SUPERAÇÃO DO MODELO FORMAL DE CONTRATO À LUZ DO BGB ATUAL
XXXXX XXXXXXXX XXXXXXXX
SUPERAÇÃO DO MODELO FORMAL DE CONTRATO À LUZ DO BGB ATUAL
Monografia apresentada como requisito parcial de conclusão do curso de Direito da Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Xxxx Xxxxx Xxxxxx
CURITIBA 2008
SUMÁRIO
RESUMO. III
INTRODUÇÃO 1
TÍTULO I – DO CONTRATO: RAÍZES E CONFIGURAÇÕES DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO 3
1 MODELO FORMAL DE CONTRATO 3
1.1 Negócios Jurídicos e Contratos 3
1.2 Princípio da Autonomia Privada e Pacta Sunt Servanda 5
1.3 Limitação à Liberdade de Contratar 8
2 SUPERAÇÃO DO MODELO FORMAL 11
2.1 Releitura do Princípio da Autonomia Privada 13
2.1.1 Consensualismo 15
2.1.2 Efeito relativo do contrato 16
2.2 Outros Princípios 18
2.2.1 Princípio da boa-fé contratual 18
2.2.2 Princípio da justiça contratual 19
2.3 Constitucionalização do Direito Civil 20
2.4 “Relativização” do Princípio dos Efeitos Relativos dos Contratos 25
2.4.1 Novação tácita objetiva por comportamento concludente 26
2.4.2 Recesso intencional das tratativas preliminares 28
2.4.3 Pós-eficácia contratual 30
2.4.4 Contrato com pessoa a nomear 34
2.4.5 Promessa de fato de terceiro 35
2.4.6 Função social 38
TÍTULO II – NOVOS LAÇOS NA CONTRATUALIDADE ATUAL 45
1 INFLUÊNCIA DO DIREITO ALEMÃO NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO 45
1.1 Breve Histórico do BGB. 45
1.2 Influência na Codificação Brasileira 48
2 REFORMA DO BGB 51
2.1 Cenário da Reforma 51
2.2 A Reforma e a Inclusão do § 311 (3) 53
2.3 Jurisprudência: Aspectos Relevantes após 2002 59
CONCLUSÃO 63
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 65
ii
O presente trabalho trata da superação do modelo formal de contrato à luz do BGB. Com base em pesquisa doutrinária e da jurisprudência alemã e da brasileira, aborda a evolução da teoria contratual, abrange a influência do Direito tedesco no Direito brasileiro, trata da reforma do direito das obrigações na Alemanha em 2002 e da codificação do § 311 (3), com o atual entendimento atinente à relativização do princípio dos efeitos relativos dos contratos, e apresenta, como conclusão, a expectativa de novos progressos também no Direito brasileiro em consonância com as evoluções já ocorridas no Direito alemão.
iii
INTRODUÇÃO
A influência do Direito alemão é notável no ordenamento jurídico brasileiro. No âmbito do direito das obrigações, o Brasil recepcionou os princípios desenvolvidos pela doutrina do século XIX e grande parte da estrutura da codificação do BGB. É inegável que, hodiernamente, o Direito brasileiro acompanha o desenvolvimento doutrinário, as alterações e atualizações alemãs.
Destarte, é imprescindível o estudo dos institutos do Direito brasileiro à luz do Direito alemão.
A teoria tradicional dos contratos buscou explicar as relações contratuais tendo como norte o princípio da autonomia da vontade e o princípio do pacta sunt servanda, segundo os quais o contrato faz lei entre as partes. Com o fim do Estado liberal e o advento do Estado social, novos princípios passam a reger as relações contratuais, que culmina, no âmbito do direito das obrigações, no desenvolvimento de uma nova teoria contratual, superando o modelo formal de contratos.
Os princípios norteadores das relações contratuais passam por um processo de releitura e relativização. O que era tido como absoluto e intocável passa a sofrer intervenção estatal, as características individuais dos contratos cedem lugar a características sociais e os litígios envolvendo revisões de cláusulas pactuadas passam a fazer parte da rotina do Judiciário. A construção jurisprudencial tem papel fundamental na recepção e consolidação dos princípios do direito contratual contemporâneo. Confirmando esse pensamento houve, em 2.002, na Alemanha, uma atualização legislativa do direito das obrigações, que incorporou alguns institutos de construção jurisprudencial, como o § 311 (3).
Nesta toada, surgiu o interesse pelo presente estudo, que almeja traçar uma relação entre o direito das obrigações no Brasil e a atualização do direito das obrigações alemão, por meio do desenvolvimento da teoria contratual ao longo do tempo. A observância do contexto histórico e social é fundamental para demonstrar a evolução no âmbito dos contratos, haja vista a importância da relatividade histórica neste tipo de abordagem.
O trabalho está dividido em dois títulos. O primeiro trata das raízes e configurações do contrato, abordando, no primeiro capítulo, o modelo clássico e suas características. O próximo capítulo trata da superação do modelo formal, desde os princípios que passam a reger as relações contratuais, perpassando pelo
fenômeno de constitucionalização do direito civil e, por fim, enfatizando a relatividade dos efeitos relativos dos contratos.
O segundo título versa sobre os novos laços da contratualidade atual. É feito um breve apanhado da influência do Direito alemão no Direito brasileiro. Na seqüência, apresenta-se um estudo sobre a reforma do direito obrigacional alemão, contextualizando-o na superação do modelo formal de contrato. Por fim, é apresentada uma breve pesquisa jurisprudencial acerca da relatividade dos efeitos relativos dos contratos no Bundesgerichtshof (BGH).
Se, ao término desta leitura, o trabalho permitir localizar no direito dos contratos alemão atual idéias úteis a um possível futuro para o direito contratual brasileiro, tanto no âmbito das codificações quanto no âmbito jurisprudencial, terá, enfim, atingido seu objetivo.
TÍTULO I – DO CONTRATO: RAÍZES E CONFIGURAÇÕES DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO
1 MODELO FORMAL DE CONTRATO
1.1 Negócios Jurídicos e Contratos
A vida é sucessão permanente de fatos, quais sejam, simples eventos da natureza (ex: a chuva, o vento, o nascimento, a morte) e condutas humanas (atos decorrentes da vontade de um agente).
Quando o fato interfere direta ou indiretamente no relacionamento inter- humano, a comunidade jurídica sobre ele edita norma, que passa a regulá-lo e imputar-lhe efeitos que repercutem no plano da convivência social. A norma jurídica adjetiva os fatos do mundo, conferindo-lhes a característica de fato jurídico. Nem todos os fatos interessam ao mundo jurídico, mas apenas aqueles relevantes que interferem nas relações humanas. Somente o fato juridicamente relevante é regulado pela norma jurídica e pode ser considerado fato jurídico.
Os fatos jurídicos podem ser classificados da seguinte forma1:
a) simples fatos da natureza ou fatos jurídicos strictu sensu (xxxxxxxxxx, morte, idade);
b) atos humanos:
b.1) ato-fato: que não depende da vontade do agente de praticá-lo, o que importa é o resultado (ex: criança que encontra um tesouro);
b.2) ato jurídico latu sensu: exteriorização consciente da vontade mediante declaração ou simples manifestação;
b.2.1) ato jurídico strictu sensu: quando há a manifestação de vontade e os efeitos jurídicos são gerados da própria lei e independentemente de serem perseguidos pelo agente;
b.2.2) negócios jurídicos: quando há a manifestação de vontade em que o agente persegue um determinado efeito jurídico.
Sobre os negócios jurídicos, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx XXXXXXX assevera:
1 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 100.
Foi a doutrina alemã que elaborou o conceito de negócio jurídico (Rechtsgeschäft), encarecido pelos escritores tedescos como dos mais importantes da moderna ciência do direito, e imaginou-o como um pressuposto de fato, querido ou posto em jogo pela vontade, e reconhecido como base do efeito jurídico perseguido. O fundamento e os efeitos de negócio jurídico assentam então na vontade, não uma vontade qualquer, mas aquela que atua em conformidade com os preceitos ditados pela ordem legal. E tão relevante é o papel da vontade na etiologia do negócio jurídico, que se procura identificar a sua própria idéia conceitual com a declaração de vontade, constituindo-se desta forma a sua definição.2
Outrossim, o negócio jurídico decorre da vontade declarada e direcionada a um efeito jurídico pretendido em consonância com a ordem jurídica. Esse efeito jurídico é a criação de direitos e obrigações, atribuído pelo ordenamento jurídico seja quando o agente age unilateralmente ou quando a declaração volitiva decorre de dupla e coincidente emissão de vontades para constituição de um negócio jurídico bilateral. Neste último caso, a formação do ato somente ocorre quando as vontades se ajustam, num dado momento3. Aí se situa a noção de contrato.
Conforme ensinamento de Xxxx Xxxxx xx Xxxxx XXXXXXX, contrato “é um negócio jurídico bilateral, e de conseguinte exige o consentimento; de outro lado, a conformidade com a ordem legal, sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato negocial, tem por escopo aqueles objetivos específicos”, ou seja, em síntese, é “um acordo de vontades, na conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar modificar ou extinguir direitos”4.
Note-se, todavia, a menção de Xxxxxxx XXXXX de que o contrato não é apenas negócio jurídico bilateral de efeitos no direito das obrigações, mas também no direito de família, direito das coisas e direito das sucessões5. É bem verdade, contudo, que os contratos mais importantes para a vida econômica gravitam na órbita do direito das obrigações.
No direito romano, somente algumas categorias de contratos (contractum) revestiam forma predeterminada, geravam obrigações, vinculavam as partes e proviam o credor da actio (faculdade de reclamar o crédito em juízo). Outras categorias (pactum) não revestiam forma predeterminada e não permitiam ao credor
2 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 1. 19ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2001.p. 303.
3 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 3. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2001.p. 2.
4 Id.
5 XXXXX, Xxxxxxx. Contratos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1971. p. 16.
à invocação de uma ação. Conforme Xxxxxxx XXXXX, “o contrato consistia em relação jurídica constituída por obrigações exigíveis mediante ações civis, enquanto o pacto era protegido, apenas por uma exceptio” 6.
Essa distinção perdeu sua razão no direito moderno, em que toda convenção é modernamente dotada de força vinculante e mune o credor de ação para perseguir em juízo a prestação em espécie ou equivalente7.
Ainda em relação ao Direito Romano, houve uma evolução no tocante à relação jurídica criada. Xxxx Xxxxx xx Xxxxx XXXXXXX afirma que, no contrato romano, dado o caráter personalíssimo da obrigação, a ligação se estabelecia entre as pessoas dos contratantes, vinculando-os pessoalmente e sujeitando seus corpos. No direito moderno é que se tornou possível desbordar a execução incidente sobre a pessoa do devedor de modo a serem atingidos os seus bens8.
1.2 Princípio da Autonomia Privada e Pacta Sunt Servanda
A concepção tradicional de contrato do século XIX tem como princípios fundamentais a liberdade contratual e a intangibilidade dos contratos.
Nos contratos, o indivíduo é livre para manifestar sua vontade em conformidade com a lei e, com isso, criar direitos e contrair obrigações. O princípio pelo qual se reconhece à manifestação da vontade o poder criador de efeitos jurídicos é o da autonomia da vontade9.
Pode-se afirmar que a teoria do negócio jurídico está intimamente ligada à idéia de vontade, a qual deve ser exteriorizada ou pela declaração da vontade ou pela manifestação da vontade.
Sobre esse princípio, particularizado no direito contratual sob a forma da
liberdade de contratar, ensina Xxxxxxx XXXXX:
A liberdade de contratar propriamente dita é o poder conferido pela ordem jurídica às partes contratantes de suscitar os efeitos que pretendem, sem que a lei intervenha para impor a observância dos preceitos que traça. Em matéria contratual, as disposições legais têm, de regra, caráter supletivo ou subsidiário, somente se aplicando em caso de silêncio ou carência das vontades particulares. Prevalece, desse modo, a vontade das contratantes. Permite-se que regulem seus interesses por forma diversa e até oposta à prevista na lei.10
6 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 20.
7 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 3... p. 4.
8 Id.
9 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 1... p. 304.
10 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 29.
Na visão de Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX, autonomia da vontade é definida como a “possibilidade, oferecida e assegurada aos particulares pelo ordenamento jurídico, de regular suas relações mútuas dentro de determinados limites, por meio de negócios jurídicos, em especial mediante contratos”11.
Xxxxxxxx XXXXXX XXXX assevera:
De conformidade, ainda, com o princípio da autonomia da vontade, o homem é absolutamente livre, de contratar ou não contratar, desde que a convenção seja lícita. Não se afirma apenas que o contrato tem força da lei entre os pactuantes; diz-se, ainda, que o contrato é mais forte que a lei. Só a vontade pode criar ou fazer nascer uma obrigação.12
Para Xxxxxxxx XXXXXXX, a autonomia privada “é a possibilidade, oferecida e assegurada aos particulares, de regularem suas relações mútuas dentro de determinados limites por meio de negócios jurídicos, em especial mediante contratos” e, por conseguinte, consiste na liberdade de as pessoas regularem direitos e deveres por meio de contratos, ou mesmo negócios jurídicos unilaterais, quando possíveis, os seus interesses, em especial quanto à produção e à distribuição de bens e serviços13.
Com efeito, vigorava a presunção de que, diante da liberdade de contratar, os interessados podiam discutir o pacto livremente até chegar a um consenso, desfrutando da liberdade de celebrar, ou não, o contrato. Nesse contexto, partes iguais e livres não precisavam de interferência legislativa para impedir a estipulação de obrigações excessivamente onerosas a um dos contratantes em benefício do outro. De modo que qualquer tentativa de intervenção representaria intolerável restrição à liberdade.
Segundo Xxxxx Xxxxx XXXX, esse entendimento decorreu do fato de que, nos séculos XVIII e XIX, o Direito foi marcado por uma orientação individualista e as relações contratuais eram estabelecidas por pessoas igualmente livres, já que todos
11 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. O contrato: exigências e concepções atuais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 29.
12 XXXXXX XXXX, Xxxxxxxx. Obrigações e contratos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1969. p. 50.
13 XXXXXXX, Xxxxxxxx. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. Coimbra: Almedina, 1994. p.115.
viviam em uma sociedade de proprietários de bens de produção ou de capital ou, ao menos, da própria força de trabalho14.
Note-se que o contrato concebido como expressão da liberdade individual ou da autonomia da vontade desenvolve-se no contexto histórico do Estado moderno- liberal. Contexto que tem como ponto máximo o predomínio do capitalismo industrial da segunda metade do século XIX, momento em que foi elaborada a teoria do negócio jurídico15. Para Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX, apesar de seus pressupostos estarem ligados à ideologia liberal, a teoria do negócio jurídico procura explicar, até hoje, teoricamente, as estruturas de todas as atividades negociais, pela aplicação dos conceitos gerais, desconsiderando o processo histórico ao tentar adaptar à realidade atual as mesmas soluções encontradas em tempos passados.
A liberdade de contratar está no encontro de outras liberdades: a liberdade de escolher o que vai ser contratado, com quem irá contratar e de que forma será contratado. Já a intangibilidade diz que o contrato faz lei entre as partes, “pacta sunt servanda”16. Este princípio impossibilita as partes alterarem o que foi contratado, bem como torna impossível que o contrato seja passível de revisão judicial. Esses princípios estavam atrelados ao princípio da autonomia da vontade, segundo o qual o sujeito só pode ser vinculado pelas obrigações que ele próprio, voluntariamente assumir.
Ao princípio da autonomia da vontade também estavam interligados o consensualismo e o efeito relativo dos contratos. Sobre consensualismo entende-se que se as partes são livres para contrair obrigações, então ficarão vinculadas apenas pela manifestação dada nesse sentido. Já sobre o efeito relativo dos contratos entende-se que se as partes só se obrigam na medida da sua liberdade, então os contratos não podem beneficiar nem prejudicar terceiros; esses nunca poderiam ser atingidos por efeitos jurídicos estranhos à sua xxxxxxx00.
A visão individualista de Direito foi incorporada pelas legislações ocidentais, podendo-se afirmar que o sistema de direito privado está fundado na liberdade dos particulares, com centralidade no negócio jurídico, concebido como paradigma da manifestação da vontade. Portanto, a vontade individual continua a nortear a teoria
14 XXXX, Xxxxx Xxxxx. Novos perfis do direito contratual. In: XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx (organizadora) et. al. Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 248.
15 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 13.
16 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 42.
17 Ibid., p. 43.
do negócio jurídico e a teoria do contrato, persistindo, os juristas, em explicar as complexas relações das sociedades de massa.18
Leciona Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX:
A liberdade contratual está estreitamente entrelaçada com a liberdade de propriedade, como se observa nas codificações surgidas da união da sociedade burguesa com o Estado moderno. Através da codificação, o racionalismo liberal burguês generalizou seus valores sociais, políticos e econômicos, utilizando uma aparência abstrata e atemporal.19
Daí decorre o princípio da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), segundo o qual o contrato é lei entre as partes. Referida como “pedra angular da segurança ao comércio jurídico” por Xxxxxxx XXXXX, que assevera:
Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem as circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações correspondentes a cada parte, as cláusulas que o constituem têm, para os contratantes, força obrigatória. Diz-se que é intangível, para significar-se a irretratabilidade do acordo de vontades.20
Referido autor afirma ainda que o pacta sunt servanda afasta a possibilidade de revisão do contrato pelo juiz, ou de libertação por ato seu, tampouco as cláusulas contratuais podem ser alteradas judicialmente, qualquer que seja a razão invocada. E mais, “se ocorrem motivos que justificam a intervenção judicial em lei permitida, há de realizar-se para decretação de nulidade ou da resolução do contrato, nunca para a modificação do seu conteúdo”21.
Afinal, segundo Xxxxx Xxxxx XXXX, “se a sociedade é composta por proprietários é o contrato que garante a circulação de riquezas e a realização da liberdade individual”22.
1.3 Limitação à Liberdade de Contratar
Cabe ressaltar, todavia, que o princípio da liberdade de contratar não é absoluto, pois se subordina à ordem pública e aos bons costumes. Segundo Xxxx Xxxxx xx Xxxxx XXXXXXX, “em nossos dias, vem-se observando, no mundo inteiro,
18 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 15.
19 Id.
20 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 39.
21 Ibid., p. 40.
22 XXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 248.
uma cada vez maior expansão do domínio da ordem pública, e um cada vez mais acentuado estreitamento da participação da autonomia da vontade”23.
Xxxxxxx XXXXX afirma que “as limitações à liberdade de contratar inspiram- se em razão de utilidade social”, pois “certos interesses são considerados infensos às bases da ordem social ou se chocam com os princípios cuja observâncias por todos se têm como indispensável à normalidade dessa ordem”24.
Tanto que, nesse particular, a lei impõe a sanção de invalidade (nulidade) aos contratos firmados em contrariedade às leis de ordem pública e aos bons costumes.
Todavia, nem essas limitações à autonomia privada eram suficientes para impedir a prática de abusos que transformavam a liberdade de contratar em verdadeiro exercício de poder da vontade. Sobretudo no regime de desigualdade econômica como o que resultou do desenvolvimento do capitalismo25.
Aliás, de um modo geral, o direito privado sofreu significativas mudanças, principalmente em razão dos fatos sociais advindos das duas Guerras Mundiais, pela transformação de uma economia estável numa economia flutuante em razão das oscilações do mercado e da moeda26.
Xxxxxxx XXXXX assevera que “após a primeira conflagração mundial, apresentaram-se, em alguns países beligerantes, situações contratuais que, por força das circunstâncias, se tornaram insustentáveis, em virtude de acarretarem onerosidade excessiva para um dos contratantes” 27.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxxxxx XXXXXXXX, “o contrato tal como fora concebido na acepção do Code – em que ambas as partes, em situação de igualdade econômica e jurídica, e no gozo pleno de suas liberdades pactuavam, e o que constasse desse pacto faria lei entre tais partes – não é mais o modelo preponderante na sociedade atual”28.
Afirma Xxxxxxxx XXXXXX XXXX:
Os exageros a que foi arrastado o princípio da autonomia da vontade, de par com as transformações econômicas, sociais e políticas que o mundo tem atravessado nestes últimos
23 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 1... p. 304.
24 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 31.
25 Ibid., p. 33.
26 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. A revisão contratual por excessiva onerosidade superveniente à contratação positivada no Código do Consumidor, sob a perspectiva civil constitucional. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx (coordenador). Problemas de direito civil- constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 287.
27 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 41.
28 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 287.
tempos, provocaram uma reação natural e necessária, que, sem apoucar a significação do princípio, entretanto o reduz às suas exatas proporções e o coloca nos limites indispensáveis à vida jurídica e seu desenvolvimento.
Sem dúvida, é impossível negar-se, hoje em dia, que o contrato pode ser fonte de injustiça, pois não é verdade que os contratantes se encontrem em um estado de igualdade perfeita. No máximo, poderá existir a igualdade jurídica, ou seja, uma igualdade utópica e ideal, em relação à lei, mas que é desmentida pela desigualdade econômica e social, que é a que importa, na realidade, aos contratantes, às partes que se obrigam mútua e reciprocamente.29
Com efeito, adveio a necessidade de intervenção do Estado na relação contratual, pois tanto se abusou da liberdade de contratar que se fizeram necessárias medidas legislativas tendentes a limitá-la, convencendo-se os juristas de que entre o forte e o fraco é a liberdade que escraviza e a lei que liberta30. Noutras palavras, a (suposta) livre manifestação da vontade de contratantes com poderes de barganha absolutamente desiguais gera, na prática, a escravização daquele que se mostra tecnicamente ou economicamente mais fraco31.
Os pressupostos e limites desse intervencionismo do Estado nas relações contratuais são expostos no capítulo a seguir.
29 XXXXXX XXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 56.
30 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 33.
31 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 291.
2 SUPERAÇÃO DO MODELO FORMAL
Como exposto, a teoria do contrato tida como afirmação da autonomia da vontade e exercendo uma função individual tornou-se insuficiente e inadequada devido às transformações sociais e econômicas do século XX, tendo de ser reestruturada para atender e exercer uma função social, voltada a uma idelogia igualitária, com suas demandas de justiça social32.
A teoria dos contratos desenvolvida no século XIX girava em torno somente do princípio da autonomia privada ou autonomia da vontade. No entanto, essa concepção acaba por não explicar alguns institutos de direito contratual, além de prejudicar o desenvolvimento de outros, tornando-se insatisfatória.
Os princípios fundamentais do Direito nada mais são do que reflexos dos valores básicos sociais de liberdade, justiça e de ordem, devendo esses ser observados em toda análise jurídica. Para Xxxxxxxx XXXXXXX, no direito dos contratos esses princípios se traduzem em autonomia privada, justiça contratual e boa-fé, encontrando-se numa relação de permamente tensão, autolimitando-se reciprocamente:
O princípio da autonomia privada traduz-se na liberdade de as pessoas regularem, através de negócios jurídicos, os seus interesses, em especial no que diz respeito à produção e à distribuição de produtos e serviços. A autonomia privada é fundamento da liberdade contratual, do consensualismo e do efeito relativo dos contratos.33
A transformação demográfica moderna (explosão demográfica) deu origem à sociedade de massas, fenômeno relevante e de conseqüências jurídicas. Um dos problemas concretos relacionado ao direito da sociedade de massas é “a distribuição dos bens com sua incidência na propriedade privada, o estabelecimento de limitações ao direito de propriedade e a intervenção do Estado para realizar a função social da propriedade”, como afirma Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX:
O que antes era tratado pelos jusprivatistas, ao monumental edifício da teoria do contrato ou do negócio jurídico, como exceção ou tipos marginais, situações-limites, passa a ser a regra: os contratos de adesão em múltiplas e variáveis formas, os contratos de massa, os contratos- tipo, a automatização, etc.34
32 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 17.
33 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 18.
34 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 18.
A vontade do grupo ou do Estado prevalece, em detrimento da vontade humana, em seu caráter individual. O Estado passa a direcionar o contrato a uma função social, por meio de sua produção normativa.
Como os pressupostos políticos e econômicos não são mais os mesmos, não se trata apenas de adaptar a teoria contratual aos novos fatos, mas sim de reelaborar e repensar toda a construção jurídica do contrato, conforme ensinamento de Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX, que ainda afirma:
O contrato deixa de ser apenas instrumento de exercício de direitos para ser também instrumento de política econômica. E se estabelece uma situação aparentemente paradoxal: um recrudescimento de sua importância na medida de seu declínio, quando a autonomia da vontade vai perdendo seu domínio35.
Sobre essa transição, Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA assevera:
A autonomia da vontade não mais se harmoniza com o novo direito dos contratos. A economia de massa exige contratos impessoais e padronizados; doutro modo, o individualismo tornaria a sociedade inviável.
O Estado, por sua vez, com muita freqüência ingressa na relação contratual privada, proibindo ou impondo cláusulas.
Essa situação vem colocar em choque o contrato como dogma do liberalismo. O binômio liberdade-igualdade que forjou esse liberalismo no direito das obrigações tende a desaparecer. Há vontades que se impõem, quer pelo poder econômico, quer pelo poder político.
Em razão dessas modificações, a força obrigatória dos contratos não se aprecia tanto à luz de um dever moral de manter a palavra empenhada, mas sob o aspecto da realização do bem comum e de sua finalidade social. O homem moderno já não mais aceita o dogma no sentido de que seja justo tudo que seja livre (...).36
A interdependência entre autonomia da vontade e negócio jurídico faz com que o declínio de um esteja diretamente relacionado ao declínio do outro. Na visão de Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX, o negócio jurídico “surgiu exatamente para abranger os casos em que a vontade humana pode criar, modificar ou extinguir direitos, pretensões, ações e exceções, tendo por fito esse acontecimento do mundo jurídico”37.
Com efeito, a teoria do negócio jurídico concebe o negócio jurídico como instrumento da autonomia da vontade. Uma vez que a autonomia deixa de ter papel
35 Ibid., p. 19.
36 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Direito civil. 3ª ed. Atlas: São Paulo, 2003. v. II. p. 369.
37 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxx. Op. cit., p. 20.
de centralidade nas relações jurídicas da sociedade de massa, a própria teoria do negócio jurídico perde sua base.
Uma das características das relações jurídicas de massa é a despersonalização. Os sujeitos não são claramente identificados. As relações jurídicas tradicionais eram concebidas entre indivíduos concretos, se estabeleciam entre pessoas perfeitamente identificadas ou identificáveis38. A automatização inerente às relações massificadas ou anônimas não se enquadra no modelo tradicional de contrato.
O modelo clássico, inserido na idéia de justiça contratual passou a atender de maneira insatisfatória as relações entre contratantes, pois em muitas situações o contrato era considerado válido, embora não houvesse equilíbrio na relação estabelecida, o que provocava para uns a ruína e para outros o enriquecimento exagerado39.
O Estado assume uma função protetiva ao favorecer economicamente os mais fracos, intervém para estabelecer o equilíbrio, de modo que o princípio da força obrigatória dos contratos seja mitigado para ajustar o contrato à nova realidade social. Além de proteger, o Estado também dirige, não mais de acordo com os interesses dos particulares, mas com o interesse social. O contrato passa a ser dirigido, regulamentado e fiscalizado pelo Poder Público. Esse fenômeno é chamado de dirigismo contratual, em que o Estado interfere em favor da comutatividade contratual, limitando a autonomia privada.
2.1 Releitura do Princípio da Autonomia Privada
O contexto histórico do Estado social evidenciou a necessidade de uma releitura dos princípios contratuais. Nessa evolução, a liberdade de contratar não é mais tida em caráter absoluto e passa a sofrer limitações, conforme lição de Xxxxxxxx XXXXXXX:
Limitações legais à liberdade contratual mostraram-se sempre necessárias, por isso que é a própria liberdade contratual que no seu processo dialético tende a limitar-se e por vezes se anula. Em todos os tempos lhe foram postos limites resultantes do meio social, ou do ‘milieu
38 Ibid., p. 21.
39 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Responsabilidade civil pós-contratual: no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho e no direito ambiental. 2° Edição. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 33.
contractuel’, em que ela se move. (...) Além disso, só uma sociedade onde todos tivessem uma igual força social, numa sociedade de pequenos proprietários, é que a liberdade contratual poderia, como é óbvio, ser uma igual liberdade para todos. Desde que os contraentes se distinguem entre proprietários e não-proprietários, a liberdade contratual não pode deixar de se transformar numa liberdade dos mais fortes, de imporem a sua vontade aos mais fracos, acompanhada da necessidade para estes de terem de a aceitar. À proporção pois em que a economia livre se transforma numa economia capitalista, tanto mais a liberdade contratual dos indivíduos vai sofrendo limitações impostas pelo predomínio econômico dos grupos. E se foi a liberdade contratual que tornou possível a formação de grupos e associações de toda a espécie, verifica-se, por outra banda, que são esses mesmos
grupos e associações que cada vez mais a vão limitando.40
A esse respeito, expõe Xxxxxxxx XXXXXX XXXX:
A evolução jurídica demonstra, assim, que o contrato perdeu a sua característica tradicional, da concepção clássica, isto é, deixou de ser individual e passou a assumir, na modernidade, feição nova, de instituto jurídico social, da mesma forma que, sob o aspecto prático, se transformou em instrumento destinado a realizar os acordos necessários à vida de uma nação moderna, e não apenas a sacramentar as relações entre os indivíduos.41
Xxxxx Xxxxx XXXX, por seu turno, assim trata da evolução jurídica quanto à intervenção na relação contratual:
Por tais razões, até então só era possível uma interpretação subjetiva do contrato, em contraposição à tendência moderna da interpretação objetiva das cláusulas contratuais.
A interpretação objetiva do contrato visa o atingimento de outras finalidades que não os da mera circulação de riquezas. Passa a ser necessário elaborar um juízo de utilidade social do “jogo” em si considerado, que busca um controle judicial dos negócios jurídicos que vai além do controle superficial das “regras do jogo”, e passa a colocar em julgamento a própria validade social do ato, se o mesmo merece tutela jurídica.42
Ou seja, embora a teoria tradicional afirme como regentes das relações entre contratantes o princípio da liberdade contratual e o da vinculatividade do pactuado, de modo que a força obrigatória dos contratos esteja normalmente vinculada ao princípio da autonomia privada, Xxxxxxxx XXXXXXX afirma que os valores fundamentais em matéria de contratos são a liberdade, a justiça e a ordem, cujos princípios a eles correspondentes são designados autonomia privada, justiça e boa- fé:
(...) se ainda hoje é correto afirmar-se que a obrigação de cumprir o contrato está associada ao dever, de raiz essencialmente ética, de respeitar a palavra dada, mais importante do que este, do ponto de vista social, é a necessidade de assegurar a observância de certos
40 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 117.
41 XXXXXX XXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 60.
42 XXXX, Xxxxx Xxxxx. Op. cit., p. 251.
compromissos – necessidade esta ligada essencialmente à tutela da confiança e ao princípio da boa-fé.43
Xxxxxxx Xxxxxxxxx XXXXXXXX, sobre essa “transição de um direito estritamente liberal para um direito socializado e funcionalizado”, assevera:
O atual fenômeno da objetivação do contrato exige que não sejam mais super valorizadas as intenções subjetivas das partes no momento da contratação. Numa sociedade de massas, o contrato deverá estar mais sensível ‘ao que se manifesta no ambiente social, nas condições objetivas de mercado44.
Contudo, se a igualdade contratual é hoje relativizada, embora antes não o fosse, quando outras eram as condições de vida, e outro era o meio econômico e social, mesmo assim não se pode considerar irrelevante o princípio da autonomia da vontade nem que do regime da plena liberdade de contratar se deve passar ao do intervencionismo rígido45.
Com efeito, nas lições de Xxxxxxxx XXXXXXX, o princípio da autonomia privada é invocado também como fundamento aos princípios da liberdade contratual, do consensualismo e do efeito relativo dos contratos, atinentes à liberdade de celebração ou não de negócios jurídicos e, ainda, liberdade quanto à determinação do respectivo conteúdo. Referido autor afirma ainda que a liberdade de contratar é a “faculdade de realizar ou não determinado contrato”, enquanto a liberdade contratual é “a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato”. A distinção é feita para enfatizar que, enquanto a liberdade de contratar tem sido mantida, em termos gerais; a liberdade contratual tem sofrido amplas restrições46.
Assim, a autonomia privada passa a sofrer limitações em prol da justiça contratual, cujas as restrições estão relacionadas aos princípios da boa-fé e da justiça contratual.
2.1.1 Consensualismo
O princípio do consensualismo trata da liberdade quanto à forma que deve revestir os contratos e os negócios jurídicos unilaterais, sendo suficiente o acordo
43 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 116.
44 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Op. cit., p. 287.
45 XXXXXX XXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 57.
46 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 117.
entre as partes para que estas fiquem vinculadas47. Esse princípio vai de encontro ao formalismo derivado do Direito Romano, desvinculando a validade dos contratos a formalidades especiais (salvo quando expressamente determinado).
No entanto, hodiernamente, o formalismo renasce nas relações contratuais, às vezes por imposições legais e, principalmente, por exigências ligadas à segurança das transações e à padronização dos contratos. Na prática, os contratos consensuais são observados nas transações de menor importância econômica. As exigências práticas não afetam o alcance do princípio legal, mas fazem com que este, no tráfico jurídico, esteja deixando de ser a regra48.
Nesse sentido, Xxxxxx Xxxxxxxxx xx XXXXX defende a prevalência da regra segundo a qual, no negócio jurídico, deve importar a vontade expressada pelos figurantes pela melhor forma que lhes aprouver, salvo se a lei previr forma especial ou se esta for negocialmente xxxxxxx00.
2.1.2 Efeito relativo do contrato
Diante da liberdade para contratar, dentro da esfera de auto-regulamentação de interesses marcada pela autonomia privada, em princípio, a vinculação criada pelos contratantes só a elas atingirá, e não a terceiros. Em relação a estes, o contrato será res inter alios acta – e res inter alios acta tertio neque nocet neque prodest (coisa feita entre outros não prejudica nem beneficia a terceiros)50. Eis o princípio do efeito relativo dos contratos.
Xxxxxxxx XXXXXXX observa, contudo, que esse princípio não deve ser considerado de maneira absoluta:
Efetivamente se um contrato deve ser considerado como fato social, como temos insistido, então a sua real existência há de impor-se por si mesma, para poder ser invocada contra terceiros, e, às vezes, até para ser oposta por terceiros às próprias partes. Assim é que não só a violação de contrato por terceiro pode gerar responsabilidade civil deste (como quando terceiro destrói a coisa que devia ser prestada, ou na figura da indução ao inadimplemento de negócio jurídico alheio), como também terceiros podem opor-se ao contrato, quando sejam
por ele prejudicados (o instituto da fraude contra credores é exemplo disto).51
47 Ibid., p. 117.
48 Ibid., p. 118.
49 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxxx de. Op. cit., p. 41-42.
50 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 119.
51 Id.
Para resguardar o referido princípio, alguns autores distinguem efeito relativo de oponibilidade a terceiros. O primeiro garante que só as partes contratantes ficariam na posição de “credoras” ou “devedores”, jamais terceiros. Já o segundo destaca que o contrato seria efetivamente oponível a terceiros52.
O efeito relativo dos contratos sofre relativização a partir do princípio da boa- fé contratual. Em alguns casos, um terceiro pode ser atingido pela relação contratual estabelecida entre outros sujeitos. Desse assunto tratar-se-á oportunamente.
Os três subprincípios da autonomia privada descritos só têm seu valor na medida em que se reconhece ou atribui autonomia aos particulares por razões de ordem econômica e social. Por isso a autonomia privada deixa de ser enaltecida, haja vista que estavam tomando meras partes, isto é, o interesse do empresário e sua liberdade contratual, pelo todo, ou seja, a complexidade de interesse e de valores sociais envolvidos nos contratos, como preceitua Xxxxxxxx XXXXXXX:
A liberdade de exprimir o pensamento, a liberdade de trabalhar, de se alimentar convenientemente, de morar decentemente, de se instruir, são liberdades mais necessárias do que a de contratar. A liberdade de contratar a não importa que condições, a não importa que preço, com não importa quem mostrou que pode conduzir à asfixia dos outros direitos e liberdades, que são mais importantes para a felicidade de todos e de cada um. Se ao preço de um certo abandono da liberdade contratual, nós aumentarmos a eficácia dos outros direitos e liberdades, o balanço será ainda positivo e benéfico53.
Nessa visão, o que causou o declínio da autonomia privada foi “por um lado, o esquecer-se a regra elementar segundo a qual a lei, e portanto o Estado, está na origem de todos os nossos direitos subjetivos, aí incluído o de contratar e, por outro lado, o abuso que se fez da liberdade de contratar num contexto sócio-econômico permitindo aos fortes explorar os fracos e, por último, e sobretudo, as necessidades de uma economia planejada”54.
A crítica feita aos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual levou ao enaltecimento dos princípios da boa-fé e da justiça contratual. Todavia, Xxxxxxxx XXXXXXX enfatiza que mesmo no tempo em que a teoria contratual era construída com base apenas na autonomia da vontade, havia uma preocupação com a justiça contratual55.
52 Id.
53 Ibid., p. 121.
54 Ibid., p. 122.
55 Ibid., p. 120.
2.2 Outros Princípios
2.2.1 Princípio da boa-fé contratual
O princípio da boa-fé contratual consiste no dever de cada parte agir de forma a não defraudar a confiança da contraparte, sendo indispensável para a tutela da segurança jurídica, para garantia da realização das expectativas legítimas das partes.
Para Xxxxxxxx XXXXXXX, “a boa-fé que é princípio contratual é a chamada boa-fé objetiva, que consiste no dever de agir de acordo com os padrões socialmente reconhecidos de lisura e lealdade”, os quais “traduzem a confiança indispensável à vida de relação e ao intercâmbio de bens e serviços, de que os contratos são instrumento jurídico”56.
No mesmo sentido, Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX afirma que o princípio da boa-fé “impõe um comportamento honesto, correto, ético, equilibrado, nas relações contratuais, assim como em qualquer outra relação jurídica” e configura um comando de ordem pública, nos termos do parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil57.
Quanto a sua aplicabilidade, ressalva Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA que “esse princípio se estampa pelo dever das partes de agir de forma correta antes, durante e depois do contrato, isso porque, mesmo após o cumprimento de um contrato, podem sobrar-lhes efeitos residuais”58.
Xxxxxx xxxxx, Xxxxxxxx XXXXXXX explica que o dever de agir em consonância com o princípio da boa-fé está presente em todas as fases do contrato, pois sua primeira manifestação dá-se nas negociações, nas tratativas preliminares, resultando, a sua violação, em responsabilidade pré-contratual. Verifica-se em sua plenitude na conclusão, interpretação e execução contratuais, podento, até, justificar a extinção de obrigações, com a resolução contratual59.
Acresenta, ainda, Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA:
Tanto nas tratativas como na execução, bem como na fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido (responsabilidade pós-obrigacional ou pós-contratual), a boa-fé objetiva é fato
56 Ibid., p. 18.
57 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 115-116.
58 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 378.
59 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 18.
basilar de interpretação. Dessa forma, avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do Direito ao caso concreto.60
A boa-fé contratual apresenta, pois, função interpretativa, integrativa (explicitação dos direitos e deveres acessórios e laterais das partes) e de controle (determinação dos limites postos ao exercício do direito). Para que essas funções sejam devidamente exercidas, os contratantes devem proceder de acordo com a boa-fé em três importantes planos do direito contratual. Primeiro, quando se trate de determinar o sentido das manifestações contidas no contrato; segundo, quando se trate de explicitar os deveres de comportamento de credor e devedor; terceiro, quando se trate de marcar os limites dos direitos que o credor tem a faculdade de exercer contra o xxxxxxx00.
2.2.2 Princípio da justiça contratual
A justiça contratual, referente ao equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações entre as partes na relação contratual, pode ser formal ou substancial. A justiça formal tem por única preocupação assegurar às partes igualdade no processo de contratação e predominou por muito tempo. Já a justiça substancial busca antes de tudo assegurar efetivo equilíbrio entre direitos e obrigações de ambas as partes62. Para Xxxxxxxx XXXXXXX, no âmbito da justiça substancial há ainda a divisão entre justiça substancial subjetiva – em que, na avaliação das partes, cada uma receba benefícios iguais ou maiores do que os sacrifícios que esteja assumindo
– e objetiva – em que cada parte, em troca dos compromissos que assume, obtenha benefícios que contrabalancem, de forma adequada, isto é, aproximadamente equivalente, os seus encargos – razão pela qual o equilíbrio entre benefícios e encargos é obtido pela justiça substancial objetiva, uma vez que a intervenção do ordenamento jurídico só se justifica tendo em vista o interesse geral, considerando as conseqüências econômicas e sociais produzidas pelo contrato63.
Destarte, a justiça contratual não deve ser medida pelas partes, mas sim de acordo com um critério objetivo, isto é, pela justiça substancial objetiva. No entanto,
60 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 380.
61 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 19.
62 Ibid., p. 215-221.
63 Ibid., p. 221.
o trabalho de encontrar a justiça substancial objetiva é árduo, ante o risco de suprimir a liberdade das partes e destruir a autonomia privada, além de afetar a segurança das relações. Segundo Xxxxxxxx XXXXXXX, “é preciso buscar um difícil ponto de equilíbrio entre a justiça contratual, a boa-fé e a autonomia privada, ou, melhor dizendo, um ponto no qual a autonomia privada seja limitada, mas não descaracterizada, nem pela boa-fé nem pela justiça contratual” 64.
Enfim, o princípio da justiça contratual realiza o valor da justiça, tendo por finalidade a realização de um efetivo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes, alcançando uma justiça substancial. No entanto, esse equilíbrio não pode suprimir a liberdade das partes e autonomia privada, nem afetar a segurança jurídica. Por isso, o equilíbrio é alcançado ao ser assegurada às partes igualdade no processo contratual (justiça formal). Garantidas as condições necessárias à realização da justiça contratual, presume-se que o contrato seja justo.
2.3 Constitucionalização do Direito Civil
As Constituições, tidas como ápice na ordem hierárquica das normas dentro de determinado território, por si, não abrangem por completo as relações jurídicas da vida social. No entanto, seus valores e princípios devem nortear todas as searas do ordenamento. Esse pensamento aplica-se tanto nas relações entre Estado e indivíduos quanto nas relações inter-individuais; os valores e princípios constitucionais devem ter sua eficácia reconhecida diretamente nas relações entre os indivíduos65.
Em consonância com a supremacia da Constituição Federal frente às demais codificações no Direito, o reconhecimento da incidência de valores e princípios constitucionais no direito civil reflete não apenas uma tendência brasileira, mas de vários ordenamentos, com a qual se verifica a preocupação em edificar uma ordem jurídica voltada aos problemas e desafios da sociedade contemporânea, entre eles o direito obrigacional para além do suporte às relações privadas, voltado à promoção da dignidade da pessoa humana e da boa-fé.
64 Id.
65 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. O direito civil constitucional e a nova teoria dos contratos. In: XXXXXXXX, Xxxxxxx (coordenador). Op. cit., p. 167.
Na contemporaneidade, o interesse individual, o social e o estatal não mais são facilmente separados, como ocorria antigamente. Há um complemento entre o interesse público e o privado, sendo difícil conceber um interesse privado que seja completamente autônomo, independente, isolado do interesse público.
No Brasil, ao longo da história, o Código Civil perdeu para a Constituição a posição de centralidade da ordem jurídica privada. Além disso, um processo de descodificação do direito civil é percebido pelas leis esparsas que figuram no ordenamento. Nesse sentido, o reflexo da unidade de ordenamento, no âmbito das relações privadas, apresenta-se nos valores e princípios constitucionais.
Segundo Xxxxxxxx XXXXXXXXX, “o caminho inevitável a seguir, é, pois, o de empreender a ‘releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição’, com a forçosa identificação de um direito civil mais sensível aos problemas e às exigências da sociedade”66, auferindo às normas constitucionais, além do papel hermenêutico, um efetivo caráter de direito substancial.
Na teoria contratual ocorre esse mesmo processo de releitura:
O contrato não existe isoladamente, mas sim, dentro de um contexto, no interior de um conjunto normativo. É ele um dos institutos de que se decompõe um ordenamento jurídico e, portanto, acompanha sempre o seu modo de inserção na sociedade de que é expressão. Essa evolução do ordenamento e, mais especificamente, do contrato, segue o caminho das alterações ocorridas no âmbito da sociedade de que o Direito nada mais é do que uma expressão cultural.67
A Lei Fundamental alemã, assim como a nossa Constituição Federal, sobrepõe-se às normas de direito privado, partindo da idéia de estrutura do ordenamento jurídico, restringindo a percepção da autonomia do direito privado. A Lei Fundamental alemã reconhece competência aos sujeitos para celebrar contratos ou contrair matrimônio, por exemplo. Mas também reconhece como princípios fundamentais do Estado a soberania popular e a liberdade do indivíduo. Assim, a autonomia privada mantém relação com a soberania popular, e simultaneamente, significa uma relação de complementação recíproca, pois o direito à autodeterminação também constitui um direito humano68.
66 Ibid., p.168.
67 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx da. Cláusulas abusivas nos contratos. 2. ed. Rio de Janeiro; Forense, 1995. p. 73 apud XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 172.
68 XXXXX, Xxxx. O Código Civil da Alemanha (BGB) e a Lei Fundamental. In: XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (organização). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 254.
A eficácia externa imediata do art. 1° da Lei Fundamental significa que a dignidade humana deve ser respeitada não somente por medidas do Estado, mas também por ações dos sujeitos privados, com relação à integridade física e ao núcleo absoluto da personalidade69. Tanto no plano cível quanto no constitucional há direitos prestacionais originários diante de terceiros e são merecedores de tutela.
O art. 1° da Constituição desenvolve uma eficácia erga omnes na condição de fundamento do ordenamento jurídico, incluindo-se nesse contexto os sujeitos jusprivatistas. O art. 6°, II e IV, expõe que os direitos fundamentais objetivam assegurar ao indivíduo uma margem de liberdade de ação em regime de autodeterminação e responsabilidade perante si mesmo.
Todo instituto jurídico está sujeito à relatividade histórica. Numa visão sistêmica, Xxxxxxx XXXXXXX coloca três níveis para a formação do que chama de sistema contratual70:
a) nível de interação: relações pessoais entre as partes contratantes;
b) nível institucional: do mercado e da organização, indo além do contrato individual; e
c) nível social: da interrelação entre os grandes subsistemas sociais, como política, economia e direito.
Não há hierarquia entre os referidos níveis, que implicam modos distintos de desenvolvimento do sistema, encontrando no contrato um ponto comum entre si. Pois vejamos.
O primeiro plano refere-se à complementaridade das normas contratuais por meio de um conjunto de expectativas informais. Sua origem não se encontra explícita nas declarações de vontade das partes, mas também não são derivadas de uma interpretação das normas jurídicas estatais.
O segundo plano trata da conexão com o mercado, nele os contratos estão integrados num contexto institucional, e as obrigações contratuais devem adaptar-se a essas estruturas, ora impondo obrigações adicionais, ora limitando direitos (cláusulas gerais).
69 XXXXX, Xxxx. Op. cit., p. 254.
70 XXXXXXX, Xxxxxxx. O direito como sistema autopoiético. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 236 apud XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 172.
No último plano, fala-se que o consenso entre as partes não pode ser a única determinante da ordem contratual, sendo observada por meio da inclusão de cláusulas gerais nos contratos71.
Sobre o tema, expõe Xxxxxxxx XXXXXXXXX:
(…) a cláusula geral pode ser vista como uma regra de conflitos, como quadro de referência quer para a resolução de conflitos ou colisões em qualquer desses 3 níveis de formação sistêmica, quer para a respectiva sincronização jurídica72.
Vale a ressalva de Xxxxxxx Xxxxxx DONNINI de que “continua a existir o princípio da autonomia privada, indispensável para a realização de uma avença”, contudo “há limites impostos em lei a essa liberdade contratual, consistentes na função social do contrato e no princípio da boa-fé objetiva, considerados cláusulas gerais”73.
Nesse particular, é importante destacar que essas cláusulas gerais impõem ao magistrado apenas critérios para valorar certo fato, os quais são facilmente reconhecidos por estarem ligados a normas cogentes atinentes a boa-fé, bons costumes, concepção social do contrato etc. É certo que esses valores estão diretamente vinculados a um dado momento histórico. Basta conferir que os valores éticos previstos no Código Civil de 2002 dizem respeito ao momento histórico atual, visto que no Código Civil de 1916 a preocupação do legislador estava atrelada à circulação de riquezas e à segurança dos negócios jurídicos, e não ao comprometimento e à busca do aspecto ético nas relações jurídicas74.
Leciona Rogério Ferraz DONNINI:
Na realidade, num mundo em que cada vez mais nos deparamos com a rapidez com que os fatos surgem e reclamam uma solução também célere do direito, o que se vê é um sistema legislativo incapaz de regular essa vasta gama de fatos que devem ser normatizados. Esse fenômeno, aliás, transcende nossas fronteiras e representa uma questão de difícil solução em todo o mundo. Destarte, as cláusulas gerais têm esse importante papel de tornar o sistema jurídico atualizado, para que possa responder eficazmente aos reclamos da sociedade.
Nesse novo sistema aberto de cláusulas gerais, o que se pretende é cada vez mais aproximar o direito da moral, uma vez que aquele separado desta perde a razão de ser. Com isso, o que se procura é justamente evitar que o direito, mesmo dissociado da moral, continue a ter império, validade e eficácia.75
71 Id.
72 Ibid., p. 173.
73 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 34.
74 Ibid., p. 116-117.
75 Ibid., p. 117.
Se nas grandes codificações do século XIX, o contrato configura a própria expressão da autonomia privada, servindo de instrumento eficaz da expansão capitalista, a intervenção do Estado nas relações econômicas diminui a autonomia privada e influencia a evolução da teoria contratual, fazendo com que os contratos passem por uma transformação de modo a atender novas realidades e desafios vividos pela sociedade.
Segundo Xxxxxxx XXXXXX, “o contrato já não é ordem estável, mas eterno vir a ser”76. Antes o que era acordado tinha força obrigatória entre as partes, garantindo a intangibilidade dos contratos. Com a evolução da ordem jurídica e mudança na relação entre os contratantes, surgem limites e os contratantes já não podem definir sozinhos o conteúdo do contrato, que pode sofrer intervenção do legislador e submeter-se à revisão pelo Judiciário. A autonomia privada é relativizada para que haja uma justiça substancial, com a confiança assumindo papel de destaque na relação contratual.
Com essa nova teoria dos contratos, que visa a assegurar o equilíbrio entre as partes na relação contratual, são vedadas cláusulas abusivas diante da adoção de novos paradigmas interpretativos.
Leciona Xxxxxxxx XXXXXXXXX:
Toda conduta desperta expectativa quanto à conduta do agente e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada no comportamento: poder confiar, além de ser uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens é condição básica da própria possibilidade de comunicação dirigida ao entendimento, ao consenso e à cooperação.77
O contrato, além de passar a ser regido pelo paradigma da confiança, assume uma função social, ao contrário do que era discutido no século XIX (acordo de vontades, averiguação da conformidade entre a vontade e declaração e vícios do consentimento). Deixa de ser apenas instrumento de realização da autonomia privada, com a superação da concepção tradicional de que interessa apenas aos contratantes, pois seu objeto vai além daquilo expressamente previsto no instrumento contratual, em virtude do comportamento das partes e das obrigações derivadas da lei e dos princípios gerais do Direito, relevantes para toda a sociedade.
76 XXXXXX, Xxxxxxx. O Regime Democrático e o Direito Civil Moderno. São Paulo: Saraiva, 1937. p. 11 e 17 apud XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p.175.
77 XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 177-178.
Xxxxxxxx XXXXXXXXX, citando Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx XXXXXXX, expõe a idéia de função social do contrato:
(...) está claramente determinada pela Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa; essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais, O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro (…)78.
Isso está amparado na busca do equilíbrio concreto entre as partes (justiça substancial objetiva), na teoria da imprevisão, na resolução por onerosidade excessiva e na garantia de direitos mínimos ao contratante vulnerável.
A boa-fé objetiva também apresenta papel importante nessa concepção. Sendo esta entendida como fundamento unitário das obrigações, por meio dela pede-se “a transparência do contrato desde a sua oferta, constrói-se o dever de informar, veda-se a abusividade de modo geral e se afirma o dever de cooperação entre as partes”79, conforme lição de Xxxxxxxx XXXXXXXXX, que, citando Xxxx Xxxxxxx XXXXXXX, acrescenta:
A concepção individualista do direito privado estava toda ela assentada na idéia de concorrência. O contrato era mesmo apresentado como o equilíbrio momentâneo de forças antagônicas” mas “hoje o direito privado se esforça por se organizar em novas bases. As prerrogativas individuais se mesclam de objetivos da comunidade, a pessoa substitui o indivíduo e a colaboração se desenvolve onde antes florescia, desembaraçada e forte a concorrência80.
Eis a evolução pela qual o direito civil (e, por conseguinte, o direito obrigacional) passa por um processo de constitucionalização, ou seja, de incorporação de valores e princípios constitucionais.
2.4 “Relativização” do Princípio dos Efeitos Relativos dos Contratos
Em consonância com a relatividade histórica na qual o princípio dos efeitos relativos dos contratos passa a ser relativizado, mudanças objetivas e subjetivas passam a ser notadas no âmbito do direito contratual.
78 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx. Princípios do novo direito contratual e desregulamentacao do mercado – direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento – função social e responsabilidade aquiliana do terceiro que contribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 750, abr. 1998, p. 116 apud XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 179.
79 Ibid., p. 180.
80 XXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx. Por uma nova teoria dos contratos. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 261. p. 32 apud XXXXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 180.
É o ensinamento de Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA:
Não deixamos de lado, contudo, a noção de que, sendo o contrato um bem tangível, tem ele repercussões reflexas, as quais, ainda que indiretamente, tocam terceiros, há outras vontades que podem ter participado da avença e não se isentam de determinados efeitos indiretos do contrato, como no caso de contrato firmado por representante. Também aquele que redige o contrato, ou aconselha a parte a firmá-lo, pode vir a ser chamado por via reflexa para os efeitos do negócios.81
Nessa releitura do princípio dos efeitos relativos dos contratos, certas relações contratuais podem atingir (direta ou indiretamente terceiros), como ocorre na novação tácita objetiva por comportamento concludente, no recesso intencional das tratativas preliminares, na pós-eficácia contratual, no contrato com pessoa a nomear, na promessa de fato de terceiro e na aplicação do princípio da função social dos contratos.
2.4.1 Novação tácita objetiva por comportamento concludente
Conforme ensinamento de XXXXXXX XXXX, o instituto da novação surge no direito romano como “a extinção de uma obrigação existente pela constituição de outra, sob a forma de stipulatio, que recebe o conteúdo material daquela”82.
São requisitos da novação: o consentimento do devedor e do credor; a existência da antiga obrigação; a constituição de uma nova obrigação válida, pois, se for nula, não será passível de extinguir a obrigação anterior; e o animus novandi.
De acordo com a redação dada pelo Código Civil de 2002:
Art. 360 - Dá-se a novação:
I – quando o devedor contrai, com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior, II – quando o novo devedor sucede ao antigo, ficando este quite com o devedor,
III – quando, em virtude de obrigação nova, outro credor é substituído ao antigo, ficando o devedor quite com este.
No inciso I, observa-se a novação objetiva, pois envolve a mudança do próprio conteúdo da relação jurídica obrigacional. Nova-se a obrigação por substituição do seu objeto principal, por modificação de sua natureza ou, ainda, por alteração na causa ou no título de que ela deriva83. No entanto, para se verificar que
81 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 378.
82 XXXXXXX XXXX. Da novação. p. 94 apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 657.
83 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Código... p. 658.
realmente ocorreu a novação é necessário o ânimo de novar, caracterizado pela intenção das partes e demonstrada pela manifestação de vontade expressa ou tácita. Caso contrário, estará confirmada a obrigação assumida originalmente84. É o que determina o art. 361 do Código Civil:
Art. 361 Não havendo ânimo de novar, expresso ou tácito mas inequívoco, a segunda obrigação confirma simplesmente a primeira.
Note-se que, uma vez preenchidos os seus requisitos legais, a novação pode ocorrer tacitamente por meio de um comportamento concludente.
Para Xxxxx xx Xxxx XXXXX, “concludência significa que se pode tirar conclusão de algo”85. Tido como elemento objetivo da declaração tácita, o comportamento concludente é definido como conduta a partir da qual se pode efetuar uma ilação, sendo determinado, assim como na declaração expressa, por via interpretativa. Destarte, a avaliação do comportamento concludente insere-se no âmbito da teoria geral de interpretação dos negócios jurídicos. A ilação permite conectar a declaração tácita a elemento material e a possibilidade de realizá-la é designada como “concludência” da conduta86.
A ilação é necessária para obter o significado do comportamento na declaração tácita, pois, segundo Xxxxx xx Xxxx XXXXX, o elemento manifestante constitui apenas um sinal em relação ao manifestado, sendo realizada a partir de fatos concludentes “dos quais, de acordo com o critério interpretativo, se pode concluir uma declaração tácita”87.
A conclusão da declaração tácita se refere à vontade do agente.
Uma vez que o que interessa na interpretação das declarações expressas é a determinação da existência e do conteúdo da declaração, não se vê razão para o objectivo da interpretação dever variar consoante a sua modalidade, sendo, na declaração tácita, antes a investigação, ou inferência, de um elemento volitivo.88
A conclusão extraída dos fatos concludentes não é, pois, para uma vontade, mas para um significado declarativo, que se pode constituir a partir da ilação ou juízo
84 XXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Da novação. In: XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx; XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxx Xxxxxxxxxxx; XXXXXXX Xx., Xxxx Xxxxxxx (coordenação). Comentários ao Código Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 372.
85 XXXXX, Xxxxx xx Xxxx. Declaração Tácita e comportamento concludente no negócio jurídico. Coimbra: Almedina, 1995. p. 752.
86 Ibid., p. 747.
87 Ibid., p. 752.
88 Ibid., p. 753.
de concludência. Nesse particular, sobre a perspectiva a partir da qual é estabelecido o critério para a concludência do comportamento, recorre-se aos princípios gerais de interpretação. Nas declarações receptícias, a ilação é de fazer de acordo com o padrão da “impressão do destinatário”. O critério para a obtenção de uma declaração tácita é o da impressão do destinatário89.
Os critérios para averiguação da existência de uma declaração tácita é interpretativo, a avaliação para saber qual o conteúdo de uma declaração tácita deve obedecer os ao critério de ponderação sobre se o comportamento tem um significado negocial90. Para se determinar por interpretação a existência de uma declaração tácita deve-se perguntar se são reconheíveis elementos subjetivos do agente.
A título de ilustração, nas declarações receptícias, deve-se perguntar “se a ‘impressão do destinatário’ no sentido da concludência pressupõe também que certos estados subjectivos (conhecimentos) do agente sejam apercebidos ou reconhecíveis exteriormente91”. Dessa forma, conclui-se que só pode haver a declaração tácita quando for exteriormente reconhecível ao destinatário que o agente conhece o negócio. A “impressão do destinatário” é fundamental para que a conduta adquira um significado concludente. Trata-se de uma formulação negativa, caso haja falta desse conhecimento não será permitida a ilação, não havendo, portanto, conduta concludente92.
2.4.2 Recesso intencional das tratativas preliminares
Para Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA, tratativas preliminares correspondem às negociações anteriores à conclusão do contrato, cuja complexidade dependerá do conteúdo do futuro contrato e interesse econômico envolvido93.
IHERING sistematizou a responsabilidade pré-contratual ou culpa in contrahendo. Segundo o autor, na fase inicial de negociações contratuais já existiria
89 Ibid., p. 755.
90 Ibid., p. 778.
91 Ibid., p. 780.
92 Ibid., p. 782.
93 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 479.
um vínculo que deveria ser tratado como se contratual fosse, para que ao contratar as partes agissem de forma diligente e cuidadosa94.
O Código Civil alemão apresenta como princípios fundamentais a autonomia privada e a confiança (Vertrauensgrundsatz):
O primeiro princípio indica que toda pessoa capaz de agir pode estipular efeitos jurídicos, segundo o ordenamento jurídico, pela declaração de vontade. O segundo advém da moral social e impõe um dever de lealdade nas relações jurídicas.95
A culpa in contrahendo tem como fundamento o § 242 do BGB:
O devedor deve executar a prestação como o exige a boa-fé, levando em consideração os usos do tráfico.
A culpa in contrahendo é uma categoria de responsabilidade extracontratual, pois refere-se à transgressão de um dever de conduta. Conforme Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA, “a responsabilidade, nesse caso, é extracontratual, porque contrato não houve” 96.
No Brasil, houve certa barreira para recepcionar o instituto da responsabilidade por recesso em tratativas preliminares. Em 1959, Xxxxxxx Xxxxxx apresenta obra na qual defende que se “um dos contratantes abandona, por sua conveniência, as negociações que já se iniciaram, sem qualquer motivo justificado, fica obrigado a reparar os prejuízos causados à outra parte”97.
Sob influência da obra lançada pelo citado autor, várias decisões foram proferidas, valendo citar uma delas a título de ilustração:
As negociações por si mesmas não são vinculatórias, mas obrigam quando hão atingido a tal ponto que permite prever-se que o contrato poderia formalizar-se, e uma das partes rompe estas negociações, sem um justo e aceitável motivo. É a culpa in contrahendo ou a responsabilidade pré-contratual que acarreta à contraparte o direito ao ressarcimento do dano, ou seja, o chamado interesse contratual negativo. Decisão: negar provimento ao apelo do réu e por maioria dar provimento ao do autor para condenar também o réu às perdas e danos que se apurarem na liqüidação.98
94 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 50.
95 FRADERA, Véra Xxxxx xx. Dano pré-contratual: uma análise comparativa a partir de três sistemas jurídicos, o continental europeu, o latino-americano e o americano do norte. Revista da Informação Legislativa, Brasília, ano 34, n° 136, p. 175-6 apud XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 50.
96 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 479.
97 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 56.
98 Tribunal de Justiça do Distrito Federal, 1ª Turma Cível, rel. Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx, rel. designado Candido Colombo, APC nº 622/DF, acórdão nº 2306, julg. 7-11-1966, publicado no Diário da Justiça da União de 17-8-1962.
Os efeitos das tratativas preliminares em relação a terceiros configuram aspecto polêmico. Em regra, a eficácia do negócio jurídico está limitada às partes (efeitos relativos do contrato), porém “pode estender-se atingindo terceiros estranhos ao negócio, normalmente mediante a observância à publicidade do ato.”99
Afinal, conforme escólio de Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA, as tratativas preliminares normalmente ocorrem na ausência das partes, por meio de representantes ou núncios, sobretudo porque “as pessoas jurídicas fazem-se representar por seus órgãos, nem sempre aqueles que celebrarão o negócio” 100.
2.4.3 Pós-eficácia contratual
Dentre as influências da relação obrigacional alemã no direito das obrigações brasileiro, merece destaque a doutrina atinente à responsabilidade pós-contratual (culpa post pactum finitum), derivada de “situações em que, mesmo após o cumprimento da obrigação, nos exatos termos do contrato, continuavam a existir para as partes certos deveres laterais, acessórios ou anexos, que deveriam persistir mesmo posteriormente à extinção da relação jurídica”101, decorrente de um dever de comportamento centrado na lealdade contratual e por força do princípio da boa-fé.
Vale ressaltar que mesmo antes da reforma do BGB (ocorrida em 2002), a doutrina alemã sustenta que a obrigação não se esgota no direito a uma prestação, pois devem ser observados ainda os chamados deveres laterais, anexos ou acessórios (Nebenpflichten).
Vale como exemplo o § 144 do BGB, segundo o qual o vendedor de uma coisa deve dar informações adequadas, como instruções de uso, tornando a relação obrigacional complexa de modo a abarcar uma gama de deveres, os laterais inclusive102.
99 CATALAN, Xxxxxx Xxxxx. Considerações sobre o contrato preliminar: em busca da superação de seus aspectos polêmicos. In: XXXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxxx (coordenação). Novo Código Civil: Questões Controvertidas. São Paulo: Método, 2005. v. 4. p. 335.
100 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 479.
101 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 89.
102 XXXXXXX, Xxxxx-Xxxxxx. I cento anni del Codice Civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica italiana, Padova: CEDAM, 2002. p. 272-273 apud XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 144.
De qualquer modo, a Alemanha aparece como o berço da responsabilidade pós-contratual (e da teoria da culpa post pactum finitum) e desse país surgiu o maior número de obras e julgados a respeito desse tema.
Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX expõe a respeito:
O fundamento da responsabilidade pós-contratual, como já dissemos, está no consagrado § 242 do BGB, que fixa para todas as relações jurídicas o dever de boa-fé, englobando, assim, a fase posterior à celebração do pacto, incluindo os efeitos não determinados pelos contraentes. Na doutrina e jurisprudência alemãs que acolhem essa teoria, mesmo no momento posterior à extinção do contrato persistem para as partes os deveres acessórios. Na hipótese de transgressão desses deveres pelos ex-contratantes, surge a responsabilidade pós-contratual.103
Afinal, conforme escólio de Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA, “o contrato já cumprido pode apresentar reflexos residuais, pois, a exemplo do período anterior ao contrato, pode o antigo contratante praticar ações ou omissões responsabilizáveis”104.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX, a partir da idéia de uma culpa após o cumprimento do contrato, desenvolveu-se a noção da responsabilidade pós- contratual, visto que a responsabilidade pré-contratual (culpa in contrahendo) já existia, por construção doutrinária e, posteriormente, jurisprudencial, valendo, nesse particular, os seguintes precedentes descritos pelo autor:
Contudo, nos primeiros casos em que a culpa post pactum finitum foi invocada, as decisões judiciais repeliram a incidência dessa teoria. O marco de seu acolhimento foi em 1925, quando o Reichsgericht (RG) decidiu que, após o término de uma cessão de crédito, o cedente deveria continuar a não impor obstáculos ao cessionário. No ano seguinte, nova decisão aplicou essa teoria ao determinar, findo um contrato de edição, que o titular dos direitos de publicação (no caso os herdeiros de Xxxxxxxx), estava impedido de fazer concorrência ao editor, por meio de publicação de novas edições, enquanto não esgotadas as anteriores.105
Na reforma de 2002 do Livro das Obrigações do BGB, essa matéria não foi sequer ventilada em virtude dos julgados conflitantes e doutrinas que se dividem claramente entre os que aceitam e aqueles que refutam a teoria. Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX ressalva que mesmo nas decisões em que a teoria foi recepcionada, não houve uma fundamentação precisa, o que vem ocorrendo até os dias de hoje.
103 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 145.
104 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 483.
105 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 90.
Todavia, por serem os criadores dessa teoria, os alemães continuam a aperfeiçoá-la com avanços da doutrina específica106.
No Brasil, a responsabilidade pós-contratual foi recepcionada, conforme se verifica em interpretação dos princípios gerais de direito, do Código Civil e da Constituição. Os fundamentos da responsabilidade pós-contratual são: a boa-fé objetiva, a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana, solidariedade, igualdade e justiça social.
Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA exemplifica:
Imagine, por exemplo, um empregado, que, após terminar a relação de emprego com uma empresa, revela segredos industriais a um concorrente. Ou o mandatário que pratica atos após a revogação ou o término do contrato. Os princípios nesse tipo de responsabilidade são os mesmos que regem a pré-contratual aqui estudados e situam-se no campo dos atos ilícitos, na falta de dispositivo expresso a esse respeito. De qualquer forma, como expressa o art. 422 do novo Código, os contratantes devem guardar, tanto na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios da boa-fé. É inelutável que essa mesma boa-fé objetiva deve perdurar antes e depois de cumprido o contrato e tendo em vista as conseqüências advindas do negócio.107
Pode-se afirmar que a cláusula geral de boa-fé objetiva representa fundamento primacial da aplicação da culpa post pactum finitum, ao propiciar a flexibilização do sistema jurídico. Embora o art. 422 do Código Civil apresente redação pouco precisa – ao impor probidade, boa-fé e correção apenas na conclusão e execução da avença – é evidente que esse dispositivo deve ser observado também antes e após a celebração do pacto, por se tratar de uma cláusula geral e, sobretudo, por ser dirigida não apenas às relações contratuais, mas a qualquer relação jurídica, porquanto “a solução para situações relacionadas ao contrato que continua a produzir efeitos mesmo após o seu cumprimento e conseqüente extinção seria inviável ou, no mínimo, de difícil aplicação num sistema jurídico sem mobilidade, inflexível, rígido, sem a existência de uma cláusula geral de boa-fé”108.
Noutro lanço, tem-se como fundamento da responsabilidade pós-contratual a cláusula geral que estabelece a concepção social do contrato (art. 421 do Código Civil, impõe um comportamento ético, proporcional aos contraentes, e impede distorções à idéia de comutatividade, que deve imperar em toda relação contratual. Xxxxxx, na culpa post pactum finitum, uma cláusula abusiva que continua a produzir
106 Ibid., p. 91 e 145.
107 XXXXXX, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 483.
108 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 115-116.
efeitos posteriormente à extinção do contrato, com o efetivo cumprimento do acordado, fere a concepção social do contrato e permite ao magistrado responsabilizar o ex-contratante que se beneficiou injustamente dos efeitos da avença. Nesse contexto, o magistrado pode até impor a revisão judicial da avença, em caso de violação aos deveres acessórios ou anexos109.
Xxxxxx xx Xxxxx VENOSA expõe a respeito:
Desse modo, essa responsabilidade pós-contratual, ou culpa post factum finitum, decorre primordialmente do complexo geral da boa-fé objetiva em torno dos negócios jurídicos. Trata- se de um dever acessório de conduta dos contratantes, depois do término das relações contratuais que se desprende do sentido individualista do contrato imperante até o século passado e se traduz em um sentido social das relações negociais, como, aliás, propõe o novo Código Civil.110
Por fim, a utilização de preceitos constitucionais para fundamentar situações reguladas pelo Código Civil também influenciou a responsabilidade pós-contratual. Os direitos fundamentais da pessoa humana advindos com a Constituição de 1988 representaram verdadeiros limites ao enfoque do Código Civil de 1916, eminentemente produtivista e voltado à circulação de riquezas, com influências também no Código Civil de 2002.
Dentre esses preceitos constitucionais destaca-se o princípio da dignidade humana, que visa ao respeito à dignidade de todas as pessoas, bem como sua proteção. O ser humano, sujeito de direitos, pratica atos que, por ordem constitucional, devem se adequar à dignidade do homem e a um comportamento correto, equânime, proporcional e ético na realização de qualquer negócio jurídico.
Daí derivam também as cláusulas gerais da boa-fé objetiva e da função social do contrato e os princípios da solidariedade (que busca um comportamento solidário entre os contratantes) e da igualdade (que visa à justiça social e igual dignidade social da pessoa humana), que são, na realidade, verdadeiros instrumentos da efetiva proteção da dignidade humana111.
109 Ibid., p. 121.
110 VENOSA, Xxxxxx xx Xxxxx. Op. cit., p. 484.
111 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 123-124.
2.4.4 Contrato com pessoa a nomear
Xxxxxxx XXXXXX define o contrato com pessoa a nomer como o pacto “em que uma das partes se reserva a faculdade de designar uma outra pessoa que assuma a sua posição na relação contratual, como se o contrato fora celebrado com esta última”112.
ENRIETTI, ao definir o contrato com pessoa a nomear acaba também por descrever o seu mecanismo de funcionamento:
(...) fattispecie em que a pessoa (o estipulante) contrata, por si, com uma outra (o promitente), reservando-se, porém a faculdade de nomear sucessivamente, como parte contratante, e no próprio lugar, uma outra pessoa: este contrato produz, portanto, imediatamente, seus efeitos entre o estipulante e o promitente. Mas com a verificação da electio, o sujeito da relação derivada daquele negócio vem a ser (ex tunc e no lugar do estipulante), o electus, o qual deverá comportar-se, de fronte ao promitente, como verdadeira e própria parte contratante e adquirirá diretamente os direitos do promitente e assumirá as obrigações em face do mesmo, enquanto o estipulante perderá sua qualidade de parte contratante ex tunc.113
Esse tipo contratual pressupõe um promitente e um estipulante. O promitente assume o compromisso de reconhecer uma contraparte e o estipulante pactua a reserva de ser substituído. Além disso, pode integrar o contrato a pessoa a nomear114.
Xxxxxxxxx Xxxxxx XXXXXX descreve o mecanismo de funcionamento de forma objetiva:
Na modalidade mais característica e mais vulgar, o interveniente celebra o contrato em alternativa, ou para si ou para outrem, tornando-se, desde logo, o sujeito de direito e obrigações, mas vindo esses direitos e obrigações a caber retroactivamente, em sua substituição, ao terceiro que indicar. Nesta modalidade, há um contratante nomine próprio, suscetível de se transformar em contratante nomine alieno ou representante. O contrato apresenta-se como contrato em nome próprio, sob condição resolutiva e como contrato em nome alheio sob condição suspensiva.115
Com a declaração do nome dá-se a substituição do estipulante pelo interessado, momento em que o estipulante retira-se do negócio como se não houvesse participado da relação e o interessado ingressa no contrato como parte
112 XXXXXX, Xxxxxxx apud XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. Contrato com pessoa a declarar. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 13.
113 ENRIETTI apud XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. Op. cit., p. 13.
114 XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. Op. cit., p. 25.
115 TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das Obrigações. p. 158-160 apud XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. Op. cit., p. 26.
desde sua formação no tocante a direitos e obrigações, com efeito retroativo116. Na fase de transição entre a formação do contrato e a declaração do nome, o estipulante assume a função de sujeito aparente, havendo, portanto, uma vinculação. Somente com a nomeação e aceitação do efetivo contratante passa o estipulante a desvincular-se da relação.
Caracteriza-se como instrumento de atividades intermediárias ou de circulação indireta das situações obrigacionais117.
A área de maior incidência de aplicação do contrato com pessoa a nomear é a compra e venda, embora o contrato seja aplicável a outras situações. No entanto,o contrato com pessoa a nomear não é concebível com os negócios em que se revele insubstituível a pessoa de um de seus sujeitos, seja pela determinação que o negócio dela exija, seja em função da própria prestação devida118. Ensejariam incompatibilidade as causas que: “a) não pressupõem a indeterminação subjetiva, como nos modificativos e extintivos das relações jurídicas; b) não admitem o diferimento, em concreta individuação subjetiva, de uma das partes da relação, como, por exemplo, nos contratos denominados reais (comodato, mútuo, transporte, depósito), que só se aperfeiçoam com a entrega de res, não se compatibilizando com uma situação de pendência; c) quando a causa típica do negócio (não cogitável no Direito brasileiro) não se harmoniza com a indeterminação subjetiva”119.
2.4.5 Promessa de fato de terceiro
O Código Civil brasileiro de 1916 previa, em seu art. 929, a promessa de fato de terceiro como disposição geral referente ao efeito das obrigações. Inovou o Código de 2002 ao incluí-la, no art. 439, como dispositivo referente à parte geral dos contratos, bem como ao ampliar a explicitação quanto aos seus efeitos120.
Art. 439. Aquele que tiver prometido fato de terceiro responderá por perdas e danos, quando este o não executar.
Parágrafo único. Tal responsabilidade não existirá se o terceiro for o cônjuge do promitente, dependendo da sua anuência o ato a ser praticado, e desde que, pelo regime do casamento, a indenização, de algum modo, venha a recair sobre os seus bens.
116 XXXXX, Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx. Op. cit., p. 26-27.
117 Ibid., p. 28.
118 Ibid., p. 37.
119 Id, p. 37.
120 BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. v. II. p. 57.
Heloisa Xxxxxx XXXXXXX leciona que “a promessa de fato de terceiro consiste na obrigação assumida pelo promitente em face do promissário de obter a anuência do terceiro em se obrigar a prestar algo em seu favor”, e por “fato de terceiro entende-se qualquer prestação, seja qual for a sua espécie”121, não podendo ser ilícita ou absolutamente impossível.
Referida autora afirma que, tradicionalmente, a promessa de fato de terceiro é apresentada como exceção ao princípio da relatividade dos contratos. A doutrina atual (da qual a autora indica Xxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx), no entanto, traz a obrigação ao promitente, e não ao terceiro, pois este somente passa a se vincular ao promissário quando expressa o seu consentimento. E, ao contrário do que ocorre no contrato com pessoa a declarar, a obrigação que o terceiro pode vir a assumir não é a mesma obrigação assumida pelo promitente, não havendo, portanto, a circulação de uma obrigação contratual. A obrigação do promitente restringe-se a conseguir o consentimento do terceiro122.
Há duas fases na execução da promessa de fato de terceiro. Antes de o terceiro consentir em se obrigar perante o promissário e o promitente, a promessa é restrita à relação entre promissário e promitente. Em um segundo momento, ao expressar seu consentimento, inicia-se uma relação direta entre o promissário e o terceiro. Nesse momento, o promitente fica exonerado, pois sua obrigação de fazer com que o terceiro se obrigasse foi adimplida123.
Todavia, responde o promitente por perdas e danos se o terceiro se negar a cumprir a prestação, salvo se provar algum motivo de força maior. Responsabilidade que não é excluída se o promitente demonstrar que esforçou-se em obter a anuência do terceiro, pois, tipicamente, a sua obrigação é de resultado124. Também não se exime de responsabilidade ao provar fato exclusivo do terceiro125.
A responsabilidade do promitente sofre ressalva no parágrafo único do art.
439. Nesse caso, se fosse admitida a reponsabilidade do promitente, implicaria
121 Ibid., p. 57.
122 Ibid., p. 58.
123 Id.
124 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx apud BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 58.
125 MENDONÇA, M. I. Xxxxxxxx apud BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 58.
igualmente a responsabilidade do terceiro, já que a isto levaria o regime patrimonial decorrente do casamento entre ambos126.
Na vigência do Código de 16 entendia-se que, em se tratando de uma obrigação fungível e diante o não cumprimento da obrigação pelo terceiro, caberia a favor do estipulante exigir-lhe o cumprimento na pessoa do promitente. No entanto, partia-se da premissa que o objeto da promessa era a própria execução do fato do terceiro, não se limitando à obtenção do assentimento por parte do terceiro127. Nessa linha de pensamento, lecionava Xxxxxxxx XXXXXX: “obrigando-se a obter a execução de terceiro, pode ele perfeitamente ser constrangido a executá-lo, no caso de recusa do terceiro, porque a execução é, como dizem os mestres, a reparação mais eficaz”128. Todavia, a partir da interpretação dada pelo Código Civil de 2002, o promitente se obriga, exclusivamente, por uma obrigação de fazer consistente na manifestação de vontade de terceiro. Caso o terceiro se recuse a consentir, responde somente por perdas e danos129.
O art. 440 do Código Civil de 2002 reforçou a idéia de que o promitente garante, exclusivamente, a ratificação do terceiro, e não o efetivo cumprimento da obrigação:
Art. 440. Nenhuma obrigação haverá para quem se comprometer por outrem, se este, depois de se ter obrigado, faltar à prestação.
No momento em que o terceiro aceitar obrigar-se, por meio da ratificação, o promitente está liberado de qualquer responsabilidade, pois cumpriu integralmente sua obrigação. Diante da omissão do Código de 1916, Xxxxxxxx xx XXXXXXXX sustentava que:
O promitente responde pela execução, e, a nosso ver, tão completamente que, se ela não se verificar, mesmo por fato exclusivo da vontade de terceiro, o promitente deve indenizar ao estipulante. É a conseqüência extrema, porém, irrecusável, de uma obrigação que deve ser mais ponderada ao ser contraída do que a do fato próprio130.
Esse entendimento não foi recepcionado pelo Código de 2002. No entanto, não se deve olvidar que, em princípio, as partes podem delimitar contornos atípicos
126 BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 58.
127 Ibid., p. 59.
128 XXXXXX, Xxxxxxxx apud BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 59.
129 BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 59.
130 MENDONÇA, M. I. Xxxxxxxx apud BARBOZA, Heloisa Xxxxxx. Op. cit., p. 59.
para a promessa de fato de terceiro ao inserirem, por exemplo, cláusula contratual que estabeleça a responsabilidade conjunta do promitente e do terceiro, afastando- se do preconizado pelo Código Civil.
2.4.6 Função social
Com a passagem do Estado liberal para o Estado social, questões da função social do contrato e da sua vinculatividade são recolocadas em discussão, para saber o que é interessante quando se busca saber quais são os valores fundamentais visados pelo ordenamento jurídico quando tutela os contratos131.
No Brasil o tema foi introduzido no ordenamento jurídico pela Constituição de 1946 por meio da função social da propriedade. Nesse sentido, Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX afirma que “a função social do contrato deriva da noção social de propriedade, em virtude do modo pelo qual se opera a transferência do domínio, ou seja, pelo contrato. Xxxxxx, não teria sentido exigir-se um comportamento social do proprietário e outro diverso para as partes envolvidas numa relação contratual”132.
Xxxxxxx XXXXXXXX, por seu turno, leciona que, nas codificações oitocentistas de caráter individualista, a função social não configurou como princípio, mas correspondia, em matéria contratual, “ao papel que o contrato deveria desempenhar no fomento às trocas e à prática comercial como um todo”133.
Acrescenta Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX:
Na realidade, a função social do contrato sempre fez parte da teoria contratual. Não era utilizada porque se acreditava que ela era obtida pela mera atuação dos contratantes. Entretanto, isso não aconteceu satisfatoriamente, gerando evidentes distorções nas relações contratuais. Havia, é bem de ver, uma preocupação maior com a circulação de riquezas e com o efetivo cumprimento da obrigação, mesmo que não houvesse um comportamento ético, proporcional, razoável entre as partes contratantes.134
Segundo Xxxxxxxx XXXXXXX, o interesse fundamental da função social está em despertar a atenção para o fato de que a liberdade contratual não se
131 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 81.
132 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 120-121.
133 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas sobre a função social do contrato. In: XXXXXX, Xxxx Xxxxx;
(coordenadores). O Direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas – Estudos em homenagem ao Professor Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxx. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 396.
134 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 119.
justifica, e deve cessar, quando conduzir a iniqüidades, atentatórias de valores de justiça135.
Contudo, a determinação de um ponto de equilíbrio entre liberdade e justiça é fato problemático. Afirma Xxxxxxxx XXXXXXX:
Por um lado, o respetio pela autonomia privada, que é tradução jurídica da livre iniciativa do sistema político-econômico em que vivemos, leva à necessidade de em princípio tutelar a confiança dos agentes na estabilidade dos contratos celebrados, até como forma de facilitar a circulação de riquezas e assegurar a maximização do aproveitamento econômico. Por outro lado, porém, tal estabilidade não pode prevalecer quando haja grave desequilíbrio entre os direitos e obrigações das partes, devido a certas causas (...)136.
Já o interesse do princípio da vinculatividade está em mostrar que seu fundamento básico está no princípio de tutela da boa-fé e não na autonomia da vontade, pois o contrato não obriga propriamente porque se deve dar relevância à vontade livre das partes, mas sim porque é necessário tutelar a confiança dos agentes econômicos do ponto de vista social, garantindo, assim, a segurança ao negócio jurídico celebrado.
Nesse sentido, para Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX, “essa função social, portanto, propicia à relação existente entre as partes um procedimento justo, visto que contratações desproporcionais, que acabam por lesar, prejudicar um dos contratantes e favorecer o outro, são vedadas”, e “busca, antes de tudo, o equilíbrio, a boa-fé objetiva, a transparência e a efetiva realização da justiça contratual”137.
Afinal, a vinculatividade está ligada às teorias da vontade e da declaração. A teoria da vontade vê a essência do contrato na vontade criadora das partes, sustentando que ele não deve produzir efeitos quando houver divergência entre a vontade interna e declarada, nem quando a primeira houver sido viciosamente formada. Por outro lado, a teoria da declaração vê a essência do negócio jurídico na declaração externada138.
Nessa toada, a teoria da responsabilidade e da confiança tornam-se relevantes. A teoria da responsabilidade, por considerar que o negócio sem vontade interna será válido quando se possa atribuir culpa à parte pela declaração viciada. Já a teoria da confiança traz a idéia de que quando faltar a vontade interna, ou
135 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 82.
136 Id.
137 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 118-119.
138 XXXXXXX, Xxxxxxxx. Op. cit., p. 86.
quando esta divergir da declarada, o negócio jurídico será em princípio válido, de acordo com a declaração emitida; será, todavia, nulo quando o declaratário conhecia, ou devia conhecer, caso agisse com normal diligência, a verdadeira vontade do declarante139.
O grande defeito das teorias, tanto da declaração quanto da vontade, é que elas entendem o contrato como questão privada das partes interessadas, não considerando o seu papel econômico e social. No entanto, o negócio jurídico só pode ser concebido em termos econômicos e sociais. As obrigações contratuais têm seu valor jurídico e são tuteladas pela lei, não somente porque assim desejaram as partes, mas principalmente porque interessa à sociedade a tutela da situação criada, por causa das conseqüências econômicas e sociais que produz (teoria precetiva)140, encarando o negócio jurídico como fato social.
Segundo Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX, no Brasil, a noção de contrato sofreu alterações em nosso país nas últimas décadas. O modelo baseado na teoria tradicional não mais atendia às relações entre contratantes, segundo a idéia de justiça contratual, pois em diversos casos o contrato era considerado válido, embora desequilibrado de modo a provocar a ruína para uns e excessiva vantagem para outros141.
Essa transição ficou expressa no Código Civil de 2002, em cujo art. 421 dispõe que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Ao expor os motivos do anteprojeto do Código Civil, Xxxxxx XXXXX explicita a importância dessa inovação elencando como um dos principais objetivos da codificação “tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável talvez sob o enfoque de uma estreita compreensão do Direito, mas essencial à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurídica”.142
139 Ibid., p. 87.
140 Ibid., p. 88.
141 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 32-33.
142 XXXXX, Xxxxxx. Projeto do novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 71 apud TARTUCE, Xxxxxx. Função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao Código Civil de 2002. São Paulo: Método, 2007. p. 239.
Sendo assim, os contratos assumem função no meio social em que estão inseridos, não podendo trazer onerosidade excessiva ou situações de injustiça às partes contratantes, de forma a garantir que a igualdade entre elas seja preservada, sendo valorizada a eqüidade, a razoabilidade, o bom senso, em detrimento do enriquecimento sem causa.143
A função social é estabelecida a partir da relação entre o papel do contrato e a relação do instituto com as formas de organização econômico-social. Segundo Xxxx XXXXX, “analogamente, se é verdade que a sua disciplina jurídica – que resulta definida pelas leis e pelas regras jurisprudenciais – corresponde instrumentalmente à realização de objectivos e interesses valorados consoante as opções políticas e, por isso mesmo, contingentes e historicamente mutáveis, daí resulta que o próprio modo de ser e de conformar do contrato como instituto jurídico não pode deixar de sofrer a influência decisiva do tipo de organização político-social a cada momento afirmada. Tudo isso se exprime através da fórmula da relatividade do contrato (como aliás de todos os institutos jurídicos): o contrato muda a sua disciplina, as suas funções, a sua própria estrutura segundo o contexto económico- social em que está inserido”.144
A função social limita a liberdade contratual referindo-se ao conteúdo negocial e às cláusulas contratuais, no entanto, o texto do Código Civil fala em liberdade de contratar, o que leva a críticas por parte da doutrina. Xxxxx Xxxx Xxxx XXXX entende que “a liberdade de contratar deve ser entendida como abrangente do conceito de autonomia privada e de liberdade contratual, para fins deste artigo”145. Sendo assim, segundo o doutrinador, o conceito de liberdade de contratar deve ser compreendido em sentido amplo.
A matéria está também prevista no art. 2.035, parágrafo único, do Código
Civil:
Art. 2.035. (...)
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
143 TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 240.
144 XXXXX, Xxxx. O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 24 apud TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 240.
145 XXXX, Xxxxx Xxxx Xxxxx. Código Civil anotado. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 197
apud TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 243.
Com efeito, a função social traz nova concepção ao instituto do contrato por meio da valorização da dignidade da pessoa humana, da busca de uma sociedade mais justa e solidária e com a busca da isonomia, princípios de Direito Civil Constitucional146.
Xxxxxx XXXXXXX explicita que o princípio da função social apresenta dupla eficácia, no sentido interno e externo. O sentido interno está relacionado às partes contratantes; enquanto o sentido externo, para além das partes contratantes147. Xxxxx XXXXX utiliza as expressões função intrínseca para explicar a observância de princípios novos pelos titulares contratantes, já a função extrínseca “rompe com o aludido princípio da relatividade dos efeitos relativos do contrato”, preocupando-se com as repercusões no âmbito social, pois o contrato passa a interessar a titulares outros que não só aqueles imediatamente envolvidos na relação jurídica de crédito148. A doutrina diverge no tocante à eficácia da função social. Há quem entenda que existe somente eficácia interna, entre as partes contratantes. Outros apontam a eficácia externa, para além das partes contratantes. Outros ainda apontam a dupla-eficácia e há quem entenda que não há eficácia ao princípio da função social149.
Xxxxxxx XXXXXXXX, ao versar sobre as posições que buscam delimitar o conteúdo e o alcance da instituto da função social cita posições distintas.
A primeira diz que a função social revela sua importância e eficácia não em si mesma mas em diversos institutos, não sendo dotada de eficácia jurídica autônoma150. Segundo Xxxxxxxx XXXXXXXX XXXXXX: “a lei prevê a função social do contrato mas não a disciplina sistemática ou especificamente. Cabe à doutrina e à jurisprudência pesquisar sua presença difusa dentro do ordenamento jurídico e, sobretudo, dentro dos princípios informativos da ordem econômica e social traçada pela Constituição”151.
No entanto, sua importância acaba sendo pormenorizada, uma vez que a função social se expressaria por meio de instituto já positivados, presentes de forma difusa no ordenamento, prescindindo, por isso mesmo, de eficácia jurídica
146 TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 244.
147 Ibid., p. 245.
148 XXXXX, Xxxxx. Do contrato: conceito pós-moderno. Paraná: Juruá, 2005. p. 226 apud
TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 245.
149 TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 247.
150 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas... p. 397.
151 XXXXXXXX XXXXXX, Xxxxxxxx. O contrato e sua função social. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 93 apud XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas... p. 397.
autônoma. Dessa forma, o princípio constitucional da função social seria interpretado à luz da disciplina dos diversos institutos codificados152.
A segunda corrente afirma que a função social do contrato expressa o valor social das relações contratuais, enaltecendo a importância destas relações na ordem jurídica. Esta concepção vê na função social do contrato uma forma de reforçar a proteção do contratante mesmo em face de terceiros. Segundo Xxxxxxx XXXXXXXX, “a função social do contrato imporia aos terceiros o dever de colaborar com os contratantes, de modo a respeitar a situação jurídica creditória anteriormente constituída da qual têm conhecimento”153. Dessa forma, o princípio da relatividade dos contratos seria lido e interpretado à luz do princípio da função social dos contratos. Nas palavras de Xxxxxx XXXXXXXXX:
A partir de agora, o princípio da relatividade será enfocado, sempre à luz da função social do contrato, mas não mais a propósito da extensão da responsabilidade em favor de um terceiro e, sim, a propósito da responsabilidade do terceiro que contribui para o descumprimento de uma obrigação originária de um contrato do qual não seja parte.154
Xxxxxxx XXXXXXXX adverte, todavia, que “esta concepção acaba por reduzir a função social a um instrumento a mais para a garantia da posição contratual, sem se dar conta que a função social pretende impor deveres aos contratantes e não, ao contrário, servir para ampliar os instrumentos de proteção contratual155”.
Ao conceituar o princípio da função social, Xxxxxx XXXXXXX assevera:
Partimos da premissa de que a função social do contrato, quando concebida como um princípio, antes de qualquer outro sentido e alcance que se lhe possa atribuir, significa muito simplesmente que o contrato não deve ser concebido como uma relação jurídica que só interessa às partes contratantes, impermeável às condicionantes sociais que o cercam e que são por ele próprio afetados156.
A partir daí, referido autor conceitua o princípio da função social dos contratos como “um regramento contratual, de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único, do CC), pelo qual o contrato deve ser, necessariamente, analisado e interpretado de acordo com o contexto da sociedade”157.
152 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas... p. 397.
153 Ibid., p. 398.
154 XXXXXXXXX, Xxxxxx apud TEPEDINO, Xxxxxxx. Notas... p. 398.
155 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas... p. 398.
156 TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 248.
157 TARTUCE, Xxxxxx. Op. cit., p. 248.
A função social é uma característica da sociabilidade integrante dos contratos, sendo um conceito juridicamente indeterminado. Possui duas funções: razão da liberdade contratual e limite da liberdade.
A função social apresenta dois aspectos: sujetivo e objetivo. O subjetivo diz respeito às partes do contrato e à superação da concepção tradicional de que parte do contrato é parte formal que aparece na celebração do contrato, porque ele não mais interessa apenas aos contratantes. E a parte objetiva refere-se ao objeto e a alteração tradicional de que objeto é aquele exclusivamente previsto, mas que também integra o contrato fatores além do instrumento, o que deriva do comportamento das partes e as obrigações que derivam da lei dos princípios gerais do Direito, ainda que não constem expressamente no contrato.
TÍTULO II – NOVOS LAÇOS NA CONTRATUALIDADE ATUAL
1 INFLUÊNCIA DO DIREITO ALEMÃO NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
1.1 Breve Histórico do BGB
O Código Civil alemão (BGB) corresponde ao ideal positivista da plenitude e da estrita vinculação do juiz à lei, ou seja, uma codificação, uma tentativa de compilação final e exaustiva das matérias por ele reguladas. Tem como características a disciplina conceitual, a clareza pedagógica e a coerência, com uma estrutura conceitual rigorosa e quase que totalmente desvinculado da casuística.
Segundo Xxxxxxx XXXXX, “o BGB revela preocupação obsessiva pelo tecnicismo, quer quanto à sua ordenação sistemática, quer quanto à terminologia” e, com isso, “seus elaboradores conseguiram dar-lhe feição singular, aplaudida pela doutrina, por facilitar a interpretação, ao afastar controvérsias e ambigüidades”158.
Os elaboradores do Código entenderam que deviam apartar-se do método casuístico, prendendo-se a princípios abstratos e generalizados, como uma das formas de dar segurança ao Direito. É lei excessivamente técnica e dirigida a juristas.
Divide-se em duas partes: uma parte geral e outra especial. A parte geral compreende o direito das pessoas, dos bens e os negócios jurídicos, aplicando-se tais preceitos a todo domínio do direito civil. A parte especial divide-se em quatro livros: direito das obrigações, direitos reais, direito de família e direito das sucessões. Concomitantemente, foi elaborada uma Lei de Introdução ao Código Civil, com normas referentes a direito internacional privado, que disciplina o relacionamento entre o Código Civil e as leis nacionais, o direito local e as disposições transitórias159.
Nas duas Partes Gerais, o BGB trata dos caracteres conceituais gerais da relação jurídica. Sobre essa sistemática vale o ensinamento de Xxxxx XXXXXXXX:
Assim, a subsunção jurídica de uma relação real tão corriqueira como o contrato de compra e venda exige uma referência a cinco domínios normativos diferentes: à Parte Geral (§§ 116 ss.; 145 ss.), às disposições gerais sobre a relação obrigacional (v.g., § 275), às disposições
158 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução ao direito civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965. p. 71.
159 Id.
gerais sobre as relações obrigacionais contratuais (§§ 305 ss.; v.g., 323) e, finalmente, ao contrato de compra e venda (§433 ss.; vg., § 446).160
Nesse particular, Xxxxx XXXXXXXX entende que “esta generalização corresponde a uma elevada disciplina conceitual e sistemática”, mas, ao mesmo tempo, pode acarretar insuficiência e obscuridade na lei eis que “favorece a perda de unidade do ponto de vista do conteúdo”:
No entanto, a economia espiritual e a clareza harmónica através das quais se destacam as criações legislativas bem conseguidas, não é precisamente obtida a partir desta disciplina. O que se ganha em abstracção perde-se, na sua maior parte, de novo na inevitável inacessibilidade das regras gerais e na necessidade de uma ulterior regulamentação especial. (...) O obscurecimento dos problemas concretos, objectos de regulamentação, ainda é responsável pela falta de uma regulamentação adequada ao conteúdo práctico das
relações jurídicas.161
Noutro lanço, as cláusulas gerais do BGB representam linhas de orientação dirigidas ao juiz, que o vinculam ao mesmo tempo em que lhe dão liberdade. Para Xxxxx XXXXXXXX, representam “uma notável e muitas vezes elogiada concessão do positivismo à auto-responsabilidade dos juízes e a uma ética social transpositiva” e “algo de mais apto para as mutações e mais capaz de durar do que aquilo que era de esperar”162, adequadas à evolução da ordem jurídica e social alemã:
A jurisprudência civilista alemã mostrou-se suficientemente adulta para satisfazer as exigências que as cláusulas gerais colocam à ‘obediência inteligente’ do juiz (Heck) quando ela, a partir das crises da primeira guerra mundial, começou, com uma calma e reflectida ponderação, a preencher as cláusulas gerais com uma nova ética jurídica e social e, assim, a adaptar a ordem jurídica burguesa à evolução social. Assim, ela adquiriu uma função totalmente nova do direito judicial posterior à segunda guerra mundial.163
Com efeito, a vigência de cláusulas gerais do BGB somada a uma atuação significativa das Cortes alemãs permitem que a amplitude da realidade possa ser satisfatoriamente regulada.
Não se pode olvidar, contudo, que essas cláusulas gerais atribuem ao juiz uma responsabilidade social que não é a do seu ofício. Possibilitam a ele fazer valer a parcialidade, as valorações pessoais contra a letra e o espírito da ordem jurídica, sobretudo em épocas de predomínio de pressões políticas e ideológicas, o que pode
160 XXXXXXXX, Xxxxx. História do direito privado moderno. 3ª ed. Lisboa, Fundação Calouste Gulbekian, 1980. p. 545.
161 Id.
162 Ibid., p. 546.
163 Id.
ser prejudicial. Isso tudo porque os redatores do BGB consideraram os juízes como destinatários do diploma164.
Sob o ponto de vista histórico, o BGB, uma obra tão alemã em sua objetividade e meticulosidade, imediatamente não correspondeu à situação da nação nem constituiu a expressão de uma tendência social e política unitária, como o Código Civil francês ou o Código Civil suíço. Tanto que, pouco após a entrada em vigor do BGB, começaram as mutações históricas que puseram fim à liberdade civil. Ou seja, não refletiu, de plano, a imagem da vida da sociedade alemã, mas apenas de parte dela, que, na verdade, não se desprendera ainda do antigo Estado autoritário. Daí a conclusão de que o BGB apresentou expressiva maturidade intelectual ao espelhar o período criador da época burguesa que se tinha iniciado com o Iluminismo e, aos poucos, dissolver-se na diversidade de interesses da sociedade165.
Nesse sentido, Xxxxxxx XXXXX afirma:
Na sua elaboração, a influência do direito romano é sensível, embora algumas partes se baseiem em instituições alemãs, mas, a rigor, o código não pode ser considerado inovador. A despeito da censura que muitos fizeram em relação à impermeabilidade dos dois projetos às idéias sociais, o BGB não atingiu as bases econômicas e sociais de vida civil, conservando- se como Código nitidamente capitalista, informado embora por princípios filosóficos de um individualismo menos liberal do que o francês, devido, possivelmente, às modificações do espírito popular alemão, salientado pelos germanistas, além, à evidência, das condições históricas e psicológicas nas quais foi preparado.166
Nessa tentativa de equilíbrio entre vários sistemas de valores que não se misturaram na história alemã do século XIX, predominou no BGB um liberalismo mitigado, com espaços para algumas das exigências sociais do futuro, sem prejuízo dos seus traços conservadores e autoritários. Isso em razão da situação social da época, a progressiva revolução industrial, em que a liberdade de contrato e de associação influenciavam o estabelecimento do poder social e econômico167.
Dentre suas disposições sobre contratos, destacam-se a limitação do uso desviado da liberdade contratual, proibição da usura, redução de cláusulas penais injustas, vinculações morais de caráter geral da liberdade contratual. Nota-se, pois,
164 Ibid., p. 546-548.
165 Ibid., p. 549.
166 XXXXX, Xxxxxxx. Introdução... p. 71.
167 Ibid., p. 549-550.
uma limitação à liberdade sem prejuízo do interesse da sociedade burguesa de concorrência168.
O BGB exprime, portanto, a absoluta confiança de uma época de grande segurança econômica e o ideal dos cidadãos que participavam dessa ordem jurídica, caracterizado pelo racionalismo do comportamento, pela auto-responsabilização e pela capacidade de avaliação das situações dos sujeitos de direito169.
Com isso, o BGB foi aceito sem grande participação da nação. Todavia, sob o ponto de vista técnico-científico, constituiu uma obra-prima, reconhecido na época como o Código mais progressivo do mundo com representatividade tamanha como o Código Civil francês, com influências na Europa Central e Meridional e Américas Central e do Sul.
1.2 Influência na Codificação Brasileira
Especificamente na América do Sul, foram introduzidos Códigos de tipo ocidental na seqüência de sua europeização, com significativa influência do caráter abstrato do BGB.
No Brasil, conforme Xxxxx XXXXXXXX, “as influências do BGB limitam-se ao sistema e à adoção de 62 (num total de 1.807) parágrafos”, concomitantemente à influência do Código Civil francês e Código Civil português. Além da relação de pertinência para com o direito das obrigações, há uma proximidade com a Parte Geral do Código Civil. A influência do BGB pode ser notada, por exemplo, na apresentação, no Código Civil brasileiro, de uma teoria geral com conceitos básicos e abstratos (elementos da relação jurídica, as pessoas, os bens e os fatos etc.).
Sobre essas influências, Xxxxxxx Xxxxxx DONNINI ressalta que o BGB “resultou num verdadeiro desenvolvimento de técnicas que atribuíram à boa-fé a função de uma cláusula geral, conceito esse que se difundiu e influenciou várias outras codificações”170 .
Xxxxxxx XXXXX expõe sobre o tema:
Em suma, o Código Civil brasileiro, apesar de ter entrado em vigor no ano relativamente próximo de 1917, traduzia mais as aspirações civilizadoras de uma elite cultural progressista
168 Ibid., Op. cit, p. 552.
169 Ibid., Op. cit, p. 554.
170 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit, p. 72.
do que os sentimentos e as necessidades da grande massa da população, que vivia em condições de completo atraso. O vertiginoso progresso do país, nestes quatro decênios seguintes à promulgação do Código, o aproximou da realidade, embora não tenha sido eliminado, de todo, o contraste chocante que reflete o desigual desenvolvimento econômico do país.171
Dentre suas influências, destaca-se a evolução decorrente do período após a Segunda Guerra Mundial, que refletiu na teoria geral dos contratos. Diante de tantos abusos e arbitrariedades, surgiu a necessidade de cláusulas gerais de proteção da dignidade da pessoa humana, com reflexo no direito dos contratos mediante uma despatrimonialização e repersonalização do Direito Civil. O foco passou a ser a valorização da dignidade da pessoa humana de maneira preponderante sobre as questões de ordem patrimonial172.
Destaca-se, ainda, a influência no tocante ao direito contratual aberto. Na Alemanha, houve amplo espaço para que a doutrina e jurisprudência criassem o Direito e concretizassem as cláusulas gerais traçadas no ordenamento. A partir daí, começaram a ser identificadas obrigações anexas, não expressas nos contratos, decorrentes da própria natureza do vínculo e não da vontade dos contratantes.
Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX afirma:
Na realidade, o marco do direito obrigacional foi o advento do BGB, promulgado em 1896, estatuto esse que entrou em vigor em 1900 e que modificou a noção clássica de obrigação do Código Civil francês. Isso porque dois dispositivos do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) causaram verdadeira revolução nas obrigações que, é bem de ver, se estendeu para outras relações de direito. O § 157 trata da interpretação dos contratos e exige boa-fé (objetiva) (...).
O princípio da boa-fé passou a representar uma fonte autônoma de direitos e obrigações. Esse princípio está previsto no Código Civil tedesco em dois parágrafos. Primeiramente, no § 157, que regula a interpretação dos contratos, ditando que os contratos devem ser interpretados de acordo com a confiança e a boa-fé. Ainda, o § 242, que ordena devedor e credor a agirem de acordo com os costumes e ditames da boa-fé objetiva, com o fito de resguardar os legítimos interesses dos contratantes. Isso em decorrência da realidade advinda da Revolução Industrial e da influência que esta determinou na história ocidental.
Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXX ressalta que “por construção jurisprudencial, o § 242 passou a ser uma cláusula geral de boa-fé, além de considerado um dos parágrafos
171 XXXXX, Xxxxxxx. Op. cit., p. 82.
172 XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxxx. A atual teoria geral dos contratos. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 811, 22 set. 2005. Disponível em:
<xxxx://xxx0.xxx.xxx.xx/xxxxxxxx/ texto.asp?id=7267>. Acesso em: 07 jul. 2008.
mais importantes do BGB, que abrange todo o ordenamento jurídico tedesco, e não apenas o direito obrigacional”, de modo que o referido dispositivo legal “passou a ter uma dimensão ético-jurídica, com a finalidade de regular o comportamento das pessoas”173.
Esclarece, ainda, referido autor:
A noção de boa-fé do BGB, estatuída no § 242, contrariamente à boa-fé subjetiva, é a denominada boa-fé objetiva, baseada numa verdadeira norma de conduta, que impõe um comportamento honesto, correto, leal, centrado, portanto, na retidão. Exige-se, assim, uma conduta que leva em consideração os interesses de outra parte, e não mero comportamento com ausência de má-fé.
Infere-se, portanto, que na boa-fé objetiva é indispensável que as partes se respeitem e exista cooperação. E mais. É mister que haja um pensamento recíproco e conseqüentemente uma atitude para que seja facilitado o cumprimento da prestação, considerando os legítimos interesses das partes, seus direitos e expectativas, dentro de um critério de razoabilidade, com lealdade, sem lesão ou desvantagem acentuada ou excessiva, sem, enfim, qualquer abuso, para que ocorra o efetivo adimplemento da obrigação assumida.174
Nesse particular, o art. 85 do Código Civil de 1916 e art. 112 do Código Civil atual, referente à interpretação da vontade em determinado ato negocial, segundo o qual nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem, seguindo a orientação do art. 133 do BGB175.
173 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Op. cit., p. 73.
174 Ibid., p. 74.
175 XXXXXXX, Xxxx Xxxxx xx Xxxxx. Instituições de direito civil. v. 1... p. 316.
2 REFORMA DO BGB
2.1 Cenário da Reforma
Com a formação da Comunidade Européia e seu conseqüente processo de integração, torna-se cada vez mais árduo conceber os países que a compõem de maneira isolada. Sucessivas diretivas surgem para ressaltar e confirmar a idéia de harmonização entre os Estados Membros, os quais vêem a necessidade de adaptar sua legislação nacional. Isso no intuito de unificar, futuramente, seus ordenamentos jurídicos.
Neste sentido, o direito comunitário aparece como importante fonte de modificação do BGB. Surgem a Diretriz da União Européia n.º 1.999/44, de 25.05.99, sobre “Determinados Aspectos da Venda de Bens de Consumo e das Garantias Sobre Bens de Consumo (”Diretrizes Sobre a Venda de Bens de Consumo”), a Diretriz n.º 2.000/31, de 08.06.2000, sobre certos “Aspectos jurídicos dos Serviços da Sociedade de Informações, em Especial do Tráfico Comercial Eletrônico no Mercado Interno da União Européia (“Diretriz sobre Comércio Eletrônico”), e a Diretriz 2.000/35, de 29.06.2000, sobre o “Combate ao Atraso de Pagamento no Tráfico Comercial (“Diretriz sobre Atraso no Pagamento”), para dar suporte à futura unificação.
Com a reforma do direito das obrigações na Alemanha, completada pela Schuldrechtsmodernisierungsgesetzt (“lei para modernização do direito das obrigações”) de 26.11.2001, o BGB sofreu a mais importante e abrangente modificação desde sua entrada em vigor, mais de cem anos atrás176. Além das diretivas acima expostas, surgem, como paradigma para a reforma do direito obrigacional alemão, pré-estudos sobre a unificação do direito internacional privado, os “Principles of European Contract Law”, da Comissão Européia de direito
176 XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxxxx. O novo direito das obrigações no Código Civil alemão – a reforma de 2002. In: XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx (coordenação). A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 139.
contratual (Comissão Lando – 1995)177, e os “Principles of International Commercial Contracts”, do Instituto Europeu UNIDROIT.
A doutrina procura compreender o surgimento, o impacto e as conseqüências da unificação dos sistemas jurídicos, destacando-se Claus-Xxxxxxx XXXXXXX, ao observar o papel da dogmática nesse sentido. Para ele é fundamental uma dogmática bem elaborada para a harmonização transnacional do Direito, sob risco de uma confusão conceitual e de contradições teleológicas178.
Xxxxx-Xxxxxxx XXXXXXX ressalta ainda a constitucionalização do direito privado como paradigma jurídico da unificação que certamente ocorrerá. A influência da Constituição sobre o Direito Privado constitui-se numa tendência cada vez mais fortalecida em muitos países, o que acarreta num exercício comparatista entre diferentes perspectivas. A relação entre os direitos fundamentais e o Direito Privado assume papel relevante, uma vez que os direitos fundamentais integram a Constituição e, por conseguinte, devem exercer influência sobre o Direito Privado, haja vista seu grau mais elevado na hierarquia das normas. No entanto, a função de regular as relações entre pessoas físicas e jurídicas cabe ao Direito Privado que, por seu turno, desenvolveu certa autonomia com relação à Constituição. A tensão consiste entre o grau hierárquico mais elevado da Constituição, por um lado, e a autonomia do Direito Privado, por outro.
Ao recorrer aos direitos fundamentais, propõe-se questões específicas de direito privado, que, provavelmente, se assemelham na maioria dos ordenamentos jurídicos. No entanto, a solução das questões tem seu perfil definido pelas especificidades do direito nacional, podendo, portanto, ser muito distintas. Neste sentido apresentam-se, na visão de CANARIS, as possibilidades e os limites de uma harmonização do pensamento jurídico europeu. Com essa finalidade haverá, por um lado, um empenho na elaboração de princípios fundamentais comuns, por outro lado, por representarem a expressão cultural dos países e da identidade dos diferentes ordenamentos jurídicos, não deveriam ser niveladas todas as especificidades nacionais.
177 XXXXXXX, Xxxxx-Xxxxxxx. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (organização). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 226.
178 XXXXXXX, Xxxxx-Xxxxxxx. Op. cit., p. 226.
2.2 A Reforma e a Inclusão do § 311 (3)
Em 1978 foram iniciadas as discussões atinentes à reforma do direito das obrigações na Alemanha. Foi instaurada uma Comissão cujo relatório final foi apresentado em 1992. Posteriormente, houve um longo período de inatividade. Somente com as obrigações oriundas da Comunidade Européia foram retomadas as discussões sobre uma possível reforma.
As diretivas da Comunidade Européia ocasionaram questionamentos sobre possíveis caminhos para realizar a mudança. Um deles seria apenas transformar as diretrizes em direito nacional (kleine Lösung ou solução pequena). A alternativa seria combinar as mudanças trazidas pelo direito comunitário com o projeto de reforma elaborado anteriormente, integrando, ainda, várias leis satélites do BGB, alcançando desta maneira uma reforma abrangente do direito das obrigações.
Durante as discussões da Comissão foi levantada a necessidade de pesquisar as decisões da Corte Federal alemã (Bundesgerichtshof) e inserir também o posicionamento jurisprudencial na reforma.
Xxxxxxx Xxxx XXXXXXX, citando Xxxx Xxxxxxxxx XXXXXXXXX, assim expõe o
tema:
Isso contradizia a idéia de um Codex que deve responder sozinho aos problemas jurídicos para trazer mais segurança e clareza ao aplicador do direito e, desta maneira, para todos os cidadãos. Assim, pretendeu-se codificar as figuras jurídicas mais importantes desenvolvidas pela jurisprudência para aproximar, novamente, o texto da lei ao direito praticado na realidade.179
Partindo da premissa da inserção na reforma de figuras jurídicas derivadas da construção jurisprudencial, emergiram novos questionamentos quanto às questões a serem codificadas e se a codificação delas traria realmente uma maior segurança jurídica.
A reforma consistiu em alterações sobre assuntos como o direito referente à prescrição e à decadência, o direito atinente aos distúrbios das prestações, o direito de compra e venda e empreitada, bem como a integração de matérias especialmente do âmbito da proteção jurídica contratual do consumidor, que se encontravam reguladas em legislação extravagante.
179 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Op. cit., p. 144.
Da mesma forma, a recepção quase integral da Lei sobre Cláusulas Gerais Xxxxxxxxx levou a uma ampliação no âmbito de aplicação das regras de condições gerais negociais (inovações quanto ao seu conteúdo). Essas condições passaram a ser aplicadas ilimitadamente aos contratos de seguro e limitadamente ao direito individual do trabalho (§ 310, alínea 4 BGB), além da limitação das regras de exceção para as comunicações postais e telefônicas e na adoção do mandamento de transparência na cláusula geral do controle de conteúdo (§ 307, alínea 1, frase 2 BGB) e, além disso, na eliminação da possibilidade de limitação da responsabilidade por danos corporais (§ 309, nº 7, letra “a” BGB) aos casos de culpa grave180.
No tocante ao direito referente aos distúrbios nas prestações, houve alteração sistemática. Com a reforma, os distúrbios nas prestações regulados na parte especial do BGB devem derivar da parte geral do direito das obrigações e a ela se estruturar, passando o conceito de “violação de um dever” como fato jurídico central do direito referente ao distúrbio nas prestações181.
A impossibilidade de cumprimento torna-se causa de exoneração do dever primário de prestação, não levando em consideração o momento do surgimento da impossibilidade ou de culpa do devedor pela impossibilidade, independente do seu caráter objetivo ou subjetivo. Os efeitos da impossibilidade objetiva foram pontos de divergência entre a “Comissão do Direito Referente aos Distúrbios na Prestação” e a “Comissão de Discussão do Projeto”. A impossibilidade deve conduzir a uma exoneração ex lege e não depende de argüição de exceção. Essa visão, defendida pela Comissão do Direito Referente aos Distúrbios na Prestação, distanciou a nova versão da norma anterior que previa, em caso de impossibilidade objetiva originária, a nulidade do contrato. A máxima impossibilium nulla est obligatio passou a ter, no direito alemão, aplicação somente à questão do dever primário de prestação. Se a impossibilidade resultar de culpa do devedor pode haver indenizações substitutivas da prestação primária182.
No caso de impossibilidade objetiva originária conhecida previamente pelo devedor, há violação positiva do contrato, isto é, de deveres acessórios do pacto, e violação da boa-fé objetiva recepcionada no § 241, alínea 2, BGB183.
180 XXXXXXX, Xxxxxxxxx xx Xxxxx. A recente reforma alemã e o direito das obrigações. In: Conferência proferida no III Congresso Nacional de Direito Civil. Curitiba, 16 set. 2005.
181 Id.
182 Id.
Segundo a norma do § 276, BGB184, no caso de impossibilidade subjetiva (originária ou superveniente), a culpa do devedor deverá ser analisada.
O destino do dever de contraprestação em contratos sinalagmáticos passou a ser regulado no § 326 BGB, em correspondência com os antigos §§ 323 ss. BGB185.
A violação de deveres emergentes de uma relação obrigacional tem seu fundamento legal central no § 280 BGB186.
183 BGB § 241 Deveres Derivados da Relação Obrigacional
“(1) Por força da relação obrigacional, o credor é autorizado a exigir do devedor uma prestação. A prestação pode consistir, também, em uma abstenção.
(2) A relação obrigacional pode obrigar, de acordo com o seu conteúdo, cada uma das partes, a levar em consideração os direitos, os bens jurídicos e os interesses da outra parte.”
184 BGB § 276 Responsabilidade do devedor
“O devedor responde por xxxx e negligência, quando uma responsabilidade mais rigorosa ou mais amena não se encontrar estabelecida e tampouco puder ser inferida, de resto, do conteúdo da relação jurídica, especialmente da assunção de uma garantia ou do risco da obtenção do objeto da prestação.”
185 BGB § 323 Resolução/Retrato em razão de prestação não realizada ou não realizada conforme devida
“(1) Desde que o devedor não realize a prestação ou não a realize conforme devida, pode o credor resolver-se/retratar o contrato, se este tiver fixado, sem êxito, prazo adequado ao devedor para a prestação ou para a sua complementação.
(2) A fixação do prazo é prescindível, quando
1. o devedor recusar-se seria e definitivamente a prestar,
2. o devedor não realizou a prestação em um prazo fixado no contrato ou em um prazo razoável e o credor vinculou no contrato a continuidade do seu interesse na prestação à sua pontualidade, ou
3. circunstâncias especiais existirem que, mediante o sopesamento dos interesses de ambas as partes, justifiquem a imediata arrependimento/retrato.
(3) Se não for o caso de fixação de um prazo, considerando-se a espécie da violação do devedor, entra em lugar daquela, então, uma notificação.
(4) O credor pode resolver-se/retratar o contrato já antes do vencimento da prestação, quando for notório que as premissas da resolução/retrato ocorrerão.
(5) Se o devedor cumprir a prestação parcialmente, o credor somente poderá resolver- se/retratar o contrato integralmente se não lhe interessar o cumprimento parcial. Se o devedor não tiver cumprido a prestação conforme devida, o credor não poderá resolver- se/retratar o contrato, se a violação do dever for insignificante.
(6) A resolução/retrato fica excluída, quando o credor for responsável sozinho ou largamente predominantemente responsável pela circunstância que o autoriza resolver-se/retratar o contrato ou quando a circunstância, cuja culpa não possa ser atribuída ao devedor, se verifique em um momento no qual o credor se encontra em mora no recebimento da prestação.”
186 BGB § 280 Indenização devida a violação de dever
“(1) Se o devedor violar dever emergente de uma relação obrigacional, poderá o credor exigir indenização dos danos daí decorrentes. Isto não se aplica, se ao devedor não puder ser imputada culpa.
(2) Indenização fundada em mora na prestação o credor poderá exigir somente sob as premissas adicionais do § 286.
(3) Indenização em substituição à prestação (= equivalente) pode o credor exigir somente sob as premissas adicionais do § 281, do § 282 ou do § 283.”
A culpa do devedor é tida como presumida e é fundamento para a sua responsabilidade.
No § 286 BGB o legislador estabeleceu premissas para a indenização fundada na mora do devedor187.
A responsabilidade pelos danos que o credor sofreu por ter confiado na eficácia / manutenção do contrato (responsabilidade pelo interesse positivo) também sofre alteração com a reforma. O antigo § 307 BGB, que só permitia pretensão ao interesse negativo (descumprimento da obrigação), foi substituído pelo novo § 311 “a”, alínea 2 BGB188 (também no caso de impossibilidade objetiva originária).
A dispensa do requisito da culpa do devedor foi a inovação trazida quanto ao direito de arrependimento ou retrato com o novo § 323 BGB, nos casos de descumprimento total ou de cumprimento defeituoso da obrigação, inclusive nas hipóteses de redibição189. Ao contrário do que era anteriormente estabelecido o §
187 BGB § 286 Mora do devedor
“(1) Se o devedor, devidamente notificado após o vencimento da obrigação, não efetuar a prestação, incidirá ele em mora por meio da notificação. Equivalem à notificação o ajuizamento da ação referente à prestação bem como a entrega de uma notificação judicial.
(2) Não há necessidade de notificação, se
1. for fixado um prazo de acordo com o calendário para a prestação,
2. ficar estabelecido que um acontecimento deverá anteceder a prestação e for fixado um prazo para esta, de tal forma que se possa contar o prazo a partir daquele evento de acordo com o calendário,
3. o devedor recusar-se seria e definitivamente a prestar,
4. o início imediato da mora se justificar por motivos especiais e mediante o sopesamento dos interesses de ambas as partes.
(3) O devedor de uma remuneração incide em mora, o mais tardar, 30 dias após o vencimento e recebimento da conta ou solicitação equivalente de pagamento; isto vale em relação a um devedor consumidor somente quando na conta ou solicitação equivalente de pagamento constar a advertência especial sobre estas conseqüências. Quando o momento do recebimento da conta ou da solicitação equivalente de pagamento for incerto, o devedor não consumidor somente incide em mora 30 dias após o vencimento e recebimento da contraprestação.
(4) O devedor não incorre em mora, desde que a prestação não se realize em razão de uma circunstância a ele não imputável.”
188 BGB § 311 “a” Obstáculo à prestação existente no momento da contratação
“(1) Não se opõe à eficacia de um contrato o fato de que o devedor, de acordo com o § 275, alíneas 1 a 3, não esteja obrigado a prestar e de que o obstáculo à prestação já exista ao tempo da contratação.
(2) O credor está autorizado, à sua escolha, a exigir indenização em substituição à prestação (= equivalente) ou indenização dos seus gastos no montante fixado no § 284. Isto não se aplica, se o devedor não conhecia o obstáculo à prestação e tampouco lhe podia ser imputada culpa pelo seu desconhecimento. Incide, no que couber, o § 281, alínea 1, frases 2 e 3, e alínea 5.”
189 BGB § 323 Resolução/Retrato em razão de prestação não realizada ou não realizada conforme devida
325 BGB admite uma combinação de resolução/retrato com indenização em substituição à prestação (= equivalente)190 .
As regras atinentes ao direito de arrependimento / retrato foram reestruturadas e simplificadas (§§ 346 ss. BGB), tornando-se aplicáveis tanto aos casos de arrependimento criado por força de lei quanto aos casos de direito convencional de arrependimento. A ampliação da incidência do direito de arrependimento, bem como diversas normas que prevêem uma retroliquidação (retorno ao status quo ante) remetem aos §§ 349191 ss. sobre o direito de retrato,
“(1) Desde que o devedor não realize a prestação ou não a realize conforme devida, pode o credor resolver-se/retratar o contrato, se este tiver fixado, sem êxito, prazo adequado ao devedor para a prestação ou para a sua complementação.
(2) A fixação do prazo é prescindível, quando
1. o devedor recusar-se seria e definitivamente a prestar,
2. o devedor não realizou a prestação em um prazo fixado no contrato ou em um prazo razoável e o credor vinculou no contrato a continuidade do seu interesse na prestação à sua pontualidade, ou
3. circunstâncias especiais existirem que, mediante o sopesamento dos interesses de ambas as partes, justifiquem a imediata arrependimento/retrato.
(3) Se não for o caso de fixação de um prazo, considerando-se a espécie da violação do devedor, entra em lugar daquela, então, uma notificação.
(4) O credor pode resolver-se/retratar o contrato já antes do vencimento da prestação, quando for notório que as premissas da resolução/retrato ocorrerão.
(5) Se o devedor cumprir a prestação parcialmente, o credor somente poderá resolver- se/retratar o contrato integralmente se não lhe interessar o cumprimento parcial. Se o devedor não tiver cumprido a prestação conforme devida, o credor não poderá resolver- se/retratar o contrato, se a violação do dever for insignificante.
(6) A resolução/retrato fica excluída, quando o credor for responsável sozinho ou largamente predominantemente responsável pela circunstância que o autoriza resolver-se/retratar o contrato ou quando a circunstância, cuja culpa não possa ser atribuída ao devedor, se verifique em um momento no qual o credor se encontra em mora no recebimento da prestação.”
190 BGB § 325 Indenização e resolução/retrato
“O direito de exigir indenização, no caso de um contrato bilateral, não é excluído por meio do resolução/retrato.”
191 BGB § 349 Declaração de Arrependimento
“O arrependimento ocorre por meio de declaração à outra parte.”
BGB § 350 Extinção de Direito de Arrependimento Após Fixação de Prazo
“Se não foi ajustado prazo para o exercício do direito de arrependimento, pode ser fixado ao titular do direito pela outra parte um prazo adequado para o respectivo exercício. O direito de arrependimento se extingue se o arrependimento não for declarado antes do decurso do prazo fixado.”
BGB § 351 Indivisibilidade do Direito de Arrependimento
“Se diversas pessoas participarem de um lado ou de outro contrato, o direito de arrependimento somente poderá ser exercido por todos e contra todos. Extinguindo-se o direito de arrependimento para um dos titulares, extingue-se ele também para os demais.”
BGB § 352 Compensação Após Inadimplemento
contribuindo para conferir a estas regras papel de centralidade no tocante às normas de recomposição ao status quo ante das relações obrigacionais (juntamente com as normas sobre enriquecimento ilícito)192.
O legislador preocupou-se também da codificação de institutos jurídicos derivados de construção jurisprudencial.
Assim preceitua Wanderlei de Xxxxx XXXXXXX:
No direito alemão a Constituição faculta a cada pessoa a invocação do Tribunal Constitucional Federal por “ter sido violado em um dos seus direitos fundamentais pelo Poder Público”, por meio de uma “recurso constitucional”. Poder Público é considerado, nesse sentido, como os tribunais cíveis, sendo possível recorrer ao tribunal Constitucional Federal contra qualquer sentença de tribunal cível de última instância, isto é, sobretudo do Supremo Tribunal Federal (Bundesgerichtshof). Essa possibilidade, porém, não existe em muitos outros países, o que resulta em dificuldades quando se pensa na harmonização.
Por meio do fundamento legal central da “Violação de Dever” do § 280, alínea 1, bem como da positivação dos deveres acessórios da relação obrigacional do § 241, alínea 2 BGB193, as chamadas “Violações Positivas do Crédito” passaram a ter uma insólita consolidação legal, na medida em que a norma do § 311194, alínea 3, subvertendo o princípio da força relativa dos contratos, elasteceu o rol dos obrigados para incluir “pessoas que não deverão elas próprias ser contratantes”, instituindo
O arrependimento em razão de inadimplemento será ineficaz, se o devedor pôde se exonerar da obrigação por meio de compensação e imediatamente após o arrependimento argüi a compensação.
192 XXXXXXX, Xxxxxxxxx xx Xxxxx. Op. cit.
193 BGB § 241 Deveres Derivados da Relação Obrigacional
“(1) Por força da relação obrigacional, o credor é autorizado a exigir do devedor uma prestação. A prestação pode consistir, também, em uma abstenção.
(2) A relação obrigacional pode obrigar, de acordo com o seu conteúdo, cada uma das partes, a levar em consideração os direitos, os bens jurídicos e os interesses da outra parte.”
194 BGB § 311 Relações Obrigacionais Negociais e Relações Assemelhadas a Relações Negociais
“(1) Contanto que a lei não estabeleça o contrário, para a constituição de uma relação obrigacional por meio de negócio jurídico, bem como para a modificação do conteúdo de uma relação jurídica é necessário um contrato entre os partícipes.
(2) Uma relação jurídica com deveres consoante o § 241, alínea 2 nasce por meio
1. da entabulação de negociações contratuais,
2. do encaminhamento de um contrato, no qual uma das partes, com vistas a uma possível relação negocial, concede à outra a possibilidade de concretização dos seus direitos, bens jurídicos ou interesses ou confia a ela tal concretização, ou
3. de semelhantes contatos negociais.
(3) Uma relação jurídica com deveres consoante o § 241, alínea 2 pode nascer também para pessoas que não deverão ser elas próprias partes contratantes. Uma tal relação obrigacional nasce, especialmente, quando o terceiro reivindica para si confiança, de forma intensa e, por meio disso, influencia substancialmente as tratativas ou a conclusão contratuais.”
uma verdadeira “transpersonalização dos deveres obrigacionais”, se nos for reconhecida a vênia para sugerir a denominação deste fenômeno normativo.195
Vale ressaltar que, por conta da integração econômica da União Européia, o direito obrigacional alemão, tal qual se encontra hoje, sofrerá alterações nos próximos anos devido à unificação do direito privado prevista pela integração dos Estados-Membros, e o futuro do direito privado unificado certamente será norteado em vários aspectos pela dogmática do direito alemão das obrigações.
2.3 Jurisprudência: Aspectos Relevantes após 2002
Como anteriormente citado, o legislador baseou-se em decisões da Corte Federal alemã (Bundesgerichtshof) e as codificou.
A jurisprudência alemã passou a abordar em suas decisões a relatividade do princípio dos efeitos relativos dos contratos, por meio da qual o contrato passa a atingir pessoas que não necessariamente são partes contratuais, mas que de alguma forma influenciaram diretamente na conclusão contratual ou sofreram influência direta pelo contrato concluído. Nesse contexto, § 311 (3) foi inserido no texto do BGB, conferindo ao direito das obrigações, como anteriormente citado por Wanderlei de Paula BARRETO196, uma verdadeira “transpersonalização dos deveres obrigacionais”:
311 Relações Obrigacionais Negociais e Relações Assemelhadas a Relações Negociais
(3) Uma relação jurídica com deveres consoante o § 241, alínea 2 pode nascer também para pessoas que não deverão ser elas próprias partes contratantes. Uma tal relação obrigacional nasce, especialmente, quando o terceiro reivindica para si confiança, de forma intensa e, por meio disso, influencia substancialmente as tratativas ou a conclusão contratuais.
Há um longo caminho a ser percorrido no tocante à efetivação da relatividade dos efeitos relativos por meio do § 311 (3). A jurisprudência tedesca aponta uma gradativa inserção do referido páragrafo em suas fundamentações de decisões.
A importância da jurisprudência nesse sentido faz-se não somente em efetivar a relatividade dos efeitos relativos obrigacionais, mas também em limitar a própria
195 XXXXXXX, Xxxxxxxxx xx Xxxxx. Op. cit.
196 Vide p. 58.
relativização. Nesse sentido, buscou-se no Bundesgerichtshof (BGH), por meio de pesquisa jurisprudencial, decisões fundamentadas pelo §311 (3), após a entrada em vigor da reforma do direito obrigacional alemão.
Em decisão proferida no dia 13 de fevereiro de 2007, o Bundesgerichtshof entendeu oportuna a revisão do processo IX ZR 62/02 (OLG Frankfurt am Main). Na fundamentação argumentou que o Tribunal de Recursos (Berufungsgericht) “não atentou adequadamente para a limitação da responsabilidade do consultor jurídico na violação do dever, segundo a função da confiança”. Também entendeu ficar em aberto, se no caso concreto entre Dr. K. e a acusada ocorre uma forma de “contrato concluído tacitamente para suprir informação” (Auskunftvertrag) por um comportamento coerente (schlüssiges)197.
Nesse sentido decidiu:
A acusada por meio do seu administrador, que agia em seu nome e que conhecia Dr. K pessoalmente, usufruía da confiança desse e influenciou de forma considerável a tomada de decisão em abrir a “stille” sociedade entre os autores e a proprietária (SI). Conclui-se que desta maneira, no mínimo existiu uma relação pré-contratual com os autores (cf. atual § 311 Abs. 3 BGB). Pois com suas declarações ela criou a motivação para a decisão do investimento na concepção/idéia dos autores198.
Em outra decisão do BGH (IX ZB 57/06-OLG Celle LG Hannover) há citação do § 311 (3) referindo-se a que situação um terceiro pode ser responsabilizado:
(...) uma pessoa, que não é parte do contrato, especialmente, quando o terceiro reivindica para si confiança, de forma intensa e, por meio disso, influencia substancialmente as tratativas ou a conclusão contratuais (§ 311 Abs. 3 BGB). Neste caso a responsabilidade de terceiro é semelhante a do administrador da massa falida, haja vista que a massa não disporia de recursos suficientes para quitar todas as suas obrigações. Mesmo que sua obrigação não seja a mesma da massa, ele é responsabilizado pela conclusão contratual, que segundo uma conduta condizente com sua função não deveria ter sido realizada (...).199
197 “Demgegenüber rügt die Revision mit Recht, daß das Berufungsgericht die Begrenzung der Rechtsberaterhaftung nach dem Schutzzweck der verletzten Pflicht nicht hinreichend beachtet habe. Dabei kann offen bleiben, ob im Streitfall zwischen Dr. K. und der Beklagten durch schlüssiges Verhalten ein Auskunftsvertrag zustande gekommen ist (vgl. dazu allgemein Zugehör NJW 2000, 1601, 1606 m.w.N.)” (tradução livre).
198 “Die Beklagte hat durch ihren Geschäftsführer, der für sie handelte und Dr. K. persönlich bekannt war, im besonderen Maße Vertrauen für sich in Anspruch genommen und dabei die Eingehung der stillen Gesellschaft zwischen den Klägern und der Inhaberin erheblich beeinflußt, so daß zumindest ein vorvertragliches Schuldverhältnis zu den Klägern bestanden” (tradução livre).
199 “Entsprechendes wird man auch für den Fall annehmen müssen, dass eine Person, die nicht selbst Vertragspartei werden soll, in besonderem Maße Vertrauen für sich in Anspruch nimmt und dadurch die Vertragsverhandlungen oder den Vertragsschluss erheblich beeinflusst (§ 311 Abs. 3 BGB). Mit diesen Fällen der Dritthaftung ist diejenige des Insolvenzverwalters, der eine absehbar unerfüllbare Masseverbindlichkeit begründet, vergleichbar. Auch wenn er nicht dasselbe schuldet wie die Masse, haftet er dem
Merece destaque o exemplo citado na referida decisão, do administrador da massa falida que atua como parceiro das negociações e parceiro contratual da parte, que quer fechar negócio com a massa. O administrador, cujas ações afetam um patrimônio alheio (da massa falida) é responsabilizado pessoalmente se, ultrapassando ou até afrontando as próprias responsabilidades, gerar uma situação de confiança que influencie a conclusão do negócio.
As decisões que tratam da relatividade do princípio dos efeitos relativos no tocante à relação contratual e ao representante, intermediário, negociador, mediador ou administrador, esclarecem qual deve ser a função exercida pelo terceiro para que a relatividade possa ser evidenciada.
No processo IX ZR 114/01 (OLG Karlsruhe)200, o BGH (Bundesgerichtshof) decidiu que a responsabilidade como obrigação por conclusão contratual (atual § 311 Abs. 3) pode também recair, excepcionalmente, em determinadas condições sobre um terceiro, que não precisa ser propriamente parte no contrato, mas que participa nas relações contratuais como representante, intermediário, negociador, mediador ou administrador.
Nesse particular vale salientar a figura do administrador, aquele que não sendo parte contratual ou cujo representante, ao lado da parte contratual, participa influentemente na conclusão do contrato e oferece, além da confiança corriqueira que se espera em qualquer negociação, uma garantia adicional e pessoal para continuação e conformidade da expectativa do negócio jurídico. Isso também ocorre se um terceiro
Arbeitnehmer wegen des Vertragsabschlusses, den er bei pflichtgemäßem Verhalten hätte unterlassen müssen, an deren Stelle” (tradução livre).
200 “Die Haftung aus Verschulden bei Vertragsschluß (jetzt: § 311 Abs. 3 BGB) kann unter bestimmten Voraussetzungen ausnahmsweise auch einen Dritten treffen, der selbst nicht Vertragspartei werden soll, der an den Vertrags- verhandlungen aber als Vertreter, Vermittler oder Sachwalter einer Partei betei-ligt ist. Sachwalter in diesem Sinne ist, wer, ohne Vertragspartner oder dessen Vertreter zu sein, auf der Seite eines Vertragspartners an dem Zustandekom-men des Vertrages beteiligt ist und dabei über das normale Verhandlungsver-trauen hinaus der anderen Vertragspartei eine zusätzliche, gerade von ihm per-sönlich ausgehende Gewähr (garantia) für Bestand (continuação) und Erfüllung (conformidade) des in Aussicht (perspectiva) genom-menen Rechtsgeschäfts bietet. Gleiches gilt, wenn der Dritte wegen eines eige-nen unmittelbaren wirtschaftlichen Interesses dem Verhandlungsgegenstand besonders nahe steht, also wirtschaftlich betrachtet gleichsam in eigener Sache verhandelt (BGHZ 56, 81, 84 f; 63, 382, 384 f; 126, 181, 183 ff; 129, 136, 170; BGH, Urt. v. 3. April 1990 - XI ZR 206/88, NJW 1990, 1907, 1908; v. 29. Januar 1997 - VIII ZR 356/95, NJW 1997, 1233). Der Konkursverwalter handelt mit Wir-kung für ein fremdes Vermögen, nämlich die Masse. Als Verhandlungs- und Vertragspartner einer Partei, die mit der Konkursmasse Geschäfte abschließen will, haftet er nur dann persönlich, wenn er eigene Pflichten ausdrücklich über-nommen oder einen Vertrauenstatbestand geschaffen hat, an dem er sich fest-halten lassen muß (BGHZ 100, 346, 351 f; BGH, Urt. v. 12. Oktober 1989 - IX ZR 245/88, WM 1989, 1904, 1908; Kilger/K. Xxxxxxx, Xxxxxxxxxxxxxxxx 00. Aufl. § 82 KO Anm. 1c)” (tradução livre).
por um interesse econômico próprio, fica próximo do objeto de negociação, ao quase considerá-la economicamente como coisa própria.
Essas decisões representam a consolidação da reforma do direito obrigacional alemão, no pertinente à superação do modelo formal de contrato no tocante à relativização do princípio dos efeitos relativos dos contratos, cujas tendências podem ser esperadas também no direito obrigacional brasileiro.
CONCLUSÃO
Os princípios norteadores da teoria contratual passam por processos de releituras ao longo do tempo que os adequam ao contexto histórico e social no qual os contratos estão inseridos.
A teoria formal dos contratos teve como regentes os princípios da autonomia privada e da vinculatividade do pactuado. No entanto, com o decorrer do tempo, a autonomia privada passou a representar abusos e, por esse motivo, sofrer limitações.
Com isso, a manifestação do contrato não é mais vista sob a perspectiva somente das partes contratantes, mas de todo o ambiente e contexto sociais no qual está inserido, passando a exercer uma função social em prol da justiça contratual. O contrato deixa de ser apenas instrumento de realização de interesses pessoais, pois seu alcance vai além destes, em decorrência das obrigações derivadas da lei e dos princípios gerais do Direito, relevantes a toda a sociedade e prevalecentes sobre o princípio pacta sunt servanda.
Se no século XIX o contrato servia de instrumento eficaz da expansão capitalista, a intervenção do Estado nas relações econômicas passou a influenciar a teoria contratual e restringir a autonomia privada, submetendo os contratos a uma transformação para atenderem novas realidades e desafios vividos pela sociedade.
Isso não significa, contudo, a supressão do princípio da autonomia privada, que sempre foi, é e sempre será indispensável para a existência, validade e eficácia dos contratos, mas, sim, uma limitação e relativização à liberdade contratual, em consonância, sobretudo, com a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva. Ou seja, atingiu-se apenas a liberdade dos contratantes de disposição quanto ao conteúdo do contrato (liberdade contratual) e não a própria liberdade deles de firmar a avença (liberdade de contratar).
Essas evoluções podem ser notadas na evolução da legislação, doutrina e também da jurisprudência. Nesse aspecto merece destaque o progresso no direito alemão, notadamente influente no direito brasileiro. Fato notório foi a codificação da relatividade do princípio dos efeitos relativos dos contratos, com a inserção do § 311
(3) no texto do Código Civil alemão (BGB) em 2002.
Isso decorreu da construção jurisprudencial alemã, que já abordava em suas decisões a relatividade do princípio dos efeitos relativos dos contratos, ao decidir que
o contrato pode, em determinadas situações, atingir pessoas que não necessariamente são partes contratuais, mas que de alguma forma influenciam diretamente na conclusão do negócio ou sofrem influência direta decorrente da avença.
Noutro lanço, recentes decisões, sobretudo aquelas mencionadas neste trabalho, consolidam a reforma do direito obrigacional alemão e, sobretudo, a superação do modelo formal de contrato no tocante à relativização do princípio dos efeitos relativos dos contratos. Contudo, não se pode olvidar que a própria jurisprudência exerce importante papel de também limitar a aplicação do dispositivo codificado.
Outrossim, considerando a evolução da teoria contratual, sempre influenciada pelo direito obrigacional alemão, referidas decisões da Bundesgerichtshof sinalizam a possível tendência de novos progressos também no direito obrigacional brasileiro.
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