Cláusula de não concorrência em contratos de franquia: validade e preservação dos contratos
Cláusula de não concorrência em contratos de franquia: validade e preservação dos contratos
Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xx.
Nos últimos tempos, temos testemunhado uma série de precedentes judiciais tratando da cláusula de não-concorrência em contratos de franquia em sentido diverso daquilo que vinha ordinariamente ocorrendo. O objetivo deste artigo é discutir esses precedentes e como isso pode afetar todo o sistema de franquia brasileiro.
Basicamente, uma cláusula de não-concorrência em contratos desta natureza tem por finalidade:
(i) Proteger o know-how da Franqueadora;
(ii) Evitar que qualquer franqueado, no curso ou findo o contrato, simplesmente se aproprie de todas as técnicas da Franqueadora e passe a concorrer diretamente com ela, operando sob uma nova “bandeira”;
(iii) Impede que este franqueado também se torne um novo franqueador e tente captar indevidamente outros franqueados da rede em que atuava ou até terceiros que inicialmente poderiam tornar-se franqueados de sua rede anterior; e
(iv) Protege os próprios franqueados daquela rede anterior, na medida em que evita a concorrência predatória (o ex-franqueado, ora concorrente, continuará atuando no seguimento, mas diferente dos demais, não mais pagará royalties).
Trata-se, portanto, de um mecanismo legítimo de defesa de um modelo econômico que merece ser protegido e que muito tem contribuído para o empreendedorismo, para o primeiro emprego, para o emprego da economia prateada, para o treinamento e qualificação da mão-de-obra em nosso País e para a economia em geral. Segundo dados da ABF, o franchising faturou R$211 bilhões em 2022, possui atualmente 3077 marcas, 184 mil unidades franqueadas, gerando 1,8 milhões de empregos diretos e 5 milhões de empregos indiretos1.
1 Dados divulgados em janeiro de 2023 relativos ao desempenho do segmento em 2022 divulgados pela ABF Associação Brasileira de Franquias.
Claro que uma cláusula de não-concorrência é uma cláusula limitadora de direitos e, por isso mesmo, deve ser sempre interpretada de forma restritiva para evitar prejuízo ao sistema da concorrência e ao mercado com um todo, até porque no Brasil, como se sabe, vigora o princípio da livre iniciativa (art. 170 da CF/88). Mas isso não pode significar que este tipo de cláusula deva ser desconsiderada e/ou reduzida pelos intérpretes judiciais já que, como visto, também é protetora de todo o sistema de franquia no Brasil.
Pois bem, existem 3 pontos fundamentais que devem ser observados para a correta interpretação e validade da cláusula de não-concorrência:
(i) Tempo de limitação
(ii) Área de atuação
(iii) Território.
Em que pese haver julgados recentes afastando a validade da cláusula de não concorrência por falta de apenas um dos requisitos2, a doutrina brasileira3 sempre entendeu que a
2 Xxxxxxx proferido em sede de Agravo de Instrumento que manteve o entendimento de que a cláusula que não estipula o território seria abusiva. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de Instrumento de nº2298166-83.2022.8.26.0000, Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial, Relatora Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx.
3 Um dos maiores juristas do Brasil, XXXXX XXXXXX COMPARATO, em estudo sobre a matéria, publicado na Revista de Direito Mercantil afirma:
“Nas hipóteses de restrições convencionais de concorrência, a jurisprudência, tanto aqui como alhures, firmou-se no sentido de enquadrar a licitude de tais estipulações dentro de limites precisos de objeto, de tempo e de espaço, tendo em vista o princípio da liberdade de concorrência, que entre nós, como sabido, tem assento constitucional (CF, art. 170). “É preciso, com efeito, que a obrigação de não concorrência defina o tipo de atividade sobre a qual incide (...). “Não basta, porém, que se defina o objeto dessa obrigação de não-concorrer. Importa, ainda, que ela seja limitada no tempo, ou no espaço. Estas duas últimas restrições podem ser cumuladas, mas é indispensável que exista pelo menos uma. Quando a causa da interdição de concorrência prende-se, sobretudo, à pessoa do empresário, é normal que se estabeleça uma limitação no tempo, pois a clientela pessoal tende a se dispersar no curso dos anos. Mas se a razão de ser da estipulação é a concorrência espacial entre estabelecimentos, o que importa é a fixação de uma distância mínima de separação entre eles, a prevalecer sem limitação de tempo”. (g.n.). (As Cláusulas de Não-Concorrência, in RDM n.º 97, pp. 27 e 28).
No mesmo sentido:
“As cláusulas contratuais de disciplina da concorrência podem ou não ser válidas, de acordo comum a série de fatores, a serem especificamente analisados. Para a análise, o critério mais relevante é o da preservação do livre mercado. Ou seja, as partes podem disciplinar o exercício da concorrência entre elas, desde que não a eliminem por completo. Em outros termos, a validade da disciplina contratual da concorrência depende da preservação de margem para a competição (ainda que futura) entre os contratantes; ou seja, da definição de limites materiais, temporais e espaciais. Em concreto, a vedação não pode dizer respeito a todas as atividades econômicas, nem deixar de possuir delimitações no tempo ou no espaço.
cláusula seria válida possuindo apenas 2 destes 3 elementos. Uma vez definida a área de atuação em que a concorrência não seria possível, deveria haver, ainda, uma limitação especial ou temporal.
Portanto, conforme entendimento da doutrina, a invalidade da cláusula de não concorrência existe quando mesmo limitada a ÁREA DE ATUAÇÃO, a isto não seja acrescido um dos outros 2 limites: temporal ou espacial.
Assim, seria perfeitamente válida uma cláusula que impedisse o ex-franqueado de atuar por 2 anos naquele setor específico da economia. Isso porque – apesar de eventualmente não haver um território delimitado – a área de atuação e o tempo evitariam que a cláusula fosse desarrazoadamente aberta e/ou abusiva. Neste sentido:
“Diferentemente do que sustentam os apelados, as cláusulas em questão, que vedam à franqueada e seus sócios (sejam eles de fato ou de direito) a possibilidade de concorrência com a franqueadora, ora apelante, pelo prazo de dois anos contados da rescisão, é válida especialmente quando material e temporalmente limitada e acordada na esfera de contrato de natureza empresarial, quando inexiste desequilíbrio econômico a justificar o afastamento da cláusula livremente pactuada entre as partes.
Em relação aos limites materiais, observa-se que a cláusula disciplinando a concorrência é inválida, se impede o contratante de explorar qualquer atividade econômica. A restrição deve necessariamente se circunscrever a determinados ramos de comércio, indústria ou serviços. Para as demais atividades, as partes ficam livres de qualquer obrigação (de não fazer). A propósito da restrição material, deve-se também considerar inválida a cláusula que impeça o contratante, pessoa física, de exercer a sua profissão. Por exemplo, o sócio que se desliga de sociedade de engenheiros pode, no instrumento de cessão de cotas, ficar impedido de competir com a sociedade, desde que os termos contratados não alcancem todas as atividades de engenharia para as quais o retirante se encontra profissionalmente habilitado ou preparado.
Também é inválida a cláusula que vede a concorrência para sempre ou em qualquer lugar. Limites temporais ou espaciais são exigidos, para que a restrição contratada não importe eliminação total da concorrência. Trata-se, aqui, de uma alternativa inclusiva; quer dizer, o contrato pode prever limite no tempo e no espaço, ou só num deles. A restrição contratual limitada apenas geograficamente se considera feita para sempre, enquanto a limitada apenas no tempo alcança todos os mercados (Ripert-Roblot, 1947:350). A invalidade existe quando não há simultaneamente limite temporal e espacial. É igualmente inválida a cláusula de não concorrência que estabelece prazo demasiado longo, ou defina limites espaciais exagerados, que ultrapassam o potencial de conquista de mercado que as partes possuem. Desse modo, é nula a cláusula de não estabelecimento que o empreendedor de shopping center, para evitar a concorrência autofágica, contrata com os lojistas, quando os limites territoriais nela referidos extrapolam os do mercado sobre o qual pode exercer atração" (Fábio Xxxxx Xxxxxx in Curso de Direito Comercial, v. 1, cap. 7, São Paulo, RT,2018 - grifado)
Observa-se que se trata de contrato empresarial em que estão presentes todos os pressupostos de validade dos negócios jurídicos em geral (CC, art. 104); nele, ademais, não se verifica qualquer defeito (vício do consentimento ou social) capaz de gerar sua anulação.
As cláusulas são extremamente claras e não há ambiguidade interpretativa ou contradição que implique a incidência do disposto no artigo 423 do Código Civil; tanto é assim, que o apelado Xxxxxx reconheceu, na audiência de instrução, a existência e os termos da cláusula de não concorrência.
É o que basta para revelar a validade do contrato celebrado livremente pelas partes em atenção ao princípio da autonomia da vontade e em relação ao qual vige, também, o pacta sunt servanda”. (TJSP, Apelação Cível nº 1015529-93.2020.8.26.0114, 2ª Câmara Empresarial, Relator Xxxxxxxx Xxxxxx, julgado em 18 de outubro de 2022)4.
No entanto, como comentado no início deste artigo, nossos Tribunais têm se debruçado mais recentemente sobre o tema e apresentado 2 novos tipos de exigência bastante preocupantes em nosso sentir: (i) exigir a presença simultânea dos 3 elementos acima apontados; e/ou (ii) a demonstração de que o know-how da Franqueadora tenha algum ineditismo digno de proteção.
Mas não é só. Esses precedentes têm entendido que em situações assim, somente cabe ao Tribunal anular completamente a cláusula, não podendo modulá-la porque inserida em contratos firmados entre particulares. Confira-se:
Cláusula de não concorrência que carece de específica limitação territorial. Referência, tão somente, aos limites territoriais para a venda/distribuição de produtos da franqueadora agravante, pela agravada, durante a execução do contrato. Inadmissibilidade de exegese extensiva da cláusula de não concorrência. A interpretação pretendida pela franqueadora resultaria na proibição ampla e genérica da atuação mercantil da agravada em todo o território nacional, ultrapassando, assim, lindes constitucionais e legais. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e deste Tribunal no sentido
4 Ver ainda no mesmo sentido: Ap. 1112058-22.2020.8.26.0100 e Apelação Cível no 1111089- 41.2019.8.26.0100 do mesmo Eminente Relator.
de serem válidas as cláusulas contratuais de não concorrência, desde que limitadas espacial e territorialmente. As cláusulas de não concorrência têm também por escopo resguardar o "know-how", conhecimentos e técnicas especificas empregados no negócio empresarial. A relação da franqueada com a franqueadora se limitava à compra e revenda pela agravada de produtos da franqueadora agravante, em atividade mais propriamente de distribuidora, na medida em que não se verifica a alegada transferência de "know-how" e segredo comercial ou industrial que justifique a incidência da indigitada cláusula de barreira. Decisão mantida. Agravo de instrumento desprovido” (AI n. 2235511-46.2020.8.26.0000, Rel. Des. Xxxxx Xxxxxxxxxx, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. 16/12/2020)
Lê-se no acórdão ainda:
“Por fim, também não se acolhe o pedido subsidiário de modulação da cláusula de não concorrência, notadamente porque o Poder Judiciário não pode se imiscuir na esfera privada de modo a modificar os termos de uma cláusula contratual, muito menos pelo fato de ser reconhecidamente inválida, tornando-a válida. Sequer haveria parâmetro para estipular um limite geográfico para a não concorrência, o que deveria ter sido previamente acertado entre as partes contratantes. Além disso, como dito, a cláusula contém outros pontos de indeterminação, de modo que eventual correção implicaria na modificação como um todo, o que não se afigura razoável em se tratando de uma relação jurídica empresarial.”
No mesmo sentido:
Nulidade da cláusula de não concorrência, ante a indeterminação de seu objeto, pois não estão determinados o espaço físico, o território e nem a data inicial do dever de abstenção. Art. 166, II do Código Civil Além disso, o C. STJ já firmou entendimento no sentido de que a cláusula de não concorrência só é válida se fixados limites temporais, espaciais e materiais, a fim de não prejudicar a livre concorrência.
Também não se acolhe o pedido subsidiário de modulação da cláusula de não concorrência, notadamente porque o Poder Judiciário não pode se imiscuir na esfera privada de modo a modificar os termos de uma cláusula contratual, muito menos pelo fato de ser reconhecidamente inválida, tornando-a válida - Sentença de improcedência mantida. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação cível nº 1004021-74.2020.8.26.0010, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paul, Rel. Des. Xxxxxx Xxxxxxx, x. 13/06/2023)
6. São válidas as cláusulas contratuais de não-concorrência, desde que limitadas espacial e temporalmente, porquanto adequadas à proteção da concorrência e dos efeitos danosos decorrentes de potencial desvio de clientela valores jurídicos reconhecidos constitucionalmente.
7. Recurso especial provido” (REsp 1.203.109, XXXXX XXXXXXX XXXXXXXX).
Vamos analisar, então, essas duas novas questões. Mas antes é importante salientar que os contratos de franquia, como se sabe, são contratos de trato continuativo no tempo, de modo que são confeccionados à luz da legislação e sob a ótica da jurisprudência de um determinado momento para durar pelos próximos 5, 10 ou até 20 anos.
Exigir, agora, de um contrato criado há 10 anos atrás, o cumprimento de uma tendência muito recente, atenta completamente contra a razoabilidade e com a própria ideia de estabilidade do direito e conservação dos contratos, fazendo cair completamente por terra a intenção no momento da contratação.
Assim, quando em um precedente afirma-se que, para ser válida, a cláusula de não concorrência precisa ter uma área geográfica bastante limitada (como o local onde a unidade franqueada atuava anteriormente, uma cidade ou Estado), não aceitando mais cláusulas bem redigidas e complexas que levavam em consideração apenas os outros dois elementos (ou até mesmo os 3 elementos com a abrangência que até se admitia), anulando-a completamente, o que se faz, em última análise, é desconsiderar uma contratação válida entre empresários como um todo. E isso – em nosso sentir - não se pode admitir, havendo mecanismos mais adequados para tanto, como veremos.
Em primeiro lugar seria importante uma observação: não vemos nenhuma abusividade ou falta de razoabilidade em uma cláusula de não concorrência que estabeleça como limite todo o território nacional ou uma distância mínima de qualquer outra unidade própria ou franqueada do sistema de franquia que o ex-franqueado acaba de deixar. Ora, limitar a cláusula de não concorrência ao local em que a antiga unidade franqueada atuava, um bairro ou cidade, não cumpre justamente os escopos da cláusula. Xxxxx imaginar que o ex-franqueado se aproprie de todo o know-how que recebeu e reabra, por si ou por terceiro, criando até uma rede concorrente, unidade em outra cidade ou bairro. Isso seria relativamente fácil se somente não pudesse atuar no local onde possuía a unidade franqueada. O ex-franqueado, apenas e tão somente, não concorreria naquele local, ficando liberado para fazê-lo em qualquer outro em todo o território nacional. Essa ideia de não concorrência no ponto comercial em si mesmo – em nosso sentir - tem muito mais ligação com a compra e venda de estabelecimento comercial (contrato de trespasse, art. 1147, CC) que também admite a cláusula de não-concorrência do que com relação aos contratos de franquia. Até porque, diversas Franqueadoras atuam em todo o território nacional e não apenas em um determinado local ou cidade. Como proteger seu know-how então? Como dizer que é irrazoável uma cláusula com tal amplitude se a atuação da Franqueadora tem exatamente essa amplitude.
Em segundo lugar, entendemos que seria interessante deixar claro que, ainda que se entenda que cláusulas que imponham como limite territorial, todo o território nacional, sejam abusivas para o ex-franqueado concorrer diretamente por si, o que se admite apenas por argumento, mesmo assim seria fundamental permitir essa ampla limitação (nacional) para impedir que o franqueado o fizesse por meio de terceiros, criando uma rede de franquia concorrente e agindo nacionalmente.
Pois bem, vamos voltar à análise da possível nulidade destas cláusulas. Ora, nos termos do artigo 104 do CC, para a validade do negócio jurídico, são necessários os seguintes elementos: (i) capacidade do agente; (ii) objetivo possível, lícito, determinado ou determinável; e (iii) forma prescrita ou não defesa em lei. Assim, faltando algum destes elementos, o negócio seria inválido, espécie de sanção imposta pela lei.
Ora, em princípio, franqueadores e franqueados são sempre partes capazes, o objeto é lícito e a cláusula é celebrada de forma escrita. A grande questão seria uma potencial indeterminação do objeto pela sua amplitude, geralmente a territorial, como vimos acima.
Neste sentido, importante citar o artigo 166 do CC ao determinar que somente há que se falar em nulidade, se o objeto for ilícito, impossível ou não puder ser determinado. Ora, nos casos acima apresentados, certamente a limitação é determinável caso se considere que não foi determinada pelas partes no momento original, restando reduzida de forma razoável.
Ora, dizer que a não concorrência vale em todo o território nacional não é algo indeterminado. Ao contrário, a determinação geográfica é patente. Isso pode até ser visto pelo Tribunal como abusivo, com o que não concordamos, mas não é algo que possa ser taxado de indeterminado ou indeterminável.
Assim, o caso não é de nulidade, mas de interpretação conforme visando a conservação do contrato e da cláusula. Do contrário, tem-se o pior dos mundos, anula-se uma cláusula que era a intenção das partes quando da contratação por se entender que abusiva (ou indeterminada) e não se realiza qualquer tipo de adaptação ou interpretação conforme, justamente porque isso violaria a vontade das partes. O que nos parece um completo contrassenso.
O sistema legal contratual pátrio possui dois artigos que permitem aplicar, com razoabilidade, uma interpretação conforme, evitando a nulidade total do contrato e/ou de uma cláusula contratual, preservando ao máximo o negócio jurídico, quais sejam, os artigos 170 e 184, CC. Até mesmo o CDC, em seu artigo 51, §2º permite a conservação do contrato mesmo diante da nulidade de cláusulas contratuais abusivas, salvo se, mesmo assim, ainda decorrer ônus excessivo ao consumidor.
Ora, o artigo 170 do CC (conversão do negócio jurídico) estabelece que se “o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”.
Já o artigo 184 do CC prevê que “respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.
Ou seja, claríssima a intenção do legislador pátrio de não aplicar a nulidade como sanção a qualquer custo, de modo que, sempre que possível, possam ser preservadas cláusulas e contratos5. A Nulidade, a sanção deve ser sempre a ultima ratio. Neste sentido e pautado na ideia de que os magistrados podem e devem interpretar e até corrigir contratos para evitar nulidades (o chamado purple pencil como se verá abaixo), vale conferir os Enunciados das Jornadas de Direito Civil:
Enunciado nº. 26 da I Jornada de Direito Civil: "A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõem ao juiz interpretar e , quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento legal dos contratantes "
Enunciado nº. 176 da III Jornada de Direito Civil: "Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual"
Enunciado nº. 367 da IV Jornada de Direito Civil: "Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório".
Sobre o tema confirma-se, ainda, a opinião de Xxxxx Xxxx:
“A nulidade da cláusula abusiva não invalida todo o contrato, permanecendo este na parte remanescente, quando for possível. O direito brasileiro adota o princípio da conservação do negócio jurídico, notadamente nessas hipóteses. O princípio da conservação serve também para a nulidade parcial da cláusula, quando for possível dar sentido útil à parte restante dela. Invalida-se a cláusula apenas na parte incompatível com o equilíbrio contratual. Contudo, a nulidade da cláusula abusiva não admite a conversão substancial que ocorre quando o negócio jurídico nulo contém os requisitos do outro, permitindo- se supor que as partes o teriam querido se tivessem previsto a nulidade. As razões são as mesmas: a vontade única foi do predisponente ou fornecedor, quando redigiu ou adotou a cláusula, não havendo fim comum a ser salvo. Nula a cláusula, subsiste o contrato se ficar assegurado objetivamente o justo equilíbrio entre direitos e obrigações.
Todo contrato representa um esforço humano e uma utilidade social, que devem ser levados em conta para, sempre que possível, ser salvaguardados, segundo o que a doutrina denomina interpretação em favor do contrato (Xxxxxxxxxx, 2000, p. 279), ou princípio da conservação do contrato.
O direito brasileiro tem admitido o princípio da conservação do contrato, sempre que seja possível atingir suas finalidades, quando alguma ou algumas cláusulas forem consideradas nulas. A difusão dos contratos de duração continuada levou a essa mudança de diretriz, pois, no direito anterior, a nulidade de uma cláusula contaminava todo o contrato. O princípio é expressamente previsto no CC, art. 184, mediante o qual a invalidade parcial do contrato não o prejudicará na parte válida, se esta for separável. Há modificação quantitativa, pela supressão das cláusulas consideradas nulas.
Mas, além da separação ou divisão entre a parte válida e a parte inválida, a doutrina também cogita da utilidade, segundo a máxima romana utile per inutile non viciatur (a parte inútil não prejudica a parte útil), que impõe a conservação do que seja útil, pois é necessário que a parte residual não contaminada pela invalidade “tenha entidade própria e satisfaça suficiente e equilibradamente os interesses concretos das partes” (Xxxxxxx, 1990, p. 105).
Próximo do princípio da conservação é o princípio da conversão do contrato. Neste, não é possível a interpretação do contrato originário, que foi declarado totalmente nulo, mas do novo no qual ele se converteu, quando for possível. Em comum, o interesse pela preservação da função social do contrato. Há previsão expressa no art. 170 do CC, que estabelece a subsistência do contrato nulo se ele contiver os requisitos de outro, “quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a
nulidade”. Esta é hipótese de modificação qualitativa do contrato: o contrato nulo é convertido em contrato válido.
Como a autonomia privada negocial não consegue mais ser o único fundamento idôneo dos modelos contratuais distintos, notadamente os que escapam ao modelo paritário, a doutrina civilista tem se valido cada vez mais de um pressuposto hermenêutico desenvolvido no âmbito do direito público, a saber, o da razoabilidade ou da proporcionalidade, de modo a favorecer a plena aplicação do princípio da equivalência material. A razoabilidade é instrumento de medida e de sanção, ou seja, se do exame de sua incidência resulta uma desproporção que afeta a equivalência do contrato, ela permite sua revisão na medida necessária para restabelecer o equilíbrio violado. A razoabilidade serve também como limite da intervenção judicial, pois a revisão do contrato somente é admitida enquanto tenda à conservação do contrato e na medida necessária para restabelecer o equilíbrio.”6
Mas não é só! O art. 113 do CC trata da interpretação dos negócios jurídicos deixando claro que o juiz deve atribuir-lhe o sentido (§1º incluído pela Lei nº 13.874, de 2019) que, dentre outros, corresponder: (i) “aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio”; (ii) “à boa-fé”; (iii) “for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável”; e (iv) “corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.
Assim, o que buscamos por meio deste artigo, ao comentar os precedentes acima citados do E. Tribunal Bandeirante, com todo o respeito que temos pelos Ilmos. Desembargadores Relatores responsáveis pelos votos condutores é que:
(I) Não há porque considerar-se abusiva per se uma cláusula de não concorrência que bem delimitou o prazo e a área de atuação, apenas porque sua amplitude é nacional. A maioria das franquias brasileiras – diferentemente do que ocorre em outros países, é de origem nacional e tem atuação em todo o País;
(II) Ainda que assim não se entenda, seria certamente possível uma interpretação conforme e isso seria mais adequado que a decretação de nulidade total da cláusula de não concorrência, já que:
a) este tipo de cláusula é da essência dos contratos de franquia e sua possibilidade decorre de lei (art. 2, XV, alínea “b” da Lei 13.966/2019);
6 XXXX, Xxxxx. Direito civil: contratos. v.3 - 9ª edição - Editora Saraiva, 2023.
b) a sua adaptação está mais em sintonia e de acordo com a vontade das partes no momento da contratação que previram a necessidade de não competir por determinado tempo e área;
c) decorre da boa-fé contratual ao manter de forma mais completa a previsão inicial;
d) é o mais razoável economicamente afim de se proteger um modelo pujante de se fazer negócios e que ajuda de forma clara e direta a empregabilidade e o empreendedorismo em nosso País; e
e) É mais favorável a parte que não redigiu o contrato, no caso o franqueado, uma vez que limita sua extensão original.
É importante salientar que a doutrina brasileira também costuma atrelar a ideia e necessidade de conservação dos contratos e suas cláusulas aos princípios da função social do contrato e da boa-fé. Ora, está prevista aqui a função social do contrato de franquia, que não só estimular o empreendedorismo e permitir sua expansão, como também garantir a preservação deste sistema que gera a possibilidade de terceiros adquirirem conhecimento de terceiros para usar em sua atividade sob uma determinada marca, comercializando produtos e serviços. E também a boa-fé, já que as partes sabiam, e assim deveriam se comportar de forma ética e adequada, que durante o contrato de franquia, e mesmo após seu fim, por determinado período, não poderiam concorrer entre si.
No sentido do que estamos afirmando, outro precedente, do E. TJSC que, apesar de entender que a cláusula de não concorrência não pode se estender por todo o território nacional, por outro lado, entendeu por bem justamente adaptá-la e preservar o negócio jurídico na sua essência, afastando-se da sua mera anulação, o que nos parece mais correto:
“Senhores, estamos falando em rede de farmácias, que com o perdão da singela expressão, parecem brotar do dia para a noite, com os mais variados nomes e em quantidades significativas. Assim, ainda que se repute razoável, que os apelantes não possam exercer atividade do mesmo ramo, pelo período de 5 (cinco) anos, na cidade originaria do contrato, parece desarrazoada que o seja em todo o território nacional, sendo sim abusiva no ponto (...) Conforme o até então exposto, não se mostra crível proibir os apelantes de manter um comércio de farmácia, desde que respeitada
minimamente o espaço territorial, quando milhares de estabelecimentos similares se multiplicam em velocidade expressiva em todas as cidades do pais. Assim, entendo abusiva a cláusula 19 (décima nona) de não concorrência, ao menos no que tange ao território nacional. Neste ponto, dou provimento ao recurso para afastar a cláusula de não concorrência no âmbito nacional, mantendo o prazo estabelecido para não concorrência de 05 (cinco) anos, restringindo-o ao âmbito estadual.” (APELAÇÃO Nº 5002683-96.2021.8.24.0016/SC RELATOR: JUIZ XXXXX XXXXXXXXX XXXXXX)
“Cláusula de não competição. Validade condicionada à delimitação precisa dos limites materiais, temporais e espaciais. Delimitação geográfica estipulada que desborda todos os parâmetros razoáveis. Vedação à atuação em segmento análogo àquele explorado pela franqueadora que se estende por todo o território nacional. Modulação dos efeitos da cláusula para reduzir a limitação espacial para o raio de 5km em torno do 'Neumarkt Shopping'. Eventual possibilidade de compensação entre os débitos mantidos em aberto pela franqueada e o preço de recompra do estabelecimento que deverá ser avaliado oportunamente pelo Juízo de primeiro grau, sob pena de supressão de instância.” DECISÃO REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.” (AI 2135900-52.2022.8.26.0000, XXXXX XXXXX).
O E. STJ, em mais de uma oportunidade, entendeu que deveriam ser mantidos acórdãos locais recorridos que tratavam da limitação dos juros abusivos e sua cumulação com comissão de permanência. Verificando uma potencial abusividade da cláusula - ao invés de simplesmente anulá-la por inteiro e permitir que juros e comissão não fossem cobrados
- o Tribunal apenas reduziu os juros e evitou a cumulação. É exatamente o que se pretende aqui7.
7 "[...] o acórdão recorrido, adotando entendimento em consonância com a jurisprudência acima destacada, consignou que é lícita a incidência da comissão de permanência desde que pactuada e não cumulada com outros encargos durante o período de inadimplência, o que ficou evidenciado no contrato em análise. Desse modo, com base na aplicação do princípio da conservação dos contratos, entendeu pelo descabimento da nulidade da cláusula contratual, determinando, assim, sua cobrança, desde que afastados os encargos moratórios exigidos cumulativamente pelo credor. Portanto, não há que se falar em julgamento fora dos limites
O direito internacional traz interessantes precedentes sobre o tema também. A doutrina e a jurisprudência norte-americana – tal como a inglesa e indiana – especificamente no que diz respeito às cláusulas de não concorrência em contratos de emprego (algo bem mais radical do que se busca aqui, já que a relação é entre empresários) – do que se chama de red pencil, blue pencil e purple pencil. No red pencil, considerada abusiva, a cláusula é totalmente descartada, no blue pencil elimina-se a parte considerada abusiva, preservando todo o restante e no purple pencil a cláusula é “reescrita” para se adaptar à situação concreta e evitar a nulidade8, exatamente como se propôs aqui nos tópicos precedentes.
propostos pelos apelantes. Nesse contexto, tendo em vista que o entendimento adotado pelo acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a jurisprudência deste Tribunal Superior, imperiosa a aplicação da Súmula 83/STJ". (AgInt no AREsp n. 1.044.869/MS, relator Ministro Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma, julgado em 18/5/2017, DJe de 25/5/2017.)
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 535 DO CPC/1973. OMISSÃO. AUSÊNCIA. COBRANÇA DE DÍVIDA CERTA E LÍQUIDA FUNDADA EM CONTRATO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. VALORAÇÃO DAS PROVAS PELO MAGISTRADO. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. AGIOTAGEM. PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS ATOS E DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS. REDUÇÃO DOS JUROS AOS PARÂMETROS LEGAIS COM CONSERVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA.
1. O entendimento desta Corte é pacífico no sentido de que não há omissão, contradição ou obscuridade no julgado quando se resolve a controvérsia de maneira sólida e fundamentada e apenas se deixa de adotar a tese do embargante. Precedentes.
2. Em se tratando de cobrança de dívida certa e líquida, fundada em instrumento contratual, e não na vedação ao enriquecimento ilícito, aplica-se o prazo prescricional disposto no art. 206, § 5º, I, do Código Civil (5 anos). Precedente.
3. Não há que se falar em contrariedade aos arts. 300, 302, 330, I, e 333, I e II, do CPC/1973, 3º da Medida Provisória n. 2.172-32/2001 e 320 do Código Civil, em razão da valoração promovida pelo magistrado das provas coligidas nos autos, porquanto, no nosso sistema processual, aquele é o destinatário destas; cabe-lhe, por força do art. 131 do CPC/1973, apreciar o acervo fático- probatório livremente, indicando os motivos que lhe formaram o convencimento.
Precedente.
4. Conforme o entendimento desta Corte, se o mutuário recebeu devidamente o valor do empréstimo, não se pode esquivar, na condição de devedor, de honrar sua obrigação de pagamento do valor efetivamente ajustado, acrescido dos juros legais, mas desde que excluído o montante indevido, cobrado a título usurário.
Precedentes.
5. Consoante o entendimento consolidado neste Tribunal, não configura julgamento ultra petita ou extra petita o provimento jurisdicional exarado nos limites do pedido, o qual deve ser interpretado lógica e sistematicamente a partir de toda a petição inicial, e não apenas de sua parte final, tampouco quando o julgador aplica o direito ao caso concreto sob fundamentos diversos dos apresentados pela parte. Precedentes.
6. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no REsp n. 1.244.217/ES, relator Ministro Xxxxxx Xxxxxxxxx (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Quarta Turma, julgado em 28/11/2017, DJe de 4/12/2017.)
8 There are three basic legal approaches to evaluating restrictive covenants, each identified by a different color pencil. The most restrictive approach is commonly referred to as the “red pencil” doctrine under which the entire non-compete agreement is struck down if any part of it is invalid. Arkansas, Nebraska, and Virginia are examples of states that adhere to the red pencil doctrine.
Note-se, ademais, que nos precedentes examinados, o fundamento para que não se fizesse uma interpretação conforme da cláusula foi a sua suposta impossibilidade de modificação e adaptação ao caso de maneira conforme, como já salientado acima.
A questão é que esse fundamento, a pretexto de preservar a autonomia de vontade das partes, fez exatamente o oposto. Ora, o artigo 421 do CC estabelece que a liberdade de contratar será exercida nos limites da função social do contrato. Como já defendido acima, a cláusula de não concorrência em contratos de franquia tem clara função social protetiva da franqueadora e de seus franqueados.
Diz ainda, o parágrafo único deste artigo, e aí poderiam ancorar-se os precedentes aqui analisados, que prevalece nas relações contratuais privadas o princípio da intervenção mínimo do Estado-juiz e a excepcionalidade da revisão contratual, até porque, art. 421- A, os contratos empresariais, como é o caso dos contratos de franquia presumem-se simétricos.
No entanto, os incisos I e II deste artigo 421-A deixam claro que na interpretação dos contratos empresariais as partes podem estabelecer parâmetros para sua interpretação, que deve ser respeitada a alocação de riscos já definida pelas partes, reforçando-se, assim, a excepcionalidade da revisão contratual no inciso III já tratada no parágrafo único do art. 4219.
Another approach commonly referred to as the “blue pencil” doctrine permits a court to strike unenforceable or invalid portions of a non-compete agreement so that what remains is enforceable. Arizona, Connecticut, and Indiana are examples of states that utilize a blue pencil approach to non-compete agreements. The most flexible approach has been referred to by commentators as the purple pencil doctrine though many courts simply refer to it as “reformation.” Under this approach, courts may reform or rewrite covenants not to compete to be consistent with the parties’ original intent and to be enforceable under applicable law. While similar to the blue pencil doctrine (which is frequently used as a catch-all term to apply to any modification of a restrictive covenant), the purple pencil doctrine differs in that it allows rewriting non-compete agreements to make them enforceable while the blue pencil doctrine, when using the term in its strictest sense, only permits removing unenforceable or invalid provisions from the agreement. Nearly thirty states, including Illinois, have adopted this reformation or purple pencil approach. (Blue Xxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxxxxx, Penciling Non-Compete Agreements in Illinois
Blue Penciling Non-Compete Agreements in Illinois | Chicago Commercial Litigation Lawyers (xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.xxx))
9 Dentro desse cenário, em boa hora o art. 480-A deu às partes, nas relações interempresariais o direito de estabelecerem no momento da contratação certos parâmetros objetivos voltados para orientar a interpretação dos requisitos de revisão ou de resolução do acordo. Em complementação o art. 480-B determina que nas mesmas relações interempresariais deve-se
Pois bem, trazendo a discussão para o caso concreto das cláusulas de não concorrência em contratos de franquia: (i) é mais do que comum que estes contratos estabeleçam que as cláusulas contratuais devem ser analisadas partindo-se da premissa de que deve ser protegido aquele sistema de franquia e do reconhecimento que seu padrão decorre de investimentos e esforços da franqueadora para criação de seu know-how; (ii) as partes entendem e limitam os riscos que estão dispostos a correr, ou seja, a Franqueadora está disposta a abrir mão dos segredos do seu negócio e de seu know-how proprietário para um terceiro, sabendo que este não poderá, a qualquer momento, simplesmente deixar seu sistema de franquia, migrar sua bandeira (adotando outra marca) e concorrer diretamente com sua rede10.
Ou seja, há que haver um equilíbrio entre a ideia da pacta sunt servanda e da impossibilidade de alteração de contratos empresariais entre partes paritárias que levaria ao extremo de que – ou as cláusulas são válidas ou não – e a possibilidade de interpretação
presumir a simetria dos contratantes e observar como eles alocaram os riscos da forma como assim definiram. O que se percebe no parágrafo anterior é que, quando se trata de contratos entre empresários, fica reconhecida a sua igualdade (em caráter de presunção juris tantum), nelas não se dando lugar a entender que um deles seja considerado hipossuficiente para efeito da proteção legal, a menos que no caso concreto essa verdade seja desmentida. E dessa forma, se as partes construírem tais parâmetros objetivos, o julgador estará obrigado a obedecê-los diante de um pleito que tenha sido levantado por aquela que entender tiver sido prejudicada em alguma circunstância. O resultado dessa nova construção se revela potencialmente de forma extremamente benéfica para a realização de negócios entre empresários, fortalecendo-se o mercado pelo estabelecimento de um novo nível de segurança jurídica que se espera seja reconhecida pelas cortes superiores ao longo do tempo de uma nova experimentação. (O velho e o novo princípio da intervenção mínima do Estado nos contratos empresariais. Novos parâmetros para a intervenção do juiz. XXXXXXX XXXXXXXXX XXXXXXX VERÇOSA in xxxxx://xxx.xxxxxxxx.xxx.xx/xxxxxx/000000/x-xxxxx-x-x-xxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxx- minima-do-estado-nos-contratos-empresariais--novos-parametros-para-a-intervencao-do-juiz)
10 Se, por um lado, busca-se evitar comportamentos oportunistas do agente econômico, não se pode desconsiderar que muitos contratos têm como alicerce relações de típica
dependência econômica. O fato é que essa dependência foi voluntariamente aceita
pelos contratantes e, o que é mais importante, as consequências da perda de liberdade foram previamente ponderadas pela parte dependente. (Os reflexos da interpretação dos contratos empresariais pelo Poder Judiciário Xxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx Xxxxx e Xxxxxx Xxxx Xxxxxx Xxxxxxx Dezem. Cadernos Jurídicos, São Paulo, ano 20, nº 50, p. 123-141, Julho-Agosto/2019 , p. 136/137)Nesse sentido, ver FORGIONI, 2015, p. 170
dos contratos, com sua adequação a fim de que possam não só atender àquilo a que o contrato se propõe, mas também a sua função social e boa-fé11.
Assim, simplesmente anular por completo uma cláusula de não concorrência sem permitir sua conservação mediante interpretação conforme, os Tribunais pátrios, na verdade, estão agindo exatamente ao contrário do que pretendiam, ou seja, estão indo completamente contra a vontade das partes e interferindo de forma muito mais acentuada do que fariam se mantivessem a cláusula sobre outro formato e delimitação.
Vencidos os dois primeiros pontos, fica um terceiro a enfrentar: a exigência de ineditismo para caracterizar o know-how da Franqueadora e torná-lo digno de proteção.
Também nos preocupa muito tal percepção. Ora, se assim fosse, o que diferenciaria qualquer lanchonete uma da outra? Será que reduzir a ideia de originalidade do know- how de alguma empresa, a saber como fritar batatas ou fazer um Hamburguer, é o mais correto? Certamente que não.
Ora, o fato de existirem muitas hamburguerias, hotéis, padarias, lanchonetes, lavanderias, restaurantes, bares, fast foods, farmácias, lojas de roupa no mundo, não os torna todos iguais e muito menos indignos de proteção.
O fato de parte das atividades exercidas em todos esses negócios serem mundanas e ordinárias, também não as torna iguais e faz desaparecer o conceito de know-how ou de originalidade. O negócio em si, finalisticamente, pode ou não ter qualquer originalidade, mas não é isso apenas o que se protege: a forma de apresentação de uma loja, a forma como se dá o atendimento, o mix de produtos escolhido, o tipo de fornecedor escolhido
11 Neste sentido, vide o RESP 1.799.039-SP, rel. Mina. Xxxxx Xxxxxxx, x. 4/10/2022:
“4. O controle judicial sobre eventuais cláusulas abusivas em contratos empresariais é mais restrito do que em outros setores do Direito Privado, pois as negociações são entabuladas entre profissionais da área empresarial, observando regras costumeiramente seguidas pelos integrantes desse setor da economia.
5. A existência de equilíbrio e liberdade entre as partes durante a contratação, bem como a natureza do contrato e as expectativas são itens essenciais a serem observados quando se alega a nulidade de uma cláusula com fundamento na violação da boa-fé objetiva e na função social do contrato.
6. Em se tratado de contrato de prestação de serviços firmado entre dois particulares os quais estão em pé de igualdade no momento de deliberação sobre os termos do contrato, considerando-se a atividade econômica por eles desempenhada, inexiste legislação específica apta a conferir tutela diferenciada para este tipo de relação, devendo prevalecer a determinação do art. 421, do Código Civil.”
para o produto, o marketing realizado, a forma como o negócio deve adotar certos padrões, a política comercial da empresa, tudo isso compõem o know-how de um negócio franqueado e é isso tudo o que deve ser protegido.
Entendemos o know-how como um tripé na linha preconizado por COMPARATO: engineering, management e marketing. A Franqueadora, portanto: (i) planeja a montagem do negócio franqueado; (ii) fornece um esquema completo de organização empresarial; e (iii) fornece todas as informações necessárias ao desenvolvimento das vendas dos produtos e serviços ao mercado consumidor
Um determinado precedente judicial afirmar que uma passadoria de roupas não merece ser protegida por cláusula de não-concorrência já que não há qualquer ineditismo em passar roupa, o que é de um reducionismo ímpar:
“Com efeito, proibir o exercício atividade relacionada a ‘passadoria de roupas para os clientes’, que se trata de atividade sem qualquer complexidade, importará em grave violação ao princípio da livre iniciativa, concorrência.
Ora, seria possível aplicar a cláusula de barreira caso a atividade dependesse de conhecimentos e técnicas específicas que fossem de exclusividade da ré- reconvinte, como, por exemplo a utilização de aplicativo” 12.
Certamente que o ato de passar roupa em si mesmo é do conhecimento de muitos. Agora, fazê-lo por meio da contratação por um aplicativo desenvolvido para este fim, com um método de busca e entrega na casa do cliente, com o equipamento certo, da forma correta, usando os melhores produtos e fornecedores não é algo simples ou trivial e que não mereça proteção.
Aliás, o próprio modelo de negócios como criado e a própria forma de administrar o negócio é em si mesma seja, talvez, uma das partes mais importantes do know-how, e impedir o uso destes elementos por terceiros é da essência em um contrato de franquia, sob pena de se permitir que alguém, por absurdo, ingresse em uma rede de franquia, pague a taxa inicial e, após receber todo o treinamento e manuais, bem como a assessoria inicial,
12 Decisão interlocutória, Processo de nº1026357-25.2022.8.26.0100, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, 1ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Foro Central da Comarca da Capital do Estado de São Paulo, proferida em 29/12/2022.
simplesmente vire sua bandeira e passe a concorrer diretamente com aquele negócio que levou anos para ser desenvolvido pelo franqueador e lhe custou severos investimentos, apenas porque o negócio em si mesmo não parece ser original…
Assim, não nos parece correto afirmar que o fato de um negócio, à primeira vista, sem qualquer tipo de perquirição mais profunda, não seja original ou digno de proteção pela cláusula de não concorrência seja o melhor caminho, com toda vênia.
Em nosso sentir, na medida em que os modelos de franquia existentes no Brasil são, geralmente, franquias de terceira geração ou franquias de negócio formatado, onde todo o “pacote tecnológico” é entregue ao franqueado contando com treinamento inicial e manuais para a montagem do negócio e suporte constante após sua inauguração, ao que nos parece o ideal seria que coubesse ao franqueado o ônus de provar que não recebeu ou não existe esse “pacote tecnológico” e ai sim ponderar se há o que se proteger pela cláusula de não concorrência ou não.
Xxxxxx Xxxxxxxxxx Xx.
Formado pela USP-SP, é doutor e mestre em direito processo civil pela mesma faculdade, tendo sido orientado pelo Prof. Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxxx. É professor de cursos de direito processual civil da Direito GV em São Paulo. Coordenou os cursos de pós- graduação em direito processo civil da GVLAW (divisão de pós-graduação da Direito GV) em parceria com a AASP (Associação dos Advogados de São Paulo) e do curso de extensão de estratégias processuais na advocacia empresarial do GVLAW. É, ainda professor em cursos de pós-graduação na GVLAW; Damásio de Jesus e EPD- Escola Paulista de Direito; além de ser palestrante nas mais diversas instituições de ensino. Publicou as seguintes obras: Poderes do Juiz e Tutela Jurisdicional – O Aumento dos Poderes do Juiz como Forma de Obtenção da Tutela Jurisdicional Efetiva, Justa e Tempestiva e Direito Processual Civil – Teoria Geral do Processo, Fungibilidade de Meios e Processo de Conhecimento (Procedimento em Primeiro grau de Jurisdição); Manual de Direito Processual Civil, volumes 1 e 2. É autor de diversos artigos em livros e revistas especializadas. É membro do Comitê de Franchising da Ordem dos Advogados do Brasil Secção São Paulo, É Diretor Jurídico e associado à ABF – Associação Brasileira
de Franchising, associado ao IBPD – Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil e, ainda, conselheiro e associado ao CEAPRO – Centro de Estudos Avençados em Processo.