execução do contrato, pode tratar também da onerosidade excessiva do valor correspondente às prestações pecuniárias devidas, independentemente de sua oscilação econômica.
1.3.2.1 Revisão e resolução dos contratos por onerosidade excessiva
Inicialmente, vale destacar que ambos os artigos citados no tópico anterior somente aplicam-se aos contratos que apresentam um lapso temporal entre o momento de sua celebração e o de sua execução, ou seja, os contratos de execução continuada ou de trato
38 Conforme: DIAS, Xxxxx Xxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxxxx. Onerosidade excessiva e revisão contratual no direito brasileiro. In: XXXXXXXXX, Xxxxxxxxx (Coord.). Contratos empresariais: fundamentos e princípios dos contratos empresariais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 428.
39 XXXXXXXXX XX., Xxxxxxx Xxxx. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002. p. 159.
40 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Relatório sobre revisão contratual, elaborado para a Fundação Xxxxx Xxxxxxxx. São Paulo, maio de 2005. p. 24.
sucessivo e de execução diferida.41
As causas ensejadoras da revisão contratual por onerosidade excessiva, nos termos dos artigos 478, 479 e 480, do Código Civil, foram bem delineadas por Xxxx Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx, segundo o qual a primeira condição é a existência de um contrato em que haja distantia temporis entre o momento de celebração e o momento da execução. A segunda é que a prestação de uma das partes contratantes se torne excessivamente onerosa de tal forma que autorize a resolução do vínculo. A terceira é que tal onerosidade excessiva seja capaz de provocar uma “extrema vantagem” para o credor com a ruína do devedor. A quarta é que a onerosidade excessiva seja decorrente de um evento extraordinário e imprevisível, fora da evolução regular dos acontecimentos e além da álea esperada do contrato. A quinta é que a causa do evento extraordinário e imprevisível não possa ser imputada ao contratante. E a sexta é que a resolução do contrato somente seja admitida em contratos sinalagmáticos, em estado de dependência recíproca; nos contratos unilaterais a legislação somente permite a redução da prestação ou a alteração do modo de executá-la42.
Com relação xx xxxxxx 000, xx xxxxx xxxxxxx xxxxxxxxx, x xxxxxxx xx Xxxxx é na esteira de que não há que se confundirem os artigos 478 a 480, da mesma lei, com o regramento do artigo 317, pois este último, apesar de parte de seu conteúdo ter sido desnaturado durante o processo legislativo, tinha por objetivo contornar apenas e exclusivamente o desequilíbrio gerado pela depreciação monetária43.
Nessa linha, Venosa, ao se reportar ao artigo 317, ensina que:
Para a obtenção do resultado colimado no texto há necessidade, como ressalta aos olhos, de ação judicial específica de revisão de valores das prestações. A correção monetária é valor agregado que traduz um valor real da prestação e não se amolda ao presente texto.44
Com relação a legitimidade e interesse, existem disparidades essenciais entre ambos os dispositivos legais, uma vez que o artigo 478, do Código Civil, apregoa que “poderá o devedor pedir a resolução do contrato”, desde que preenchidos os requisitos ali elencados. Da leitura do mencionado, artigo depreende-se, portanto, que apenas o devedor possui legitimidade para solicitar a resolução do contrato, ao contrário do credor, que não é
41MARTINS-XXXXX, Xxxxxx. A Revisão Contratual no Código Civil Brasileiro. Rivista Roma e America - Diritto Romano Comune, Roma, Mucchi Editore, 2003. p. 157.
42Conforme: LEÃES, Xxxx Xxxxxx Xxxx xx Xxxxxx. A onerosidade excessiva no Código Civil. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, n. 31, p. 12-24, jan./mar. 2006. p. 18-19.
43 Ibidem, p. 20.
44VENOSA, Xxxxxx xx Xxxxx. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 494.
legitimado para tanto. Além disso, o devedor não deve solicitar a modificação do contrato, mas sim a sua resolução.
Diferentemente do caso anterior, o artigo 317, do mesmo códex, prevê que tanto o devedor, como o credor, estão legitimados a ingressarem no Poder Judiciário pleiteando a revisão judicial do contrato, pois está previsto, no bojo do referido artigo, que “poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte”. (grifo nosso)
Todavia, se o réu aceitar a modificar equitativamente as condições contratuais causadoras da onerosidade excessiva, a resolução do contrato delineada pelo artigo 478, do Código Civil, poderá ser evitada, conforme estabelece o artigo 47945 do mencionado diploma. Para que isso ocorra, o réu deverá manifestar-se expressamente perante o juiz, pedindo a continuidade do contrato e apresentando novas alternativas que permitam ao resgate das condições originárias da relação contratual que foram abaladas.
Há de salientar que o artigo 479, do Código Civil, postula o princípio da conservação dos negócios jurídicos ao prever a possibilidade de revisão ou alteração do contrato, no caso de a parte beneficiada demonstrar manifesto interesse na promoção do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato ora desestabilizado.
Nessa vertente, vale mencionar o Enunciado nº 176, do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil, que, em absoluto apoio ao primado da conservação dos negócios jurídicos, previu o seguinte: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”46.
45 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
46 Conselho da Justiça Federal. III Jornada de Direito Civil. Disponível em:< xxxx://xxx.xxx.xxx.xx/xxxxxxxxxx/xxxxxxxxx/000>. Acesso em: 21 jun. 2017.
2 TEORIA GERAL DOS CONTRATOS ADMINISTATIVOS
2.1 Aspectos históricos do contrato administrativo
O contrato administrativo não era admitido pelo Direito Administrativo existente na primeira metade do século XIX, tendo em vista que, naquela época, entendia-se que as relações autoridade-particular não eram sob bases paritárias e contratualistas, mas sim sob o enfoque de imanente supremacia do Estado47.
Em que pese tenha se desenvolvido nesse período uma teorização do contrato de direito público como espécie da categoria geral do contrato48, ela foi repelida por parte da jurisprudência e da doutrina daquele momento, a qual compactuava do entendimento de que sendo o modelo contratual pertencente exclusivamente ao direito privado, as declarações de vontade das partes estavam regidas exclusivamente pelo Direito Civil49.
Esse entendimento estava em consonância com a visão ideológica existente à época, isto é, a do Estado liberal, que, por seu turno, apregoava o maior afastamento possível do Estado das relações travadas entre os particulares. Nessa esteira, o contrato era filosoficamente considerado como uma ferramenta inerente à liberdade dos cidadãos, distanciando-se da esfera pública.
Na medida em que a filosofia propagada pelo Estado liberal ia se mostrando incapaz aos propósitos humanos, a teoria do contrato administrativo começou a progredir, até que, depois da 1ª Guerra Mundial, Apelt aventou que:
O contrato de direito administrativo desligue-se de uma perspectiva supremacia/sujeição para ser melhor compreendido como meio de auto- regulação de interesses recíprocos de, pelo menos, dois sujeitos em relação a uma atividade submetida ao Direito Administrativo, como é o caso dos serviços públicos.50
Ao término da Segunda Guerra Mundial, a teoria do contrato administrativo igualmente evoluiu, dando origem ao Zw eistufentheorie (1956).51 Nos dizeres de Bacellar
00XXXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Direito administrativo e o novo código civil. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 166-167.
48 Conforme: Teoria desenvolvida por XXXXXX em seu livro Das Staatsrecht des Deutschen Reiches, mencionado em BACELLAR FILHO, Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 167 e acompanhada por XXXXXXXX, que sustentava que, em determinadas situações, o contrato de direito público mostrava-se o único meio para modificar o status libertatis do cidadão, criando uma relação jurídica de sujeição do particular com o Estado, quando esta não estivesse prevista em lei, também em BACELLAR FILHO, Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 169.
49 BACELLAR XXXXX, 2007, op. cit., p. 167.
50 Ibidem, p. 170.
51 Ibidem, p. 171.
Filho acerca das bases dessa teoria:
O autor opta por uma solução de consenso no intuito de compatibilizar o dogma da unilateralidade do exercício dos poderes públicos com a excepcionalidade da definição consensual. A relação jurídica entre Administração e particulares seria um módulo composto porque instaurada por um ato administrativo unilateral e regulada, nos aspectos ligados ao seu desenvolvimento, por um contrato de Direito Privado. Restava salvaguardado o interesse público porque o ato administrativo unilateral tinha primazia sobre o de Direito Privado. Tratava-se, então, de um contrato de Direito Privado gravado a uma ato administrativo.52
Assevera, também, Xxxxxxxx Xxxxx, que, muito embora tenha havido progressos para se reconhecer a categoria própria do direito público, houve, nos anos 60, manifestação antagônica, liderada por Xxxxxxxxx, para o qual “a autoridade administrativa deveria atuar no âmbito da atividade comercial e empresarial segundo as regras do direito privado.”53
Contudo, essa premissa não foi estruturada na desigualdade entre Estado e cidadão, mas na obrigatoriedade, calcada no Estado de Direito, de a Administração Pública obedecer à lei. Nessa esteira, Xxxxxxxx Xxxxx, ao mencionar o entendimento de Xxxxxxxxx, comenta que: [...] o recurso o módulo contratual em setores do “Direito Administrativo autoritário” importaria um retorno ao Estado de polícia, porque aceitaria uma atividade administrativa de Direito Púbico livre de limites próprios à legalidade, proporcionalidade.54
Finalizando o detalhado estudo histórico sobre o tema, Xxxxxxxx Xxxxx aponta para a os ensinamentos de Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, lastreada na “teoria das modulações”, que contribuiu com a teoria dos contratos administrativos, a seguir transcrita:
A premissa básica é que as instituições do Direito Administrativo não precisam ser substancialmente equivalentes àquela do Direito Civil. No Direito Administrativo, modulam-se as instituições técnicas jurídicas gerais para atender às exigências relativas à Administração Pública, modulação que admite variados graus conforme a singularidade da instituição. Ao invés de pensar-se o contrato administrativo de forma comparada ao contrato civil, trata-se de analisar quais são as variáveis que a presença subjetiva da Administração introduz no molde contratual.55
Nesse contexto, Xxxxxxxx Xxxxx continua explanando sobre o tema que:
Tal modulação é exigida em face de duas circunstâncias ligadas: (i) à função da Administração Pública com organização coletiva, (ii) ao giro ou tráfico próprio das Administrações Públicas que constituem o núcleo do contrato
52 Ibidem, p. 171.
53 Ibidem, p. 171.
54 Ibidem, p. 172.
55 Ibidem, p. 172.
administrativo, ou seja, às peculiaridades da atividade administrativa.56
E, complementando tal estudo, é pertine destacar novamente o posicionamento de Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx sobre o tema, para o qual essa modulação pode ocorrer de três formas diferentes: (i) pela derrogação de normas contratuais comuns; (ii) pelo reconhecimento da diferente função que cumpre a noção de ordem pública como limite à licitude dos pactos e
(iii) pelas concessões de prerrogativas ao Poder Público, usualmente chamadas na doutrina francesa, de cláusulas exorbitantes, resultantes do privilégio da decisão unilateral e execução prévia anterior ao conhecimento judicial, impondo ao particular o ônus da impugnação judicial.57
Esses privilégios detidos pela Administração Pública asseguram-lhe, portanto, a supremacia nas relações com os particulares, colocando-a num patamar de superioridade em relação aos particulares, em razão das necessidades públicas a serem contornadas pela atividade administrativa.
2.2 O contrato administrativo como um dos instrumentos de realização do interesse público por parte do Estado
Com a ampliação das funções do Estado, o provimento do bem-estar social como meio de expansão da personalidade humana se torna, a partir de então, alvo do Estado- providência, sendo essa finalidade o fundamento do próprio Estado, circunstância muito bem explicada nas palavras de Xxxxxx, para quem: “É no interesse coletivo que o Estado encontra sua justificação”58, já que:
O agir do Estado revela um poder construído e outorgado pelos indivíduos quese relacionam numa determinada sociedade, num determinado tempo. O poder do Estado é instituído pela sociedade. (...) O Estado é o poder social institucionalizado e ele se legitima enquanto exterioriza suas finalidades. (...) O Estado é uma produção social e sua finalidade tem que ser uma finalidade social.59
A busca de tais objetivos é, portanto, a finalidade e o alicerce do Estado, que podem ser levados a efeito por ato puro, unilateral, do Estado, denominados atos administrativos, ou
56 Ibidem, p. 173.
57 Apud ibidem, p. 173.
58 XXXXXX, Xxxxxxxxx. Privatização e serviços públicos: as ações do Estado na produção econômica. São Paulo: Xxx Xxxxxxx, 2002. p. 16.
59 Ibidem, p. 35-36.
por intermédio de acordos, ajustes avençados com os particulares (pessoas naturais ou jurídicas) para a realização de fins públicos, sendo esses firmados por meio dos contratos administrativos, que, nas palavras do saudoso Meirelles, são os ajustes que a Administração Pública, nesta qualidade, firma com particular ou outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração.60
Dessa forma, conclui-se que os contratos administrativos são meios instrumentais dos quais o Estado se utiliza para a consecução do interesse público, sendo conduzido por regime jurídico próprio que dá ao Estado prerrogativas e garantias que lhe possibilitam a satisfação dos interesses públicos, dada a importância dos seus objetivos (bem estar geral e coletivo).
Não se pode olvidar, todavia, que o Estado possui dúplice função: (i) a proteção dos direitos individuais dos cidadãos e (ii) a satisfação dos interesses coletivos.
Diante disso, o contrato regido por normas de direito privado, com todas as suas peculiaridades, afigura-se como um instrumento de proteção jurídica da autonomia das pessoas, bem como das relações sociais, em virtude até mesmo da supremacia do interesse público. Por essas razões, seus princípios não podem ser simplesmente desprezados, sob o risco de haver um retrocesso ao Estado arbitrário adrede existente.
As finalidades conferidas pelo contrato privado (proteção de liberdades) e pelo contrato público (realização do interesse público), embora divergentes, são de especial relevância para a sociedade. Por tal motivo, é de bom alvitre que tais teorias convivam bem, porquanto a restrição a seus princípios podem ocorrer tão-somente por circunstancias rigorosamente justificáveis.
Sobre esse tema, Xxxxxxxx Xxxxx enaltece as ilações de Xxxxxxx Xxxxxx de Enterría acerca de sua “teoria das modulações”, concernente ao reconhecimento da categoria dos contratos administrativos:
A premissa básica é que as instituições do Direito Administrativo não precisam ser substancialmente equivalentes àquela do Direito Civil. No Direito Administrativo, modulam-se as instituições técnicas jurídicas gerais para atender às exigências relativas à Administração Pública, modulação que admite variados graus conforme a singularidade da instituição. Ao invés de pensar-se o contrato administrativo de forma comparada ao contrato civil, trata-se de analisar quais são as variáveis que a presença subjetiva da
60MEIRELLES, Xxxx Xxxxx. Direito administrativo brasileiro. 26. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 201.
Administração introduz no molde contratual61.
Nessa linha, continua Xxxxxxxx Xxxxx explicando que:
Tal modulação é exigida em face de duas circunstâncias ligadas: (i) à função da Administração Pública com organização coletiva, (ii) ao giro ou tráfico próprio das Administrações Públicas que constituem o núcleo do contrato administrativo, ou seja, às peculiaridades da atividade administrativa62.
Nos dizeres de Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, essa modulação pode ocorrer de três formas distintas:
(1) pela derrogação de normas contratuais comuns; (2) pelo reconhecimento da diferente função que cumpre a noção de ordem pública como limite à licitude dos pactos e (3) pelas concessões de prerrogativas ao Poder Público, usualmente chamadas na doutrina francesa, de cláusulas exorbitantes, resultantes do privilégio da decisão unilateral e execução prévia anterior ao conhecimento judicial, impondo ao particular o ônus da impugnação judicial.63
2.3 A teoria da imprevisão nos contratos administrativos
Inicialmente, cumpre ressaltar que direito à manutenção das cláusulas econômicas e financeiras do contrato administrativo tem matriz constitucional, notadamente no artigo 37, inciso XXI64, que deixou a sua regulamentação a cargo de uma lei ordinária, que culminaria, posteriormente, com a edição da Lei nº 8.666/93.
Portanto, não há dúvidas que o direito à manutenção da equação econômico- financeira original dos contratos privados vigora também no campo jurídico dos contratos administrativos, que é regido predominantemente pelo Direito Público. Nesse viés, convém destacar o posicionamento de Sundfeld:
61 BACELLAR XXXXX, 2007, op. cit., p. 172.
62 Ibidem, p. 173.
63 Apud ibidem, p. 173.
64 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (grifo nosso)
Pode-se afirmar, então, que o regime jurídico dos contratos da Administração, no Brasil, compreende a regra da manutenção da equação econômico-financeira originalmente estabelecida, cabendo ao contratado o direito a uma remuneração sempre compatível com aquela equação, e a Administração o dever de rever o preço quando em decorrência de ato estatal (produzido ou não a vista da relação contratual), de fatos imprevisíveis ou da oscilação dos preços da economia, ele não mais permita a retribuição da prestação assumida pela particular, de acordo com a equivalência estipulada pelas partes no contrato.65
Nessa vereda, ensina também o ilustre Professor Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx que:
Significa que a Administração tem o dever de ampliar a remuneração devida ao particular proporcionalmente à majoração dos encargos verificada. Deve- se restaurar a situação originária, de molde que o particular não arque com encargos mais onerosos e perceba a remuneração originária prevista.66
Nos dizeres de Xx Xxxxxx, “tais circunstâncias imprevistas, além de serem supervenientes à celebração do contrato, devem ultrapassar a normalidade, ser excepcionais, extraordinárias, causando um desequilíbrio muito grande no contrato.”67
Por via de consequência, pode-se inferir que houve a integração do postulado rebus sic stantibus e da Teoria da Imprevisão com o regramento contratual administrativista, haja vista que o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, uma das pilastras do Direito Administrativo, não poderia impedir, por si só, a observância aos direitos da parte contratada, dentre eles o de remunerar-se adequadamente pela prestação de serviços à Administração Pública. Caso contrário, seguramente os particulares não teriam interesse em sujeitar-se ao poder de império do Estado, ao travar ajustes que não lhes assegurassem minimamente o ganho de lucro, até mesmo porque explorar seus contratados até arruiná-los não condiz com os propósitos do Estado, que, ao contrário, deve buscar sempre a promoção do melhor negócio, primando pela proposta mais vantajosa para si, porém sem deixar que a relação econômico-financeira degringolar.
Após o reconhecimento da existência do direito de reequilíbrio econômico financeiro dos contratos administrativos, restou apenas conceituá-lo. Nessa vertente, destaca-se o magistério de Xxxxxxxx Xxxxx:
Equação econômico-financeira do contrato é a relação de adequação entre o
00XXXXXXXX, Xxxxxx Xxx. Licitações e Contratos Administrativos. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 239.
00XXXXXX XXXXX, Xxxxxx. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2009. p. 499-500.
67Conforme: Xx Xxxxxx, Xxxxx Xxxxxx. Direito administrativo. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 264.
objeto e o preço, que deve estar presente ao momento em que se firma o ajuste. Quando é celebrado qualquer contrato, inclusive o administrativo, as partes se colocam diante de uma linha de equilíbrio que liga a atividade contratada ao encargo financeiro correspondente. Mesmo podendo haver certa variação nessa linha, o certo é que no contrato é necessária a referida relação de adequação. Sem ela, pode dizer-se, sequer haveria o interesse dos contratantes no que se refere ao objeto do ajuste.68
Vale ressaltar, todavia, a lição de Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx, para o qual o direito ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo não se confunde com a permanência de situação lucrativa para a empresa contratada. Por tal locução, deve-se entender o direito de se preservarem as condições estipuladas no momento da contratação69.
Com efeito, depreende-se que o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos tem o condão de resguardar a equação existente entre os encargos resultantes do contrato e o preço inaugural da proposta. Resta, assim, patente a ingerência da cláusula rebus sic stantibus nesse tipo de avença, até mesmo porque as causas motivadoras da revisão contratual não se circunscrevem somente nas hipóteses de sobrevierem fatos imprevisíveis, visto que também incidem em outras situações, tais como nos reajustes, por exemplo.
Nesse mote, cabe enfatizar a lição da Professora Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx, a qual afirma que quanto aos contratos administrativos é mais difícil fazer, quando de sua celebração, uma correta previsão de equilíbrio, na medida em que há maior número de variáveis de risco, a exemplo da extensa duração, do volume de recursos, da complexidade da execução, dentre outros, o que evoca a necessidade de um equilíbrio de caráter dinâmico70.
2.3.1 Do equilíbrio econômico financeiro do contrato administrativo
O saudoso Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxx trata do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo como uma possível causa de justificação de sua inexecução, que pode decorrer: (a) da teoria da imprevisão; (b) de força maior e caso fortuito; (c) do fato do príncipe; (d) de fato da administração; (e) de estado de perigo; (f) de lesão; e (g) de interferências imprevistas, conceituando-as da seguinte forma:
a) a teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e imprevisíveis, onerosos, retardadores ou impeditivos da
00XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx. Manual de Direito Administrativo. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 179-181.
69Conforme: XXXXXX XXXXX, op. cit., p. 747.
70Conforme: DI XXXXXX, op. cit., p. 263.
execução do contrato, ficando a parte atingida liberada dos encargos iniciais e o ajuste se torna necessário ou sua rescisão;
b) força maior é o evento humano que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, cria para o contratado impossibilidade intransponível de regular execução do contrato. No entanto, poderá deixar de sê-lo se não afetar totalmente o cumprimento do ajuste, ou se o contratado contar com outros meios para contornara incidência de seus efeitos no contrato. Caso fortuito é o evento da natureza que, por sua imprevisibilidade e inevitabilidade, cria para a contratada impossibilidade intransponível de regular execução do contrato, resultando na impossibilidade total da execução do contrato ou no retardamento do andamento do contrato, desde que não haja culpa das partes;
c) fato do príncipe é a determinação legal, positiva ou negativa, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execução do contrato, constituindo-se em álea administrativa extraordinária e extracontratual;
d) fato da administração é ação ou omissão do Poder Público que, incidindo direta e especificamente sobre o contrato, retarda ou impede sua execução. O fato da administração equipara-se à força maior e produz os mesmos efeitos excludentes de responsabilidade do particular pela inexecução contratual;
e) estado de perigo, segundo o Código Civil, configura-se quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa;
f) lesão, segundo o Código Civil, é quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta; e
g) interferências imprevistas são ocorrências materiais não cogitadas pelas partes na celebração do contrato, mas que surgem na sua execução de modo surpreendente e excepcional, dificultando e onerando o prosseguimento e a conclusão dos trabalhos. Não se confundindo com outras superveniências– caso fortuito, força maior, fato do príncipe, fato da administração – porque estas sobrevêm ao contrato, ao passo que aquelas o antecedem, mas se mantêm desconhecidas até serem detectadas na execução do contrato.71 (grifo nosso)
Analisando as normas contidas na Lei Federal nº 8.666/93, de forma sistematizada, Xxxxxxxx Xxxxxx concluiu que tal estrutura normativa oferece, basicamente, as seguintes hipóteses ensejadoras de reequilíbrio econômico-financeiro lato sensu do contrato administrativo, fundamentado na cláusula rebus sic stantibus: (1) atualização monetária ou financeira (art. 55, III); (2) reajuste (art. 55, III) e (3) reequilíbrio econômico-financeiro stricto sensu (art. 65, II, d).72
O artigo 57, § 1º, combinado com o artigo 65, inciso II, d, primeira parte, da Lei Federal nº 8.666/93, prevê, expressamente, a aplicação da teoria da imprevisão para as contratações da Administração Pública, disciplinando o equilíbrio econômico-financeiro dos
71MEIRELLES, Xxxx Xxxxx. Licitação e contrato administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros. 2006, p. 250- 251.
00XXXXXX, Xxxxxxxx. O novo posicionamento do TCU acerca da repactuação contratual. Fórum de Contratação e Gestão Pública, ano 7, n. 82, out./2008, p .7-12.
contratos administrativos, uma vez que faz menção aos fatos supervenientes imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, como causas ensejadoras do balanceamento da equação originária, decorrente da álea extracontratual e extraordinária, in verbis:
Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: [...]
§1º Os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo:
[...]
II - superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato;
[...]
Art. 65. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
[...]
II - por acordo das partes:
[...]
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual. (grifo nosso)
Com efeito, no que tange aos fatos previsíveis, mas de consequências incalculáveis, o impulso inicial seria o de extirpá-los do contexto teórico da imprevisão, já que inexistente a imprevisibilidade do fato; porém, pelo fato de as consequências serem totalmente imprevisíveis no momento da contratação, é razoável que recebam igual tratamento.
Di Xxxxxx, ao apontar os conceitos basilares que norteiam a Teoria da Imprevisão, liga-as especificamente à chamada álea econômica, distanciando-se dos institutos que fundamentam a álea administrativa (fato do príncipe, fato da administração e alterações unilaterais) e da força maior73.
Depreende-se, portanto, que o artigo 57, § 1º, II, combinado com o artigo 65, inciso II, alínea d, da supracitada lei de licitações e contratos, leva ao entendimento de que a Teoria da Imprevisão abarcaria somente os fatos imprevisíveis e os previsíveis, porém de
73 Conforme: DI XXXXXX, op. cit., p. 264, 268-271.
consequências incalculáveis, em ambas as circunstâncias, em caso de restar comprovada uma excessiva majoração à execução do contrato.
3 APLICABILIDADE DOS POSTULADOS DA ONEROSIDADE EXCESSIVA E DA TEORIA DA IMPREVISÃO DO DIREITO PRIVADO AOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS
Como visto, os institutos da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva originou-se no âmbito do Direito Privado; contudo, é inegável a sua inter-relação com as regras que norteiam o instituto do contrato administrativo, pois as alterações trazidas pelo novo Código Civil passaram a incidir, indubitavelmente, no campo dos contratos celebrados pela Administração Pública, harmonizando ambos os regimes.
Nessa linha de raciocínio, Xxxxxxxx Xxxxx chega a dizer que no contrato administrativo não é o Direito Público que incide sobre as regras gerais de Direito Privado, mas o:
Direito Privado que incide nas contratações da Administração Pública, ora com maior intensidade, ora com menor intensidade, mas nunca desacompanhado de normas próprias do Direito Administrativo (o que leva à negação de contratos celebrados pela Administração Pública regidos exclusivamente pelo direito privado).74
Na sequência, arremata dizendo:
Com efeito, muitos dos princípios contratuais foram alocados tradicionalmente no Campo de Direito Civil, pois este foi o ramo do Direito Privado que primeiro se desenvolveu, além de ter sido o berço da noção do contrato. Por essa razão, há princípios contratuais pertencentes à teoria geral do Direito, com diferentes matizes quando incidam em relações jurídicas mais fortemente reguladas pelo Direito Civil ou pelo Direito Administrativo.75
Não obstante os contratos administrativos sejam enquadrados como espécie do gênero contratos, que são predominantemente regidos pelo direito privado, incidem sobre ele as chamadas cláusulas exorbitantes, fundada no princípio da supremacia do interesse público.
No entanto, verifica-se clara a integração entre os interesses públicos e privados no seio dos contratos administrativos, pois, ainda que a doutrina majoritária entenda que eles pertençam ao ramo do direito público, há de se ressaltar que recaem sobre eles as regras gerais dos contratos privados, de forma subsidiária, desde essas normas não venham a contrastar com os interesses da sociedade.
Até mesmo a Lei nº 8.666/93, em seu artigo 54, preconiza a aplicação subsidiária do
74 BACELLAR XXXXX, 2007, op. cit., p. 172.
75 Ibidem, p. 176.
Direito Civil aos contratos da Administração, verbis:
Art. 54 Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. (grifo nosso)
Portanto, como já exaustivamente demonstrado no presente trabalho, é inegável que o regime jurídico que rege os contratos da Administração protege a manutenção da sua equação econômico-financeira. Isso porque é direito do contratado obter uma remuneração condizente com os encargos por ele assumidos e a Administração, por seu turno, tem o dever de reexaminar o preço quando surgirem fatos imprevisíveis ou alterações econômicas abruptas que causem prejuízos significativos a uma das partes, impedindo o particular de saldar com os encargos por ele assumidos no início do contrato.
Como foi demonstrado, a aplicação da Teoria da Imprevisão aos contratos administrativos foi albergada pela Constituição Federal e regulamentada pelos artigos 57, § 1º, II, e 65, inciso II, alínea d, da Lei nº 8.666/93. Assim sendo, essa teoria está alicerçada nos preceitos de Direito Público, notadamente na indisponibilidade do interesse público.
Todavia, a cláusula que confere o direito ao equilíbrio contratual é inderrogável pelas partes, pois, caso houvesse uma renúncia prévia a esse instituto por parte do contratante, esse ato certamente seria considerado nulo, já que uma possível inadimplência provocada pela onerosidade excessiva prejudicaria a coletividade por conta de uma eventual solução de continuidade do serviço público tutelado por aquele contrato.
Nesse elastério, vale citar o escólio de Medauar, para a qual a Teoria da Imprevisão:
Se expressa em: circunstâncias, que não poderiam ser previstas no momento da celebração do contrato, vêm modificar profundamente sua economia, dificultando sobremaneira sua execução, trazendo “déficit” ao contratado; este tem direito a que a Administração o ajude a enfrentar a dificuldade, para que o contrato tenha continuidade76.
Deve ser ressaltado, entretanto, que a necessária recomposição da variação dos custos do contrato, motivada pela teoria da imprevisão (álea extraordinária), equalizando-os conforme a realidade de mercado, há de ser partilhada entre Administração e o contratado, já que o prejuízo gerado recai sobre ambos.
Por outro lado, a recomposição da equação financeira nos casos de fatos previsíveis,
76MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 9ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunas, 2005. p. 257.
mas de consequências incalculáveis, autorizada pela lei, é inerente aos riscos do negócio, dever ser, portanto, arcados pelo contratado, não cabendo à Administração repará-los.
É interessante mencionar que para que fique caracterizada a Teoria da Imprevisão na esfera dos contratos administrativos, a causa motivadora deve ser superveniente e imprevisível, ou previsível, mas de consequências incalculáveis. Também não pode ser resultante de culpa ou dolo, tanto do contratante, como da Administração Pública; ser causador de desequilíbrio da composição econômico-financeira inicialmente pactuada, a qual severa se protrair no tempo.
Nesse sentido, impende destacar os ensinamentos ministrados por Xxxx Xxxxxxx Xxxx e Xxxxx Xxxxxxxx acerca das premissas básicas a ensejar a recomposição do equilíbrio econômico financeiro dos contratos administrativos:
Para que surja, em benefício do contratado, o direito ao reequilíbrio de qualquer contrato administrativo, é necessário que: i) o contratado seja de longa duração ou, pelo menos, a obrigação seja diferida (tractum successivum et dependentiam de futuro, no velho aforismo); ii) após a vinculação do particular, tenha ocorrido um fato que não poderia ter sido previsto inicialmente, por mais diligente que fosse a parte; iii) esse fato não tenha decorrido do comportamento do particular, ou seja, sua superveniência não se tenha verificado por culpa sua; iv) esse mesmo fato tenha gerado um desequilíbrio na equação econômico- financeira do contrato, de forma que ocorra a diminuição do retorno a ser granjeado pelo particular.77 .
Nesse mote, a aplicabilidade da teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva aos contratos administrativos também é avalizada por Xxxxxxxxx, para o qual:
Embora típica do Direito Privado, a instituição do contrato é utilizada pela Administração Pública na sua pureza originária (contratos privados realizados pela Administração) ou com as adaptações necessárias aos negócios públicos (contratos administrativos propriamente ditos). Daí porque a teoria geral dos contratos é a mesma tanto para os contratos privados (civis e comerciais) como para os contratos públicos, de que são espécie os contratos administrativos e os acordos internacionais.78
00XXXX, Xxxx Xxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxx. O Estado, A Empresa e o Contrato. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 110-111.
78MEIRELLES, Xxxx Xxxxx. Op. cit., p. 201. Compactuam dessa corrente também Celso Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, para quem “são os contratos travados pela Administração regulados quanto ao conteúdo e efeito pelo
direito privado, mas quanto às condições e formalidades para estipulação e aprovação, pelo direito Administrativo” (BANDEIRA DE XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx. Curso de direito administrativo. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 555.) e XXXXXXX XXXX, Xxxxx xx Xxxxxxxxxx. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral, parte especial. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 478, para quem “os
Prevalece, portanto, a tese que respalda a incidência dos preceitos de direito privado nos contratos administrativos regidos pelo direito público, conforme dito por Xxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, mencionado por Xxxxxxxx Xxxxx, para o qual “os contratos administrativos possuem uma lógica específica em relação àqueles regulados exclusivamente pelo contrato privado”.79
Com efeito, a possiblidade de resolução do contrato privado por excessiva onerosidade, após a tipificação do artigo 47880, no Código Civil de 2002, ampliou o alcance da cláusula rebus sic standibus, limitando, consequentemente, a cláusula pacta sunt servanda. Isso interferiu sobremaneira na seara dos contratos públicos, aproximando-o dos preceitos privados, para o fim de melhor protegê-los, diante da maior vulnerabilidade dos contratos administrativos em relação à manutenção da equação econômico-financeira inicialmente estabelecida, durante a sua execução.81
Sob esse prisma, a doutrina e jurisprudência nacionais têm entendido pela possibilidade de aplicação da exceptio non adimpleti contractus do artigo 478, do Código Civil, aos contratos administrativos, sempre que ocorrerem situações impeditivas à realização do contrato decorrente de situações não amparadas pelo artigo 78, incisos XIII a XVII, da Lei nº 8.666/9382, como se pode observar no seguinte julgado, que embora tenha reconhecido a
contratos da Administração Pública, regidos em grande parte pelo Direito Privado, mas ainda sob forte influência do Direito Público”.
79 XXXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 178.
80Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
81 Conforme: Ibidem, p. 179.
82Art. 78 Constituem motivo para rescisão do contrato:
[...]
XIII - a supressão, por parte da Administração, de obras, serviços ou compras, acarretando modificação do valor inicial do contrato além do limite permitido no § 1º do art. 65 desta Lei;
XIV - a suspensão de sua execução, por ordem escrita da Administração, por prazo superior a 120 (cento e vinte) dias, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, ou ainda por repetidas suspensões que totalizem o mesmo prazo, independentemente do pagamento obrigatório de indenizações pelas sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações e outras previstas, assegurado ao contratado, nesses casos, o direito de optar pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas até que seja normalizada a situação;
XV - o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;
XVI - a não liberação, por parte da Administração, de área, local ou objeto para execução de obra, serviço ou fornecimento, nos prazos contratuais, bem como das fontes de materiais naturais especificadas no projeto; XVII - a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, regularmente comprovada, impeditiva da execução do contrato.
[...]
inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão neste caso concreto, confirmou a possiblidade de aplicação do artigo 478, do Código Civil, aos contratos administrativos.
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. DIREITO CIVIL. CEDAE. PREGÃOELETRÔNICO. AUTORA VENCEDORA DO CERTAME. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA FUNDADA NA ALEGAÇÃO DE DESEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DE CONTRATO DE FORNECIMENTO DE SULFATO DE ALUMÍNIO LÍQUIDO, FRUTO DE AUMENTO CONSIDERADO IMPREVISÍVEL NO PREÇO DA MATÉRIA-PRIMA APÓS A DATA DA LICITAÇÃO E ANTES DA ASSINATURA DO CONTRATO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. REFORMA QUE SE IMPÕE. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DA IMPREVISÃO.
1. Pregão eletrônico ocorrido em 31/07/2007, com assinatura do contrato administrativo em 11/09/2007. Requerimento administrativo de recomposição do preço apresenta do pela Autora 22 dias após a assinatura do contrato.
2. Inocorrência de evento extraordinário e imprevisível, mas mera variação no preço da matéria prima (commodity), inserida na álea ordinária do contrato, e que não pode ser atribuída à Administração.
3. Artigo 478 do Código Civil que autoriza a resolução do contrato de execução continuada ou diferida quando demonstrado que a prestação de uma das partes se tornou excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em razão de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.
4. Ademais, o art. 65, II, d da Lei8.666/93somenteadmite a alteração do contrato administrativo, por acordo das partes, visando restabelecer o equilíbrio contratual inicialmente entabulado diante da constatação de fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
5. Na linha de entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a variação de preço de matéria prima constitui fato ordinário e previsível, notadamente quando as partes contratantes conhecem as flutuações cambiais no mercado em que atuam.
6. O pedido administrativo de recomposição do preço, apresentado apenas 22 dias após a data da assinatura do contrato, revela, com nitidez, que a proposta da Autora foi mal calculada, oque inviabiliza a pretensão indenizatória deduzida na inicial, sob pena de violação à regra do menor preço prevista na Lei do Pregão Eletrônico (Art. 4º, X da Lei nº 10.520/02) e à participação dos licitantes em igualdade de condições.
7. Reconhecer o direito à indenização postulada pela Autora representaria grave deturpação às regras licitatórias, com afronta ao princípio da igualdade, porquanto penalizaria o participante que apresentou proposta mais compatível e coerente com o objeto do certame, sem apostar num eventual ressarcimento pela via judicial.
8. Segundo doutrina de Sílvio de Xxxxx Xxxxxx, “um fato será extraordinário e anormal para o contrato quando se afastar do curso ordinário das coisas. Será imprevisível quando as partes não possuírem condições de prever, por maior diligência que tiverem. Não podemos atribuir a qualidade de extraordinário ao risco assumido no contrato em que estavam cientes as partes da possibilidade de sua ocorrência.
9. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
10. Provimento do primeiro recurso (CEDAE), para improcedência do
pedido inicial, ficando prejudicado o segundo recurso. 83
Por outro lado, é importante frisar que a revisão do contrato administrativo para a restauração do equilíbrio financeiro deveria ser suscitado primeiramente na via administrativa, sendo formalizado por termo de aditamento, nos termos dos artigos 60 e 61, §1º, da Lei n. 8.666/1993.
Nada impede, entretanto, que a parte prejudicada recorra ao Poder Judiciário se a Administração, mesmo amparada pela lei e podendo atuar de ofício, manter-se silente quanto à revisão do contrato objetivando a restauração da equação econômica originária, em face da garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição, esculpida no artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal84.
Para finalizar, Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx abordam essa questão com maestria, ao ensinarem que:
Tanto no contrato administrativo como no contrato de direito privado, o equilíbrio econômico-financeiro entre os direitos e obrigações das partes contratantes importa em condição de validade, que expressa a própria justiça contratual e denota a boa-fé objetiva externa por ocasião do acertamento de vontades.
Uma vez verificado o desequilíbrio econômico-financeiro na relação contratual, por conta de fatores fugidios ao controle e vontade dos contratantes, sua revisão se impõe não apenas para restauração do estado de legalidade, mas para preservação da utilidade coletiva que deles se extrai (função social).
A recomposição da equação econômico-financeira dos contratos administrativos pode e deve, sempre que possível, ser implementada por meio de um processo interno, instaurado ex officio ou a pedido. Do mesmo modo, nada obsta que os contratos de direito privado sejam revistos, a pedido de uma ou de ambas as partes, para restauração da justiça contratual. Aliás, hipótese como essa apenas confirmaria a boa-fé objetiva recíproca, ainda quando presente desequilíbrio na relação contratual.
De qualquer sorte, ao Poder Judiciário é dado conhecer e decidir os contratos administrativos e os de direito privado por conta da superveniência de fatos alteradores do equilíbrio contratual. Tal não significa dizer, entretanto, que a vontade/pretensão de uma ou de outra parte, pública ou privada, prevalecerá, havendo espaço legítimo para decisões judiciais intermediárias pautadas pela justiça contratual.
83BRASIL. Décima Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 0204999-92.2009.8.19.0001/RJ, Relator: Desembargador Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxxxx, Data de Julgamento: 09/03/2016. Disponível em: < xxxxx://xx-xx.xxxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxxxxx/000000000/xxxxxxxx- apl-2049999220098190001-rio-de-janeiro-capital-14-vara-faz-publica/inteiro-teor-351246599>. Acesso em: 22 jun.2017.
84 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Como a utilidade coletiva é pressuposta, tanto nos contratos de direito privado como nos administrativos, sempre que possível a solução intermediária, de recomposição (do equilíbrio econômico-financeiro), há de ser privilegiada. A eventual resolução do contrato, como medida de prestação jurisdicional, pode apenas servir para amainar os ânimos egoísticos das partes contratantes, o que não necessariamente reflete o interesse coletivo que dele (do contrato) se pode extrair.85
85Âmbito Xxxxxxxx.xxx.xx. "Função social" e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, privados e administrativos. Disponível em:
>. Acesso em: 21 jun. 2017.
4 CONCLUSÃO
O objetivo deste trabalho foi estudar a aplicabilidade da Teoria da Imprevisão dos contratos regidos pelo Direito Privado aos contratos celebrados pela Administração Pública, sob a ótica da preservação de sua equação econômico-financeira.
No início, verificou-se que os contratos administrativos são instrumentos essenciais de que se vale a Administração Pública para promover a satisfação dos interesses da coletividade. Unificado pelas disposições constitucionais, tanto o contrato administrativo, como o regido pelo direito privado, devem centrar-se na perspectiva de desenvolvimentos humano e do bem-estar social.
Dentro dessa nova ótica, a incidência da Teoria da Imprevisão dos contratos privados nos contratos administrativos tende a ampliar-se, ainda que os contratos administrativos sejam regidos por um regime jurídico próprio, alicerçado no princípio da supremacia do interesse público e delineado pela Lei nº 8.666/1993, que assegura prerrogativas à Administração Pública, por meio das chamadas cláusulas exorbitantes.
Dentro do despertar para essa visão de simbiose dos ramos de Direito, conforme a Constituição, “concretiza-se um movimento de aproximação contínua entre Constituição e Direito Administrativo, ou Direito Civil, e do Direito Administrativo ou Direito Civil para a Constituição”.86
Sendo assim, a doutrina e jurisprudência nacionais têm entendido pela possibilidade de aplicação da exceptio non adimpleti contractus do artigo 478, do Código Civil, aos contratos administrativos, de forma subsidiária, nos termos do artigo 54, da Lei nº 8.666/93, sempre que ocorrerem situações que desestabilizem a sua equação econômico-financeira decorrente de fatos supervenientes imprevisíveis, ou previsíveis, porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivas da execução do ajustado.
Sempre que possível, a revisão do contrato administrativo para a restauração da onerosidade excessiva provocada por situações inesperadas deveria ser requerida, primeiramente, na via administrativa e ser efetivada por meio de termo de aditamento, nos termos dos artigos 60 e 61, §1º, da Lei nº 8.666/1993.
Conquanto a medida mais adequada seja a revisão do contrato, a pedido de uma ou de ambas as partes, para recomposição da justiça contratual, nada obsta, porém, que a parte recorra ao Poder Judiciário para fazer valer o seu direito caso a Administração, mesmo
86 XXXXXXXX XXXXX, Xxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 27.
amparada pela lei e podendo agir de ofício, manter-se silente quanto à recomposição da equação originária do contrato administrativo.
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