Distrato e incertezas
Julho, 2018
Distrato e incertezas
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Os projetos de lei PL n° 1.220/2015, aprovado pela Câmara dos Deputados, e PLS n° 288/2017, em discussão no Senado Federal, ambos regulando o distrato nos empreendimentos de incorporação imobiliária e parcelamento do solo urbano (loteamento), têm como objetivo a redução da litigiosidade nos contratos de compra e venda de imóveis e, concomitantemente, a diminuição no volume de distratos.
Contratos de compra e venda de imóveis usualmente preveem a irrevogabilidade e a irretratabilidade do contrato, de tal sorte a que o seu descumprimento leve à resolução contratual por perdas e danos em ação judicial. Os tribunais, em reiteradas decisões, têm, no entanto, permitido o distrato, mediante a retenção pelo vendedor de fração dos valores pagos e a restituição ao comprador da quase integralidade dos valores já pagos. Apesar de a jurisprudência assegurar a devolução ao comprador de parte substancial dos valores pagos, não há uniformidade quanto ao quinhão a ser reembolsado em caso de distrato, dificultando a mensuração de riscos e custos potenciais incorridos tanto pelos demais adquirentes – que não sabem qual probabilidade de o imóvel ser entregue, ou quando ele será entregue -, quanto pelos investidores do setor.
O distrato gera instabilidade no fluxo de caixa das construtoras e dos incorporadores, o que aumenta a chance de atraso nas obras, prejudicando os demais compradores de outras unidades no mesmo empreendimento. Isso ocorre, em particular, quando, em função de ação judicial, o Judiciário garante que o adquirente receba de volta a integralidade dos valores pagos, ou outro valor que imponha exclusivamente à incorporadora adimplente arcar com toda a despesa comercial e administrativa incorrida para a assinatura do contrato, inclusive os custos de corretagem.
Em outras palavras, a proteção judicial ao distrato levou a que se priorizasse o interesse individual dos compradores inadimplentes em detrimento do interesse coletivo dos consumidores adimplentes. Mais do que isso, como o distrato consubstancia, não raras vezes, apostas na valorização do imóvel para ulterior revenda, as decisões judiciais acabam por incentivar apostas de caráter financeiro em detrimento da missão social da incorporação imobiliária, que é a promoção de políticas habitacionais que visam atender a quem queira comprar o imóvel para morar. Por derradeiro, a proteção a esse comprador-investidor, ao institucionalizar a presença de mais um intermediário na cadeia imobiliária – que conta com o incorporador, o corretor e o investidor/revendedor -, favorece a alta dos preços dos imóveis.
As incertezas decorrentes da imprevisibilidade quanto a quando um comprador irá distratar e à proteção que o empreendimento receberá no Judiciário elevam o próprio custo do financiamento dos incorporadores junto aos bancos e o repasse desse custo aos consumidores. Como as incertezas impedem a precificação mais adequada dos custos, os financiadores tendem a agir conservadoramente e a cobrar juros mais altos, reduzindo o excedente do consumidor e o acesso da população de mais baixa renda ao imóvel próprio. Esse quadro de incertezas para consumidores e empreendedores tem gerado, como esperado, consequências negativas para o investimento e o emprego no setor imobiliário.
Certamente, a crise econômica e o desemprego reduziram a capacidade de pagamento de muitos compradores de imóveis, levando ao aumento das devoluções. Por isso, é preciso encontrar uma saída equilibrada para as partes, tanto atendendo o comprador que teve queda brusca de renda, quanto dando margem de segurança operacional às empresas. O equilíbrio é ainda mais importante porque, se a legislação vier a ser excessivamente favorável aos adquirentes de imóveis, estimulará compras como investimento (quando a compra der lucro, o comprador-investidor mantém o imóvel; quando der prejuízo, ele devolve com baixo custo ao incorporador). Em sendo a solução excessivamente favorável às empresas, não será possível solucionar o desequilíbrio financeiro dos compradores que se propõem a devolver o imóvel em decorrência de fatores alheios à sua vontade. Mais do que isso, a aprovação de uma legislação muito favorável aos incorporadores elevaria o risco de que decisões judiciais, ao tentar reequilibrar a relação contratual, reintroduzam a insegurança jurídica que a norma tentara sanar.
Como mencionado, atualmente a lei não estipula parâmetros de multa, de retenção de valores pagos, ou de prazos para restituição de valores. As decisões judiciais são tomadas caso a caso e, portanto, sujeitas a grande margem de discricionariedade. Ambos os projetos conferem previsibilidade a incorporadores e consumidores, ao definirem o valor máximo da multa em caso de distrato, ou de falta de pagamento, assim como o prazo para devolução aos adquirentes dos recursos pelos incorporadores e construtoras. Fica também definida a punição aos incorporadores e às construtoras em caso de atraso na entrega do imóvel.
Acredita-se, por fim, que a previsibilidade possa também ser aumentada por meio de maior transparência dos termos e das condições contratuais no momento da assinatura do contrato. Para o consumidor, a previsão, de forma resumida e em termos claros e objetivos, dos custos com os quais terá de arcar representa mais uma medida voltada para evitar o seu sobre-endividamento e reduzir os níveis de inadimplência.
Com regras bem estabelecidas, tanto compradores, quanto vendedores saberão exatamente os riscos que correm no momento de assinatura do contrato. Conhecendo o risco, poderão traçar suas estratégias de proteção e seguro. O que se busca são regras claras e segurança jurídica, evitando-se a judicialização a posteriori e a incerteza para investidores e consumidores.
Em suma, os projetos, ao completarem uma lacuna legal, podem reduzir a incerteza para consumidores e construtores em caso de distrato, ou de inadimplência.
Por que os compradores distratam?
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Há dois motivos principais para comprar um imóvel na planta: para uso próprio, ou como inversão, seja para fruir aluguel, ou para aproveitar-se de ganhos de capital no valor do imóvel. É possível que a um mesmo comprador lhe motivem ambas as razões.
O distrato, por sua vez, ocorre, essencialmente, por três razões:
1) dificuldades financeiras supervenientes dos compradores (perda de emprego, por exemplo);
2) dificuldade de obtenção de financiamento para quitar o saldo devedor na entrada do imóvel;
3) perda de valor de mercado do imóvel. As três razões se acentuam durante períodos de crise, como a que viveu a economia brasileira entre 2014 e 2016.
As duas primeiras razões são mais comuns quando a motivação para a compra do imóvel na planta é seu uso. A terceira razão é mais comum quando o imóvel é comprado como investimento.
O distrato por perda de valor do imóvel ocorre quando, na sua aquisição, está embutida uma opção de desistência do comprador, ou de revenda (do comprador) para o incorporador, ou para o construtor, a custo zero para o seu beneficiário (o comprador). Essa opção de revenda emergiu, durante a crise, pela ação do Judiciário que, com a intenção legítima de proteger consumidores, passou a decidir que os construtores e os incorporadores devolvessem uma fração significativa dos valores pagos ao consumidor, muitas vezes incluindo os recursos despendidos com os serviços de venda (a taxa de corretagem).
Imaginemos que o comprador tenha adquirido o imóvel por R$100 mil em 2013. Tipicamente, o comprador desembolsa 25% do valor do imóvel até a entrega das chaves (o que, no presente caso, equivale a R$25 mil). Suponha-se que, no ato da entrega da chave, o valor do imóvel tenha caído 15% em termos reais, uma diminuição não rara entre os anos 2013 e 2016. Para facilitar o exemplo, vamos considerar que não houve inflação durante o período. O imóvel agora vale R$85 mil. Se o comprador decidir ir em frente com a compra, ele terá que pagar R$75 mil adicionais por um imóvel que vale 85.000, com perda de R$15 mil (o equivalente à desvalorização do imóvel).
Suponha, o que não foi incomum nos últimos anos, que, ao distratar, o comprador recebe 80% dos valores pagos como devolução. Caso, portanto, esse comprador decida distratar na entrega das chaves, ele receberia R$ 20 mil e poderia recomprar o mesmo imóvel por R$ 85.000, em cujo caso teria reduzido o principal da
sua dívida em R$10 mil (R15 mil pagos a menos após a desvalorização, descontados os 20% de retenção pela construtora pelo distrato). Note-se que, como o pagamento do resíduo costuma ser financiado pelo comprador junto a uma instituição financeira, com remuneração do banco por meio de juros que incidem sobre o principal, a diferença final seria ainda maior.
Mesmo no cenário no qual o adquirente veja a aquisição como uma aposta na futura valorização do imóvel, a devolução para futura recompra pode valer a pena para o comprador menos avesso a risco. Nesse caso, se o lucro esperado antes da crise poderia ser expresso como L = P -100, onde P corresponde à valorização esperada no cenário pré-crise, em caso de distrato o retorno para o investidor seria representada por L’ = P – (85 + 5), onde 5 corresponde aos 20% de retenção pela construtora. Nesse caso, o delta L’ – L, que é positivo, representa o custo de oportunidade do comprador- investidor na situação de distrato descrita acima.
Sob a lógica econômica, a opção de desistir não é, porém, uma característica condizente com o negócio que envolva imóveis na planta. Nenhum agente econômico alocaria recursos em ativos bastante ilíquidos como imóveis ainda em construção se tivesse que conceder, gratuitamente, uma opção de revenda. Essa opção a custo zero foi dada, a posteriori, pela atuação do Judiciário, que, sendo generoso com o consumidor que distrata, acaba sendo implacável com o crescimento do setor, com o emprego, com o coletivo dos consumidores adimplentes que compraram o empreendimento e não distrataram e com os potenciais consumidores futuros de imóveis na planta.
A crise e o setor imobiliário
3
A crise de 2014-2016 atingiu todos os setores da economia. A construção civil foi, de longe, o setor que mais sofreu. O gráfico 1 abaixo mostra como o total de empregos formais variou por setor entre 2012 e 2016.
Gráfico 1: Total de Empregos Formais por Setor (2012 =100)
110
Administração Pública Comércio
Extrativa Mineral
Agropecuária Construção Civil
Indústria de Transformação
100
90
80
70
Serv. Indust. De Util. Pública Serviços
60
2012 2013 2014 2015 2016
Fonte: Rais - MTE Elaboração Seprac/MF
Especificamente, o gráfico 1 mostra como o estoque total de trabalhadores em um determinado setor variou no período entre 2013 e 2016 em relação ao ano de 2012. De acordo com as informações apresentadas no gráfico 1, a relação entre o número de trabalhadores formais vinculados ao setor “Construção Civil” em 2016 e o número de trabalhadores formais vinculados ao setor “Construção Civil” no ano de 2012 foi de 70,3. Logo, a redução no estoque de trabalhadores formais no setor entre 2012 e 2016 foi de quase 30%. O desempenho do setor “Construção Civil” é consideravelmente mais desfavorável que desempenho dos demais setores econômicos. Especificamente, no período entre 2012 e 2016, o número de trabalhadores vinculados ao setor de “Serviços” cresceu cerca de 3,5% e no setor “Comércio” 0,5%. Já o número de trabalhadores vinculados ao setor “Industria de Transformação” diminuiu cerca de 13% entre 2012 e 2016. Considerando a média simples de todos os setores, a redução no estoque de trabalhadores formais foi de 6,7 %.
Por que o setor da construção civil sofreu muito mais do que os outros? O gráfico sugere que a explicação não tem relação com um suposto aquecimento extravagante antes de 2014. Apesar de haver múltiplos fatores, o distrato certamente contribuiu muito para o mau desempenho do setor relativamente a outros setores econômicos. A próxima seção mostra por quê.
No Brasil, o financiamento da construção de novos imóveis é feito majoritariamente pelos próprios compradores.1 De fato, desde o advento do instituto do patrimônio de afetação - que separa os recursos da obra dos recursos da empresa - o mecanismo de auto-financiamento prevalece.
A característica de auto-financiamento faz com o distrato prejudique o fluxo de caixa que financia a obra. Obras cujo financiamento fica comprometido atrasam por falta de recursos. Portanto, o distrato tem efeitos deletérios não só para os incorporadores e os empregos no setor, mas também os próprios compradores que não distrataram.
A tabela 1 e os gráfico 2 e 3 mostram a relevância dos recursos distratados para alguns incorporadores de capital aberto.2
Tabela 1: Cancelamentos de Vendas (milhões de R$)
Incorporadora | 2013 | 2014 | 2015 | 2016* |
Empresa A | 915 | 1254 | 2055 | 2329 |
Empresa B | 1088 | 1448 | 1641 | 1233 |
Empresa C | 456 | 436 | 513 | 509 |
Empresa D | 599 | 523 | 192 | 276 |
Empresa E | 327 | 420 | 505 | 622 |
Empresa F | 500 | 513 | 686 | 653 |
Empresa G | 172 | 233 | 333 | 552 |
Empresa H | 343 | 385 | 587 | 650 |
Empresa I | 231 | 333 | 259 | 255 |
Fonte: BTG Pactual Elaboração: Seprac/MF *Estimativa
1 Descrever as razões para isso vai além do escopo desta nota. Basta notar que o histórico de repressão financeira, instabilidade macroeconômica, altas taxas de juros e, principalmente, insegurança jurídica dificultam o financiamento do setor imobiliário em geral e da construção em particular.
2 Cancellation Law? If so, what are the impacts? Equity Research, BTG Pactual, 29/01/2017.
3 O estudo foi elaborado com base em dados de 17 empresas associadas à Abrainc. As informações coletadas contemplam empreendimentos residenciais, incluindo unidades do programa Minha Casa 2 Cancellation Law? If so, what are the impacts? Equity Research, BTG Pactual, 29/01/2017.
Gráfico 2: Cancelamento de Vendas como Proporção de Recebíveis
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
2013 2014 2015 2016*
Empresa A Empresa B Empresa C Empresa E Empresa F Empresa G Empresa H Empresa I
Fonte: BTG Pactual *Estimativa Elaboração: Seprac/MF
Obs.: A empresa D apresentou comportamento discrepante em relação às demais.
Em alguns casos, os distratos chegaram a representar, em 2016, quase 50% dos recebíveis dos incorporadores de capital aberto, o que evidencia seu impacto brutal sobre não só as receitas das empresas, mas também sobre o financiamento das obras.
O movimento dos preços dos imóveis é um elemento importante para explicar a elevação no volume de distratos. Os gráficos abaixo mostram um forte aumento dos preços dos imóveis entre 2012 e 2014, seguido de uma correção acentuada, que provocou quedas nominais de preço. As fortes altas entre 2012 e 2013 talvez tenham deixado a impressão nos compradores de que eventos de queda de preços não ocorrem. Assim como ocorreu no EUA e em outros países durante a grande recessão, a correção pode ser dramática.
Gráfico 3: Índice FipeZap Ampliado – Total
140,0
130,0
120,0
110,0
100,0
90,0
jun/12 set/12 dez/12 mar/13 jun/13 set/13 dez/13 mar/14 jun/14 set/14 dez/14 mar/15 jun/15 set/15 dez/15 mar/16 jun/16 set/16 dez/16 mar/17 jun/17 set/17 dez/17
mar/18
80,0
Fonte: FipeZap Elaboração: SEPRAC/MF
Gráfico 4: Índice FipeZap – Variação Últimos 12 Meses (%)
16,00%
14,00%
12,00%
10,00%
8,00%
6,00%
4,00%
2,00%
0,00%
-2,00%
Fonte: FipeZap Elaboração: SEPRAC/MF
Um ciclo vicioso instalou-se no setor, o que explica seu mau desempenho em relação à economia, que teve ela mesma um desempenho sofrível no triênio 2014 - 2016. Como se pode depreender da figura, ao longo desse período – no qual a economia como um todo também entra em recessão -, os preços dos imóveis deixam de subir e começam a cair. Aqueles que haviam comprado imóveis como investimento, incentivados a distratar pelas decisões judiciais generosas, distratam. Para gerar caixa numa situação de retração de crédito, construtoras e incorporadores vendem os imóveis muitas vezes ainda inacabados. Isso força os preços ainda mais para baixo, induzindo até mesmo aqueles que haviam comprado para uso a distratar.
Quanto do distrato é de imóveis adquiridos para investimento?
4
Não é possível responder essa pergunta com precisão. O aumento do desemprego e a queda da atividade econômica, assim como a retração de crédito bancário - que deixou compradores sem o financiamento necessário para quitar o imóvel na entrega das chaves - contribuíram muito para a crise no setor imobiliário. Há evidências, no entanto, de que o distrato pelo comprador-investidor tem um papel bastante relevante.
Os gráficos abaixo, baseados em estudo da Fipe elaborado a pedido da Abrainc3, mostram a participação do segmento de médio e alto padrão4 no distrato, em comparação com o programa Xxxxx Xxxx, Minha Vida.
3 O estudo foi elaborado com base em dados de 17 empresas associadas à Abrainc. As informações coletadas contemplam empreendimentos residenciais, incluindo unidades do programa Minha Casa Minha Vida (Faixa 2 e Faixa 3).
Gráfico 5: Participação do segmento de médio e alto padrão no volume residencial distratado (até fevereiro de 2017)
60,00%
58,00%
56,00%
54,00%
52,00%
50,00%
48,00%
46,00%
44,00%
42,00%
40,00%
57,90% 57,00%
53,10%
2017 (até fevereiro) Últimos 12 meses Últimos 24 meses
Fonte: FIPE e Abrainc Elaboração: SEPRAC/MF
Gráfico 6: Relação Distratos/Venda – Média 12 meses (fev/2016-fev/2017)
jan/17
24,00%
51,00%
jan/16
33,90%
48,80%
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
Empreendimentos MAP Empreendimentos MCMV
Fonte: FIPE e Abrainc Elaboração: SEPRAC/MF
4 Empreendimentos são classificados como de médio ou alto padrão de acordo com a categorização adotada por cada empresa associada à Abrainc. Em geral, empreendimentos residenciais que não estão associados ao Minha Casa Minha Vida são classificados como empreendimentos de médio ou alto padrão. Portanto, não são classificados como de médio e alto padrão – além dos empreendimentos vinculados ao Minha Casa Minha Vida - empreendimentos comerciais, de desenvolvimento urbano e empreendimentos não classificados pelas empresas associadas.
Vê-se claramente que o grosso do distrato ocorre no setor de padrão médio e alto, e que há pouco distrato no MCMV. Intuitivamente, é para esse público de padrão médio e alto, para o qual as vendas foram mais afetadas, que as quedas de preço foram mais fortes. À primeira vista, um número maior de distratos nas faixas de renda mais altas estaria associado tanto à recessão econômica, quanto uma maior incidência de compras para investimento. No segundo caso, o comprador-investidor responde ao aumento do número de distratos – e, portanto, à desvalorização do imóvel – com a antecipação do próprio distrato, a fim de amenizar as perdas. Com o aumento exponencial do número de devoluções e, em particular, e dada a necessidade do incorporador em revender mais imóveis em prazo mais curto, o valor do imóvel despenca.
Contudo, é também correto afirmar que, diversamente do destinatário do MCMV, para quem a crise não impactou na falta de financiamento nas chaves, o consumidor que se auto-financia sujeita-se a um grau maior de incertezas, justificando o aumento do número de distratos. O gráfico abaixo revela que, de fato, houve uma queda no número de financiamentos imobiliários concedidos. Vale ressaltar, entretanto, que essa queda, além de ter relação com a redução no preço médio dos imóveis disponíveis, é provavelmente resultado da combinação de um efeito oferta – retração do mercado de crédito imobiliário pelo aumento na percepção de risco pelas instituições financeiras– e um efeito demanda – a redução no interesse por adquirir um novo imóvel.
Gráfico 7: Concessões de crédito com recursos direcionados - Pessoas físicas - Financiamento imobiliário total - R$ (milhões)
14
12
10
8
6
4
2
0
Fonte: Banco Central do Brasil Elaboração: SEPRAC/MF
Podemos concluir, portanto, que tanto a restrição ao crédito, quanto a queda no preço dos imóveis são importantes fatores para o distrato. É a diferença entre ambos os efeitos que explica o quanto do distrato deve-se ao comprador-investidor.
Distrato: experiência internacional
5
A tabela 2 abaixo resume a experiência internacional. O Brasil é uma exceção em alguns aspectos. Em todos os países pesquisados -- lista que inclui países emergentes e desenvolvidos -, os compradores perdem 100% do que pagaram, se distratarem. Em todos os casos há penalidades adicionais.
Tabela 2: Experiência Internacional
País | Entrada (Proporção do Valor do Imóvel) | Fração do Valor Pago Retido em Caso de Distrato | Demais Penalidades em Caso de Distrato |
Brasil | 10-30% | 0-50% | Não há |
México | 5-30% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
Argentina | 20-30% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
EUA | 2-30% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
Canadá | 10% | 100% | Comprador pode ser processado e pode ter de reparar o vendedor por suas despesas |
Reino Unido | 5-10% | 100% | Comprador pode ser processado e pode ter de reparar o vendedor por suas despesas ou eventuais desvalorizações |
França | 5-10% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
Itália | 10-30% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
Espanha | 5-10% | 100% | Comprador pode ser processado e forçado a adquirir o imóvel |
Portugal | 15-30% | 100% | Comprador pode ser processado e pode ter de reparar o vendedor por suas despesas ou eventuais desvalorizações |
Austrália | 5-10% | 100% | Comprador pode ser processado e pode ter de reparar o vendedor por suas despesas |
Fonte: BTG Pactual
A experiência internacional revela a importância de se manter a previsibilidade contratual em transações de compra e venda de imóveis. Das informações apresentadas até aqui, resta um questionamento: quais mecanismos outros países utilizam para resguardar compradores. Em primeiro lugar, em diversos países, a legislação determina um período específico durante o qual compradores podem desistir da compra de um imóvel sem ônus. É o chamado “cooling-off period”. Assim, ao adquirir um imóvel na Espanha, o comprador tem até 14 dias para desistir da transação, no Canadá até 10 dias e na Austrália até dois dias úteis. Em segundo lugar, é usual – apesar de não ser, na maior parte dos casos, obrigatório – que contratos de compra e venda de imóveis possam ser cancelados sob algumas condições. O condicionante utilizado com maior frequência diz respeito às condições de financiamento para aquisição do imóvel. Especificamente, é usual que o contrato preveja o cancelamento da venda caso o comprador não seja capaz de obter um empréstimo hipotecário num período determinado de tempo.
Vale fazer um comentário em relação à experiência espanhola. Tal como explicitado anteriormente, a legislação do país não prevê a possibilidade de cancelamento de contrato de compra e venda de imóvel. Entretanto, nos últimos anos, alguns compradores conseguiram rever seus contratos por meio de decisão judicial. Esse fenômeno é resultado direto da crise econômica enfrentada pelo país. Na maior parte dos casos, os cancelamentos são realizados sob a clausula “rebus sic stantibus”. O argumento utilizado é que, em algumas situações, a crise econômica resultou em mudanças extraordinárias e não previsíveis que alteraram o significativamente o equilíbrio contratual entre as partes. Vale ressaltar, entretanto, que essas decisões judiciais levam em conta casos específicos e tendem a considerar uma série de fatores
– que vão além da crise. Dentre os fatores analisados estão o propósito de compra do imóvel – para constituir residência ou investimento – as condições econômicas do comprador no momento da assinatura do contrato, a incapacidade ou impossibilidade de o comprador cumprir com as obrigações financeiras estabelecidas contratualmente e boa-fé das partes.
O desincentivo econômico ao distrato também faz bastante sentido no Brasil. Além de seguir a lógica do brocardo pacta sunt servanda, que rege as relações contratuais no Brasil, ela é mais condizente com o tratamento que é dado, após a entrega das chaves, ao financiamento para a aquisição desse mesmo imóvel. Nesse caso, se o comprador financiado estiver inadimplente, o imóvel alienado fidejussoriamente deve ser executado para o pagamento da dívida, não cabendo ao adquirente que resilir o contrato reter a quase integralidade dos juros que havia pago pelo empréstimo. Note-se que, da mesma forma que há um custo de oportunidade do capital emprestado, há um custo de oportunidade do capital empregado em uma obra parada, ou não concluída.
Distrato e segurança jurídica
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Os projetos de lei PL n° 1.220/2015, aprovado pela Câmara dos Deputados, e PLS n° 288/2017, em discussão no Senado Federal, propõem, na figura das “retenções”, penalizações ao distrato, com o objetivo de reduzir os incentivos ao desfazimento dos contratos e alinhar os interesses dos contratantes com o sucesso do empreendimento. Os PLs ainda preveem a não devolução da taxa de corretagem, que, afinal, foi um serviço prestado.
Apesar de serem baixos na comparação internacional, os níveis de retenção parecem ser suficientes para desencorajar a compra para investimento, que se escora na opção de desistência embutida nos contratos de compra e venda de imóveis. Note- se que, para esse fim, utilizou-se de uma retenção progressivamente maior, à medida que se aproxima da data de entrega das chaves – momento em que o distrato é mais crítico para o incorporador. Entre outas razões, distratos tardios elevam o desconto que o incorporador precisa dar para revender prontamente o imóvel, seja com o objetivo de capitalizar-se prontamente para a conclusão tempestiva da obra, seja em razão de o novo comprador contar com cada vez menos tempo para financiar a entrada.
Parece-nos que, mais importante do que o desestimulo à compra para investimento, as propostas trazem segurança jurídica. Em outras palavras, pior do que as devoluções altas são as incertezas quanto ao nível da devolução. Eliminadas as incertezas, o mercado é capaz ajustar-se, precificando o risco. A regulamentação por lei do distrato trará segurança e ajudará a recuperação de um setor importante, assim como assentará bases sólidas para evitar novos desastres como vimos entre 2014 e 2016. Ademais, ajudará a priorizar o interesse coletivo dos consumidores adimplentes vis-à-vis os interesses individuais dos compradores inadimplentes.
Ressalte-se, por fim, que a previsibilidade pode, ainda, ser aumentada por meio de maior transparência dos termos e das condições contratuais para o consumidor, contribuindo para evitar o seu sobre-endividamento e reduzir os níveis de inadimplência da economia.