Direito dos Contratos I
Direito dos Contratos I
★ CONTRATO DE COMPRA E VENDA – arts. 874º a 939º CC
A compra e venda, definida no art. 874º CC, consiste essencialmente na transmissão de um direito contra o pagamento de uma quantia pecuniária, constituindo economicamente a troca de uma mercadoria por dinheiro.
A compra e venda pressupõe uma sociedade monetarizada (em que exista moeda), uma vez que este contrato se baseia numa troca de algo por dinheiro. Sendo um contrato translativo de direitos, a compra e venda pressupõe ainda a existência de uma contrapartida pecuniária para essa transmissão; se não existir qualquer contrapartida, o contrato é qualificável como doação (art. 940º) e se a contrapartida não consistir numa quantia pecuniária, o contrato já não constitui uma compra e venda, mas antes um contrato de escambo ou troca (art. 939º).
» Evolução histórica do contrato de compra e venda
Na Grécia Antiga, a compra e venda só ficava completa quando se pagasse o preço.
No Direito Romano houve uma grande evolução, onde deixou de existir um grande cerimonial para a compra e venda, passando a bastar o acordo entre as partes, assente nas regras da boa fé. A propriedade da coisa, contudo, não se transferia logo, mas apenas com a entrega da coisa. Ou seja, os efeitos obrigacionais surgiriam imediatamente: a obrigação de entrega, de um lado, e a obrigação de pagamento do preço, do outro lado, mas os efeitos reais (transmissão da propriedade) só se produziriam com a entrega.
O grande problema no Direito Romano era o da evicção (o ato de tirar alguma coisa). Isto porque havia uma fração de tempo em que o comprador ainda não era o proprietário da coisa e, se nesse período alguém tirasse a coisa, como poderia o comprador, que ainda não era o proprietário, reivindicar a coisa?
A grande novidade da compra e venda com o Código de Xxxxxxxx foi a compra e venda totalmente consensual; desde que houvesse consenso entre as partes, a propriedade transferir-se-ia, independentemente da entrega da coisa.
O Código de Seabra de 1868 seguiu a mesma visão que a do Código de Xxxxxxxx.
Na Alemanha, Xxxxxxx defende que o contrato de compra e venda assenta em dois contratos: um primeiro, com eficácia meramente obrigacional, e um segundo, com eficácia real. Para além disto, afirma que o segundo negócio é independente do primeiro, subsiste mesmo que o primeiro não se concretize – é o que se denomina de abstração.
o Quanto ao Direito Internacional, existe a Convenção de Viena de 1980. Já em relação ao Direito Europeu, surgiu um regulamento sobre a compra e venda, feito de acordo com a Convenção de Viena. Contudo, como não existe um Código Civil Europeu, esse regulamento era desmesurado, pois tinha de tratar uma imensidão de matérias.
Os legisladores que estiveram por detrás do Código Civil de 1966 basearam-se muito no Código Civil Italiano, e com isso importaram regras de direito comercial para o direito civil e, mais concretamente, para os contratos.
Este Código de 1966, na parte das obrigações, feita por Xxx Xxxxx, tem influência germânica, enquanto que a parte do contrato de compra e venda, feita por Xxxxxx Xxxxx, tem influência italiana.
» Características do contrato de compra e venda
(a) Contrato consensual – a lei prevê expressamente a existência de uma obrigação de entrega por parte do vendedor (art. 879º/b)), o que significa que não associa a constituição do contrato à entrega da coisa, admitindo a sua vigência antes de a coisa ser entregue. Efetivamente, é o acordo das partes que determina a formação do contrato, não dependendo esta nem da entrega da coisa, nem do pagamento do preço respetivo.
(b) Contrato obrigacional e real quoad effectum – obrigacional porque determina a constituição de duas obrigações: a obrigação de entregar a coisa (art. 879º/b)) e a obrigação de pagar o preço (art. 879º/c)). Real quoad effectum uma vez que produz a transmissão de efeitos reais (art. 879º/a)).
(c) Contrato nominado e típico – nominado porque a lei o reconhece como categoria jurídica e típico porque estabelece para ele um regime, quer no âmbito do Direito Civil (arts. 874º e ss.), quer no âmbito do Direito Comercial (arts. 463º e ss.).
(d) Contrato primordialmente não formal – é, regra geral, um contrato não formal (art. 219º), ainda que a lei por vezes o sujeite a forma especial, como sucede na compra e venda de imóveis (art. 875º).
(e) Contrato sinalagmático – as obrigações do vendedor e do comprador constituem-se tendo cada uma a sua causa na outra. Este sinalagma pode ser genético (no momento da celebração do contrato, as partes definem que vão entregar x e receber y) ou funcional (prolonga-se no tempo e as partes vão sucessivamente dando e recebendo, permanecendo interligados comprador e vendedor na fase de execução do contrato). Normalmente o sinalagma é genético, uma vez que a maioria dos contratos é de execução imediata.
(f) Contrato oneroso – existe uma contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens, importando assim sacrifícios económicos para ambas as partes. A compra e venda não exige, contudo, que ocorra necessariamente uma equivalência de valores entre o direito transmitido e o preço respetivo.
(g) Contrato normalmente comutativo, sendo por vezes aleatório – é normalmente comutativo, uma vez que ambas as atribuições patrimoniais se apresentam como certas, não se verificando incerteza nem quanto à sua existência nem quanto ao seu conteúdo. No entanto, em certos casos, a lei admite que a compra e venda possa funcionar como contrato aleatório, como nas hipóteses da venda de bens futuros (art. 880º/2).
(h) Contrato de execução instantânea – quer em relação à obrigação de entrega, quer em relação à obrigação de pagamento do preço, o seu conteúdo e extensão não é delimitado em função do tempo.
» Objeto da compra e venda
O que se vende não é uma coisa, mas sim um direito de propriedade sobre a coisa. Mas pode nem sempre ser um direito de propriedade. A outra coisa que é objeto da compra e venda é o dinheiro que é dado por essa transmissão de um direito.
Em certos casos há objetos especiais:
- O art. 880º trata da compra e venda de bens futuros (art. 211º), frutos pendentes e partes componentes ou integrantes. No caso dos frutos, como não têm autonomia, não podem ser vendidos, a não ser que o sejam como coisa futura, sendo que o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos. Então e se os frutos não existirem, ou a coisa futura não chegar a estar na disponibilidade do vendedor? A solução está no art. 880º/2 – se as partes atribuirem caráter aleatório (em que pelo menos um dos contraentes não pode antever a vantagem que receberá, em troca da prestação
fornecida ao contrato), o preço tem de ser pago por inteiro, ainda que a transmissão dos bens não chegue a verificar-se. É necessário que as partes expressamente atribuam caráter aleatório ao contrato.
- O art. 881º trata da compra e venda de bens de existência ou titularidade incerta. Quando não se sabe ao certo a titularidade de determinados bens, podem na mesma fazer-se negócios. Contudo, nesses negócios existe apenas uma chance, uma possibilidade. Ainda assim, é devido o preço, mesmo que os bens não existam ou não pertençam ao vendedor, exceto se as partes recusarem ao contrato natureza aleatória.
» Compra e venda e outros negócios
A compra e venda distingue-se:
i. Da doação, que é uma gentileza.
ii. Da sociedade, uma vez que na sociedade não existe dinheiro como coisa de troca.
iii. Da locação, uma vez que esta é temporária.
iv. Da parceria pecuária, que é uma espécie de locação de animais.
v. Do comodato, que é uma entrega gratuita e que é temporária.
vi. Do mútuo, que é o empréstimo de uma coisa fungível.
vii. Da empreitada e outras prestações de serviço, em que se presta serviços e não há transmissão de propriedade.
» Função da compra e venda
A função da compra e venda é substancialmente a circulação da riqueza criada pelos produtores, que depois é colocada no mercado precisamente através da compra e venda.
» Eficácia obrigacional vs eficácia real
Em termos práticos, sobretudo se se tratar de imóveis, a compra e venda é feita a dois tempos: há um primeiro contrato – contrato promessa de compra e venda – em que se produzem efeitos meramente obrigacionais, e um segundo contrato – contrato de compra e venda – onde aí se transfere a propriedade.
» Forma da compra e venda
Por força do art. 219º, a compra e venda é um contrato essencialmente consensual, uma vez que regra geral não é estabelecida nenhuma forma especial para o contrato de compra e venda. Esta regra geral é, no entanto, objeto de múltiplas exceções, das quais a mais importante respeita à compra e venda de imóveis, cuja forma exigida é a escritura pública ou documento particular autenticado (art. 875º). Esta regra é extensível a todos os atos que importem reconhecimento, constituição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão sobre coisas imóveis e aos atos de alienação, repúdio e renúncia de herança ou legado, de que façam parte coisas imóveis.
Esta regra sofre, no entanto, duas exceções, constantes de lei especial, em que a compra e venda de imóveis pode ser celebrada por simples documento particular:
1- Compra e venda com mútuo ou sem hipoteca, referente a prédio urbano destinado a habitação, ou fração autónoma para o mesmo fim, desde que o mutuante seja uma instituição de crédito autorizada a conceder crédito à habitação (arts. 1º e 2º/1 DL 255/93 15 de julho).
2- Procedimento especial de transmissão, oneração e registo de imóveis, constante do DL 263-A/2007 de 23 de Julho e da Portaria 794-B/2007 de 23 de Julho que abrange a compra e venda.
Já em relação ao contrato de compra e venda de direito real de habitação periódica, o mesmo deve ser celebrado por declaração das partes no certificado predial, com reconhecimento presencial da assinatura do alienante.
Sempre que a compra e venda seja sujeita a forma, a omissão desta acarretará a nulidade do negócio jurídico (art. 220º).
» Formalidades da compra e venda
No caso de imóveis, nos termos do art. 9º/1 do Código de Registo Predial, é necessário, entre outras formalidades, para proceder à compra e venda, que o imóvel esteja registado no nome do vendedor.
» Publicidade da compra e venda
A compra e venda corresponde a um facto aquisitivo de direitos reais. Consequentemente, se estes direitos reais respeitarem a bens imóveis ou a móveis sujeitos a registo, a compra e venda terá que ser registada (arts. 2º/a) do Cód. Registo Predial e 11º/1 a) Cód. Registo de Xxxx Xxxxxx), sob pena de não ser oponível a terceiros nem prevalecer contra uma eventual aquisição tabular, desencadeada por uma segunda alienação do mesmo bem (arts. 5º e 17º CRP e arts. 3º e 38º CRBM).
A imposição do registo resulta do facto de que sendo o direito real um direito absoluto com eficácia erga omnes, é conveniente e útil que todos os parceiros interessados possam conhecer a sua existência.
No sistema do título, como é o nosso, atende-se aos interesses das partes, sacrificando-se o interesse da segurança e celeridade do comércio jurídico (como é no sistema do modo) ao interesse da regularidade na constituição do direito real. Não deixa, porém, de se reconhecer a necessidade de publicidade adequada da transmissão do direito para defesa dos interesses de terceiros e da segurança jurídica. Essa publicidade será, no entanto, declarativa e não constitutiva, sendo apenas uma condição de eficácia relativamente a terceiros do direito real validamente constituído por mero efeito do contrato (art. 408º/1).
» O risco no contrato de compra e venda
O facto de a transferência da propriedade ocorrer logo no momento da celebração do contrato atribui um importante benefício ao comprador, uma vez que, tornando-se ele logo proprietário da coisa vendida e não apenas credor do vendedor relativamente à sua entrega, deixa de estar sujeito ao concurso de credores no património do vendedor em relação a essa coisa (art. 604º/1), uma vez que tendo sobre ela a propriedade, que é o direito pleno e exclusivo (art. 1305º/1), tem também a melhor das garantias.
No entanto, e por força do princípio ubi commoda ibi incommoda, se o comprador adquire esse benefício, é justo que suporte também os riscos inerentes e que, portanto, seja igualmente ele a suportar o prejuízo, caso a coisa se deteriore ou pereça após a transmissão da propriedade.
Associada à transferência da propriedade aparece assim a transferência do risco (art. 796º/1). A partir do momento em que é celebrado o contrato de compra e venda, mesmo que ainda não tenham sido cumpridas as obrigações resultantes do contrato, o risco fica a cargo do comprador. Essa situação só não ocorrerá se a coisa tiver continuado em poder do alienante, em consequência de termo estabelecido a seu favor, caso em que a transferência do risco só se verifica com o vencimento do termo ou a entrega da coisa, salvo a hipótese de o vendedor entrar em mora, já que esta produz a inversão do risco (art. 796º/2). Também na hipótese de ter sido aposta uma condição ao contrato, se a condição for resolutiva, o risco corre por conta do adquirente se a coisa lhe tiver sido entregue; sendo suspensiva a condição, o risco corre por conta do alienante durante a pendência da condição (art. 796º/3).
» Os efeitos obrigacionais
1) Dever de o vendedor entregar a coisa – art. 879º/b) – além de se efetuar a transmissão da propriedade por mero efeito do contrato, é atribuído ao comprador um direito de crédito à entrega da coisa pelo vendedor, o qual concorre com a ação de reivindicação (art. 1311º), que pode exercer enquanto proprietário da coisa.
O cumprimento da obrigação de entrega corresponde a um ato material, a tradição física ou simbólica do bem, que permite ao comprador a sua apreensão física, se se trata de móveis, ou a aquisição do gozo sobre ele, se se trata de imóveis.
Em virtude do cumprimento da obrigação de entrega, verificar-se-á a atribuição da posse da coisa entregue ao comprador (art. 1263º/b)), a qual pode, porém, ocorrer previamente com a verificação do constituto possessório (arts. 1263º/c) e 1264º). No caso de a coisa vendida já estar na posse do comprador, ou de a venda respeitar a direitos sobre coisas incorpóreas, nem sequer a entrega se torna necessária, o que demonstra que, sendo esta obrigação um efeito legalmente obrigatório do contrato, não constitui um elemento essencial do contrato de compra e venda.
O objeto da entrega da coisa é, em primeiro lugar, a própria coisa que foi comprada. Neste âmbito há que distinguir, porém, consoante a venda seja de:
a) Coisa específica – neste caso, o vendedor apenas pode cumprir entregando ao comprador a coisa que foi objeto da venda, não a podendo substituir, mesmo que essa substituição não acarretasse prejuízo para o comprador.
A obrigação de entrega de coisa específica é objeto de regulação especial no art. 882º/1, onde se estabelece que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrava ao tempo da venda, fazendo assim recair sobre o vendedor um dever específico relativamente à custódia da coisa, dever que ele deve executar com a diligência de um bom pai de família, nos termos gerais (arts. 799º/2 e 487º/2). Assim, caso a coisa se venha a deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, entre o momento da venda e o da entrega, presume-se existir responsabilidade pelo vendedor por incumprimento dessa obrigação (art. 918º), respondendo ele por esse incumprimento, a menos que demonstre que a deterioração não procede de culpa sua (art. 799º/1).
b) Coisa genérica – neste caso, o vendedor pode cumprir o contrato entregando ao comprador qualquer coisa dentro do género.
Em relação à entrega de coisas genéricas, haverá que aplicar o disposto nos arts. 539º e ss, bem como as regras relativas à determinação da prestação referidas no art. 400º. O vendedor terá assim que entregar as coisas correspondentes à quantidade e qualidade convencionada no contrato de compra e venda e deverá escolher coisas de qualidade média, a menos que tenha sido convencionado o contrário. O desrespeito destas regras determinará a aplicação do regime do incumprimento das obrigações (art. 918º).
A obrigação de entrega da coisa abrange ainda, salvo estipulação em contrário, além da própria coisa comprada, as suas partes integrantes, os frutos pendentes e os documentos relativos à coisa ou direito (art. 882º/2). Excetua-se, porém, a hipótese de o contrário ter sido convencionado ou, no caso dos documentos, estes contiverem outras matérias de interesse para o vendedor, caso em que ele poderá entregar apenas pública forma da parte respeitante à coisa ou direito que foi objeto da venda ou fotocópia de igual valor.
A obrigação de entrega por parte do vendedor é sujeita às regras gerais quanto ao tempo (arts. 777º e ss) e lugar do cumprimento (arts. 772º e ss).
Quanto ao tempo do cumprimento, se as partes não convencionaram prazo certo para a sua realização, o comprador pode exigir a todo o tempo a entrega da coisa, assim como o vendedor pode a todo o tempo proceder a essa entrega (art. 777º/1). O vendedor ficará, neste caso, constituído em mora com a interpelação do comprador (art. 805º/1).
No caso de ter sido convencionado prazo certo, ou este resultar da lei (ex: venda comercial), o vendedor terá que entregar a coisa até ao fim desse prazo, sem o que incorrerá em mora (art. 805º/2 a)), podendo, no entanto, optar pela antecipação do cumprimento, uma vez que o prazo se presume estipulado em seu benefício. A obrigação de entrega de coisa vendida está sujeita ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos (art. 309º).
Quanto ao lugar do cumprimento, e caso não ocorra qualquer estipulação das partes, haverá que distinguir consoante se trate de coisas móveis ou imóveis:
i. Relativamente às coisas móveis, caso se trate de coisas determinadas, coisas genéricas a ser escolhidas de um conjunto determinado, ou coisas a ser produzidas em certo lugar, o art. 773º determina que a coisa deve ser entregue no lugar em que se encontrava ao tempo da conclusão do negócio. Nos outros casos, a coisa deverá ser entregue no domicílio do vendedor (art. 772º).
ii. Em relação às coisas imóveis, a entrega física apenas poderá ocorrer no lugar onde o imóvel se encontra, devendo, porém, aplicar-se o critério supletivo geral do domicílio do devedor (art. 772º), caso as partes determinem que essa entrega será realizada apenas simbolicamente.
Em caso de não cumprimento da obrigação de entrega por parte do vendedor, pode o comprador nos termos gerais intentar contra o vendedor uma ação de cumprimento (art. 817º e ss) que, tratando-se de coisa determinada, pode incluir a execução específica da obrigação (art. 827º). O vendedor está igualmente sujeito a ter que indemnizar o comprador pelos danos que lhe causar o incumprimento da obrigação (arts. 798º e ss) ou a mora no cumprimento (arts. 804º e ss). O comprador pode ainda se assim o entender, resolver o contrato (art. 801º/2).
⮚ Outros deveres do vendedor:
Por vezes são impostos ao vendedor outros deveres específicos, que extravasam da obrigação de entrega:
a) Obrigação de emitir fatura (art. 476º CCom).
b) Deveres acessórios impostos pela boa fé (art. 762º/2), que podem abranger deveres de informação e conselho ou assistência pós-venda.
2) Dever de o comprador pagar o preço – art. 879º/c) – o preço constitui um elemento essencial do contrato de compra e venda, como resulta do art. 874º. Este traduz-se numa quantia em dinheiro que é entregue ao vendedor como contrapartida da entrega da coisa por parte deste, sendo uma obrigação pecuniária sujeita ao regime dos arts. 550º e ss.
De acordo com as regras gerais sobre o objeto negocial (art. 280º/1), não é necessário no contrato de compra e venda que o preço se encontre determinado no momento da celebração do contrato, bastando que seja determinável. A determinação do preço no momento do contrato pode resultar quer da sua imposição por uma autoridade pública quer da sua fixação pelas partes.
Hipótese de determinabilidade do preço ocorrerão quando as partes fixem uma forma de o preço ser determinado, ou quando a lei supletivamente indique essa forma, o que nos termos do art. 883º se estabelece não apenas para a hipótese de as partes nada dizerem sobre o preço (nº1), mas também para o caso de se referirem ao preço justo (nº2).
No art. 883º são assim indicados como critérios supletivos:
i. O preço que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato.
ii. O preço do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir.
Caso nenhum destes critérios se possa aplicar, o preço será determinado pelo tribunal segundo juízos de equidade (art. 883º/1 in fine).
Em relação ao tempo do cumprimento, e a menos que as partes estipulem em sentido contrário, o art. 885º/1 determina que o preço deve ser pago no momento da entrega da coisa vendida. No entanto, essa norma pressupõe que a transmissão da propriedade já se tenha verificado ou coincida com a entrega, uma vez que o preço aparece como contrapartida dessa aquisição da propriedade. Assim, se a entrega ocorrer antecipadamente a essa transmissão, naturalmente que não obrigará o comprador a pagar o preço.
A imposição do pagamento do preço no momento da entrega pressupõe, por outro lado, que nesse momento a obrigação do vendedor seja integralmente cumprida. Assim, se a entrega for feita por fases, a prestação do preço apenas deve ser efetuada aquando da realização da última entrega, salvo se as partes convencionaram o preço em função da quantidade das coisas vendidas, caso em que o vendedor terá legitimidade para exigir
o pagamento à medida em que for realizando as sucessivas entregas.
Quanto ao lugar do cumprimento, se as partes nada tiverem estipulado, determina igualmente o art. 885º/1 que o preço deve ser pago no lugar da entrega da coisa vendida, o que se impõe em virtude de a lei fazer coincidir o cumprimento da obrigação de entrega com o pagamento do preço (venda a pronto). Se, no entanto, por estipulação das partes ou por força dos usos, o pagamento do preço não coincidir com o cumprimento da obrigação de entrega (venda a crédito ou com espera de preço), o mesmo deverá ser pago no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento (art. 885º/2).
A obrigação de pagamento do preço encontra-se colocada em nexo de reciprocidade com a entrega da coisa, pelo que, constituindo a compra e venda um contrato sinalagmático, o não cumprimento da obrigação de pagamento do preço poderia dar lugar à resolução do contrato por incumprimento, de acordo com o disposto no art. 801º/2. O art. 886º vem, no entanto, restringir consideravelmente essa faculdade, ao referir que “transmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”.
Verifica-se assim que no caso de ter sido definitivamente efetuada a atribuição patrimonial do vendedor – através da transferência da propriedade e entrega do bem – ele não poderá, em princípio, fazer reverter essa atribuição patrimonial por meio da resolução por incumprimento, e reclamar por essa via a restituição do bem. As suas ações contra o comprador ficam assim restringidas à ação de cumprimento para cobrança do preço (art. 817º) e respetivos juros moratórios (art. 806º/1).
Apesar de fortemente restringida, a resolução do contrato por incumprimento da obrigação do comprador é, no entanto, possível nas seguintes situações:
a) Haver convenção em contrário – é admissível face à natureza supletiva do art. 886º. Da mesma forma que é possível convencionar fundamentos contratuais para atribuição do direito de resolver o contrato (art. 432º/1), nada impede as partes de estipular igualmente que o incumprimento da obrigação de pagar o preço por parte do comprador constitua fundamento de resolução;
b) Ainda não ter sido entregue a coisa (mesmo que já tenha ocorrido a transmissão da propriedade) – apesar de já se ter transmitido a propriedade para o comprador, o contrato ainda não se encontra totalmente executado, podendo até o vendedor recusar a entrega da coisa, enquanto o comprador não satisfizer a obrigação de pagar o preço (art. 428º);
c) Ainda não ter ocorrido a transmissão da propriedade (mesmo que a coisa já tenha sido entregue) – o bem pode já ter sido entregue ao comprador, mas o vendedor, em ordem a garantir a sua propriedade como forma de se assegurar contra o incumprimento da outra parte, reserva para si essa propriedade até ocorrer esse cumprimento (art. 409º).
⮚ Outros deveres do comprador:
Determina o art. 878º que as despesas do contrato e outras acessórias ficam a cargo do comprador, salvo estipulação em contrário. Se a compra e venda for de imóveis, estas despesas serão, à partida, o IMT, despesas de escritura e despesas de registo e, se a venda tiver a intervenção de mediador, este tem direito a uma comissão.
Já não serão, porém, abrangidas na regra do art. 878º as despesas relativas a atos de execução do contrato, como seja o cumprimento das obrigações do vendedor e do comprador que deverão ficar a cargo do respetivo devedor. Assim, correrão por conta do vendedor as despesas relativas à guarda, embalagem, transporte e entrega da coisa vendida e por conta dou comprador as despesas necessárias para o pagamento do preço.
Proibições de Venda
Fala-se em proibições de venda para referir os casos em que a lei veda a celebração do contrato de compra e venda entre determinadas pessoas, por razões atinentes às relações das partes entre si ou com o objeto negocial.
$ Venda de coisa ou direito litigioso – art. 876º
O art. 876º refere que “não podem ser compradores de coisa ou direito litigioso, quer diretamente, quer por interposta pessoa, aqueles a quem a lei não permite que seja feita a cessão de créditos ou direitos litigiosos, conforme se dispõe no capítulo respetivo” (remissão para os arts. 579º e ss).
As coisas ou direitos consideram-se litigiosos quando tiverem sido contestados em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado (art. 579º/3), ou seja, não se sabe bem de quem é, qual é a sua configuração.
Esta é uma solução que já vem do direito antigo: no ano 422 d.C., Xxxxxxxx surgiu com uma solução: não se pode vender a pessoas poderosas; no ano de 506, o Imperador Xxxxxxxxx fez a Lei Xxxxxxxxxxx, que permitia, no caso de uma venda de um crédito ou bem litigioso, ao devedor liberar-se da dívida pagando ao credor, em lugar do montante em dívida, apenas o preço de aquisição do crédito, acrescido de juros e despesas suportadas com essa aquisição. Ambas as soluções vigoraram até ao Código de Seabra. O Código atual suprimiu a solução Xxxxxxxxxxx.
A lei proíbe igualmente a realização deste negócio por interposta pessoa, considerando como tal tanto o cônjuge do inibido, como a pessoa de que este seja herdeiro presumido e qualquer terceiro que tenha acordado com o inibido a posterior transmissão da coisa ou do direito cedido (art. 579º/2). Fora destes casos, a venda de coisas ou direitos litigiosos é plenamente admitida, devendo processar-se a substituição processual do vendedor pelo comprador.
A razão especial para esta proibição é o receio de que as entidades supra referidas poderem atuar com fins especulativos, levando os titulares a vender-lhes os bens por baixo preço, a pretexto da sua influência no
processo. Daí que a proibição cesse em determinadas situações em que não existe esse receio de especulação, referidas no art. 581º.
Se, apesar da proibição, a venda vier a ser realizada, esta é considerada nula, sujeitando-se, no entanto, o comprador, nos termos gerais, à obrigação de reparar os danos causados (arts. 876º/2 e 580º/1). A lei prevê, porém, que a nulidade não pode ser invocada pelo comprador (art. 876º/3 e 580º/2).
É, neste caso, atribuído ao vendedor, além da invalidade do contrato, um direito à indemnização por todos os danos que a atitude especulativa do comprador lhe causou. Essa indemnização, uma vez que tem por base a celebração de uma compra e venda nula, é limitada ao interesse contratual negativo, não abrangendo o interesse contratual positivo.
$ Venda a filhos e netos – art. 877º
O art. 877º/1 refere que “os pais e avós não podem vender a filhos ou netos se os outros filhos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é suscetível de suprimento judicial”.
Se, porém, a venda vier a ser realizada, esta não é nula mas apenas anulável. De acordo com o art. 877º/2, a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não deram o seu consentimento dentro do prazo de um ano, a contar do conhecimento da celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes.
Esta proibição (sem o consenso dos outros filhos ou netos) é uma solução que vem desde as Ordenações. A preocupação do legislador é a de que o preço não seja pago, ou não seja pago pelo preço justo, o que resultaria injusto para os restantes filhos ou netos; por isso mesmo, é exigido o consentimento destes. Há, desde essa altura, uma preocupação de que, sob a capa da compra e venda, se efetuassem doações simuladas a favor de algum ou alguns dos descendentes, com o fim de evitar a sua imputação nas respetivas quotas legitimárias, assim prejudicando os restantes.
É verdade que estes poderiam sempre reagir através da competente ação de simulação (art. 240º), mas as dificuldades de prova dos seus pressupostos levaram o legislador a optar pela solução mais expedita de exigir o consentimento dos descendentes.
O consentimento não está sujeito a forma especial (art. 219º), mesma que essa forma venha a ser exigida para o contrato de compra e venda e pode inclusivamente ser prestado tacitamente nos termos gerais (art. 217º).
O processo de suprimento em caso de recusa encontra-se no art. 1000º CPC e o de suprimento por outras causas no art. 1001º CPC.
No caso de a venda ser realizada a filhos, é de exigir o consentimento dos restantes filhos, mas não dos netos, salvo se eles forem descendentes de um filho falecido, caso em que serão chamados a dar o consentimento em substituição deste. Se a venda for realizada a netos, é de exigir o consentimento tanto dos filhos que encabeçam a estirpe como dos netos que sejam irmãos do comprador.
Apesar de alei não o referir expressamente, o Prof. ML diz que deve ser igualmente abrangida por esta disposição a venda feita a descendentes através de interposta pessoa (em sentido contrário, GT).
Não parece que esta proibição se deva estender à troca, apesar da remissão do art. 939º, uma vez que em relação a ela não se colocam normalmente os problemas de simulação, que estão na base dessa proibição.
$ Venda entre cônjuges – art. 1714º/2
O princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, estabelecido no art. 1714º/1, proíbe que os cônjuges venham alterar, depois da celebração do casamento, quer as convenções antenupciais, quer os regimes de bens legalmente fixados, considerando o nº 2 abrangidos por esta disposição os contratos de compra e venda (e de sociedade) entre os cônjuges, exceto quando estes se encontrarem separados judicialmente de pessoas e bens, sendo, no entanto, lícita a dação em cumprimento efetuada por um dos cônjuges ao outro (art. 1714º/3).
Isto porque a celebração de contratos de compra e venda entre cônjuges poderia funcionar como uma forma indireta de tornear o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, na medida em que por essa via facilmente bens comuns ou próprios de um dos cônjuges poderiam ver o sei estatuto alterado, em virtude da celebração do contrato de compra e venda.
Há ainda outra razão, que é a de que as partes poderiam simular a realização de uma doação ao seu cônjuge, elidindo a regra da sua livre revogabilidade, prevista no art. 1765º. Efetivamente, apesar de o negócio simulado ser nulo (art. 240º), sendo válido o dissimulado (art. 241º), em muitos casos a prova da simulação é extremamente difícil.
Esta proibição cessa, no entanto, a partir do momento em que se encontrem judicialmente separados de pessoas e bens.
⮚ Promessas de partilha quando vai haver divórcio – combinar quais os bens que vão para um e para outro. Inicialmente, o Tribunal não o permitia, pois havia o receio de o preço não ser pago, ou de um cônjuge ter especial ascendência sobre o outro. Atualmente já é possível, uma vez que se entendeu, nomeadamente, que se vai haver divórcio é porque um dos cônjuges não tem ascendência sobre o outro.
$ Compra de bens do incapaz pelos seus pais, tutor, curador, administrador legal de bens ou protutor que exerça as funções de tutor – art. 1892º
O art. 1892º/1 refere que “sem a autorização do tribunal (atualmente o MP) não podem os pais tomar de arrendamento ou adquirir, diretamente ou por interposta pessoa, ainda que em hasta pública, bens ou direitos do filho sujeito ao poder paternal, nem tornar-se cessionários de créditos ou outros direitos contra este, exceto nos casos de subrogação legal, de licitação em processo de inventário ou de outorga em partilha judicialmente autorizada”.
Se for celebrada uma compra e venda sem a autorização do MP, esta é anulável a requerimento do menor, até um ano depois de atingir a maioridade ou ser emancipado ou, se ele entretanto falecer, pelos seus herdeiros, excluídos os próprios pais responsáveis, no prazo de um ano a contar da morte do filho (art. 1893º/1). A anulação pode continuar a ser requerida após este prazo se for demonstrado que só teve conhecimento da compra nos seis meses anteriores à proposição da ação (art. 1893º/2). Enquanto o menor não atingir a maioridade ou for emancipado, pode a ação de anulação ser instaurada ainda pelas pessoas com legitimidade para requerer a anulação do poder paternal, contanto que seja instaurada no ano seguinte à prática dos atos impugnados (art. 1893º/3).
Apesar de não autorizada, a compra pode ser objeto de confirmação pelo MP (art. 1894º), caso em que se extinguirá o direito de anulação.
A mesma proibição aplica-se ao tutor (art. 1937º/b)), ao curador (art. 156º), ao administrador legal de bens (art. 1971º/1) e também parece dever sê-lo em relação ao protutor, sempre que este substitua o tutor (art. 1956º/b)).
Caso esta venda venha a ser realizada, o negócio não será apenas considerado anulável, mas nulo, ainda que se trate de uma nulidade sujeita a regime especial, na medida em que não pode ser invocada pelo tutor ou seus herdeiros, nem pela interposta pessoa de quem ele se tenha servido e é sanável mediante confirmação do pupilo, depois da cessação da incapacidade, mas somente enquanto não for declarada por sentença transitada em julgado (art. 1939º).
Modalidades Específicas de Venda
♣ Venda de Bens Futuros, de Frutos Pendentes e de Partes Componentes ou Integrantes de uma Coisa – arts. 880º CC e 467º/1 Ccom
A venda de bens futuros ocorre sempre que o vendedor aliena bens que não existem ao tempo da declaração negocial (ex: venda de uma fração autónoma de um edifício ainda por construir), que não estão em seu poder (ex: venda dos peixes que vier a pescar nesse dia no lago) ou a que ele não tem direito (ex: um agricultor vende os cereais que lhe virão a ser fornecidos por outro agricultor).
O Prof. Menezes Cordeiro distingue a venda de bens objetivamente/absolutamente futuros (quando ainda não existem) da venda de bens subjetivamente/relativamente futuros (quando já existem, mas ainda não estão no poder do alienante).
Pode também ser considerada como venda de bens futuros a venda de frutos pendentes, partes componentes ou integrantes de uma coisa, uma vez que estas entidades podem ser incluídas num conceito amplo de coisa futura, que abranja também as coisas ainda não autónomas de outras coisas, mas que destas irão ser separadas. A autonomização desta última situação no âmbito do art. 880º justifica-se, porém, em virtude de o art. 408º/2 estabelecer a transferência de propriedade em momentos diferentes. Na venda de bens futuros stricto sensu esta ocorre no momento da aquisição pelo alienante, enquanto na venda de frutos pendentes, partes componentes ou integrantes, a transferência verifica-se apenas no momento da colheita ou separação.
Ao contrário do que sucede na venda de coisa alheia (art. 892º), nenhuma das partes ignora que a coisa não pertence ao alienante, ainda que haja necessariamente a expectativa de ela vir a integrar, no futuro, o seu património. Efetivamente, é sempre essencial à compra e venda a existência de uma aquisição derivada do direito a partir do vendedor, pelo que não se poderá aplicar o art. 880º sempre que as partes convencionem que a transferência da propriedade se realizará a título originário ou diretamente da esfera de um terceiro para o comprador.
Nesse caso, a transferência da propriedade não ocorre imediatamente, pelo que a lei faz surgir na esfera do vendedor uma obrigação de “exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos, segundo o que foi estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato”. O vendedor estará assim obrigado a adquirir o bem vendido, após o que a transferência da propriedade se processará automaticamente para o comprador, em virtude da anterior celebração do contrato de venda (art. 408º/2). Se deixar de cumprir essa obrigação, responderá perante o comprador por incumprimento (art. 798º). Sendo uma obrigação emergente de um contrato validamente celebrado, essa indemnização não ficará limitada pelo interesse contratual negativo (em sentido contrário, Xxxx Xxxxxxx, que entende a venda de bens futuros como um contrato incompleto).
Se, no entanto, se tornar impossível proceder a essa aquisição, por facto que não lhe seja imputável, o resultado terá de ser extinção da obrigação ou o cumprimento parcial, casos em que, respetivamente, o vendedor perderá o direito à contraprestação (art. 795º/1), ou verá esta ser proporcionalmente reduzida (art. 793º/1).
A venda de bens futuros pode ainda ser clausulada como contrato aleatório (art. 880º/2), caso em que o objeto da venda é a mera esperança de aquisição das coisas, como no exemplo de alguém vender a futura produção de laranjas do seu pomar, independentemente de esta ocorrer ou não. Nesse caso, uma vez que o objeto do negócio é a própria esperança, o comprador está obrigado a pagar o preço, ainda que a transmissão dos bens não chegue a verificar-se.
A distinção entre a venda de bens futuros e a venda de esperanças assenta então no facto de nesta última existir uma atribuição ao comprador do risco de não se verificar a transmissão da propriedade clausulada no contrato. Contudo, uma vez que essa atribuição envolve uma derrogação às regras normais de distribuição do risco, tem-se entendido que deve ser expressamente clausulada.
Tem sido objeto de controvérsia na doutrina a natureza da venda de bens futuros:
a) Uma posição (Xxxx Xxxxxxx) sustenta que se trataria de um negócio incompleto ou em via de formação, na medida em que o consenso das partes seria insuficiente para produzir a transmissão da propriedade, enquanto faltasse a coisa, apenas se concluindo o negócio com a sua aquisição pelo vendedor.
b) Outra posição (Xxxxxx Xxxxxxxx) refere que se trata de um negócio sob a condição suspensiva de os bens passarem para a disponibilidade do vendedor.
c) Outra posição (doutrina italiana) refere tratar-se de uma modalidade especial de venda obrigatória, uma vez que o vendedor se obriga, com caráter definitivo, a realizar o que for preciso para que se possa verificar a aquisição da propriedade pelo comprador. O Prof. ML adere a esta tese, com a ressalva de que a venda de bens futuros não constitui uma modalidade específica de venda obrigatória, na medida em que a celebração do contrato já integra o esquema negocial translativo, que não fica dependente de uma segunda atribuição patrimonial a realizar pelo vendedor.
♣ Venda de Bens de Existência ou Titularidade Incerta – arts. 881º CC e 467º/1 CCom
Em princípio, apenas poderão ser objeto de venda as coisas que existem e pertencem ao vendedor, uma vez que se a venda disser respeito a coisas inexistentes o contrato é nulo por impossibilidade física ou legal do objeto (art. 280º/1), nulidade que também se verifica se as coisas não pertencerem ao vendedor (art. 892º).
No entanto, se se venderem bens de existência ou titularidade incerta e no contrato se fizer menção dessa incerteza, o contrato é válido (art. 881º). A lei presume que as partes quiseram celebrar um contrato aleatório, pelo que será devido o preço, ainda que os bens não existam ou não pertençam ao vendedor (art. 881º).
As partes podem, porém, elidir essa presunção, recusando ao contrato natureza aleatória, caso em que o preço só será devido no caso de os bens existirem e pertencerem ao vendedor.
A venda de bens de existência ou titularidade incerta distingue-se da venda de bens futuros (art. 880º), porque não toma por base a expectativa de uma futura aquisição ou autonomização da coisa no património do vendedor, mas antes a incerteza de uma situação presente, relativa à existência ou à titularidade do bem objeto de venda.
Por esse motivo, não existe neste caso nenhuma obrigação de o vendedor praticar os atos necessários para que o comprador adquira os bens vendidos, nem sequer qualquer obrigação de esclarecer a situação de
incerteza existente no momento da celebração do contrato. O vendedor ficará apenas constituído, como é regra geral, no dever de entregar a coisa, se e quando se comprovar que esta existe e/ou lhe pertence.
Como já se constatou, se a venda de bens de existência ou titularidade incerta tiver sido celebrada como contrato aleatório, o preço é devido pelo comprador, ainda que os bens não existam ou não pertençam ao vendedor. Resta esclarecer se esse preço é devido logo no momento da celebração do contrato ou apenas no momento em que se conhece a efetiva situação dos bens.
~ Na opinião de ML e de Xxxx Xxxxxxx, a solução deverá ser a do pagamento do preço logo no momento da celebração do contrato, uma vez que, desde a celebração do contrato, o comprador se constitui nessa obrigação, a qual em relação a ele não fica dependente da resolução de qualquer incerteza.
~ Se, porém, as partes recusarem ao contrato natureza aleatória, a obrigação de pagar o preço fica dependente do cumprimento da obrigação de entrega, como é regra geral (art. 885º/1).
A lógica é que, apesar de ser perigoso em certas circunstâncias, o facto de se prometer vender coisas que não se sabe bem se existem ou não ou se vão ser dele ou não, fazendo baixar o preço, a verdade é que muitas vezes mais vale receber um preço mais baixo do que não receber nada.
♣ Venda de Coisas Sujeitas a Contagem, Pesagem e Medição – arts. 887º e ss CC
Esta consiste numa venda de coisas determinadas, ainda que sujeitas a uma posterior operação de contagem, pesagem ou medição, não sendo este regime aplicável à venda de coisas genéricas, uma vez que nesta estão em causa coisas indeterminadas, dado que a obrigação só está determinada quanto ao género e quantidade (art. 539º).
No entanto, já será aplicável o regime dos arts. 887º e ss se as partes acordam na venda de um determinado saco de maçãs, que indicam conter 20kg, uma vez que nesse caso já se estará perante uma venda de coisas específicas, ainda que sujeita a pesagem.
Ao contrário do que sucede na venda de coisas genéricas, em que a indicação da quantidade se torna necessária à própria perfeição do contrato, no âmbito da venda de coisas específicas não é necessária a indicação no contrato de qualquer quantidade, uma vez que a simples individualização da coisa já é, só por si, suficiente para determinar o objeto da venda. Pode, porém, acontecer que as partes resolvam, também no âmbito da venda de coisas determinadas, acrescentar no contrato a referência à quantidade da venda, quer para efeitos de melhor descrição do bem vendido, quer para efeitos de determinação do seu preço. Essa situação ocorre especialmente no âmbito da venda de imóveis e especialmente na de terrenos, em que é usual referir a área correspondente ao objeto da venda.
Essa referência das partes à quantidade dos bens vendidos vai implicar uma futura operação de contagem, pesagem ou medição, a qual coloca o problema de eventualmente se verificar uma discrepância entre a referência contratual e o resultado da operação de contagem, pesagem ou medição. Uma vez que se está perante coisas determinadas e não coisas genéricas, a venda considera-se concluída antes da operação de contagem, pesagem ou medição, logo com a celebração do contrato, adquirindo assim o comprador imediatamente a propriedade dos bens vendidos (art. 408º/1), suportando consequentemente o risco pela sua perda ou deterioração (art. 796º/1), pelo que a discrepância apenas pode ter reflexos para efeitos de apuramento do preço devido.
Os efeitos dessa discrepância são diferentes consoante:
a) O preço da venda tenha sido estabelecido precisamente em função de um tanto por cada unidade vendida (venda por medida) – neste caso, o art. 887º determina que, independentemente da
quantidade referida no contrato, o que o comprador deve é o preço proporcional ao número, peso ou medida real das coisas vendidas. Esta é a solução prevista, uma vez que o facto de as partes fazerem referência direta ao preço unitário leva a supor que a vontade das partes é fazer o preço corresponder à efetiva quantidade, peso ou medida das coisas entregues.
b) O preço da venda tenha sido estabelecido para o conjunto de coisas vendidas (venda a corpo) – para que haja uma venda a corpo, é necessário que o objeto da venda seja uma coisa determinada. Neste caso, o art. 888º/1 determina que o comprador deve o preço declarado, mesmo que a indicação de quantidade referida no contrato não tenha correspondência com a realidade, a menos que a divergência entre a quantidade real e a declarada seja superior a um vigésimo desta (5%), caso em que o preço sofrerá redução ou aumento proporcional (na totalidade e não apenas na parte que excede um vigésimo) – art. 888º/2. A explicação para esta solução reside na circunstância de, na venda a corpo, o facto de as partes não terem indicado um preço unitário mas um preço global levar a supor que a sua vontade se formou essencialmente em relação a esse preço global, sendo incidental a referência à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas.
O direito ao recebimento da diferença de preço pode ser, no entanto, excluído, se ocorrer compensação entre faltas e excessos e na medida em que essa compensação se verificar, nos termos do art. 889º. Quando o conjunto de coisas vendidas abrange mais do que uma categoria e a discrepância na referência se caracterizar por faltar parte de uma das categorias e houver excesso quanto a outras, as faltas e os excessos compensam- se. Nesse caso, e na medida em que se opera a compensação, as partes deixam de poder exigir a diferença de preço, ainda que a discrepância de quantidade de uma ou de ambas ultrapasse um vigésimo em relação à declarada (art. 888º/2).
O direito ao recebimento da diferença de preço tem de ser exigido num prazo relativamente curto, já que a lei determina a sua caducidade dentro de 6 meses ou de 1 ano a contar da entrega da coisa, consoante esta seja móvel ou imóvel, salvo se a diferença só se tornar exigível em momento posterior à entrega, dado que nesse caso o prazo contar-se-á a partir desse momento (art. 890º/1). No entanto, se a venda for de coisas que hajam de ser transportadas de um lugar para outro, o prazo reportado à data da entrega só começa a contar no dia em que o comprador as receber.
O art. 891º prevê ainda que tanto na venda a medida, como na venda a corpo, o comprador possa resolver o contrato, sempre que seja obrigado a pagar ao vendedor uma diferença de preço superior a um vigésimo do preço declarado, direito que só não surge se tiver ocorrido dolo do comprador, ou seja, se o comprador não tiver efetuado sugestão ou artifício com intenção de consciência de manter em erro o vendedor ou não tiver dissimulado o erro deste (art. 253º). Este direito caduca no prazo de 3 meses a contar da data em que o vendedor exigir esse excesso.
O regime dos arts. 887º e ss. não exclui a aplicação do regime do erro, caso se verifiquem os pressupostos. Assim, se for essencial para o declarante que a coisa vendida tenha a quantidade declarada e a outra parte conhecia ou não podia ignorar essa essencialidade, cabe à parte a anulação do contrato nos termos gerais (arts. 251º e 247º).
♣ Venda com Reserva de Propriedade – art. 409º
As razões para a estipulação de reserva de propriedade prendem-se com o facto de que, ocorrendo entre nós a transferência da propriedade sempre em virtude da celebração do contrato e, normalmente no momento dessa celebração, a transmissão dos bens seja extraordinariamente facilitada em prejuízo dos interesses do alienante.
Assim, se for celebrado um contrato de compra e venda de um bem, o comprador torna-se imediatamente proprietário do bem vendido e pode voltar a aliená-lo, mesmo que este não lhe tenha sido entregue ou o preço respetivo ainda não esteja pago. Ao vendedor resta apenas a possibilidade de cobrar o preço. Este é, porém, um mero direito de crédito, que não lhe atribui qualquer preferência no pagamento, o que implica para o vendedor ter de concorrer com todos os credores comuns do comprador sobre o património deste (art. 604º/1). Assim, caso o comprador não possua bens suficientes para pagar a todos os seus credores, o vendedor não terá possibilidade de cobrar a totalidade do preço.
A compra e venda a crédito (venda a prestações ou venda com espera de preço) apresenta-se por isso como um negócio que envolve riscos elevados para o vendedor, pois a celebração do contrato acarreta para ele a mudança de uma situação de proprietário de um bem para a de um mero credor comum.
Mas mais do que isso, a lei para facilitar a transmissão dos bens e evitar que esta seja revertida, vem, através do art. 886º, retirar ao vendedor a possibilidade de resolução do contrato por incumprimento da outra parte (art. 801º/2), a partir do momento em que ocorra a transmissão da propriedade e a entrega da coisa.
Em virtude dessas consequências gravosas, tornou-se comum, nos contratos de compra e venda a crédito, a celebração de uma cláusula de reserva de propriedade. A reserva de propriedade vem referida no art. 409º, sendo definida como a convenção pela qual o alienante reserva para si a propriedade da coisa, até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou até à verificação de qualquer outro evento (art. 409º/1). Deste modo, é possível ao vendedor resolver o contrato, uma vez que a propriedade não se transferiu (art. 886º a contrario) e impossibilita que os credores do comprador venham hipotecar aquele bem sob reserva de propriedade, uma vez que esse bem não lhe pertence, e uma vez que o art. 601º estabelece que “respondem pelo cumprimento da obrigação todos os bens do devedor” (assim como o art. 342º CPC).
Através da venda com reserva de propriedade as partes convencionam diferir a transferência da propriedade para um momento posterior ao da celebração do contrato. Normalmente, o evento que determina a verificação dessa transferência é o pagamento do preço, ainda que as partes ao abrigo da sua autonomia privada possam igualmente colocar a transferência da propriedade dependente da verificação de qualquer outro evento, o qual pode inclusivamente ser o pagamento de uma dívida a terceiro. O vendedor procede à entrega da coisa ao comprador, por forma a permitir-lhe o gozo dela antes que o preço esteja pago.
~ Regime:
A cláusula de reserva de propriedade tem de ser estipulada no âmbito de um contrato de compra e venda, do qual não pode ser cindida. Assim, se a venda já foi celebrada, não poderá posteriormente ser nela inserida uma cláusula de reserva de propriedade, dado que a propriedade nesse caso já se transferiu para o comprador. Exceção a esta regra será no âmbito da compra de bens futuros e de coisas genéricas, quando ainda não houve especificação.
Em virtude da inserção da cláusula de reserva de propriedade no âmbito do contrato de compra e venda, a reserva terá de obedecer à forma legalmente exigida para o contrato, podendo inclusivamente ser consensual nos casos em que o contrato de compra e venda não esteja sujeito a forma especial. Apenas em caso de insolvência do comprador, o art. 104º CIRE exige a forma escrita da cláusula de reserva de propriedade para estabelecer a sua oponibilidade à massa insolvente.
A cláusula de reserva de propriedade pode ser celebrada em relação a quaisquer bens móveis ou imóveis, desde que sejam coisas específicas e não consumíveis. A lei dispõe que no caso de bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros (art. 409º/2). Suscita-se, por isso, a dúvida sobre a oponibilidade a terceiros da reserva de propriedade quando ela respeite a bens móveis não registáveis:
a) A maioria da doutrina defende que, dado que a lei não exclui a estipulação de reserva de propriedade em relação a esse tipo de bens, nem condiciona nesse caso a sua oponibilidade a terceiros de boa fé, de acordo com os princípios da causalidade e consensualidade vigentes no nosso sistema, a reserva poderá ser normalmente oposta a terceiros de boa fé. A lei só exige assim a publicidade da reserva de propriedade nos casos de bens sujeitos a registo. Nos outros casos não será, portanto, exigida qualquer publicidade, para se poder opor a reserva a terceiro, mesmo que esteja de boa fé e tenha obtido a propriedade por transmissão do adquirente sob reserva.
No entanto, se o terceiro adquirir a propriedade a título originário (como sucede na usucapião e acessão), naturalmente que a reserva de propriedade se extinguirá.
b) O Prof. Xxxxxx Xxxxxxxx defende a inoponibilidade da cláusula de reserva de propriedade a terceiros de boa fé, no caso de vir a ser celebrada relativamente a bens móveis não sujeitos a registo.
Apesar de a reserva de propriedade diferir, por acordo das partes, a transmissão da propriedade para o momento do pagamento integral do preço, a função desse acordo não é, porém, permitir ao vendedor a continuação do gozo sobre o bem – uma vez que este é entregue ao comprador precisamente para o fim de lhe atribuir o seu gozo – mas apenas defender o vendedor das eventuais consequências do incumprimento do comprador. Ou seja, tem finalidades garantísticas.
Efetivamente, a conservação da propriedade no vendedor até ao pagamento do preço impede os credores do comprador de executarem o bem, podendo o vendedor reagir contra essa execução através de embargos de terceiro (art. 342º CPC).
A lei não regula, porém, a questão da oponibilidade da posição jurídica do comprador na venda com reserva de propriedade aos credores e adquirentes do vendedor. No caso de insolvência do devedor, determina o art. 104º/1 CIRE que o comprador poderá exigir o cumprimento do contrato se a coisa já lhe tiver sido entregue à data da declaração de insolvência, podendo o administrador recusar o cumprimento, caso em que o comprador apenas terá direito, como crédito da insolvência, à diferença positiva entre as prestações previstas até ao final do contrato e o valor da coisa na data da recusa (art. 104º/5 CIRE).
Por outro lado, em caso de incumprimento por parte do comprador, o vendedor continua a poder resolver o contrato nos termos do art. 801º/2, uma vez que a exclusão deste direito pelo art. 886º só se verifica se tiver ocorrido a transmissão da propriedade da coisa. No entanto, no caso de venda a prestações, o art. 934º exclui imperativamente a possibilidade de resolução do contrato se o comprador faltar ao pagamento de uma única prestação e esta não exceder a oitava parte do preço (mas se faltar ao cumprimento de duas prestações já há lugar à resolução do contrato, mesmo que as duas não excedam a oitava parte do preço).
Em relação ao risco na venda com reserva de propriedade, tem vindo a ser sustentado, com base na sua pretensa configuração como uma condição suspensiva, que o vendedor continuaria a suportar o risco pela perda ou deterioração da coisa, ainda que esta tivesse sido entregue ao comprador.
Contudo, o Prof. Menezes Xxxxxx sustenta que esta solução é inaceitável uma vez que, a partir da entrega, o comprador fica já integralmente investido nos poderes de uso e fruição da coisa, servindo a manutenção da propriedade no vendedor apenas para assegurar a recuperação do bem, em caso de não pagamento do preço.
Ora, devendo o risco correr por conta de quem beneficia do direito, parece-lhe claro que a partir da entrega é por conta do comprador que o risco deve correr, não ficando este exonerado do pagamento do preço em caso de perda ou deterioração fortuita da coisa.
Se se vier a verificar a perda ou deterioração da coisa em resultado de um dano culposamente causado por
terceiro, é manifesto que não pode o vendedor reclamar a totalidade da indemnização, uma vez que,
enquanto conservar o crédito do preço, o património do vendedor não sofre qualquer diminuição. Na doutrina tem sido, porém, controvertida qual a forma de resolução desta questão:
a) Para autores como Rühl, haveria neste caso um fenómeno de subrogação real, adquirindo o comprador o direito ao ressarcimento apenas com o pagamento do preço.
b) Para Xxxxxx, tanto o vendedor como o comprador são titulares da indemnização, pelo que o lesante terá que satisfazer a indemnização conjuntamente a ambos, à semelhança com o regime do penhor dos créditos.
c) Para Xxxxxx, é o comprador o principal titular da indemnização, mas o vendedor tem também direito a alguma parte, em consequência da frustração da garantia que possuía sobre o bem, pelo que, perante esta incerteza subjetiva, o devedor deverá utilizar o regime da consignação em depósito, sempre que não consiga obter a quitação de ambos.
Duas questões:
→ A claúsula de reserva de propriedade sobrevive à acessão? A acessão é uma causa de aquisição do direito de propriedade que pode acontecer quando há união de coisas que pertencem a proprietários diferentes e a sua separação pode causar danos. Ex: ter um anel de ouro ao qual se é juntado um diamante de outra pessoa: a separação dos dois pode não ser possível ou pode desvalorizar a coisa.
Esta questão foi também debatida num caso em uma pessoa vendeu sob reserva elevadores que depois foram montados num prédio, não tendo sido pago o preço dos elevadores. Ora, o vendedor depois quis ir lá buscar os seus elevadores, uma vez que não tinha sido pago o preço. Contudo, houve acessão dos elevadores com o prédio.
♣ Venda a Prestações – art. 934º CC Surge no art. 934º, que dispõe o seguinte:
“Vendida a coisa a prestações, com reserva de propriedade, e feita a sua entrega ao comprador, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar à resolução do contrato, nem sequer, haja ou não reserva de propriedade, importa a perda do benefício do prazo relativamente às prestações seguintes, sem embargo de convenção em contrário”.
Este artigo tem o defeito de passar da hipótese mais restrita para a hipótese mais ampla. A reserva de propriedade é uma convenção comum, mas não necessária na venda a prestações e, conforme resulta da sua segunda parte, esta disposição refere-se à venda a prestações em geral, com ou sem reserva de propriedade.
Genericamente, esta norma funciona como derrogação ao art. 781º, que previa que, nas obrigações com prestações fraccionadas, a falta de cumprimento de uma das prestações importa a perda do benefício do prazo quanto às restantes. Considerando-se esta uma solução demasiado drástica, caso o comprador falte ao pagamento de uma única prestação que não exceda a oitava parte do preço, o legislador entendeu que para que ocorra a perda do benefício do prazo para o comprador, é necessário estarem em falta duas prestações, independentemente do seu valor, ou que a prestação que se deixou de realizar exceda um oitavo do preço.
Simplesmente, tendo a coisa já sido entregue, a perda do benefício do prazo para pagamento só permite, por força do art. 886º, o recurso à resolução do contrato pelo vendedor, caso tenha sido estipulada uma reserva de propriedade.
Tem sido objeto de controvérsia na doutrina a natureza supletiva ou imperativa da disposição do art. 934º,
em virtude do caráter algo ambíguo da expressão “sem embargo de convenção em contrário”:
» A posição dominante na doutrina (nomeadamente, XXXXXX XXXXXXXX, ML e XXXXXXX XXXXXXXX) vai no sentido da imperatividade da norma. Consistindo esta numa norma de proteção ao comprador a crédito, normalmente a parte mais fraca do contrato, não faria sentido admitir-se que essa proteção fosse retirada por simples estipulação negocial, que dificilmente corresponderia a um efetivo exercício da liberdade contratual. O Prof. MENEZES CORDEIRO entende que no lugar da expressão “sem embargo” deve ler-se “não obstante”.
» A favor da supletividade desta norma, Xxxxxxx Xxxxx.
Contudo, no caso de ser estipulado entre as partes um regime mais favorável para o comprador a crédito, não parece que nesse caso haja algum constrangimento a que se aplique esse regime e não o regime do art. 934º, dado que o regime deste art. é precisamente proteger o comprador.
Na venda a prestações, a resolução do contrato pelo vendedor depende, salvo estipulação em contrário, da circunstância de ter sido celebrada uma cláusula de reserva de propriedade. No entanto, deve referir-se que essa resolução muitas vezes não consiste na tutela adequada dos interesses do vendedor, uma vez que tem como efeito (e pressuposto – art. 432º/2) a restituição de tudo o que tiver sido prestado ao abrigo do contrato (arts. 433º e 289º). Ora, no caso de venda a crédito de bens não duradouros, o decurso do tempo provoca a sua desvalorização contínua, em ritmo maior que a desvalorização monetária. Assim, quando é restituído o bem ao vendedor, ele normalmente terá um valor de retoma muito inferior à parte do preço já recebida pelo vendedor, o que pode desaconselhar o recurso à resolução do contrato.
É, contudo, verdade que, da resolução do contrato, advém, juntamente com a restituição, uma indemnização por todos os prejuízos causados (art. 801º/2), entre os quais se inclui a deterioração do bem. No entanto, é ao vendedor que compete a prova desses prejuízos, a qual se pode revelar em concreto difícil de realizar.
Para evitar esses inconvenientes, tornou-se usual nos contratos de compra e venda a prestações a estipulação de cláusulas penais para a hipótese de incumprimento por parte do vendedor. Contudo, abusos verificados neste âmbito levaram o legislador a não se contentar com a possibilidade de redução equitativa da cláusula penal (art. 812º), tendo antes estabelecido limites máximos à estipulação de cláusulas penais nas vendas as prestações (art. 935º/1): a indemnização estabelecida em cláusula penal, por o comprador não cumprir, não pode ultrapassar metade do preço, salva a faculdade de as partes estipularem, nos termos gerais, a ressarcibilidade do prejuízo sofrido.
Esta disposição, contudo, deve ser alvo de uma interpretação restritiva, na opinião de ML: este limite só se aplica às cláusulas penais relativas à indemnização a pedir na hipótese de resolução do contrato. Isto porque, a indemnização por o comprador não cumprir, nos termos dos arts. 798º e 801º/2, pode tomar por base tanto o interesse contratual negativo como o positivo, consoante o vendedor proceda ou não à resolução do contrato. Xxx, estando em causa o interesse contratual positivo, por não se ter optado pela resolução do contrato, não há qualquer motivo para limitar a indemnização a metade do preço. Esse limite só pode valer quando o vendedor resolve o contrato com base no incumprimento do comprador, o que lhe permite exigir a restituição da coisa entregue cumulativamente com a indemnização pelo interesse contratual negativo (art. 801º/2).
Estabelece-se então este limite, que não prejudica a possibilidade de as partes estabelecerem a convenção de ressarcibilidade do prejuízo excedente, como já resultava do art. 811º/2. Caso as partes estabeleçam essa convenção, o vendedor não necessita de provar qualquer prejuízo se apenas reclamar a cláusula penal, tendo o ónus de provar que os danos sofridos excederam esse montante sempre que reclamem um valor superior.
Se as partes estabelecem uma cláusula penal de montante superior a metade do preço, a lei determina imperativamente a sua redução a metade do preço. A estipulação desse montante superior vale, no entanto, como convenção de ressarcimento do prejuízo excedente até esse montante (art. 935º/2).
O art. 936º vem estender este regime a todos os contratos pelos quais se pretenda obter resultado equivalente ao da venda a prestações.
⮚ Venda a prestações efetuada no âmbito de relações de consumo:
Se a venda a prestações for efetuada no âmbito de relações de consumo – o que ocorre sempre que seja realizada a pessoa singular que atue com objetivos alheios à sua atividade comercial ou profissional – ela é qualificada como um contrato de crédito ao consumo.
O crédito ao consumo atualmente tem o seu regime regulado no DL 133/2009 de 2 de junho, tendo este diploma sido alterado pelo DL 72-A/2010 de 2 de junho, e depois alterado e republicado pelo DL 42-A/2013 de 28 de março.
Sendo qualificada como contrato de crédito ao consumo, a venda a prestações é sujeita a um regime especial, destinado a proteger o consumidor, normalmente considerado mal informado sobre os custos do crédito.
Assim:
o Art. 5º/1 DL estabelece que em qualquer publicidade ou comunicação comercial relativa ao crédito ao consumo deve ser indicado o custo anual do crédito para o consumidor, expresso em percentagem anual do montante do crédito concedido, o que vem a constituir a denominada taxa anual de encargos efetiva global, mesmo que esse crédito seja apresentado como gratuito ou sem juros.
No caso de se indicar uma taxa de juro ou outros valores, a publicidade deve mesmo incluir informações normalizadas (art. 5º/4), com as menções referidas no art. 5º/5. Aqui temos consagrado um dever específico de informação, que tem que ser obrigatoriamente cumprido pelo vendedor na publicidade à venda a prestações ao consumidor.
o Este dever de informação pode, contudo, não ser suficiente. Assim, o art. 6º obriga, na data de apresentação de uma oferta de crédito ou previamente à celebração de um contrato de crédito, a prestar em papel ou noutro suporte duradouro informações pré-contratuais ao consumidor, em modelo próprio constante do anexo II do diploma. O dever de prestação de informações pré- contratuais escritas é complementado com um dever de esclarecimento ao consumidor (art. 7º/1).
o O art. 10º estabelece ainda um dever de o credor avaliar a solvabilidade do consumidor antes da celebração do contrato de crédito.
o O contrato de crédito ao consumo é sujeito à forma escrita, em papel ou noutro suporte duradouro em condições de inteira legibilidade (art. 12º/1), com obrigatoriedade de inclusão de um certo número de menções (art. 12º/3). A sanção para a sua inobservância é normalmente a nulidade do contrato (art. 13º/1).
o Existe ainda previsto um direito de arrependimento ou livre resolução, concedido durante um período de reflexão (art. 17º/1), que determina que o consumidor dispõe de um prazo de 14 dias para revogar o contrato de crédito, sem necessidade de indicação de qualquer motivo. Nesse caso, o consumidor deve pagar ao credor o capital e os juros vencidos a contar da data de utilização do crédito até à data de pagamento do capital (art. 17º/4).
o O art. 20º/1 estabelece que “em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes:
a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10% do montante total do crédito;
b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas de eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato”.
♣ Locação-Venda – art. 936º/2 CC
A locação-venda aparece referida no art. 936º/2, que refere que “Quando se locar uma coisa, com a cláusula de que ela se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas ou alugueres pactuados, a resolução do contrato por o locatário o não cumprir tem efeito retroactivo, devendo o locador restituir as importâncias recebidas, sem possibilidade de convenção em contrário, mas também sem prejuízo do seu direito a indemnização nos termos gerais e nos do artigo anterior”.
Neste caso, as partes declaram estipular uma locação, mas convencionam que a propriedade passará para o locatário automaticamente no fim de pagamento de todas as rendas ou alugueres convencionados. Esta convenção implica que essas prestações não correspondem a uma contrapartida do gozo temporário da coisa, mas ao pagamento da transmissão da propriedade sobre ela, apenas com a diferença que esse pagamento ocorre antes dessa transmissão.
O contrato, apesar de qualificado pelas partes como locação, desempenha a mesma função económica da venda a prestações com reserva de propriedade, pelo que é sujeita pelo legislador ao mesmo regime (art. 936º/1 e, no caso de insolvência, o art. 104º/2 CIRE).
Efetivamente, a principal função do art. 936º/2 é impedir as partes de, através da estipulação de uma locação, derrogarem o regime vigente para a venda a prestações. Assim, o legislador determina que a resolução tem obrigatoriamente efeito retroativo, não funcionando consequentemente o regime do art. 434º/2, vigente para as prestações de natureza periódica, como seria o caso da renda devida por um contrato de locação.
É assim imposta ao vendedor, em caso de resolução por incumprimento, a devolução das prestações recebidas, apenas podendo exigir uma indemnização nos termos gerais, ou estipular uma cláusula penal nos mesmos termos do art. 935º.
~ Natureza: A doutrina diverge:
▪ Xxxxxx Xxxxxx e Xxxxxx Xxxxxxxx – união alternativa de contratos, uma vez que se o locatário pagar todas as prestações, a situação será a de compra e venda, enquanto se devolver a coisa antes do pagamento integral o regime aplicável será o da locação.
▪ Xxxxxx Xxxxxxx Xxx – venda com reserva de propriedade, uma vez que a função económica do contrato é exatamente idêntica a esta.
▪ Menezes Leitão – modalidade específica de venda, em que, sendo diferida a transmissão da propriedade até ao pagamento do preço, o vendedor se obriga a entretanto a proporcionar ao comprador o gozo da coisa, como locatário desta. Distinta desta figura será a locação convertível em venda, como sucederá no caso de se convencionar uma efetiva relação de locação, com a possibilidade futura e eventual de aquisição do bem por parte do locatário, mediante o pagamento de um preço suplementar. Nestes casos, haverá uma efetiva relação de locação, associada a uma opção de compra ou a uma promessa unilateral de venda.
Se a locação-venda ou locação convertível em venda forem celebradas com consumidores finais, são igualmente consideradas como contratos de crédito, por força do art. 4º/1 c) do DL 133/2009, republicado pelo DL 42-A/2013.
♣ Venda a Retro – art. 927º CC
A venda a retro vem prevista no art. 927º, sendo definida como a venda na qual se reconhece ao vendedor a faculdade de resolver o contrato. Assim, a transmissão da propriedade não se apresenta como definitiva, na medida em que o vendedor se reserva a possibilidade de reaver o direito alienado, mediante a restituição do preço e o reembolso das despesas feitas com a venda.
A instituição da venda a retro prendeu-se com o interesse de tutelar a situação do proprietário que, devido às suas necessidades financeiras, se vê na contingência de ter que alienar um bem seu, mas mantém o interesse de voltar a adquiri-lo logo que a sua condição financeira lhe permita fazê-lo.
Precisamente, devido à sua configuração económica como operação de financiamento, a admissibilidade da venda a retro tem sido questionada, uma vez que através dela se pode tornear a proibição da estipulação de pactos comissórios, prevista nos arts. 694º, 665º, 678ºe753º. Efetivamente, em lugar da estipulação de uma garantia, que não permite a imediata aquisição da propriedade em caso de incumprimento pelo devedor, as partes poderiam sempre estipular uma venda a retro, transmitindo a propriedade para o credor, apenas a podendo recuperar o devedor com o pagamento do crédito. Por esse motivo, o CC de 1867 aboliu esta modalidade de venda. O CC atual veio reinstitui-la, sendo que para evitar a sua utilização com fins de garantia, proibiu a atribuição ao comprador de qualquer benefício como contrapartida da resolução, tornando assim muito difícil que algum comprador aceite celebrar uma aquisição com uma cláusula a retro.
~ Forma:
A cláusula a retro constitui uma estipulação do contrato de compra e venda, sendo por isso sujeita à forma exigida para esse contrato.
~ Regime:
Conforme resulta do art. 927º, o que caracteriza a venda a retro é ser atribuída ao vendedor uma posição jurídica específica que lhe permite resolver o contrato e recuperar o bem. Há, porém, limites legais à estipulação do prazo para a resolução, na medida em que o art, 929º determina que a resolução só pode ser exercida no prazo de 2 ou 5 anos a contar da venda, consoante se trate, respetivamente, de coisas móveis ou imóveis, prazo esse que se considera reduzido a esses limites se for estipulado em âmbito superior (art. 929º/2).
O art. 930º dispõe que “a resolução é feita por meio de notificação judicial ao comprador dentro dos prazos fixados no artigo antecedente; sem prejuízo do disposto em lei especial, se respeitar a coisas imóveis, a resolução será reduzida a escritura pública ou a documento particular autenticado nos 15 dias imediatos, com ou sem a intervenção do comprador, sob pena de caducidade do direito”. A lei não foge aqui ao sistema da resolução por declaração (art. 436º), tendo essa declaração natureza negocial, ainda que exija uma forma especial para a sua emissão, que é a notificação judicial (art. 219º/2 CPC). No entanto, em relação a bens imóveis nem sequer essa forma é suficiente, tendo a resolução que ser reduzida a escritura pública ou a documento particular autenticado nos 15 dias imediatos, mesmo que o comprador se recuse a outorgar nela, sem o que se considerará caduca a declaração de resolução notificada.
O art. 931º determina ainda que, salvo estipulação das partes em contrário, a resolução se considerará igualmente sem efeito, se dentro do mesmo prazo de 15 dias após a notificação, o vendedor não fizer ao comprador oferta real das importâncias líquidas que haja de pagar-lhea título de reembolso do preço e das despesas com o contrato e outras acessórias. O reembolso do preço e das despesas com o contrato e outras acessórias constituem um ónus e não uma obrigação para o vendedor, uma vez que a sua omissão leva apenas à ineficácia da resolução e não à responsabilidade por incumprimento. Estarão em causa apenas as despesas que o art. 878º faz recair sobre o comprador e não as benfeitorias realizadas na coisa.
A cláusula a retro é oponível a terceiros, isto é, tem efeito real, desde que a venda tenha por objeto coisas imóveis ou coisas móveis sujeitas a registo e tenha sido registada (art. 932º). E como se exerce a eficácia real na cláusula a retro, se o bem já tiver sido alienado a terceiro? Em caso de resolução, é ao comprador que esta deve ser notificada, bem como é a ele que lhe deve ser feita a oferta real do preço e despesas, devendo depois o vendedor opor ao adquirente o seu direito e tendo este direito de reclamar do comprador o reembolso do que lhe tiver pago.
Efetuada a resolução da venda a retro, a propriedade retorna à esfera jurídica do vendedor. No entanto, a resolução processa-se sem eficácia retroativa, pelo que a propriedade apenas é adquirida ex nunc. Consequentemente, os frutos que a coisa produziu entre o momento da venda e o da resolução pertencem ao comprador. Sendo a cláusula oponível a terceiros, os bens regressarão livres de quaisquer ónus ou encargos com que o comprador tenha onerado os bens.
♣ Venda a Contento e Venda sujeita a Prova – arts. 923º e ss. CC
Os arts. 923º e ss. referem-se a modalidades específicas de venda em que esta se realiza por etapas, como a venda a contento e a venda sujeita a prova. Em ambas as situações, normalmente relativas a bens móveis, verifica-se a subordinação do contrato a uma aprovação da coisa vendida por parte do comprador, da qual vai depender a sua efetiva vigência.
A diferença reside em que:
a) Na venda a contento, o comprador reserva a faculdade de contratar, ou a de resolver o contrato, consoante a apreciação subjetiva (o seu gosto pessoal) que vier a fazer do bem vendido.
b) Na venda sujeita a prova, está em causa uma avaliação objetiva do comprador em relação às qualidades da coisa, em conformidade com um teste a que esta será sujeita.
⮚ A primeira modalidade de venda a contento
A lei admite duas modalidades de venda a contento. A primeira modalidade implica a estipulação de que a coisa vendida terá que agradar ao comprador, correspondendo à cláusula ad gustum (art. 923º). Esta modalidade não é, no entanto, no regime do nosso CC, um negócio condicional, uma vez que o legislador não recorre à técnica da subordinação do negócio a uma condição (em sentido contrário, RM, que qualifica esta cláusula como uma condição imprópria, por ser potestiva, dependendo a sua verificação apenas da vontade do comprador).
Efetivamente, a cláusula ad gustum referida no art. 923º constitui antes uma reserva relativa à aceitação do contrato de compra e venda, o que significa que, em virtude dessa cláusula, o acordo das partes vem a ser qualificado como uma mera proposta de venda, ficando o vendedor vinculado sem que o comprador o venha a estar.
Ao contrário do que, porém, genericamente sucede, a lei admite posteriormente a celebração do contrato através do silêncio do comprador (art. 218º), uma vez que dispõe que a proposta se considera aceite se o comprador não se pronunciar dentro do prazo de aceitação, nos termos do art. 228º. No entanto, a lei estabelece que a coisa deve ser facultada ao comprador para exame (art. 923º/3), pelo que parece que o prazo para aceitação não se poderá iniciar antes de a coisa ter sido entregue.
Caso o comprador, durante o prazo estabelecido, se pronuncie no sentido da rejeição do contrato, a venda considerar-se-á como não celebrada. Uma vez que se trata de uma questão de apreciação subjetiva, naturalmente que o vendedor não necessita de indicar qualquer motivo para proceder à rejeição do contrato.
Uma vez que a lei qualifica a situação como uma mera proposta de venda, naturalmente que todos os efeitos do contrato, designadamente a transmissão da propriedade e a atribuição do risco ao comprador, só se verificarão com o decurso do prazo estabelecido, que confirmará a sua intenção de adquirir nos termos do art. 218º, sendo até lá o comprador considerado mero detentor precário. Assim, se se verificar o perecimento da coisa nessa fase, essa situação correrá a risco do vendedor.
⮚ A segunda modalidade da venda a contento
A segunda modalidade corresponde à concessão de um direito de resolução unilateral do contrato se a coisa não agradar ao comprador, o qual segue as regras gerais dos arts. 432º e ss. Não se trata, assim, de uma condição resolutiva (as partes não subordinam a resolução do negócio a um acontecimento futuro e incerto), antes atribuem ao comprador o direito de resolver unilateralmente o contrato se a coisa não lhe agradar.
A resolução, que não é impedida pela entrega da coisa (art. 924º/2), deve ser exercida no prazo estabelecido no contrato ou, no silêncio deste, pelos usos, podendo o vendedor, se nenhum prazo for estabelecido, fixar um prazo razoável para o seu exercício (art. 924º/3).
Neste caso, uma vez que a concessão ao comprador de um direito de resolução unilateral não impede que a propriedade se transmita (art. 408º/1), correrá por sua conta o risco da perda ou deterioração da coisa, verificada durante esse prazo (art. 796º/1). Efetivamente, caso a coisa se venha a perder ou deteriorar, o comprador deixará de a poder restituir ao vendedor, pelo que perde o direito de resolver o contrato (art. 432º/2).
⮚ Venda sujeita a prova – art. 925º CC
No âmbito da venda sujeita a prova, o contrato não se tornará definitivo sem que o comprador averigue, através de um prévio uso da coisa, que ela é idónea para o fim a que é destinada e tem as qualidades asseguradas pelo vendedor.
O art. 925º qualifica a situação da venda sujeita a prova como uma venda subordinada a condição, consistindo a condição no facto de a coisa vendida ser idónea para o fim a que é destinada e ter as qualidades asseguradas pelo vendedor. O Prof. ML defende que esta é antes uma modalidade específica de venda, uma vez que os requisitos específicos da venda sujeita a prova referidos no art. 925º não se distinguem dos requisitos gerais de conformidade da coisa, a que se refere o art. 913º.
♣ Venda sobre Documentos – arts. 937º e ss. CC
Constitui igualmente uma modalidade especial de venda. No âmbito da obrigação de entrega que compete ao vendedor, incluem-se os documentos relativos à coisa ou direito (art. 882º/2). No entanto, na venda sobre documentos, vai-se ainda mais longe. Como tem por objeto a venda de mercadorias representadas por títulos, considera-se que o vendedor não é obrigado a entregar essas mercadorias, bastando-lhe entregar os respetivos documentos (art. 937º). Dado que a entrega desses títulos legitima o comprador a levantar as respetivas mercadorias diretamente ao transportador ou depositário, é desnecessário que seja o vendedor a assegurar essa entrega.
A posição dominante quanto à venda sobre documentos considera, contudo, que o objeto da venda não são os documentos, mas antes as coisas a que estes se referem, sendo que o direito incorporado no título constitui unicamente um crédito à entrega dessas coisas e não a propriedade das mesmas.
A disciplina da transmissão da propriedade e do risco sobre as coisas é sujeita às regras gerais. Há, no entanto, um caso especial, em que a lei sujeita a venda sobre documentos a um regime especial de risco (art. 938º): venda de coisas em viagem, representadas por documentos e objeto de um seguro contra os riscos de transporte. Neste caso, apesar de o art. 938º/c) referir que o risco fica a cargo do comprador desde a data da compra, a verdade é que as als. a) e b) atribuem-lhe o risco do perecimento ou deterioração da coisa desde o momento em que ela é entregue ao transportador e, portanto, anteriormente a essa data.
Excetua-se, no entanto, o caso de o vendedor já saber, aquando da celebração do contrato, que a coisa se encontrava perdida ou deteriorada e dolosamente não o ter revelado ao comprador de boa fé (art. 938º/2). No entanto, esse regime depende da existência do seguro, pelo que se ele cobrir apenas parte dos riscos, só vigorará em relação à parte segurada (art. 938º/3).
Perturbações típicas do contrato de compra e venda
❖ Venda de Xxxx Xxxxxxx – arts. 892º e ss.
Existe venda de bens alheios sempre que o vendedor não tenha legitimidade para realizar a venda, como sucede no caso de a coisa não lhe pertencer, ou de o direito que possui sobre ela não lhe permitir a sua alienação.
O regime da venda de bens alheios, referido nos arts. 892º e ss., baseia-se em certa medida na antiga garantia contra a evicção. Atualmente, o regime de venda de bens alheios não deixa de assentar no pressuposto de que a celebração do contrato de compra e venda garante ao comprador a propriedade da coisa vendida, como se demonstra pelo facto de este responder objetivamente pelos danos causados ao comprador de boa fé pela venda de bens alheios (art. 899º), bem como em virtude do facto de a lei admitir a estipulação de cláusulas de não garantia (art. 903º/2).
~ Pressupostos:
1) Venda como própria de uma coisa alheia específica e presente, fora do âmbito das relações comerciais
O legislador considerou nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar. Esta solução não é, no entanto, absoluta, dado que é manifesto que essa nulidade não ocorre se:
a) A venda tiver por objeto coisa futura, uma vez que nesse caso o art. 893º manda aplicar antes o regime da venda de bens futuros, onde se consider válida a obrigação assumida pelo vendedor (art. 880º). Ou seja, as partes podem considerar o bem alheio que está a ser vendido como um bem futuro e, nesse caso, aplica-se o regime da venda de bens futuros.
b) Se a venda for de coisa genérica que não pertença ao vendedor, também aí não poderá ser considerada nula, dado que para a sua estipulação não é necessária a qualidade de proprietário do vendedor, ao tempo da estipulação do contrato (arts. 539º e ss.)
c) E, por último, se a compra e venda for comercial, caso em que a lei considera lícita a venda do que for propriedade de outrem (art. 467º/2 CCom).
Em todos esses casos recai sobre o vendedor a obrigação de aquisição e entrega ao comprador das coisas que se comprometeu vender, não sendo consequentemente aplicável o regime da venda de bens alheios.
d) Também não se aplica o regime da venda de bens alheios, de acordo com o art. 904º, se o vendedor não procede à venda de coisa como própria, mas a vende como alheia, mesmo que não tenha legitimidade para o fazer. Assim, se alguém vende um prédio em nome de outrem, sem poderes para o fazer (art. 268º), ou abusa dos seus poderes de representação, no caso em que a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (art. 269º), o contrato é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário se este não o ratificar, e nunca produz efeitos em relação ao representante, por este não ser parte no negócio.
Assim, o regime da venda de bens alheios, instituído nos arts. 892º e ss. apenas se poderá aplicar se for
vendida como própria uma coisa alheia específica e presente, fora do âmbito das relações comerciais.
É, no entanto, controvertida a solução da questão se o vendedor após a celebração da venda tornar a vender a coisa a outrem, que regista primeiro a sua aquisição. Nesse caso, uma vez que o segundo adquirente acaba por se tornar proprietário da coisa, é manifesto que em relação a ele não se pode sustentar a aplicação do regime da venda de bens alheios. No entanto, a situação do primeiro adquirente também não se enquadra no regime da venda de bens alheios, uma vez que o bem pertencia ao vendedor no momento em que foi vendido.
i. Para alguma doutrina, existe neste caso uma específica responsabilidade aquiliana do vendedor em relação ao primeiro contraente (nomeadamente, Xxxxxx).
ii. Para outra, haverá que aplicar o regime da garantia pela evicção (Bianca).
iii. Para Xxxxxxx Xxxxxx, a situação enquadrar-se-ia no âmbito da garantia contra a evicção e, dado que foi intenção do legislador substituir essa garantia pelo regime da venda de xxxx xxxxxxx, parece que não será forçado defender a aplicação analógica deste regime.
2) Ausência de legitimidade para a venda
O segundo pressuposto da venda de bens alheios é que o vendedor careça de legitimidade para efetuar essa alienação. Em princípio, essa legitimidade apenas é atribuída ao proprietário, mas a lei por vezes estende-a a outras entidades, como o credor pignoratício, mediante prévia autorização judicial (art. 674º) ou o Estado, no caso da venda em execução dos bens do executado (art. 824º).
Sendo a venda celebrada por um representante do proprietário, nos limites dos poderes que lhe competem, é o proprietário considerado como o verdadeiro sujeito do negócio (art. 258º), pelo que o regime da venda de bens alheios não se aplicará. Também se se vender uma coisa alheia no âmbito de uma representação sem poderes (art. 268º), designadamente na gestão de negócios representativa (arts. 464º e 471º), não haverá aplicação do regime da venda de bens alheios, cabendo ao comprador a possibilidade de revogar ou rejeitar o negócio, enquanto o proprietário não o ratificar, salvo se no momento da celebração conhecia a falta de poderes do representante (art. 268º/4).
Já haverá aplicação do regime da venda de bens alheios se for vendida como própria coisa alheia, ainda que no interesse do seu titular, como sucede no mandato sem representação para alienar (arts. 1180º e ss) e na gestão de negócios não representativa (art. 471º), a menos que o titular do direito venha posteriormente a regularizar a situação através da assunção das obrigações do vendedor ou da transmissão para este do bem vendido (art. 1182º).
Mesmo faltando a legitimidade do vendedor, a lei em certos casos, por razões de tutela da aparência, vem a considerar válida a alienação. É o que acontece na venda de bens da herança efetuada por herdeiro aparente a terceiro de boa fé (art. 2076º/2), na venda de bem sujeito a registo efetuada a terceiro de boa fé por vendedor que adquiriu esse bem com base em negócio nulo ou anulável (art. 291º). Nestas situações, a falta de legitimidade do vendedor não impede a consideração como válida do negócio e daí que não se verifique a aplicação do regime de venda de bens alheios.
~ Efeitos:
1) Nulidade da venda e obrigação de restituição
A solução da nulidade da venda de bens alheios tem como fundamento o considerando lógico de que, sendo a venda um contrato translativo de propriedade, a sua celebração por um não proprietário deveria acarretar a nulidade do negócio.
No entanto, é uma solução que se pode considerar questionável. Efetivamente, na venda de bens alheios institui-se uma categoria de nulidade sujeita a um regime especial, que se afasta das regras gerais, não apenas quanto à legitimidade para a sua arguição (art. 286º), mas também quanto ao regime da obrigação de restituição (art. 289º).
Quanto à legitimidade para arguir a nulidade da venda de bens alheios, esta é profundamente restringida, uma vez que:
a) É proibida a sua invocação pela parte que estiver de má fé contra a outra de boa fé, sendo mesmo vedada em qualquer caso ao vendedor a sua invocação sempre que o comprador esteja de boa fé (art. 892º in fine).
b) Relativamente a terceiros, não parece que eles possam invocar a nulidade, uma vez que a sua instituição é estabelecida no interesse apenas das partes e nos termos acima referidos.
c) Mesmo o verdadeiro proprietário não terá legitimidade para invocar a nulidade, já que em relação a ele o contrato será sempre ineficaz (art. 406º/2), pelo que ele será sempre admitido a exercer a reivindicação (art. 1311º), sem ter que discutir a validade do contrato ou demonstrar que não consentiu na venda.
d) Também não parece que esta nulidade possa ser oficiosamente declarada pelo tribunal, uma vez que tal redundaria numa forma de elidir as proibições da sua invocação.
Também a obrigação de restituição na venda de bens alheios é sujeita a regras especiais, distintas do que se prevê no art. 289º, dado que o art. 894º consagra um regime bastante afastado da obrigação de restituição por invalidade do negócio e próximo da restituição por enriquecimento sem causa, na medida em que faz variar o conteúdo da obrigação de restituição, consoante exista ou não boa fé do obrigado.
i) Se o comprador estiver de má fé, por argumento a contrario do art. 894º/1, não poderá pedir a restituição do preço da venda, mas apenas o enriquecimento do vendedor, conforme defende unanimemente a doutrina.
ii) Caso o comprador esteja de boa fé, pode pedir a restituição do preço “ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por outra causa”. O art. 894º só se compreende se se entender que, ao contrário do que resulta dos arts. 289º e 290º, neste caso a restituição do comprador de boa fé fica excluída ou limitada em virtude do perecimento ou deterioração da coisa recebida. Trata-se, assim, da aplicação do limite do enriquecimento (art. 479º/2) a esta restituição, o que é confirmado, em virtude de no art. 894º/2 se prever que, caso ocorra proveito para o comprador em virtude da perda ou diminuição de valor dos bens, esse proveito deve ser abatido na restituição ou indemnização a pagar pelo vendedor.
A lei determina, assim, para a parte que está de boa fé, apenas a restituição do enriquecimento, obrigando a restituir o obtido à custa de outrem para a parte de má fé, o que leva a concluir que o art. 894º determina uma restituição por enriquecimento sem causa, que em tudo se harmoniza com o regime dos arts. 479º e 480º.
Assumida esta conclusão, o Prof. ML conclui não ser correta a tese de Menezes Cordeiro que considera aplicável o art. 1269º no âmbito da venda de bens alheios, restringindo em consequência a aplicação do art. 894º/1 se o comprador de boa fé danificar com culpa os bens.
O Prof. ML concorda antes com Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx, quando aplicam esta disposição, mesmo à perda ou deterioração culposa dos bens por parte do comprador, por considerarem que o comprador tem neste caso uma proteção superior à que resultaria da sua simples condição de possuidor de boa fé, e que não deve responder por tais eventos porque, julgando que a coisa ou direito lhe pertence, não se podem exigir dele os cuidados que em regra se devem ter na guarda e conservação de coisa alheia.
2) Eventual convalidação do contrato
Ao contrário do que ocorre no regime geral, a nulidade da venda de bens alheios pode ser sanada se se verificar a posterior aquisição da propriedade pelo alienante. Assim, o art. 895º dispõe que “logo que o vendedor adquira por algum modo a propriedade da coisa ou do direito vendido, o contrato torna-se válido e a dita propriedade ou direito transfere-se para o comprador”.
Efetivamente, sendo a coisa vendida como própria, o contrato só não produz o efeito translativo que o deveria caracterizar (art. 879º/a)) em virtude de se verificar o impedimento originário de a coisa vendida não pertencer ao vendedor. Desaparecido esse impedimento, não há motivo para deixar de atribuir ao contrato os efeitos que este originariamente devia produzir, pelo que o art. 895º vem determinar a convalidação do contrato, com a consequente verificação da transferência da propriedade.
A lei estabelece, no entanto, no art. 896º algumas restrições à possibilidade de convalidação da venda de bens alheios, enumerando situações em que esta não ocorre, mesmo que o vendedor venha posteriormente a adquirir o bem vendido. São elas:
a) Pedido judicial de declaração de nulidade do contrato, formulado por um dos contraentes contra o outro. No entanto, e conforme resulta do nº 2 do art. 896º e do art. 892º, a invocação da nulidade não pode ser efetuada pelo vendedor contra o comprador de boa fé, nem pelo comprador doloso contra o vendedor de boa fé, pelo que se o pedido judicial corresponder a alguma destas situações, a convalidação do contrato não será impedida.
b) Restituição do preço ou pagamento da indemnização, no todo ou em parte, com aceitação do credor.
c) Transação entre os contraentes, na qual se reconheça a nulidade do contrato.
d) Declaração escrita, feita por um dos estipulantes ao outro, de que não quer que o contrato deixe de ser declarado nulo. No entanto, e nos termos dos arts. 896º/2 e 892º, essa declaração será irrelevante e não impedirá a convalidação do contrato se vier a ser oposta pelo vendedor ao comprador de boa fé ou pelo comprador doloso ao vendedor de boa fé.
Assim, na venda de bens alheios a nulidade instituída é uma nulidade provisória, que pode ser sanada mediante a aquisição da propriedade pelo vendedor, salvo se ocorrer alguma destas situações acima referidas.
3) Obrigação de convalidação
A lei determina que, em caso de boa fé do comprador, o vendedor seja obrigado a sanar a nulidade da venda, adquirindo a propriedade da coisa ou o direito vendido (art. 897º). Trata-se mais uma vez de uma solução muito pouco conforme com a consagração da nulidade da venda de bens alheios.
Quando o comprador está de boa fé tem direito a que o efeito translativo, que não resultou automaticamente da celebração do contrato, venha a ser posteriormente produzido, adquirindo um direito de crédito sobre o
vendedor a que este proceda à aquisição do bem, o que determina a convalidação do contrato e a consequente transmissão da propriedade para o comprador (art. 895º).
O cumprimento desta obrigação dependerá da concordância do titular do direito, dado que, se este não puder ou não quiser proceder à alienação do bem, nada poderá o vendedor fazer.
A obrigação do vendedor só é cumprida se for o próprio vendedor a adquirir o bem, em ordem a que se possa produzir a convalidação da venda para efeitos do art. 895º. Se o vendedor proporcionar ao comprador a aquisição da propriedade por outra via (ex: transmissão ao comprador da coisa pelo seu efetivo proprietário), a situação corresponderá antes a uma dação em cumprimento.
Nos casos em que o vendedor esteja obrigado à convalidação do contrato, o comprador pode solicitar judicialmente a declaração de nulidade do contrato apenas a título subsidiário, para a hipótese em que o vendedor não proceda a essa convalidação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal (art. 897º/2).
Quanto à natureza desta obrigação de convalidação:
~ MC – conversão legal para o regime da compra e venda de bens futuros.
~ ML – é uma restrição ao regime da nulidade, uma vez que admite a produção de efeitos.
4) Indemnização
Outra consequência da venda de bens alheios é a possibilidade de atribuição de uma indemnização pelos danos eventualmente sofridos. Estão estabelecidos três fundamentos de indemnização, no âmbito dos quais se estabelece um concurso de pretensões:
i. Indemnização por qualquer das partes em caso de dolo;
ii. Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé, com fundamento na garantia da sua legitimidade;
iii. Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé por incumprimento da obrigação de convalidar o contrato.
Examinando cada fundamento:
i. Indemnização por qualquer das partes em caso de dolo:
A indemnização em caso de dolo encontra-se prevista no art. 898º. A expressão “dolo” encontra-se aqui utilizada no mesmo sentido do que o referido no art. 253º, a também designada “má fé”, não pressupondo por isso apenas o ilícito intencional, mas também o praticado com negligência consciente.
Está aqui em causa a dissimulação do caráter alheio da coisa através do emprego de sugestões ou artifícios com o fim de enganar ou manter em erro a outra parte. Estando de boa fé, adquire por isso o direito a ser indemnizada pelos danos causados, variando a indemnização consoante a nulidade da venda de bens alheios tenha sido sanada ou não.
- Tendo sido sanada, a indemnização toma por base os danos causados por o contrato não ser ab initio válido, abrangendo o interesse contratual positivo.
- Não tendo sido sanada, a indemnização limita-se aos danos que não ocorreriam se o contrato não tivesse sido celebrado, ou seja, ao interesse contratual negativo, o que constitui uma solução típica da culpa in contrahendo (art. 227º).
ii. Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé, com fundamento na garantia da sua legitimidade:
Em relação ao vendedor, uma vez que ele é obrigado a garantir a sua legitimidade, o art. 899º vem estabelecer uma responsabilidade objetiva pelos danos causados ao comprador, a qual não atribui uma reparação integral. Efetivamente, essa norma dispõe que “o vendedor é obrigado a indemnizar o comprador de boa fé, ainda que tenha agido sem dolo nem culpa; mas, neste caso, a indemnização compreende apenas os danos emergentes que não resultem de despesas voluptuárias”. Daqui resulta que o vendedor responde sempre objetivamente pelos danos emergentes, mas não pelos lucros cessantes, sofridos pelo comprador em virtude da sua falta de legitimidade, desde que não tenham resultado de despesas voluptuárias (art. 216º/3).Em relação a estas, bem como aos lucros cessantes, a sua indemnizabilidade depende do facto de o vendedor ter atuado com dolo ou negligência.
Quanto à questão de saber a quem deve competir o ónus da prova da culpa do devedor, parece que, estando em causa o incumprimento de uma garantia, o vendedor se deve presumir culpado, nos termos do art. 799º, pelo que a limitação da sua responsabilidade aos danos emergentes não resultantes de despesas voluptuárias dependerá de ele ter elidido a presunção que sobre ele recaía.
iii. Indemnização pelo vendedor ao comprador de boa fé por incumprimento da obrigação de convalidar o contrato:
Em caso de boa fé do comprador, como se disse, o vendedor é obrigado a sanar a nulidade da venda, adquirindo a propriedade da coisa ou o direito vendido (art. 897º/1). Sendo esta uma obrigação como qualquer outra (art. 397º), o vendedor estará sujeito, nos termos gerais, à responsabilidade obrigacional em caso de incumprimento (arts. 798º e ss.), impossibilidade culposa (arts. 801º e ss.) ou mora no cumprimento (arts. 804º e ss.). Esta indemnização abrange por isso o interesse contratual positivo.
Nada impede, por isso, o comprador de boa fé de exigir indemnização ao vendedor também com este fundamento, o qual é cumulável com os fundamentos anteriormente referidos. O art. 900º/1 admite efetivamente um concurso de pretensões neste âmbito, ao referir que “a respetiva indemnização acresce à regulada nos artigos anteriores, exceto na parte em que o prejuízo seja comum”. Esta cumulação vem a ser excluída, no entanto, em relação à indemnização por lucros cessantes resultantes de dolo do vendedor, nos termos do art. 898º, admitindo-se aí apenas um concurso alternativo de pretensões, dado que o art. 900º/2 estabelece que “no caso previsto no artigo 898.º, o comprador escolherá entre a indemnização dos lucros cessantes pela celebração do contrato nulo e a dos lucros cessantes pela falta ou retardamento da convalidação”.
5) Garantia de restituição por benfeitorias
Em face do art. 1273º, tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito e, bem assim, a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela (nº 1). Quando, para evitar o deterioramento da coisa, não haja lugar ao levantamento de benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa (nº 2).
Adquirindo o comprador, na venda de bens alheios, a posse titulada do bem (art. 1259º), terá direito, assim, independentemente da sua boa ou má fé, a exigir do proprietário a restituição das benfeitorias, necessárias ou úteis, que tenha feito na coisa, podendo ter inclusivamente direito de retenção da coisa (art. 754º), salvo se estiver de má fé (art. 756º/b)).
O direito do comprador ao reembolso das benfeitorias ocorre no âmbito das relações proprietário-possuidor, às quais o vendedor seria, em princípio, estranho. No entanto, o art. 901º atribui ao comprador de boa fé a
possibilidade de exigir, não apenas ao proprietário, mas também ao vendedor, o seu direito ao reemvolso das benfeitorias, funcionando como garante solidário do pagamento das benfeitorias que devam ser levantadas. O vendedor tem assim que satisfazer ao comprador, quando lhe for exigido, o reembolso das benfeitorias que ele fez na coisa, podendo posteriormente exercer contra o proprietário o direito de regresso em relação a tudo o que houver pago, dado que é o proprietário que adquire o benefício correspondente às benfeitorias.
~ Casos especiais
1) Venda de bens parcialmente alheios
No caso de os bens serem parcialmente alheios, admite o art. 902º a possibilidade de o contrato valer na parte restante por aplicação do art. 292º, determinando que nesse caso aplicar-se-ão as disposições antecedentes quanto à parte nula e reduzir-se-á proporcionalmente o preço estipulado.
A venda de bens parcialmente alheios pode ocorrer em duas situações:
(a) O vendedor aliena toda a coisa, quando apenas é dono de uma parte material da mesma, como nos exemplos de o vendedor incluir na venda do seu edifício o logradouro pertencente a um vizinho ou fazer abranger na venda de uma biblioteca alguns livros pertencentes a terceiro.
Neste caso, a situação que ocorre é a de apenas se ter verificado parte do efeito translativo que se encontrava estipulado no contrato, o que constitui uma hipótese de invalidade parcial, havendo então que aplicar o regime do art. 292º, que determina que o negócio só será totalmente nulo se se puder concluir que ele não teria sido celebrado sem a parte viciada. A concluir-se nesse sentido, aplica-se totalmente o regime da venda de bens alheios.
Caso, porém, se admita a redução do negócio, haverá que proceder a uma limitação da aplicação desse regime à parte viciada, mantendo-se, porém, vigente o negócio quanto à parte válida, com uma redução do preço respetivo, redução essa que se opera através de uma diminuição da quantia devida na exata medida em que não se verificou o efeito translativo.
(b) O vendedor aliena toda a coisa, quando é dono apenas de uma quota abstrata da mesma, como sucede na compropriedade. Nesta situação não é aplicável o art. 902º, uma vez que o art. 1408º/2 considera neste caso integralmente aplicável o regime da venda de coisa alheia.
2) Venda de coisa indivisa por apenas um dos seus titulares
Aplicação do regime da venda de bens alheios pode igualmente verificar-se em relação a coisas indivisas, como sucede quando um dos seus co-titulares vende uma parte especificada ou a totalidade da coisa, sem consentimento dos restantes.
Uma vez que a lei exige a unanimidade dos co-titulares para os atos de disposição sobre a coisa indivisa (arts. 1408º/1 e 2091º), apenas permitindo a disposição isolada da própria quota (arts. 1408º/1 e 2124º e ss.), é manifesto que haverá também falta de legitimidade, para efeitos do art. 892º, sempre que um ato de disposição sobre a totalidade ou parte da coisa indivisa seja praticado sem o consentimento dos restantes titulares.
Assim, no âmbito da compropriedade, a lei prevê expressamente que se o comproprietário vier a alienar ou onerar parte especificada da coisa comum, sem consentimento dos outros consortes, tal será considerado como alienação ou oneração de coisa alheia (art. 1408º/2). Esta disposição aplica-se, por maioria de razão, aos casos em que o comproprietário resolva alienar toda a coisa comum.
Por este motivo, Xxxxxxx Xxxxxx não concorda com a tese defendida por Xxx Xxxxx e Ribeiro de Xxxxx, que admitem para estes casos uma conversão e redução simultânea do negócio, convertendo-se a venda da coisa comum na venda da quota ideal e reduzindo-se o contrato à venda dessa quota parte. Efetivamente, a manutenção do contrato com estas modificações vai implicar uma alteração substancial da posição do adquirente, que o pretendia ser de um bem integral e é transformado em mero adquirente de uma quota indivisa.
O Prof. defende por isso a aplicação integral do regime da venda de bens alheios, o que implicará a nulidade integral do negócio (art. 894º), salvo se o vendedor vier a adquirir as quotas dos restantes consortes (art. 895º).
A aplicação do regime da venda de bens alheios verifica-se apenas em relação às partes, sendo também em relação aos outros consortes considerado o negócio como ineficaz, a menos que dêem o seu consentimento, pelo que estas não carecem de solicitar a declaração de invalidade do negócio, podendo comportar-se como se não tivesse sido celebrado.
~ Restrições convencionais ao regime da venda de bens alheios:
O art. 903º vem estabelecer a possibilidade de as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, estabelecerem um regime diferente de garantia contra a falta de legitimidade do vendedor, regime esse que pode passar pelo aumento ou pela diminuição dos termos legais dessa garantia, instituído nos arts. 894º, 897º/1, 899º, 900º/1 e 901º.
Excetua-se, porém, a situação de o contraente a quem a convenção aproveitaria houver atuado com dolo e o outro estipulante de boa fé, uma vez que nesse caso não se estará perante um efetivo exercício da autonomia privada. A lei, aliás, não admite a derrogação do art. 898º que determina precisamente o conteúdo da indemnização exigível em caso de dolo do vendedor. Xxxxxx, no entanto, limites à estipulação das partes já que, se a responsabilidade do vendedor por facto próprio for totalmente excluída, tal constituirá uma cláusula de exclusão da responsabilidade, proibida pelo art. 809º.
Uma das formas de derrogar a aplicação do regime da venda de bens alheios consiste na cláusula em que o vendedor declara que não garante a sua legitimidade ou não responde pela evicção, referindo o art. 903º/2 que essa declaração contratual “envolve derrogação de todas as disposições legais a que o número anterior se refere, com excepção do preceituado no artigo 894º”. Consequentemente, essa cláusula apenas se traduz numa exclusão da responsabilidade pelos danos, mas não exonera o vendedor da obrigação de restituir integralmente o preço recebido, a compensar com um eventual enriquecimento do comprador.
Essa derrogação apenas pode ocorrer na hipótese de convenção expressa, que torne essa venda “a risco e perigo do comprador”, como na situação da venda de bens em que se assuma expressamente o caráter incerto da sua titularidade, em que o comprador se mantém vinculado ao pagamento do preço (art. 881º).
❖ Venda de Coisas Defeituosas – arts. 913º e ss.
O regime da venda de coisas defeituosas é tratado pelo CC com base numa diferenciação dogmática:
a) Se a venda é realizada, sendo a propriedade da coisa logo transferida ao comprador, e esta já é defeituosa ao tempo da celebração do contrato, então estaremos presente a uma situação de erro do comprador ao adquirir uma coisa com defeitos, sendo o contrato anulável por erro nos termos gerais (arts. 913º e 915º).
b) Se o defeito na coisa ocorre após a celebração do contrato e esta é entregue nessas condições, estaremos perante uma situação de cumprimento defeituoso, se o defeito é imputável ao vendedor
(art. 918º) ou de risco, em princípio a cargo do comprador, na hipótese contrária (art. 796º/1). É também considerada como incumprimento da obrigação de entrega as situações de entrega de coisa defeituosa, nos casos em que a venda respeita a coisa futura ou coisa indeterminada de certo género (art. 918º). Efetivamente, uma vez que a coisa ainda não existe ou ainda não está determinada no momento da celebração do contrato de compra e venda, não pode haver erro do comprador, ocorrendo antes uma situação de cumprimento defeituoso.
Na doutrina, há quem se pronuncie contra esta dualidade de regimes e propugnam igualmente o enquadramento da venda de coisa específica no regime do incumprimento, através da defesa da tese de que o erro referido nos arts. 913º e 905º e ss. diz respeito não à fase da formação, mas da execução do contrato (nomeadamente, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxx).
Outros autores, porém, mantêm o entendimento de que o regime da venda específica de coisas defeituosas não se reconduz ao cumprimento defeituoso, exigindo antes um erro em sentido técnico (nomeadamente, Xxxxx xx Xxxx/Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxxxx xx Xxxxx), sendo que, embora o Prof. ML não considere esta a melhor posição de jure condendo, será a que se encontra consagrada de jure condito.
A tendência dos diversos ordenamentos jurídicos é, no entanto, a de proceder a uma unificação dos dois regimes, considerando que em ambos os casos se deve considerar existir incumprimento da obrigação de entrega, uma vez que, independentemente de a coisa ser específica ou genérica, o vendedor tem sempre a obrigação de a entregar em conformidade com o contrato, considerando-se existir incumprimento, sempre que se verificar alguma falta de conformidade.
~ Pressupostos de aplicação do regime da venda específica de coisas defeituosas:
Em relação à venda de coisas específicas, temos incluídos no art. 913º/1 quatro tipo de situações:
1) Vícios que desvalorizem a coisa;
2) Vícios que impeçam a realização do fim a que é destinada;
3) Falta de qualidades asseguradas pelo vendedor;
4) Falta de qualidades necessárias à realização daquele fim – o nº 2 deste artigo esclarece que “quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.
O art. 913º já não abrange, no entanto, situações de deficiência quantitativa da coisa, que correspondem ou a casos de incumprimento parcial na venda genérica (art. 918º) ou desencadearão a aplicação dos arts. 887º e ss.
A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenda em dois pressupostos:
(1) Ocorrência de um defeito
A lei faz incluir no âmbito da venda de coisas defeituosas, quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias. “Vícios”, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente, enquanto a “falta de qualidades”, embora não implicando a valoração negativa da coisa, coloca-a em desconformidade com o contrato.
(2) Existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual
Para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas, torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações:
(i) Desvalorização da coisa – esta situação refere-se aos vícios. Enquadra-se numa conceção objetiva de defeito, resultando do facto de o vício implicar que a coisa valha menos do que sucederia se não o tivesse. No entanto, é de exigir que a desvalorização seja significativa, recusando-se a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas quando esta seja insignificante.
(ii) Não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor – esta situação refere-se à falta de qualidades. Ocorre sempre que o vendedor tenha certificado ao comprador a existência de certas qualidades na coisa e esta certificação não corresponda à realidade, estando-se assim também perante uma conceção objetiva de defeito. A certificação pelo vendedor de que a coisa tem certas qualidades tanto pode ser efetuada expressa como tacitamente nos termos gerais (art. 217º), podendo essa certificação inclusivamente resultar da exibição de amostra ou modelo (art. 919º).
(iii) Sua inaptidão para o fim a que é destinada – esta situação abrange as duas situações. Corresponde a uma conceção subjetiva de defeito, estando em causa as utilidades específicas que o comprador pretende que lhe sejam proporcionadas pela coisa. Esta indicação do fim, contudo, tem de ser aceite pelo vendedor, ainda que tal possa ocorrer tacitamente. Se, no entanto, não houver aceitação de uma destinação específica da coisa pelo vendedor, entende-se que a coisa se destina à função normal das coisas da mesma natureza (art. 913º/2).
~ Efeitos da venda específica de coisas defeituosas:
O art. 913º in fine estabelece, em caso de venda de coisas defeituosas, a aplicação do regime da venda de bens onerados, em tudo o que não for modificado pelas disposições do próprio regime da venda de coisas defeituosas.
⮚ Anulação do contrato por erro ou dolo
O art. 913º remete para o regime da venda de bens onerados, sendo assim também aplicável o dispostonos arts. 905º e ss., com exceção do que for modificado pelas próprias disposições do regime de venda de coisas defeituosas.
Assim, o comprador que tiver adquirido a coisa com defeito pode solicitar a anulação o contrato, por erro ou dolo, desde que se verifiquem no caso concreto os requisitos legais da anulabilidade. Assim, em caso de erro, exige-se a essencialidade e a congnoscibilidade dessa essencialidade do erro para o declaratário (arts. 251º e 247º). Em caso de dolo, basta que o dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (art. 254º/1), salvo se provier de terceiro, caso em que se exige igualmente que o destinatário conhecesse ou devesse conhecer a situação (art. 254º/2).
⮚ Reparação ou substituição da coisa
No âmbito da venda de coisas defeituosas, o vendedor é obrigado a reparar os defeitos da coisa ou a substitui- la, no caso de ser necessário e se esta tiver natureza fungível (art. 914º). O fundamento desta obrigação é a garantia edilícia prestada pelo vendedor, no âmbito da qual resulta que ele garante tacitamente a inexistência de defeitos no bem vendido, tendo assim que o reparar ou substituir, salvo se o vendedor tiver conhecimento do vício ou da falta de qualidades da coisa.
Do art. 914º resulta uma primazia da solução da reparação da coisa pela solução da substituição, apenas sendo esta última aplicável se se tornar efetivamente necessário e se a coisa tiver natureza fungível.
Do art. 914º in fine resulta que esta obrigação não existe se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece. O regime da garantia edilícia não assenta, assim, numa
responsabilidade objetiva do vendedor, mas apenas numa presunção de culpa relativamente à venda da coisa com defeitos, que pode ser elidida mediante a demonstração de que o vendedor se encontrava numa situação de desconhecimento não culposo dos defeitos da coisa.
O Prof. ML critica esta solução de jure condendo, uma vez que atualmente, em face da produção de bens em série, é muito fácil demonstrar a ocorrência dessa situação.
De qualquer modo, o desconhecimento não culposo do vendedor, se exclui a obrigação de reparação ou substituição, não impede o comprador de solicitar a anulação do contrato por erro ou dolo, verificados os respetivos pressupostos.
⮚ Indemnização
Em virtude da remissão do art. 913º in fine é também aplicável à venda de coisas defeituosas o regime dos arts. 908º e ss., que determina a possibilidade de atribuição ao comprador de uma indemnização pelos danos eventualmente sofridos, havendo apenas em sede de venda de coisas defeituosas uma especialidade, constante do art. 915º.
Há, assim, também nesta sede três fundamentos de indemnização, no âmbito dos quais se estabelece um concurso de pretensões:
a) Indemnização em caso de dolo (arts. 913º e 908º) – sempre que o vendedor tiver atuado com dolo – no sentido referido no art. 253º e abrangendo portanto casos de negligência consciente – deve indemnizar o comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada. Esta indemnização está, por isso, limitada ao interesse contratual negativo, o que constitui uma solução típica da culpa in contrahendo.
b) Indemnização em caso de simples erro (arts. 913º e 909º) – esta indemnização abrange os danos emergentes (incluindo as despesas voluptuárias) mas não os lucros cessantes, resultantes da aquisição da coisa com defeito. No entanto, o art. 915º vem restringir as condições em que pode ser exigida essa indemnização, ao referir que ela também não é devida nos casos em que o vendedor ignorava sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece.
c) Indemnização por incumprimento da obrigação de fazer convalescer o contrato (arts. 913º e 907º)
– sendo a obrigação de reparação ou substituição uma obrigação como outra qualquer (art. 397º), naturalmente que o vendedor estará sujeito, nos termos gerais, à responsabilidade obrigacional, em caso de incumprimento (arts. 798º e ss.), impossibilidade culposa (arts. 801º e ss.) ou mora no cumprimento (arts. 804º e ss.). O art. 910º/1 (aplicável por força do 913º) admite um concurso de pretensões neste âmbito. Esta cumulação vem a ser excluída, no entanto, em relação à indemnização por lucros cessantes resultantes de dolo do vendedor, nos termos do art. 908º, admitindo-se aí apenas um concurso alternativo de pretensões (art. 910º/2).
⮚ Redução do preço
Por força do art. 913º é também aplicável em sede de venda de coisas defeituosas a ação de redução do preço (actio quanti minoris), estabelecida no art. 911º/1. Esta ação constitui uma alternativa à anulação do contrato em consequência do erro ou do dolo, estabelecida no art. 905º, alternativa essa que é imposta ao comprador sempre que se possa comprovar que os vícios ou falta de qualidades de que a coisa padece não influiriam na sua decisão de adquirir o bem, mas apenas no preço que estaria disposto a pagar por ele.
⮚ Forma e prazos de exercício do direito
O art. 916º/1 estabelece que o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, exceto se este tiver usado de dolo. Há, assim, uma imposição ao comprador de um ónus de denúncia dos defeitos da coisa ao vendedor, com o qual se visa permitir-lhe adquirir conhecimento dos defeitos da coisa vendida, que poderia ignorar. Esse ónus é apenas excluído em caso de dolo do vendedor. Caberá ao comprador a prova de ter cumprido o ónus da denúncia ou de que se verificou o dolo por parte do vendedor.
Uma vez que a lei não sujeita a denúncia a forma especial, aplica-se o regime geral da liberdade de forma (art. 219º), podendo inclusivamente a denúncia ser realizada tacitamente (art. 217º). A citação para a ação (art. 225º CPC), se efetuada dentro do prazo, vale como denúncia dos defeitos, podendo também ser empregue para esse efeito a notificação judicial avulsa (art. 256º CPC).
Os prazos de denúncia dos defeitos variam consoante se trate de bens móveis (30 dias depois de conhecido o defeito e dentro de 6 meses após a entrega da coisa – art. 916º/2) ou de bens imóveis (1 ano depois de conhecido o defeito e dentro de 5 anos após a entrega da coisa – art. 916º/3).
O prazo a contar da descoberta dos defeitos vale independentemente para cada defeito e, portanto, pode renovar-se sempre que forem descobertos novos defeitos. Já o prazo a contar da entrega vale para a generalidade dos defeitos da coisa. Para que se inicie esse prazo é necessário, contudo, que a entrega da coisa seja material (art. 922º).
Em caso de não cumprimento destes prazos, caducam todos os direitos conferidos ao comprador em caso de simples erro.
A lei acrescenta ainda no art. 917º que a ação de anulação com base em simples erro, além de pressupor a denúncia dentro desses dois prazos, deve ainda ser instaurada no prazo de 6 meses, salvo se o contrato ainda não estiver integralmente cumprido, caso em que poderá ser instaurada a todo o tempo (arts. 917º e 287º/2). O Prof. ML entende que, ainda que a letra da lei seja restrita à ação de anulação, este prazo deverá ser aplicado também em relação a todas as ações conferidas ao comprador com base em simples erro, uma vez que não se justifica a grande divergência de regime de se aplicar a estas o prazo geral de prescrição.
Em caso de dolo do vendedor, não há qualquer ónus de o vendedor efetuar a denúncia dos defeitos, pelo que a ação de anulação pode ser instaurada dentro do prazo de 1 ano a contar da cessação do vício (art. 287º/1). Relativamente à indemnização em caso de dolo, parece valer o regime geral de prescrição da responsabilidade pré-contratual (arts. 227º e 498º/2).
⮚ Cláusulas de exclusão da garantia
À semelhança do que sucede com a venda de bens onerados, também na venda de coisas defeituosas podem ser admitidas estipulações contrárias à garantia, a não ser que o vendedor tenha procedido com dolo e as cláusulas contrárias àquelas normas visem beneficiá-lo (art. 912º por via do 913º).
~ O regime dos defeitos supervenientes e dos defeitos na venda de coisa futura ou na venda de coisa genérica:
Do art. 918º resulta que sempre que os defeitos da coisa não correspondam a vícios da coisa específica comprada, já existentes no momento da venda, não é aplicável o regime dos arts. 913º e ss., baseado primordialmente na consideração da situação como erro ou dolo. Antes se manda aplicar o regime do não cumprimento das obrigações.
Por força desta remissão, haverá que distinguir se os vícios na coisa entregue:
1) São imputáveis ao vendedor – presume-se esta situação (art. 799º), respondendo este pelos danos causados ao comprador (art. 798º e ss.), podendo ele consequentemente exigir a indemnização correspondente aos prejuízos que lhe causou o cumprimento defeituoso ou resolver o contrato sem prejuízo de reclamar a correspondente indemnização pelos prejuízos resultantes da sua celebração (art. 801º).
2) Não são imputáveis ao vendedor – demonstrando-se que os vícios não são imputáveis ao vendedor, temos uma questão de risco pela perda ou deterioração da coisa, o qual corre por conta do comprador nos casos de defeito superveniente e por conta do vendedor no caso de venda de coisa futura ou de coisa genérica (arts. 408º/2, 540º e 796º/1).
~ Venda sob amostra:
O art. 919º CC refere a situação da venda sob amostra – sendo a venda feita sob amostra, entende-se que o vendedor assegura a existência, na coisa vendida, de qualidades iguais às da amostra, salvo se da convenção ou dos usos resultar que esta serve somente para indicar de modo aproximado as qualidades do objeto.
Mesmo que não exista qualquer estipulação das partes sobre as qualidades do objeto vendido, a lei considera estipulada a existência de qualidades iguais às da amostra no bem vendido, o que determinará a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas (art. 913º e ss.), no caso de essas qualidades afinal não se verificarem.
Todavia, no caso de resultar de convenção ou dos usos que a amostra não tem efeito vinculativo, servindo apenas para indicar de modo aproximado as qualidades do objeto, o vendedor assegurará ao comprador apenas qualidades próximas da amostra, e não as exatas qualidades desta.
❖ Venda de Bens Onerados – arts. 905º e ss.
A venda de bens onerados encontra-se prevista no art. 905º, sendo que o que caracteriza esta venda é a existência de ónus ou limitações no direito transmitido. Esses ónus ou limitações constituem vícios do direito, afetando assim a situação jurídica e não as qualidades fáticas da coisa. Mas para poderem determinar a aplicação do regime da venda de bens onerados, esses ónus ou limitações têm que exceder os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria. Ou seja, apenas os ónus ou limitações que normalmente não se verificam aquando da transmissão deste tipo de direitos determinam a aplicação do regime.
Aqui compreendem-se, por exemplo:
i. Existência de direitos reais de gozo – usufruto, uso e habitação e servidões prediais;
ii. Existência de garantia sobre a coisa vendida – consignação de rendimentos, penhor, hipoteca, privilégios ou retenção;
iii. O facto de ela ter sido locada a outrem;
iv. O facto de ela ter sido objeto de apreensão judicial – penhora, arresto, arrolamento.
v. (apesar de não expressamente prevista) A suscetibilidade de o bem ser objeto de expropriação por utilidade pública – por, por exemplo, já tiver sido objeto de declaração de utilidade pública ou estar prevista a sua afetação a esse fim em plano diretor.
vi. (apesar de não expressamente prevista) As restrições impostas ao gozo dos bens por vínculos de interesse histórico, artístico ou paisagístico, por razões ambientais e as servidões militares;
vii. (apesar de não expressamente prevista) O facto de a coisa vendida infringir direitos intelectuais
de outrem, como os direitos de autor ou a propriedade industrial.
viii. (apesar de não expressamente prevista) A existência de irregularidades jurídicas no bem vendido, que impeçam o gozo ou a disposição deste pelo comprador, desde que a situação não seja por lei sujeita a considerações especiais.
Pelo contrário, não poderão determinar a aplicação do regime da venda de bens onerados, por constituirem limites normais aos direitos da mesma categoria, as restrições derivadas das relações de vizinhança (arts. 1346º e ss.), as servidões legais ou as restrições à edificabilidade impostas por planos diretores.
⮚ Efeitos:
1) Anulabilidade do contrato por erro ou dolo
A lei estabelece para a venda de bens onerados um desvalor menos grave do que na venda de bens alheios, não considerando o contrato nulo, mas apenas anulável.
O contrato é anulável por erro ou dolo, desde que se verifiquem no caso concreto os requisitos legais da anulabilidade:
a) Em caso de erro, exige-se a essencialidade e a cognoscibilidade dessa essencialidade do erro para o declaratário (arts. 251º e 247º).
b) Em caso de dolo, basta que o dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (art. 254º/1), salvo se provier de terceiro, caso em que se exige igualmente que o destinatário conhecesse ou devesse conhecer a situação (art. 254º/2).
2) Eventual convalescença do contrato
No entanto, esta anulabilidade é objeto de uma regulação especial, uma vez que o art. 906º/1 admite que esta fique sanada se vierem a desaparecer por qualquer modo os ónus ou limitações a que o direito estava sujeito.
Apesar de a lei fazer assentar o fundamento de anulação do contrato na viciação da vontade do comprador por erro ou dolo (art. 905º), também entende que a posterior extinção dos ónus ou limitações retira ao comprador o interesse em solicitar a anulação do negócio, pelo que estabelece automaticamente a sua convalescença, em caso de ocorrer a extinção dos vícios do direito.
Esta solução é, no entanto, algo artificial, porque a convalescença do contrato depende de a posição do comprador não ter sido por alguma forma afetada em consequência dos vícios do direito. Efetivamente, a lei dispõe que a anulabilidade persiste se a existência dos ónus ou limitações já houver causado prejuízo ao comprador, ou se este já tiver pedido em juízo a anulação da compra e venda (art. 906º/2).
3) Obrigação de fazer convalescer o contrato e de cancelamento dos registos
A lei estabelece ainda para o vendedor a obrigação de sanar a anulabilidade do contrato, mediante a expurgação dos ónus ou limitações existentes (art. 907º/1). Pode assim o comprador requerer em lugar da anulação do contrato a expurgação dos ónus ou limitações.
A obrigação de efetuar a expurgação depende da existência de erro do comprador relativamente à existência de ónus ou limitações, já que, se o comprador tivesse conhecimento da existência desses ónus ou limitações, tal significaria que o bem foi vendido nessas condições, tendo o seu preço sido fixado tomando em consideração a desvalorização que os ónus ou limitações implicam.
Constituindo esta uma obrigação do vendedor, cabe ao comprador exigir-lhe o seu cumprimento, não lhe sendo permitido substituir-se ao vendedor nesse ato para efeitos de exigir-lhe o posterior reembolso do que tivesse despendido. Nada impede, porém, o comprador de proceder à expurgação à sua própria custa.
4) Indemnização
Existem três fundamentos de indemnização, no âmbito dos quais se estabelece um concurso de pretensões:
a) Indemnização em caso de dolo – encontra-se no art. 908º, que estabelece que o vendedor, anulado o contrato, deve indemnizar o comprador do prejuízo que este não sofreria se a compra e venda não tivesse sido celebrada. A expressão “dolo” encontra-se aqui utilizada no mesmo sentido do que o referido no art. 253º, a também designada “má fé”, não pressupondo por isso apenas o ilícito intencional, mas também o praticado com negligência consciente.
Está aqui em causa, então, a dissimulação pelo vendedor dos ónus ou limitações existentes na coisa através do emprego de sugestões ou artifícios com o fim de enganar ou manter em erro o comprador. Sendo anulado o contrato com esse fundamento, este adquire o direito a ser indemnizado pelos danos causados, sendo a indemnização limitada ao interesse contratual negativo.
Esta indemnização permite abranger tanto danos emergentes como lucros cessantes.
b) Indemnização em caso de simples erro – existindo simples erro do comprador, o art. 909º não deixa de estabelecer, em caso de anulação do contrato, a responsabilidade objetiva do vendedor pelos danos causados ao comprador, a qual não atribui uma reparação integral.
O fundamento desta responsabilização é o pressuposto de o vendedor, no momento em que procede à venda do bem, dever garantir, independentemente de culpa sua, que o bem vendido se encontra livre de ónus ou encargos, respondendo pelos danos causados se tal não se verificar. Assim, o art. 909º estabelece que, no caso de anulação fundada em erro, “o vendedor também é obrigado a indemnizar o comprador, ainda que não tenha havido culpa da sua parte, mas a indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato”.
Daqui resulta que o vendedor responde sempre objetivamente pelos danos emergentes. Contudo, admite-se neste caso que os danos emergentes abranjam a realização de despesas voluptuárias.
c) Indemnização por incumprimento da obrigação de fazer convalescer o contrato – sendo esta obrigação uma obrigação como outra qualquer (art. 397º), naturalmente que o vendedor estará sujeito, nos termos gerais, à responsabilidade obrigacional, em caso de incumprimento (arts. 798º e ss.), impossibilidade culposa (arts. 801º e ss.) ou mora no cumprimento (arts. 804º e ss.).
Nada impede por isso o comprador de exigir indemnização ao vendedor também com este fundamento, o qual é cumulável com os fundamentos anteriormente referidos (art. 910º/1). Esta cumulação vem a ser excluída, no entanto, em relação à indemnização por lucros cessantes resultantes de dolo do vendedor, nos termos do art. 908º, admitindo-se aí apenas um concurso alternativo de pretensões (art. 900º/2).
5) Redução do preço
No art. 911º/1, a redução do preço aparece como uma alternativa à anulação do contrato em consequência de erro ou dolo (art. 905º), alternativa que é imposta ao comprador sempre que se possa comprovar que os ónus ou limitações não influiriam na sua decisão de adquirir o bem, mas apenas no preço que ele pagaria.
Cabe assim ao vendedor, confrontado com uma ação de anulação e pretendendo a subsistência do contrato, o ónus de prova de que o comprador, sem erro ou sem dolo, teria igualmente adquirido os bens por preço inferior.
O art. 911º/2 estabelece ainda que “são aplicáveis à redução do preço os preceitos anteriores, com as necessárias adaptações”. Uma vez que a redução do preço aparece em alternativa à anulação do contrato, exclui esta (art. 905º), bem como a obrigação de fazer convalescer o contrato (art. 907º) e a indemnização pelo não cumprimento dessa obrigação (art. 910º).
A redução será feita, à partida, por referência ao disposto no art. 884º e, na falta de acordo, com recurso à via judicial.
⮚ Restrições convencionais a este regime
O art. 912º vem estabelecer a possibilidade de as partes, ao abrigo da sua autonomia privada, estabelecerem um regime diferente de garantia contra a existência de ónus ou encargos no direito transmitido, regime esse que pode passar pelo aumento ou pela diminuição dos termos legais dessa garantia, instituídos no art. 907º/1 e 3, no art. 909º e no art. 910º/1. Excetua-se, porém, a situação de o contraente a quem a convenção aproveitaria houver atuado com dolo e de boa fé o outro estipulante, uma vez que nesse caso não se estará perante um efetivo exercício da autonomia privada.
VER O QUE DIZ XXXXXX XXXXXXXX E XXXXXXX CORDEIRO EM RELAÇÃO À VENDA DE QUOTAS QUE NÃO TÊM LIMITAÇÕES OU ÓNUS, MAS SIM O ATIVO DA SOCIEDADE (caso 10 d)).
★ CONTRATO DE LOCAÇÃO – arts. 1022º a 1113º CC
A definição de locação consta do art. 1022º, que dispõe que locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.
Desta definição resulta que o contrato de locação se caracteriza por uma específica prestação – a de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa corpórea – bem como pela estipulação de uma contrapartida pecuniária para essa obrigação. Para além disso, a locação caracteriza-se pelo seu caráter transitório, uma vez que apenas pode ser celebrada por período temporário.
É de referir que nem sempre a relação locatícia tem que resultar de um contrato:
» Na lei atual, admite-se a constituição da relação de arrendamento através de sentença judicial, que o art. 1793º prevê para a hipótese de divórcio (ou separação judicial de pessoas e bens – art. 1794º) e que o art. 4º/4 da Lei 135/99 de 28 de agosto estendeu à quebra da união de facto (hoje, art. 4º da Lei 7/2001, de 11 de março, na redação da Lei 23/2010 de 30 de agosto).
» Prevêem-se ainda hipóteses de arrendamento imposto por órgãos públicos.
» É também objeto de controvérsia na doutrina a possibilidade de constituição do direito locatário por usucapião, tendo ainda havido nos anos conturbados de 1974-1975 situações de ocupação de prédios, que a legislação posterior resolveu converter em contratos de arrendamento.
Nos termos do art. 1023º, é possível distinguir entre duas modalidades de locação:
a) Xxxxxxx – quando a locação recai sobre coisa móvel.
b) Arrendamento – quando a locação recai sobre coisa imóvel. Este, por sua vez, admite várias modalidades, consoante recaia sobre:
i. Prédios urbanos (arrendamento urbano) – o arrendamento urbano pode ser para fins habitacionais ou para fins não habitacionais.
ii. Prédios rústicos (arrendamento rústico) – o arrendamento rústico pode constituir arrendamento rural quando tiver fins agrícolas, florestais ou outras atividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária e à floresta (art. 2º/1 RAR), ou arrendamento rústico não rural,
quando tiver por objeto outros fins. O arrendamento de prédio rústicos presume-se arrendamento rural, quando do contrato e respetivas circunstâncias não resulte destino diferente (art. 2º/2 RAR). Caso o arrendamento de prédios rústicos seja realizado para outros fins, é sujeito ao regime do arrendamento urbano para fins não habitacionais, conjuntamente com o regime geral da locação (art. 1108º in fine). O arrendamento rural pode constituir arrendamento agrícola, arrendamento florestal ou arrendamento de campanha (art. 3º/1 RAR), sendo que quando as partes não expressem a sua vontade, o arrendamento considera-se agrícola (art. 3º/2 RAR).
◊ Elementos constitutivos do contrato de locação
Em face do art. 1022º, é possível considerar os seguintes elementos constitutivos:
(a) Obrigação de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa;
(b) Caráter temporário;
(c) Retribuição. Examinando cada um:
1- Obrigação de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa:
Esta obrigação constitui a prestação característica do contrato de locação, sendo referida no art. 1031º/b) como uma obrigação de conteúdo positivo.
Tem sido controvertida na doutrina a configuração da locação como instituindo uma efetiva obrigação de o locador assegurar ao locatário o gozo da coisa:
→ Alguns autores (nomeadamente, XXXXXXXX XXXXXXXX), propugnando a natureza real do direito do locatário, contestaram que o gozo da coisa conferido pelo contrato resultasse de uma obrigação do locador, entendendo existir antes um direito de gozo do locatário inerente à coisa e dotado de sequela, que por isso se poderia considerar como real.
→ MENEZES CORDEIRO defende que, sendo a locação estruturalmente real, mantém-se, porém, como um direito obrigacional, uma vez que historicamente deriva de uma situação jurídica que no Direito
Xxxxxx era defendida por actiones in personam.
→ Outros (nomeadamente, XXXXX XXXXXXX), defendendo que não faria sentido considerar o locador vinculado positivamente a assegurar o gozo da coisa ao locatário, vieram sustentar que a sua obrigação teria antes conteúdo negativo, podendo ser considerada ou como uma prestação de pati (tolerar o gozo da coisa pelo locatário) ou non facere (não perturbar esse gozo).
→ MENEZES LEITÃO tende a aceitar a qualificação legal, entendendo assim que ao locador é atribuída no art. 1031º/b) uma obrigação de conteúdo positivo de assegurar o gozo da coisa ao locador,
diferentemente do que sucede no comodato em que, dada a natureza gratuita do contrato, é antes atribuída a essa obrigação um conteúdo negativo (art. 1133º/1). No entanto, o facto de ser uma obrigação de conteúdo positivo, não implica que o locador esteja continuadamente a assegurar o gozo da coisa ao locatário, uma vez que, tendo a coisa lhe sido entregue, e estando ele consequentemente na sua posse, torna-se desnecessário qualquer intervenção do locador para assegurar esse gozo, bastando normalmente a sua abstenção em praticar atos que o impeçam ou diminuam (art. 1037º/1), a não ser em casos excecionais, como na hipótese de haver necessidade de fazer reparações na coisa locada (art. 1036º).
2- Caráter temporário:
Outro dos elementos essenciais do contrato de locação é o caráter temporário do gozo proporcionado ao locatário. Esta situação resulta da definição do art. 1022º e encontra-se expressamente determinada no art. 1025º a proibição de a locação se celebrar por mais de 30 anos, sendo reduzida a esse limite, quando celebrada por tempo superior ou como contrato perpétuo.
→ Há, no entanto, um caso em que o arrendamento pode ser celebrado por duração superior, já que em relação ao arrendamento florestal o art. 9º/4 RAR fixa o prazo máximo de 70 anos.
O prazo de 30 anos previsto no art. 1025º corresponde apenas ao limite máximo do prazo inicial do contrato e não ao seu limite de duração, pelo que nos casos de arrendamentos sujeitos a renovação forçada, nos termos do art. 1054º, nada impedirá que o jogo das renovações leve a que o contrato de arrendamento tenha uma duração máxima superior a 30 anos (em sentido contrário, XXXXX XXXXXXX, que sustenta que a renovação forçada dos arrendamentos só é possível enquanto não for esgotado o prazo máximo do art. 1025º, que instituiria assim não apenas um prazo máximo inicial, mas também um limite de duração do arrendamento).
O NRAU veio ainda permitir, nos termos do art. 1099º e ss., que o arrendamento possa ser celebrado como contrato de duração indeterminada. Este tipo de contratos não coloca, porém, obstáculos à natureza temporária do arrendamento, dado que, além de o arrendamento se poder sempre extinguir por denúncia (arts. 1100º e ss. e 1110º), são limitadas as possibilidades de este se transmitir por morte (arts. 1106º e 1113º).
3- Retribuição:
A locação é um contrato essencialmente oneroso, surgindo como contrapartida das prestações do locador uma contraprestação do locatário de pagar a renda ou aluguer (art. 1038º/a)). A obrigação do locatário tem por objeto uma prestação pecuniária de quantidade, caracterizada pelo seu caráter periódico.
Quer no arrendamento urbano (art. 1075º/1), quer no arrendamento rural (art. 11º/1 RAR), a lei refere que a renda constitui uma prestação pecuniária, o que parece afastar a possibilidade de as partes não a fixarem em dinheiro, ainda que se admita a sua fixação em moeda específica (arts. 552º e ss.) ou em moeda estrangeira (art. 558º).
◊ Características do contrato de locação
❖ Contrato nominado e típico
É nominado, uma vez que a lei o reconhece como categoria jurídica, e típico, porque estabelece para ele um regime, quer no âmbito do CC (arts. 1022º e ss.), quer em diversos diplomas especiais relativos às diversas modalidades de arrendamento, como o arrendamento urbano (NRAU) e o arrendamento rural (RAR).
❖ Contrato consensual
A locação deve ser entendida como um contrato consensual (por oposição a real quoad constitutionem), uma vez que a noção legal de locação do art. 1022º não inclui a entrega como elemento necessário à constituição do contrato e o art. 1031º/a) faz referência expressa à obrigação do locador de entregar ao locatário a coisa locada. Isto demonstra que a locação se constitui antes da entrega da coisa locada, ao contrário do que se exige nos contratos reais quoad constitutionem.
❖ Contrato não formal ou formal, consoante os casos
A locação pode ser um contrato formal ou não formal, consoante se trate de arrendamento ou aluguer. O arrendamento é hoje um contrato necessariamente formal: exige-se a forma escrita para os contratos de arrendamento urbano (art. 1069º) e para os contratos de arrendamento rural (art. 6º/1 RAR).
Já o aluguer é, pelo contrário, sujeito à regra geral de consensualidade (art. 219º). Em certos casos, contudo, exige-se forma escrita, como sucede com o aluguer de veículos sem condutor (art. 17º DL 354/86 de 23 de outubro).
❖ Contrato obrigacional (e não real quoad effectum)
Uma das grandes controvérsias no âmbito do contrato de locação diz respeito à sua qualificação ou não como contrato real quoad effectum. Esta discussão prende-se com a controvérsia em torno da natureza jurídica do direito do locatário:
⮚ Para a posição clássica (XXXXXX XXXXXX, XXXXX XXXX/XXXXXXX XXXXXX, XXXXXX XXXXXXXX, XXXXXXX XXXXXX), o locatário é meramente titular de um direito pessoal de xxxx, não produzindo consequentemente o contrato de locação quaisquer efeitos reais. A favor desta tese personalista, tem-se afirmado que:
1) A locação não aparece colocada no CC no livro III, relativo aos direitos reais, como se imporia se o legislador lhe quisesse atribuir essa natureza.
2) O art. 1031º/b) expressamente qualifica o gozo da coisa como correspondendo a uma obrigação por parte do locador, o que corresponde a um direito de crédito do locatário.
3) Noutras disposições o legislador vem expressamente qualificar o direito do locatário como correspondendo a um direito pessoal de gozo (art. 1682º-A/1 a) e nº 2).
4) O facto de a lei conceder as ações possessórias ao locatário nada demonstra, dado que essas ações têm sido concedidas noutras situações em que nunca se considerou existir um direito real, como em relação ao comodatário (art. 1133º/2) e ao depositário (art. 1188º/2) (MENEZES LEITÃO).
5) O art. 1057º nada demonstra, uma vez que essa norma não constitui uma hipótese de sequela, mas antes a de uma transmissão imposta da obrigação do locador (sub-rogação legal), dado que tem como pressuposto a aquisição do direito com base no qual foi celebrado o contrato, ou seja, uma aquisição derivada, não tendo que se demonstrar a válida constituição desse direito através de uma aquisição originária, ao contrário do que sucede nos direitos reais (MENEZES LEITÃO).
⮚ Outra posição (OLIVEIRA ASCENSÃO), sustentou a natureza real do direito do locatário. A favor desta
tese realista, tem-se afirmado que:
1) O art. 1037º/2 atribui ao locatário o direito a utilizar, mesmo contra o locador, as ações atribuídas ao possuidor nos arts. 1276º e ss. Ora, como a toda a ação corresponde um direito, o direito subjacente a estas só poderia ser a posse e, sendo a posse restrita pelo art. 1251º aos direitos reais, parece que por essa via teria que se qualificar a locação como um direito real.
2) O art. 1057º, ao estabelecer que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo, vem determinar que a locação não é prejudicada no caso de o bem locado vier a ser adquirido por terceiro. Essa situação corresponderia à sequela, típica dos direitos reais.
Assim, e de acordo com a tese personalista, a locação é estruturada pela lei atual como um direito pessoal de gozo, contraposto a uma obrigação positiva do locador (art. 1031º/b)). Dessa solução resultam várias consequências de regime:
a) O locador pode constituir validamente o contrato, mesmo não sendo proprietário da coisa locada, apenas respondendo por incumprimento se não conseguir proporcionar o gozo da mesma ao locatário (art. 1034º).
b) O direito do locatário não é tutelável através da ação de reivindicação (art. 1311º), como sucede com os direitos reais, mas antes através da ação de cumprimento (art. 817º).
❖ Contrato oneroso
A locação constitui um contrato oneroso, uma vez que implica sacrifícios económicos para ambas as partes: enquanto o locador abdica do gozo da coisa, o locatário abdica do correspondente preço locativo, assumindo assim ambas as partes sacrifícios económicos equivalentes.
❖ Contrato sinalagmático
A locação consiste num contrato sinalagmático, uma vez que a obrigação do locador de proporcionar ao locatário o gozo da coisa (art. 1031º/b)) tem como correspetivo a obrigação de pagar a renda ou aluguer (art. 1038º/a)), ficando assim ambos os contraentes sujeitos a obrigações recíprocas.
❖ Contrato comutativo
A locação constitui um contrato comutativo, uma vez que as atribuições patrimoniais de ambas as partes –
concessão de gozo e pagamento do preço locativo – se apresentam como certas e não como aleatórias.
❖ Contrato de execução duradoura
A locação constitui um contrato de execução duradoura, uma vez que as prestações de qualquer das partes aparecem relacionadas com um certo período de tempo que delimita o seu conteúdo e extensão. A prestação do locador de proporcionar o gozo da coisa ao locatário constitui uma prestação contínua, uma vez que não sofre qualquer interrupção, mas antes se exerce por forma continuada.
Já a prestação do locatário de pagar a renda ou aluguer constitui uma prestação de natureza periódica, uma vez que não é exercida ininterruptamente, mas antes se renova em sucessivos períodos de tempo.
◊ Objeto da locação
Nos termos do art. 1023º, podem ser objeto da locação:
- Coisas corpóreas: tanto as coisas imóveis como as móveis, denominando-se locação de arrendamento no primeiro caso e de aluguer no segundo.
- Coisas incorpóreas: por exemplo, o estabelecimento comercial (art. 1109º).
A locação pode abranger tanto a totalidade como parte de uma coisa. Assim, nos prédios urbanos podem ser arrendados separadamente partes do prédio, ou até apenas muros e terraços (para publicidade) ou janelas (para assistir a um cortejo). Nos prédios rústicos podem ser arrendados separadamente a várias pessoas as diversas culturas existentes no prédio.
◊ Forma do contrato de locação
Conforme se referiu, a locação pode ser um contrato formal ou não formal, consoante se trate de arrendamento ou aluguer.
É exigida a forma escrita para o contrato de arrendamento urbano – art. 1069º. Para além disso, o referido documento obedece a determinadas formalidades, como prévia obtenção de licença de utilização do imóvel, quando exigível (art. 1070º/1) e a inclusão no contrato de toda uma série de elementos, constantes de diploma especial (art. 1070º/2).
Quanto ao aluguer, embora normalmente sujeito à regra da consensualidade (art. 219º), em certos casos a lei vem exigir que seja celebrado por escrito, como sucede com o aluguer de veículos sem condutor (art. 17º DL 354/86 23 de outubro).
◊ Formação do contrato de locação
⇒ Capacidade para a celebração do contrato de locação
O art. 1024º/1 refere que a locação constitui para o locador um ato de administração ordinária, sempre que for celebrada por prazo inferior a 6 anos. Consequentemente, têm capacidade para celebrar contratos de locação até esse prazo todos os que podem contratar e administrar os seus bens, o que ocorre genericamente em relação às pessoas singulares (art. 67º). Apenas os incapazes de contratar, como os menores (arts. 122º e ss.), interditos (arts. 138º e ss.) ou inabilitados (arts. 152º e ss.) estarão impedidos de celebrar contratos de locação.
Nestes casos, será o representante legal (pais, tutor, acompanhante) que poderá celebrar os respetivos contratos. Nesse caso, no entanto, o contrato de locação caducará com a cessação dos poderes legais de administração (art. 1051º/1 c)). No caso de o maior de 16 anos adquirir bens com o produto do seu trabalho, pode validamente administrar e dispor deles (art. 127º/1 a)), pelo que nesse caso terá capacidade para celebrar contratos de locação.
Em relação às pessoas coletivas, o art. 160º refere que a sua capacidade abrange todos os direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução dos seus fins, apenas dela se excetuando os direitos e obrigações vedados por lei ou que sejam inseparáveis da personalidade singular. Não há, assim, em princípio, obstáculos para que a pessoa coletiva celebre contratos de locação, quer como locadora, quer como locatária. Essa legitimidade ocorre mesmo em relação ao arrendamento para habitação, desde que seja para habitação alheia.
⇒ Legitimidade para a celebração de contrato de locação
Uma vez que a locação constitui um ato de administração ordinária para o locador, sempre que seja celebrada por prazo inferior a 6 anos, pode o respetivo contrato ser celebrado por mandatário com poderes gerais de administração (art. 1159º/1), bem como todos os que possuam esses poderes, como os pais, tutores, acompanhantes dos menores e maiores acompanhados (arts. 1889º/ m) a contrario, 1935º, 1971º, 139º e 154º), os curadores provisórios (art. 94º) ou definitivos do ausente (art. 110º), o consignatário de rendimentos (art. 661º/1 b)), o cabeça de casal (art. 2087º/1) e os administradores de sociedades e outras pessoas coletivas.
Há, no entanto, algumas situações de pluralidade de titulares do imóvel em que a lei exige o consentimento de todos eles para se poder celebrar um contrato de arrendamento. Assim, estando em causa um arrendamento de prédio indiviso feito pelo consorte ou consortes administradores, este só será válido se os restantes comproprietários manifestarem, antes ou depois do contrato, o seu assentimento (art. 1024º/2).
Também carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime da separação de bens, o arrendamento de imóveis próprios ou comuns (art. 1682º-A/1 a)), sendo sempre exigido esse consentimento se o arrendamento incidir sobre a casa de morada de família (art. 1682º-A/2).
No caso de arrendamento com prazo certo superior a 6 anos ou com duração indeterminada, já não é admissível a sua celebração por quem tenha apenas competência para administrar o prédio, exigindo-se poderes de administração extraordinária ou de disposição. Nesse caso, o arrendamento apenas poderá ser celebrado pelo proprietário (art. 1305º), usufrutuário (art. 1444º), fiduciário (art. 2290º) ou procuradores destes com poderes especiais para o ato. O arrendamento pode ainda ser celebrado pelo arrendatário, no caso de este se encontrar autorizado a subarrendar o prédio, total ou parcialmente.
Já em relação ao locatário, a lei não toma posição expressa sobre a sua qualificação como ato de administração ou disposição, o que originou controvérsia na doutrina:
a) Para XXXXX XXXXXXXXX, a locação deveria ser considerada em relação ao locatário sempre como um ato de mera administração, uma vez que, seja qual for o prazo, este só tem a lucrar com a locação.
b) Já XXXXXX XXXXXX considerou que a celebração do arrendamento nunca se poderia considerar, em relação ao arrendatário, como ato de mera administração, dado que não se destina à conservação ou mera frutificação de bens, antes implicando a assunção de obrigações pelo locatário.
c) Para XXXXXXXX XXXXX, o arrendamento é um ato de disposição quando celebrado por prazo superior a 6 anos e um ato de administração extraordinária se celebrado por prazo inferior. Defende assim que o arrendamento não pode ser celebrado por mandatário sem poderes especiais (art. 1159º) e que os pais (art. 1889º/1 h) e m)), o tutor (art. 1938º), o administrador de bens (art. 1971º) e o curador (art. 94º) só podem tomar de arrendamento com autorização do tribunal (atualmente do MP).
d) No entender de XXXXXXX XXXXXX, a locação é para o locatário uma simples assunção de obrigações como contrapartida do gozo de uma coisa, pelo que, desde que não seja celebrada por um prazo excessivo ou desproporcionado, pode ser considerada um ato de mera administração. Pode assim ser celebrada por mandatário com poderes gerais de administração (art. 1159º) e só não pode ser celebrada pelos pais se o prazo estipulado ultrapassar a maioridade do menor (art. 1889º/h)). Em relação ao tutor, ser-lhe-á permitido tomar de arrendamento, se for para assegurar habitação ao pupilo (componente do seu direito a alimentos) ou tal se mostre necessário à administração do património dele (art. 1938º/1 d)), sendo este regime igualmente aplicável ao administrador de bens (art. 1971º) e curador (art. 94º).
⇒ Contrato-promessa de locação
A locação também pode ser objeto de contrato-promessa nos termos gerais (art. 410º). O contrato-promessa de locação é, em princípio, consensual, só tendo que ser celebrado por documento escrito, assinado pela parte que se vincula, no caso em que para o contrato definitivo seja exigida forma especial (art. 410º/2), o que ocorre na locação de imóveis (arts. 1069º CC). Não é, porém, aplicável à promessa de arrendamento o art. 410º/3, uma vez que o arrendamento não constitui um direito real.
Em caso de não cumprimento da promessa de locação, deve entender-se que a mesma estará normalmente sujeita à execução específica (art. 830º), uma vez que a natureza da obrigação assumida não é incompatível com essa figura. Uma vez que não estamos perante uma das promessas a que se refere o art. 410º/3, a execução específica pode ser afastada pelas partes (art. 830º/1 e 3 a contrario), o que se presumirá se tiver sido estipulado sinal ou fixada uma pena para o não cumprimento da promessa.
◊ Efeitos essenciais da locação
⇒ Obrigações do locador
1) Obrigação de entrega:
O art. 1031º/a) refere que a primeira obrigação do locador é a de entregar ao locatário a coisa locada. A lei não concretiza o regime da obrigação de entrega no âmbito do contrato de locação. Essa solução explica-se pelo facto de não se justificar instituir uma obrigação de custódia do locador em relação à coisa após a celebração do contrato, uma vez que o locador responde sempre por vícios da coisa locada que datem do momento da entrega, se não provar que os desconhecia sem culpa (art. 1032º/b)) ou que os defeitos eram conhecidos ou cognoscíveis pelo locatário (art. 1033º/a) e b)).
Também não se justifica estabelecer supletivamente que a obrigação de entrega abranja os frutos pendentes e as partes integrantes, e muito menos os documentos relativos à coisa ou direito, uma vez que caberá às partes determinar a extensão da locação.
A entrega da coisa pode ser material ou simbólica (esta é mais comum relativamente a coisas imóveis).
2) Obrigação de assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que esta se destina:
Esta obrigação vem referida no art. 1031º/b). Efetivamente, o principal direito do locatário é o direito de gozo da coisa locada. Constituindo esse um direito pessoal de gozo, estrutura-se com base numa obrigação do senhorio.
Confere-se ao locatário a posse da coisa locada, sendo-lhe consequentemente atribuída a possibilidade de, em caso de ser privado do gozo da coisa, ou perturbado no exercício dos seus direitos, utilizar as ações possessórias (arts. 1276º e ss.), ainda que contra o próprio dono.
O locatário tem assim posse em nome próprio da coisa locada, correspondente ao seu direito de gozo sobre ela (e não a um direito real), tendo ainda, nos termos do art. 1253º/c), posse em nome alheio do direito do locador.
Esta obrigação pode implicar a necessidade de o locador fazer reparações e outras despesas necessárias à conservação da coisa locada (art. 1036º), sendo que o locatário pode assim exigir do locador que as efetue. Caso o locador entre em mora quanto a essa obrigação, se as despesas ou as reparações, pela sua urgência, se não compadecerem com as delongas de um processo judicial, o locatário pode fazê-las extrajudicialmente, com direito ao seu reembolso (art. 1036º/1). Caso a urgência não consinta qualquer dilação, o locatário pode mesmo efetuar as reparações e despesas, independentemente de mora do locador, contanto que o avise a tempo (art. 1036º/2).
3) Pagamento dos encargos da coisa locada
De acordo com o art. 1030º, incide sobre o locador a obrigação de suportar os encargos da coisa locada, a menos que a lei disponha coisa diferente. Não parece possível admitir a derrogação desta disposição por convenção em contrário das partes, uma vez que a expressão “sem embargo de convenção em contrário” expressa claramente o cariz injuntivo desta norma (contra, XXXXX XX XXXX/XXXXXXX XXXXXX e XXXXXX XXXXXXXX).
Constituem encargos da coisa locada os impostos prediais, as taxas, os prémios de seguro e os encargos de condomínio.
→ No âmbito do arrendamento urbano, o art. 1078º/1 remete o regime dos encargos da coisa locada para a estipulação escrita das partes. Para efeitos desta disposição constituem encargos da coisa locada os impostos prediais, as taxas, os prémios de seguro, os encargos de condomínio, bem como o pagamento de bens ou serviços relativos ao local arrendado. Estes encargos ficarão assim a cargo de quem forem contratualmente atribuídos. A lei determina, porém, que eles devem ser contratados por aquele que for responsável pelo seu pagamento (art. 1078º/4).
→ No arrendamento de fração autónoma, a lei presume que ficam a cargo do senhorio os encargos e
despesas referentes à administração, conservação e fruição de partes comuns do edifício, bem como do pagamento de serviços comuns (art. 1078º/3). Assim, se nada for estipulado em contrário, o senhorio será responsável pelo pagamento dessas despesas.
4) Obrigação de reembolso de benfeitorias
O art. 1046º/1 estabelece que, salvo quanto às obras, reparações e despesas que a lei faz correr por conta do senhorio, o locatário é, salvo estipulação em contrário, equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja efetuado na coisa locada.
Desta solução resulta que o locatário tem direito a ser indemnizado das benfeitorias necessárias que haja efetuado, bem como levantar as benfeitorias úteis, se tal puder ser efetuado sem detrimento da coisa, havendo lugar à restituição do enriquecimento por despesas no caso contrário (art. 1273º).
O locatário não tem, porém, direito ao levantamento de benfeitorias voluptuárias (art. 1275º). Há, no entanto, uma exceção relativamente ao aluguer de animais, já que o art. 1046º/2 estabelece que as despesas da sua alimentação correm sempre, na falta de estipulação em contrário, por conta do locatário.
→ Em relação ao arrendamento urbano, resulta do art. 1074º/2 e 3 que a realização de obras pelo arrendatário depende de cláusula do contrato ou de autorização por escrito do senhorio, salvo se se verificar a mora do senhorio ou de uma urgência improrrogável na realização das obras, caso em que o arrendatário pode proceder à sua realização, com direito ao reembolso. Nesta última situação, o
arrendatário pode efetuar a compensação pelo valor das despesas com a obrigação de pagamento da renda (art. 1074º/3 in fine), juntando os respetivos comprovativos (art. 1074º/4).
No caso de o arrendatário efetuar licitamente as obras, terá direito, no final do contrato, a uma “compensação” por essas obras, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa fé (art. 1074º/5). O arrendatário terá assim direito ao reembolso das benfeitorias necessárias e ao levantamento das benfeitorias úteis, quando esta possa ser efetuada sem detrimento da coisa, tendo direito à restituição do enriquecimento por despesas no caso contrário (art. 1273º). Pode ainda levantar as benfeitorias voluptuárias que tenha feito, não se dando detrimento da coisa, perdendo as mesmas na hipótese contrária (art. 1275º/1) (o Prof. MC defende que a interpretação literal do art. implicaria o pagamento de uma compensação por todas as benfeitorias, em lugar do ius tollendi). O arrendatário terá ainda direito de retenção (art. 754º).
A lei admite, porém, estipulação em contrário, pelo que este regime poderá ser derrogado por convenção das partes, designadamente estabelecendo que o arrendatário não terá direito a qualquer indemnização pelas obras que venha a fazer no prédio.
5) Obrigação de preferência
Outra obrigação para o locador, no âmbito do arrendamento, é a de dar preferência ao arrendatário, na venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado. Esta obrigação encontra-se estabelecida em todas as modalidades de arrendamento, ainda que com regimes diferentes.
→ No âmbito do arrendamento urbano, no caso de compra e venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado há mais de 3 anos (art. 1091º/1 a)), assim como na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais com base nos quais o contrato fora celebrado (art. 1091º/1 b)). No último caso, no entanto, a obrigação de preferência só se mantém enquanto não for exigível a restituição do prédio, os termos do art. 1053º (art. 1091º/2).
O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo art. 1535º (art. 1091º/3) e sujeito ao regime geral dos arts. 416º a 418º e 1410º (art. 1091º/4).
⇒ Obrigações do locatário
A) Obrigação de pagamento da renda ou aluguer
A principal obrigação do locatário é a obrigação de pagamento da renda ou aluguer. Em relação à locação em geral, a obrigação de pagamento da renda encontra-se prevista nos arts. 1039º e ss., sendo, no entanto, essa obrigação objeto de regras específicas em relação às diversas modalidades de arrendamento, referidas nos arts. 1075º e ss. (arrendamento urbano).
~ Fixação e alteração da renda e aluguer:
Resultando o contrato de locação da autonomia privada das partes, é também em princípio por convenção entre elas que é fixado o montante da renda ou aluguer, bem como o seu objeto. Há, no entanto, algumas restrições legais à possibilidade de estipulação das partes, no âmbito dos regimes especiais de arrendamento:
a) Arrendamento urbano – resultando o contrato de arrendamento urbano da autonomia privada das partes, é também em princípio por convenção entre elas que é fixado o montante da renda. Pode questionar-se se o arrendamento se pode considerar validamente celebrado se as partes nada estipularem sobre o montante da renda: ML e XXXXX XXXXXXXX entendem que a renda não tem de estar determinada no momento de celebração do contrato, bastando que seja determinável (em sentido contrário, XXXXXX XXXXXX), e sendo aplicável a essa determinação os critérios do art. 883º, por força do art. 939º.
Em relação ao objeto da renda, o art. 1075º/1 determina apenas que ele corresponde a uma prestação pecuniária periódica (arts. 550º e ss.), parecendo assim serem hoje de novo admissíveis as cláusulas de pagamento da renda em moeda específica (arts. 552º e ss.) ou em moeda estrangeira (art. 558º).
Uma vez fixada a renda, o seu montante pode ser objeto de alteração:
1. A primeira situação em que tal ocorre respeita à atualização da renda (art. 1077º, cujo nº 1 remete para a estipulação das partes a possibilidade de atualização da renda e o respetivo regime). É assim admissível a convenção de rendas escalonadas (incremento do valor da renda ao longo da vigência do contrato).
2. Apenas no caso de ausência de estipulação, a lei determina que a renda é atualizada anualmente, de acordo com os coeficientes vigentes (art. 1077º/2 a)), podendo a primeira atualização ser exigida um ano após a vigência do contrato e as seguintes, sucessivamente, um ano após a atualização anterior (art. 1077º/2 b)). O art. 24º/1 NRAU estabelece que essa atualização resulta da totalidade da variação do índice de preços do consumidor, sem habitação. A renda assim apurada é arredondada para a unidade de cêntimo imediatamente superior (art. 25º/1 NRAU).
Para efeitos de atualização, o senhorio deve comunicar, por escrito e com a antecedência mínima de 30 dias, o coeficiente de atualização e a nova renda dele resultante (art. 1077º/2 c)), tendo essa comunicação que obedecer ao disposto nos arts. 9º e ss. NRAU.
~ Tempo do cumprimento:
Em relação ao tempo do pagamento, a renda nunca constitui uma obrigação pura (art. 777º/1), uma vez que sendo uma obrigação periódica, haverá sempre que estipular o momento do seu vencimento, podendo este resultar das disposições supletivas da lei.
Em relação à locação em geral, o pagamento deve ser efetuado no último dia da vigência do contrato ou do período a que respeita, se as partes ou os usos não fixarem outro regime (art. 1039º/1).
No caso de arrendamento urbano, na falta de convenção em contrário, se as rendas estiverem em correspondência com os meses do calendário gregoriano, a primeira vencer-se-á no momento da celebração do contrato e cada uma das restantes no 1º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito (art. 1075º/2) – regra da antecipação. Esta regra é supletiva, mas a lei estabelece limites às convenções de antecipação, proibindo as partes de estipularem antecipações de renda por período superior a 3 meses (art. 1076º/1).
~ Lugar do cumprimento:
Em relação à locação em geral, o pagamento deve ser efetuado no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime (art. 1039º/1). A renda ou aluguer constitui assim uma obrigação de colocação, sendo por esta via derrogado o regime geral do art. 774º.
A regra supletiva art. 1039º não costuma, contudo, ser observada em relação ao arrendamento onde, por força de estipulação ou dos usos, é comum estabelecer que o lugar do cumprimento seja no domicílio do senhorio ou de procurador por ele designado. Assim, o art. 1039º/2 estabelece que se a renda ou aluguer houver de ser pago no domicílio, geral ou particular, do locatário ou de procurador seu, e o pagamento não tiver sido efetuado, presume-se que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento.
~ Consequências da mora do locatário:
Em lugar dos juros moratórios fixados no art. 806º, o art. 1041º estabelece que o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização correspondente a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento. Neste último caso, a lei considera a resolução como sanção suficiente para o locatário, pelo que não se estabelece juros de mora suplementares pelo atraso do pagamento de rendas. Nada impede, porém, as partes de estipular uma cláusula penal moratória para cobrir o atraso no pagamento das rendas, mesmo em caso de resolução do contrato.
Uma vez que o art. 1041º/2 determina que o direito à indemnização ou à resolução do contrato cessa se o locatário fizer cessar a mora no prazo de 8 dias após o seu começo (nos termos dos arts. 297º e 279º/d), esse prazo é havido como correspondendo a uma semana), existe uma tolerância legal em relação à mora do arrendatário durante esse prazo, a qual não tem consequências para ele.
~ Garantia de pagamento:
A obrigação de pagamento da renda pode, nos termos gerais, ser objeto de qualquer garantia que as partes venham a estipular para a hipótese de incumprimento pelo locatário. Esta regra encontra-se expressamente formulada no âmbito do arrendamento urbano, no art. 1076º/2. Trata-se, neste caso de uma caução de fonte negocial, pelo que o art. 624º/1 admite que ela seja prestada por qualquer garantia, real ou pessoal.
A forma mais comum de garantia do pagamento das obrigações do arrendatário é, no entanto, a prestação de fiança, com renúncia do fiador ao benefício da excussão. Face à revogação do art. 655º CC pelo art. 2º/1 NRAU, deixa de existir qualquer presunção de limitação da fiança ao período inicial de duração do arrendamento, e qualquer limite à estipulação das partes relativamente ao respetivo prazo, na ausência de nova convenção.
Assim, se for prestada fiança em relação ao pagamento da renda, esta manter-se-á em princípio durante todo o período de vigência do arrendamento, incluindo as suas renovações. Nada obsta, porém, que as partes convencionem que o fiador apenas se obriga pelo período inicial de duração do contrato, excluindo as suas renovações, ou que a fiança se extinga logo que ocorra qualquer alteração da renda.
B) Obrigação de facultar ao locador o exame da coisa locada
Esta obrigação do locatário encontra-se prevista no art. 1038º/b). Esta situação visa permitir ao locador controlar o bom estado da coisa e, eventualmente, suprir deficiências ou exigir responsabilidade pelos danos a esta causados.
Trata-se de um direito do locador que, no entanto, tem que ser exercido em termos moderados, uma vez que constantes e sucessivos exames da coisa locada corresponderiam a uma perturbação do gozo pelo locatário. Nesse caso, a exigência do locador será ilegítima, por abuso de direito (art. 334º), caso em que poderá naturalmente o locatário obstar a essa perturbação.
C) Obrigação de não aplicar a coisa a fim diverso daquele a que ela se destina
Esta é uma das mais importantes obrigações do locatário. Efetivamente, é normal no contrato de locação a determinação do fim a que a coisa locada se destina, com base no qual se delimitam as possibilidades da sua utilização pelo locatário.
Se as partes não procederem à sua estipulação contratual, e das respetivas circunstâncias não resultar o fim a que a coisa locada se destina, estabelece o art. 1027º que passa a ser permitido ao locatário aplica-la a quaisquer fins lícitos, dentro da função normal das coisas de igual natureza.
É especialmente importante a determinação do fim nos arrendamentos, que gera a aplicação de regimes específicos:
♣ Os prédios rústicos podem ser arrendados para:
a) Se, os prédios rústicos forem arrendados com outros fins, ficam sujeitos ao regime do arrendamento urbano, conjuntamente com o regime geral da locação civil (art. 1108º in fine).
♣ Quanto aos prédios urbanos, estes podem ser arrendados (art. 1067º/1):
a) Para fim habitacional – rege-se pelos arts. 1092º e ss.
b) Para fim não habitacional – rege-se pelos arts. 1108º e ss., ainda que neste caso continue a haver algumas diferenciações de regime entre o arrendamento para comércio e indústria e para o exercício de profissão liberal (art. 1112º).
c) Caso as partes não estipulem o fim do contrato de arrendamento urbano, o art. 1067º/2 determina que o local arrendado pode ser usado no âmbito das suas aptidões, tal como resultem da licença de utilização. Na falta de licença de utilização, o arrendamento vale como habitacional se o local for habitável, ou como não habitacional se o não for, salvo se outro destino lhe tiver vindo a ser dado (art. 1067º/3).
D) Obrigação de não fazer da coisa locada uma utilização imprudente
É referida no art. 1038º/d). Esta obrigação encontra-se explicitada no art. 1043º/1.
O dever de não efetuar uma utilização imprudente corresponde assim para o locatário a um dever de manutenção da coisa no mesmo estado em que foi recebida. A descrição do estado da coisa ao tempo da entrega deve ser feita pelas partes em documento, presumindo o legislador, na falta desse documento, que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de conservação (art. 1043º/2).
Se ocorrer a perda ou deterioração da coisa não correspondentes a uma prudente utilização, a lei presume a responsabilidade do locatário, podendo este, porém, elidir a presunção demonstrando que não resultaram de causa que lhe seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa (art. 1044º).
(a) No arrendamento urbano, o art. 1073º determina ainda que é lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade (nº 1), acrescentando o nº 2 que as deteriorações devem, no entanto, ser reparadas pelo arrendatário antes da restituição do prédio, salvo estipulação em contrário.
E) Obrigação de tolerar as reparações urgentes, bem como quaisquer outras que sejam ordenadas por autoridade pública
Pode haver necessidade de reparações urgentes para evitar a deterioração da coisa locada, sendo que por vezes a própria autoridade pública impõe essas reparações para evitar maiores riscos. Nestes casos, terá o locatário que suportar essa perturbação no gozo da coisa em ordem a evitar maiores riscos para o prédio.
F) Obrigação de não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei permitir ou o locador o autorizar
O contrato de locação é visto em relação à pessoa do locatário como um contrato intuito personae, considerando-se assim que o locador apenas se obriga a proporcionar o gozo da coisa ao locatário e não a terceiro. É, por isso, vedado ao locatário proceder à transmissão do gozo da coisa a terceiro. Essa proibição só cessa caso a lei venha a permitir essa cessão ou o locador a venha a autorizar.
Em certos casos, a lei permite a transmissão do gozo da coisa a terceiro sem consentimento do senhorio:
(a) Locação de estabelecimento comercial ou industrial (art. 1109º);
(b) Trespasse do estabelecimento comercial ou industrial (art. 1112º/1 a));
(c) Cessão da posição do arrendatário para o exercício de profissão liberal (art. 1112º/1 b));
(d) No arrendamento para habitação é permitido que habitem com o arrendatário, para além de todas as pessoas que com ele vivam em economia comum, um máximo de 3 hóspedes, salvo cláusula em contrário (art. 1093º). A hospedagem distingue-se da sublocação (nomeadamente da sublocação parcial), uma vez que na hospedagem existe uma prestação de serviços por parte do locatário aos hóspedes, enquanto a sublocação não consiste numa prestação de serviços.
Ocorrendo consentimento do locador, também é possível ao arrendatário proceder à cessão do gozo a terceiro:
(a) Tratando-se de arrendamento urbano, o consentimento do senhorio para o subarrendamento deve ser dado por escrito (art. 1088º/1).
O art. 1049º vem, porém, estabelecer que o locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na violação do disposto nas als. f) e g) do art. 1038º se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal, pelo que se o locador vier a reconhecer o beneficiário da cedência, deixa de poder obter a resolução do contrato com esse fundamento.
G) Obrigação de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa, sempre que esta seja permitida ou autorizada
Esta obrigação está prevista no art. 1038º/g). Sem esta comunicação, a cedência será ineficaz em relação ao locador e permitir-lhe-á resolver o contrato (art. 1038º/2 e)).
O art. 1049º estabelece, contudo, que o locador não tem direito à resolução do contrato com fundamento na violação do disposto nas als. f) e g) do art. 1038º se tiver reconhecido o beneficiário da cedência como tal, ou ainda, no caso da al. g), se a comunicação lhe tiver sido feita por este, pelo que, se houver reconhecimento do novo locatário ou tiver sido este a cumprir a obrigação de comunicar no prazo de 15 dias a cedência, perderá o senhorio a possibilidade de resolver o contrato.
H) Obrigação de avisar imediatamente o locador, sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa, ou saiba que a ameaça algum perigo, ou que terceiros se arrogam direitos em relação a ela, desde que o facto seja ignorado pelo locador
Esta obrigação está prevista no art. 1038º/h). Esta obrigação é imposta ao locatário em virtude de lhe ser atribuída a posse da coisa locada, que lhe implica um dever de custódia mínimo da mesma, concretizado na imposição de um aviso ao senhorio, sempre que o locatário venha a ter conhecimento de riscos para a coisa.
A lei não prevê a resolução do contrato como sanção para o incumprimento desta obrigação, mas estabelece que o senhorio deixa de responder pelos vícios da coisa locada, ao contrário do que normalmente a lei prevê (art. 1032º) – art. 1033º/d).
I) Obrigação de restituir a coisa locada, findo o contrato
Esta obrigação está prevista no art. 1038º/i), surgindo como consequência da natureza temporária da locação (art. 1022º). No âmbito do arrendamento urbano, essa obrigação encontra-se regulada no art. 1081º.
A lei estabelece inclusivamente no art. 1045º/1 que se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. É assim estabelecida uma indemnização equivalente ao montante da renda devida, que se presume ser a compensação adequada para o atraso na restituição da coisa.
Parece, porém, que as partes estão impedidas, nos termos do art. 810º, de estabelecer uma cláusula penal para o atraso na restituição de montante superior a este, desde que não seja de montante manifestamente excessivo (art. 812º).
◊ Proibições de Locação
Existe uma única proibição específica de locação, que respeita ao arrendamento de bens do incapaz a favor dos seus pais, tutor, curador, administrador legal de bens ou protutor que exerça as funções de tutor – art. 1892º.
No caso de ser celebrado sem autorização do MP, o arrendamento é anulável a requerimento do menor, até um ano depois de atingir a maioridade ou ser emancipado ou, se ele entretanto falecer, pelos seus herdeiros, excluídos os próprios pais responsáveis, no prazo de um ano a contar da morte do filho (art. 1893º/1).
A anulação pode continuar a ser requerida depois de findar o prazo se o filho ou seus herdeiros mostrarem que só tiveram conhecimento do ato impugnado nos seis meses anteriores à proposição da ação (art. 1893º/2). Enquanto o menor não atingir a maioridade ou for emancipado, pode a ação de anulação ser também intentada pelas pessoas com legitimidade para requerer a inibição das responsabilidades parentais, contanto que o façam no ano seguinte à prática dos atos impugnados e antes de o menor atingir a maioridade ou ser emancipado (art. 1893º/3).
Apesar de não autorizado, o arrendamento pode ser objeto de confirmação pelo tribunal (art. 1894º), caso em que se extinguirá o direito de anulação.
Já em relação ao tutor, o art. 1937º/b) veda-lhe em absoluto a possibilidade de tomar de arrendamento, diretamente ou por interposta pessoa, ainda que seja em hasta pública, bens ou direitos do menor, exceto nos casos de sub-rogação legal, de licitação em processo de inventário ou de outorga em partilha judicialmente autorizada.
◊ Vicissitudes do Contrato de Locação
⮚ Transmissão da posição contratual do locador
A necessidade de tutelar a posição do locatário, em caso de transmissão da coisa locada a terceiro, levou à consideração de que essa transmissão não deveria afetar o direito do locatário, estabelecendo-se assim uma transmissão contratual forçada da posição do locador para qualquer adquirente da coisa locada – princípio emptio non tollit locatum (a compra não afeta a locação) – art. 1057º.
Fica assim consagrada a doutrina de que o locatário pode sempre opor o seu direito em relação a qualquer adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato, sujeitando-o a continuar com ele o contrato de locação, mesmo que o adquirente desconhecesse totalmente a existência desse contrato no momento em que adquiriu o bem (caberá ao adquirente, nessa hipótese, a aplicação do regime da venda de bens onerados).
O art. 1057º tem apenas como pressuposto a aquisição do direito com base no qual foi celebrado o contrato, independentemente da forma como essa transmissão se opere, seja por ato entre vivos, seja mortis causa.
Também no caso de constituição de um novo direito sobre o bem locado deve dar-se a transmissão da posição do locador para o novo titular no caso de esse novo direito implicar a exclusividade do gozo sobre a coisa locada (ex: constituição de um usufruto).
Mais controversa tem sido a questão da manutenção do direito do locatário em caso de venda executiva do bem, mas parece que a mesma deverá igualmente ocorrer, uma vez que o direito do locatário não se encontra incluído nos direitos que caducam com essa venda (art. 824º/2), bem com na alienação em processo de insolvência (art. 109º CIRE) – em sentido contrário, OLIVEIRA ASCENSÃO, XXXXXX XXXXXXXX.
Relativamente ao objeto da transmissão, parece que salvo acordo em contrário, apenas se transmitirão para o adquirente os direitos e obrigações do locador respeitantes à execução futura do contrato, permanecendo na esfera do anterior locador os direitos e obrigações respeitantes ao período locativo anterior à transmissão.
Assim, a menos que ocorra simultaneamente uma cessão de créditos a rendas vencidas, não poderá o novo locador reclamar o pagamento de rendas respeitantes a períodos de tempo anteriores à transmissão, nem requerer a resolução do contrato com este fundamento.
Da mesma forma, vem o art. 1058º estabelecer a inoponibilidade da liberação ou cessão de rendas ou de alugueres não vencidos ao sucessor entre vivos do locador, na medida em que tais rendas ou alugueres respeitem a períodos de tempo não decorridos à data da sucessão.
⮚ Sucessão na posição de locador
Outra vicissitude é a sucessão por morte na posição de locador. Dado que o contrato de locação não é considerado como intuitu personae em relação ao locador, verifica-se em caso de morte deste a sucessão dos seus herdeiros na relação de arrendamento (art. 2024º).
⮚ Transmissão da posição contratual do locatário
O art. 1059º/2 remete integralmente para o regime geral da cessão da posição contratual, o que implica que esta só possa ser normalmente realizada com o consentimento do senhorio (art. 424º), podendo este resolver o contrato se a cessão for efetuada sem o seu consentimento (art. 1083º/2 e)). Caso o arrendamento tenha por objeto a casa de morada de família, a cessão da posição contratual do arrendatário depende ainda de consentimento do seu cônjuge (art. 1682º-B/c)).
Admite-se, porém na lei casos em que a transmissão da posição contratual do arrendatário não depende do consentimento do senhorio:
a) Arrendamento urbano para habitação – o art. 1105º/1 refere que, incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles. Na falta de acordo, admite-se que o tribunal possa igualmente determinar essa transmissão ou concentração, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes.
b) Arrendamento urbano para fim não habitacional – permite-se a transmissão da posição contratual do arrendatário sem consentimento do senhorio no caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial (art. 1112º/1 a)), ou de cessão do arrendamento para o exercício de profissão liberal, ou a sociedade profissional de objeto equivalente (art. 1112º/1 b)). A transmissão deve ser celebrada por escrito, sob pena de nulidade (art. 1112º/3), e depende do consentimento do outro cônjuge, salvo se o regime do casamento for o da separação de bens (art. 1682ºA/1).
⮚ Sucessão na posição do locatário
Ao contrário do que sucede em relação ao locador, a locação é qualificada como um contrato intuitu personae em relação ao locatário, pelo que habitualmente caduca por morte deste ou, tratando-se de uma pessoa coletiva, pela extinção desta (art. 1051º/d)). Admite-se, porém, convenção em contrário, pelo que as partes poderão afastar esse cariz intuito personae, estabelecendo a transmissão por morte do direito do locatário.
Este cariz é, no entanto, objeto de alguma atenuação no âmbito do arrendamento urbano, onde ocorre uma comunicação do direito em relação ao respetivo cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente (art. 1068º).
Da mesma forma, são previstas algumas hipóteses de transmissão por morte do direito do arrendatário:
a) Arrendamento urbano para habitação (art. 1106º/1) – este não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva (i) cônjuge com residência no locado (apenas deve ocorrer a sucessão para este nos casos em que o arrendamento não se lhe tenha comunicado nos termos do art. 1068º), (ii) pessoa que com o arrendatário vivesse em união de facto e há mais de um ano, (iii) pessoa que com ele residisse em economia comum há mais de um ano.
Nos dois últimos casos, a transmissão da posição de arrendatário depende, à data da morte do arrendatário, de o transmissário residir no locado há mais de um ano (art. 1106º/2).
Do art. 1106º/3 resulta que a ordem de transmissão abrange (1º) o cônjuge sobrevivo ou pessoa que com o falecido vivesse em união de facto, (2º) parente ou afim mais próximo, preferindo, de entre estes, em igualdade de circunstâncias, o mais velho, (3º) na falta daqueles, as pessoas que viviam em economia comum com o arrendatário, preferindo de entre estas a mais velha.
O direito à transmissão não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do país.
A transmissão por morte do arrendamento deixou de ser prejudicial ao senhorio, dado que não afeta a duração normal do contrato, atento o abono legal do vinculismo arrendatício:
(a) Se o contrato for celebrado por prazo certo, a transmissão por morte não impede a oposição à renovação pelo senhorio, nos termos desse prazo (art. 1097º).
(b) Já se o contrato for de duração indeterminada, a morte do arrendatário não afeta o direito do senhorio a denunciar com a antecedência mínima de dois anos sobre a data em que pretenda a cessação (art. 1101º/c)). Porém, se a morte do arrendatário tiver ocorrido nos seis meses anteriores à data da cessação do contrato, esta dá ao transmissário o direito de permanecer no local por período não inferior a seis meses a contar do decesso (art. 1106º/5).
A transmissão ou a concentração do arrendamento por morte do arrendatário deve ser comunicada ao senhorio, com cópia de documentos comprovativos, no prazo de três meses a contar da ocorrência (art. 1107º/1), devendo a comunicação obedecer aos formalismos dos arts. 9º e ss. NRAU. A inobservância deste prazo não prejudica a transmissão do contrato, mas obriga o transmissário a indemnizar por todos os danos resultantes da omissão (art. 1107º/2).
⮚ Sublocação
Regulada genericamente nos arts. 1060º e ss. e arts. 1088º e ss. (arrendamento urbano).
Conforme dispõe o art. 1060º, a locação diz-se sublocação, quando o locador a celebra com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo. A sublocação consiste assim num subcontrato, já que, tendo por base um anterior contrato de locação em que é locatário, o sublocador celebra um novo contrato de locação com pessoa diferente (sublocatário), contrato esse que se sobrepõe ao anterior, mas que dele fica dependente e, portanto, a ele se subordina.
A sublocação pode ser total ou parcial, consoante o sublocador conceda ao sublocatário todo o gozo do bem locado ou apenas uma parte dele.
Uma vez que é obrigação do locatário não proporcionar o gozo da coisa a terceiro, a sublocação pressupõe o consentimento do senhorio, sendo proibida sem esse consentimento (arts. 1038º/f) e 1088º/1).
Mesmo ocorrendo autorização para a sublocação, deve a mesma ser comunicada ao senhorio no prazo de 15 dias após a sua verificação (art. 1038º/g)). Dispensa-se, porém, quer a autorização quer a comunicação, se o locador reconhecer o sublocatário como tal (arts. 1049º, 1061º e 1088º/2). Apenas após a comunicação ou o reconhecimento do sublocatário pelo locador é que a sublocação se considera eficaz em relação ao locador (art. 1061º). Não sendo a sublocação eficaz em relação ao locador, a sua realização dá-lhe o direito a resolver o contrato (art. 1083º/2 e)).
Sendo a sublocação uma relação locatícia como qualquer outra, é-lhe aplicável o regime da locação. Há, porém, algumas especialidades:
a) Existe um limite à renda que pode ser cobrada pelo sublocador, não devendo esta ser superior ou proporcionalmente superior ao que é devido pelo contrato de locação, aumentado de vinte por cento, salvo se outra coisa tiver sido convencionada com o locador (art. 1062º).
b) O locador pode exigir diretamente ao sublocatário a prestação que lhe é devida, se tanto o locatário como o sublocatário estiverem em mora quanto às respetivas prestações de renda ou aluguer (arts. 1063º e 1090º/1 e 2).
c) A sublocação depende da manutenção do contrato de locação, pelo que, no âmbito do arrendamento urbano, o art. 1089º vem estabelecer que o subarrendamento caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo da extinção lhe seja imputável.
◊ O Regime das Perturbações da Prestação no Contrato de Locação
⮚ Regime geral:
a) Vícios da coisa locada
A existência de vícios na coisa locada corresponde a uma perturbação da prestação no contrato de locação, dado que o locador é obrigado a assegurar ao locatário o gozo da coisa para os fins a que esta se destina (art. 1031º/b)). Assim, o art. 1032º vem estabelecer que, quando a coisa locada padecer de vício que não lhe permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer das qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido, desde que ocorra uma das seguintes situações:
(1) O defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa;
(2) O defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador. A lei distingue entre vícios e falta de qualidades:
o Vícios, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente. Há assim vício sempre que a coisa apresente objetivamente imperfeições, as quais têm que ser suficientemente graves para impedir o fim a que a coisa é destinada, o qual é estipulado pelas partes ou resulta das normas supletivas legais.
o Falta de qualidades, embora não implicando a valoração negativa da coisa, coloca-a em desconformidade com o contrato. Há então falta de qualidades sempre que a coisa, não sendo objetivamente defeituosa, não tenha a idoneidade necessária para realizar o fim a pretendido pelas partes ou não tenha as características que foram asseguradas pelo locador.
Para desencadearem a responsabilidade do locador, o vício ou a falta de qualidades têm que resultar de culpa sua (art. 798º), a qual se presume nos termos do art. 799º. A lei distingue, no entanto:
→ Defeitos datados do momento da entrega, em relação aos quais compete ao locador provar que os desconhecia sem culpa (art. 1032º/a));
→ Defeitos surgidos posteriormente à entrega, por culpa do locador (art. 1032º/b)). Estes são de verificação rara, pelo que é o locatário a ter de demonstrar que o locador teve culpa na sua verificação. Não sendo estabelecida a culpa do locador em relação aos defeitos da coisa, não será da sua responsabilidade a violação da obrigação do art. 1031º/b), pelo que o locatário nada mais poderá exigir ao locador (em sentido contrário, XXXXX XX XXXX/XXXXXXX XXXXXX, que sustentam que a
demonstração de que o devedor desconhecia sem culpa os defeitos anteriores ou que o defeito posterior não se deve a culpa do locador não isenta este do cumprimento da obrigação do art. 1031º/b), pelo que o locatário poderá exigir-lhe que repare os defeitos, sob pena de responder por incumprimento).
Para além disso, o art. 1033º vem estabelecer que o locador deixa de responder pelos defeitos da coisa nas seguintes situações:
(1) Se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa. Nestes casos, o locatário aceita conscientemente celebrar o contrato de locação nessas condições.
(2) Se o defeito já existia ao tempo da celebração do contrato e era facilmente reconhecível, a não ser que o locador tenha assegurado a sua inexistência ou usado de dolo para o ocultar. Cabe ao locatário o ónus de verificar o estado da coisa, salvo se o locador assegurar a inexistência de defeitos ou usado de dolo para os ocultar.
(3) Se o defeito for da responsabilidade do locatário. Nestes casos, deve o locatário, por sua conta, repor o bem em condições de satisfazer o fim contratual.
(4) Se este não avisou o locador do defeito, como lhe cumpria. Efetivamente, estando o locatário obrigado a avisar imediatamente o locador sempre que tenha conhecimento de vícios na coisa (art. 1038º/h)), compreende-se que o incumprimento deste dever seja sancionado com a irresponsabilidade do locador por esses defeitos.
O art. 1035º estabelece que o regime das perturbações da prestação no contrato de locação não obsta à anulação desse contrato por erro (arts. 251º e 247º) ou dolo (art. 253º), nos termos gerais. Assim, a existência de defeitos na coisa é enquadrada no regime do incumprimento, o que é explicável em função da qualificação como pessoal do direito do locatário.
b) Ilegitimidade do locador ou deficiência do seu direito
O art. 1034º acrescenta que são aplicáveis as disposições relativas aos vícios da coisa locada a situações correspondentes à ilegitimidade do locador ou deficiência do seu direito, como nas hipóteses de:
(i) O locador não ter a faculdade de proporcionar a outrem o gozo da coisa locada (art. 1034º/a));
(ii) O seu direito não ser de propriedade ou estar sujeito a ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes a este direito (art. 1034º/b));
(iii) O direito não possuir os atributos que o locador assegurou ou estes atributos cessarem posteriormente por culpa dele (art. 1034º/c)).
São aplicáveis aquelas disposições, ainda que qualquer destas situações só se considere falta de cumprimento do contrato quando determinar a privação, definitiva ou temporária, do gozo da coisa por parte do locatário (art. 1034º/2).
Daqui resulta que a locação de bens alheios é considerada válida, uma vez que se trata de um contrato que não é translativo de direitos, mas sim constitutivo de obrigações. Apenas quando o locatário é privado do gozo da coisa é que pode reagir perante o locador, mas a situação já não é de invalidade, mas antes de incumprimento do contrato.
O art. 1035º admite, no entanto, que o locatário possa também nestes casos proceder à anulação do contrato por erro ou dolo, nos termos gerais.
⮚ Regime específico da locação de bens de consumo:
Estendendo o âmbito de aplicação da Diretiva 1999/44/CE, o art. 1º-A/2 do DL 67/2003 de 8 de abril, aditado pelo DL 84/2008 de 21 de maio, vem determinar que o regime das garantias nas vendas de bens de consumo é ainda aplicável à locação de bens de consumo.
Estando assim em causa uma locação de bens de consumo, o regime dos arts. 1032º e ss. é substituído pela aplicação, com as necessárias adaptações, do regime do DL 67/2003 alterado pelo 84/2008.
O locador tem assim o dever de que o bem dado em locação seja conforme com o contrato (art. 2º/1), o que se presumirá não se verificar sempre que ocorra algum dos factos negativos referidos no art. 2º/2. Caso se verifique essa desconformidade com o contrato, o locatário tem direito a que a conformidade seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, a uma redução adequada da renda ou à resolução do contrato (art. 4º).
◊ Extinção do Contrato de Locação
O contrato de locação está sujeito às causas gerais de extinção dos contratos, abrangendo assim (art. 1079º para o arrendamento urbano):
a) Revogação;
b) Resolução;
c) Caducidade;
d) Denúncia;
e) Oposição à renovação.
O regime da cessação do contrato de arrendamento tem natureza injuntiva (art. 1080º).
⮚ Revogação:
Situação em que as partes põem termo ao contrato, celebrando um contrato extintivo, o que é admissível nos termos gerais por mútuo consenso, ao abrigo da autonomia privada (art. 406º/1).
Em consequência, no âmbito do arrendamento urbano, vem prever-se que as partes podem, a todo o tempo, revogar o contrato, mediante acordo a tanto dirigido (art. 1082º/1). Nos termos do art. 1082º/2, a revogação do arrendamento urbano está sujeita à forma escrita, sempre que o acordo não seja imediatamente executado ou contenha cláusulas compensatórias (ex: pagamento ao arrendatário de uma quantia como contrapartida da cessação do arrendamento) ou quaisquer outras cláusulas acessórias. Sendo o contrato imediatamente executado (revogação real), não se exige forma específica.
⮚ Resolução:
a) Resolução pelo locador
O locador pode resolver o contrato com fundamento no incumprimento das obrigações do locatário (art. 801º/2), mas essa resolução é sujeita a certos condicionamentos. Assim, não é todo e qualquer incumprimento das obrigações do locatário que fundamenta a resolução, exigindo-se um incumprimento especialmente grave, que no âmbito do arrendamento urbano é inclusivamente objeto de uma tipificação exemplificativa de fundamentos (art. 1083º/2 e 3).
Para além disso, embora a resolução do contrato de locação possa ser feita tanto judicial, como extrajudicialmente (art. 1047º), no âmbito do arrendamento por vezes a lei exige o recurso à via judicial para promover essa resolução, através da ação de despejo (arts. 1084º/2 e 14º NRAU). Uma vez que se trata de um contrato de execução continuada, a resolução não opera retroativamente, pelo que não obriga a restituir as prestações já realizadas (art. 434º/2).
i. No âmbito do arrendamento urbano, encontra-se previsto como fundamento genérico de resolução o incumprimento das obrigações da contraparte (art. 1083º/1), que pela sua gravidade e consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento (art. 1083º/2). Em relação ao senhorio, a lei indica alguns fundamentos de resolução do arrendamento urbano nos arts. 1083º, 1084º e 1049º. Poder-se-ão admitir outros fundamentos como a realização de deteriorações e obras no imóvel, a violação dos limites legais ou contratuais relativos a hóspedes e a cobrança ao subarrendatário de renda superior à permitida.
A resolução do contrato tem de ser exercida no prazo de um ano, a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade, sendo esse prazo reduzido para três meses nas hipóteses previstas no art. 1083º/3 e 4. Tratando-se de facto continuado ou duradouro, esse prazo conta-se a partir da data em que o facto tiver cessado (art. 1085º).
b) Resolução pelo locatário
Em relação ao locatário não se prevê nenhuma tipificação das causas de resolução como se prevê para o locador, sendo esta genericamente admissível nos casos de incumprimento da obrigação ou cumprimento defeituoso (art. 801º/2 e 1083º/2 para o urbano).
Assim, refere o art. 1050º que o locatário pode resolver o contrato, independentemente de responsabilidade do locador:
i. Se, por motivo estranho à sua própria pessoa ou à dos seus familiares, for privado do gozo da coisa, ainda que só temporariamente;
ii. Se na coisa locada existir ou sobrevier defeito que ponha em perigo a vida ou a saúde do locatário ou dos seus familiares.
XXXXXX XXXXXXXX entende não estar aqui em causa uma verdadeira resolução, dado que não pressupõe a culpa do locador. ML diz que, contudo, a verdade é que a culpa não é pressuposto na resolução, mas apenas da indemnização.
No âmbito do arrendamento urbano, são igualmente referidos casos específicos da resolução pelo arrendatário no art. 1083º/5 e no art. 5º/7 do DL 160/2006 de 8 agosto.
A resolução pelo locatário opera por declaração à outra parte, nos termos gerais (arts. 436º/1 e 1084º/1), a qual, no arrendamento urbano, tem que obedecer aos formalismos respetivos dos arts. 9º e ss. NRAU.
⮚ Caducidade:
Consiste na extinção do contrato em virtude da verificação de um facto jurídico stricto sensu. No âmbito do contrato de locação, as causas de caducidade encontram-se tipificadas no art. 1051º:
a) Decurso do prazo estipulado ou estabelecido por lei. Pressupõe, no entanto, que não se tenha verificado a renovação do contrato, a qual é a regra no âmbito do arrendamento (art. 1054º).
b) Verificação da condição a que as partes subordinaram o contrato, ou tornando-se certo que não pode verificar-se, conforme a condição seja resolutiva ou suspensiva. A aposição de uma condição resolutiva aos contratos de arrendamento sofre, no entanto, alguma limitação, dado que a mesma não poderá ser usada para defraudar os fundamentos da resolução do contrato (art. 1080º). No arrendamento rural não se inclui a condição resolutiva entre os fundamentos de caducidade (art. 18º/1).
c) Cessação do direito ou dos poderes de administração com base nos quais o contrato foi celebrado. A operatividade desta causa de caducidade é objeto de alguma restrição pelo art. 1052º. Esta causa de caducidade encontra-se também expressamente prevista em sede de arrendamento rural (art. 18º/1 b)).
d) Morte do locatário ou, tratando-se de pessoa coletiva, a extinção desta, salvo convenção escrita em contrário. Há, porém, casos em que se admite a transmissão por morte do arrendamento (arts. 1106º e 1113º). Relativamente à morte do senhorio, esta não é normalmente considerada causa de caducidade do contrato (arts. 1057º e 20º/1).
e) Perda da coisa locada.
f) Expropriação por utilidade pública, a não ser que a expropriação se compadeça com a substância do contrato.
g) Cessação pelo arrendatário dos serviços que determinaram que a coisa locada lhe fosse entregue.
~ Eventual renovação do contrato e direito de preferência no futuro arrendamento do prédio
A caducidade do arrendamento pode, no entanto, vir a ser sanada, já que o art. 1056º estabelece que se, não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do art. 1054º.
A permanência pelo arrendatário do gozo da coisa, pelo prazo de um ano, sem oposição do senhorio, funciona assim como uma causa de renovação do contrato, mesmo após a verificação da sua extinção, correspondendo a uma autêntica sanação da caducidade.
Parece, no entanto, que o âmbito desta norma é restrito às hipóteses referidas nas als. a), b) e g) do art. 1051º, já que não se pode aplicar nem à perda da coisa locada, por incompatível com a permanência do gozo pelo arrendatário, nem à expropriação por utilidade pública, sob pena de se pôr em causa a aplicação desta.
Por outro lado, uma vez que a lei exige que a permanência do gozo seja do arrendatário e que não haja oposição do senhorio (art. 1056º), esta renovação também não se aplicará em caso de morte do arrendatário ou da sua extinção sendo pessoa coletiva, onde quem poderá gozar já não é o arrendatário, nem de cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado, onde a não oposição do senhorio não tem qualquer relevância, atento o facto de o direito ou os poderes que tinha terem cessado (em sentido contrário, XXXXXX XXXXXXXX, que parece admitir que nestes casos a renovação prevista no art. 1056º se opere mediante uma transmissão da posição contratual).
⮚ Denúncia e oposição à renovação:
Estas constituem igualmente formas de cessação do contrato de locação. A denúncia é aplicável aos contratos de duração indeterminada, podendo a declaração do senhorio de pôr termo ao contrato ocorrer em qualquer altura. A oposição à renovação é aplicável aos contratos em relação aos quais tenha sido estipulado um prazo renovável, apenas podendo a declaração do senhorio de pôr termo ao contrário no fim desse prazo, impedindo que o contrato se renove por períodos subsequentes.
Uma vez que o contrato de locação é sujeito a um prazo supletivo, mesmo que as partes não o determinem (art. 1026º), o processo de extinção da relação locatícia para o futuro constitui normalmente um caso de oposição à renovação.
~ Regime:
Genericamente, o art. 1054º refere que “findo o prazo do arrendamento, o contrato renova-se por períodos sucessivos se nenhuma das partes se tiver oposto à renovação no tempo e pela forma convencionados ou designados na lei”, acrescentando o nº 2 que o prazo da renovação é igual ao do contrato, sendo apenas de um ano se o prazo do contrato for mais longo.
Nos termos do art. 1055º, a denúncia tem de ser comunicada ao outro contraente com a antecedência mínima seguinte:
a) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos;
b) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
c) 30 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a três meses e inferior a um ano;
d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a três meses.
→ Denúncia e oposição à renovação pelo locador:
(1) Regime do arrendamento urbano
Aquelas disposições relativas à locação em geral vêm a ser afastadas no âmbito do arrendamento urbano, onde atualmente a lei distingue entre arrendamentos com prazo certo (arts. 1095º e ss.) e com duração indeterminada (arts. 1099º e ss.), sendo aplicáveis aos primeiros normalmente a oposição à renovação e aos segundos a denúncia.
Supletivamente, no arrendamento para habitação, se as partes nada convencionarem, o contrato tem-se celebrado com prazo certo pelo período de dois anos (art. 1094º/3). Já no arrendamento para fins não habitacionais, em caso de ausência de estipulação, considera-se o arrendamento celebrado com prazo certo pelo período de cinco anos (art. 1110º/2).
(i) Contratos com duração indeterminada:
Aproxima-se bastante do regime tradicional dos arrendamentos vinculísticos:
o A denúncia pelo arrendatário é amplamente admitida, obrigando apenas a uma antecedência mínima de 120 dias, ou 60 dias se o contrato tiver até um ano de duração efetiva (art. 1100º). Esta denúncia apenas exige uma comunicação à outra parte, com a antecedência legalmente exigível. Uma vez que não se trata de comunicação destinada à cessação do contrato por resolução, não há que aplicar o art. 9º/7NRAU, sendo assim suficiente o escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção (art. 9º/1 NRAU).
o A faculdade de denúncia pelo senhorio é consideravelmente restringida, limitando-se às hipóteses tradicionais da denúncia para habitação (art. 1101º/a)) e para demolição ou para a realização de obras de restauração ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado (art. 1101º/b)), a que agora se acrescenta um novo fundamento: a comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação (art. 1101º/c)).
Fundamentos de denúncia pelo senhorio:
1- Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos descendentes em 1º grau (art. 1101º/a)).
Relativamente à denúncia para habitação própria do senhorio, esta depende:
- Do pagamento ao arrendatário do montante ao equivalente a um ano de renda, que deve ser pago no mês seguinte ao trânsito em julgado da decisão que o determine (art. 1103º/5);
- De o senhorio ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de 2 anos ou, independentemente deste prazo, se o tiver adquirido por sucessão (art. 1102º/1 a));
- De não ter, há mais de um ano, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou na respetiva localidade quanto ao resto do país casa própria ou arrendada que satisfaça as necessidades de habitação própria ou dos seus descendentes em 1º grau (art. 1102º/1 b)).
Relativamente à denúncia para habitação dos descendentes, esta depende igualmente:
- De o senhorio possuir o mesmo tempo de titularidade dos direitos acima referidos, salvo se tiver adquirido o prédio por sucessão;
- Da mesma ausência de casa que satisfaça as necessidades de habitação, ausência essa que neste caso é relativa aos descendentes (art. 1102º/3).
- Apesar de a lei não o dizer expressamente, é manifesto que a denúncia para habitação dos descendentes obriga da mesma forma ao pagamento do montante equivalente a um ano de renda ao arrendatário (MENEZES LEITÃO).
A denúncia para habitação obriga ainda o senhorio a dar ao local a utilização invocada no prazo de três meses e por um período mínimo de dois anos (art. 1103º/5). O incumprimento desta obrigação, salvo caso de força maior, obriga o senhorio ao pagamento de uma indemnização equivalente a 10 anos de renda (art. 1103º/9).
A denúncia com este fundamento é feita mediante comunicação ao arrendatário, com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia (arts. 1103º/1 e 8º/1 RJOPA).
2- Demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos (art. 1101º/b)). Este fundamento obriga o senhorio, mediante acordo e em alternativa (art. 1103º/6):
a) Ao pagamento de uma indemnização correspondente a dois anos da renda, de valor não inferior a duas vezes o montante de 1/15 do valor patrimonial tributário do locado;
b) A garantir o realojamento do arrendatário por período não inferior a três anos.
Na falta de acordo, prevalece a solução prevista na al. a) (art. 1103º/7).
A denúncia com este fundamento é objeto de legislação especial (art. 1103º/11) – arts. 6º e ss. do Regime Jurídico das Obras em Prédios Arrendados, aprovado pelo DL 157/2006 (RJOPA).
A denúncia com este fundamento é feita mediante comunicação ao arrendatário, com antecedência não inferior a seis meses sobre a data pretendida para a desocupação e da qual conste de forma expressa, sob pena de ineficácia, o fundamento da denúncia (arts. 1103º/1 e 8º/1 RJOPA).
3- Comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação (art. 1101º/c)).
A denúncia com este fundamento, bem como a denúncia pelo arrendatário a que se refere o art. 1100º, apenas exigem uma comunicação à outra parte, com a antecedência legalmente exigível. Uma vez que não se trata de comunicação destinada à cessação do contrato por resolução, não há que aplicar o art. 9º/7NRAU, sendo assim suficiente o escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção (art. 9º/1 NRAU).
(ii) Contratos com prazo certo:
O art. 1095º/1 obriga a que o prazo conste de cláusula inserida no contrato, acrescentando o nº 2 que esse prazo tem o limite máximo de 30 anos, sendo reduzido para esse limite quando os ultrapasse (art. 1095º/2).
Atualmente, após a Lei 31/2012 de 14 de agosto, deixou de existir limite mínimo para os contratos de arrendamento, podendo assim os mesmos ser celebrados por qualquer prazo, incluindo um dia ou mesmo umas horas.
Os contratos com prazo certo superior a 30 dias são sujeitos a renovação automática, nos termos do art. 1096º/1, a menos que haja estipulação das partes em contrário. Já os contratos com prazo certo inferior a 30 dias não são, em princípio, sujeitos a renovação automática, a menos que as partes assim o estipulem (art. 1096º/2).
Quando aplicável, a renovação automática ocorre no termo do contrato e por períodos sucessivos de igual duração, se outros não estiverem contratualmente previstos (art. 1096º/1), sendo que qualquer das partes se pode opor à renovação (art. 1096º/3), variando a antecedência necessária consoante a iniciativa parta do senhorio (art. 1097º/1) ou do arrendatário (art. 1098º/1).
Nos termos do art. 1098º/3, o arrendatário pode ainda, decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com a antecedência de 120 ou 60 dias, consoante o prazo seja superior ou inferior a um ano.
No âmbito do arrendamento não habitacional, o art. 1110º/1 coloca a fixação do prazo, denúncia e oposição à renovação na estipulação das partes, acrescentando o nº 2 que na falta de estipulação, o contrato considera- se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano.
→ Denúncia e oposição à renovação pelo locatário:
Uma vez que não há restrições à denúncia pelo locatário, este pode livremente opor-se à renovação do contrato, nos termos gerais, para o fim do prazo do contrato ou da renovação, desde que o comunique ao senhorio com a antecedência legalmente exigida (arts. 1054º, 1055º e 1098º/1).
No arrendamento com prazo certo, prevê porém o art. 1098º/2 que o arrendatário o pode denunciar a todo o tempo, após seis meses de duração efetiva do contrato. Também no arrendamento urbano com duração indeterminada, o art. 1100º estabelece em relação ao arrendatário a denúncia ad nutum, admitindo portanto que este, sem qualquer justificação, ponha termo ao contrato após seis meses de duração efetiva do contrato.
Exige-se apenas uma comunicação ao senhorio, de acordo com os formalismos exigidos no art. 9º/1 NRAU, com uma antecedência não inferior a 60 ou 120 dias sobre a data em que pretende a cessação, consoante o prazo ou a duração efetiva seja inferior ou superior a um ano.
A denúncia produz efeitos no final do mês correspondente do calendário gregoriano, extinguindo-se assim nessa data o contrato de arrendamento (arts. 1098º/2 e 1100º/1).
★ CONTRATO DE EMPREITADA – arts. 1207º e ss. CC
O contrato de empreitada tem um papel muito relevante no comércio jurídico, devido aos variados fins que se podem alcançar através do recurso a este negócio.
A empreitada é considerada pelo nosso legislador como uma espécie do contrato de prestação de serviços (arts. 1154º e ss.), tendo, no entanto, por objeto especificamente uma obra e não um serviço (ao contrário do que é previsto no Código Civil italiano).
Em regra, o contrato de empreitada encontra-se associado à construção de edifícios, devido até à importância do setor na economia. Aí está a principal razão pela qual o legislador incidiu particularmente neste setor da atividade económica. Mas o objeto do contrato de empreitada não se esgota na construção e reparação de edifícios – construção ou reparação de bens móveis, desenterro e remoção de terras, perfuração de túneis e poços, a abertura ou reparação de estradas, dragagem de portos, drenagem de pântanos, etc.
Assim, diz XXXXXX XXXXXXXX, a delimitação do objeto do contrato de empreitada não é de forma alguma pacífica. Será uma empreitada o contrato pelo qual alguém se obriga a escrever um livro, passar e lavar a roupa, organizar um espetáculo, elaborar um programa para computadores? Sem resposta.
No âmbito do contrato de prestação de serviços, a empreitada distingue-se da prestação de serviços atípica pelo facto de o resultado do trabalho ter de consistir numa obra. Todo e qualquer resultado do trabalho intelectual ou manual, que não possa ser reconduzido a uma obra, já não corresponderá a uma empreitada, mas antes a uma prestação de serviços atípica, regulada pelo regime do mandato (art. 1156º). Em relação às outras modalidades típicas da prestação de serviços, a empreitada distingue-se do mandato pelo facto de o empreiteiro não realizar atos jurídicos, mas antes atos materiais, e atuar por conta própria e não por conta de outrem (art. 1157º).
Há quem sustente que a empreitada tem uma natureza simultaneamente civil e comercial, consoante o resultado seja ou não produtivo. Assim, tratando-se de um contrato economicamente produtivo, em que se pressupõe a existência de uma organização empresarial, com o consequente emprego de capitais e assunção do inerente risco, estar-se-ia na órbita do Direito Comercial, estabelecendo o art. 2º CCom, que se poderá considerar como mercantil o contrato de empreitada cujo resultado seja economicamente produtivo e a obra realizada através duma empresa. Nos termos do art. 230º/6 CCom, se o empreiteiro se propuser edificar ou construir casas para outrem, com materiais por ele subministrados, será uma empresa comercial.
⇒ Como se distingue da compra e venda?
O empreiteiro está adstrito a uma prestação de facto – facere – enquanto que sobre o vendedor impende uma prestação de coisa – dare.
Compra e venda é um contrato real quoad effectum, porque os efeitos reais, translativos da propriedade, se produzem por mero efeito do contrato; enquanto a empreitada constitui um contrato consensual do qual emergem efeitos obrigacionais – art. 1212º.
Na compra e venda, a iniciativa e o plano do objeto a executar cabem ao que constrói ou fabrica a coisa, ao passo que o empreiteiro realiza uma obra que lhe é encomendada, devendo executá-la segundo as diretrizes e fiscalização daquele que lha encarregou.
Atenção que o facto de a obrigação de fornecer materiais impender sobre o empreiteiro, não é por si só decisiva para caracterizar o contrato como sendo de compra e venda de bens futuros.
Quanto à distinção do contrato de trabalho, o empreiteiro realiza um trabalho autónomo, no sentido em que não deve obediência ao dono da obra, não se estando perante uma relação de subordinação. Além disso, trabalho é uma obrigação de “atividade”, e a empreitada de resultado.
⇒ Regime Geral
O art. 1207º dispõe que empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço. Desta definição, resultam três elementos essenciais:
a) Os sujeitos;
b) A realização de uma obra;
c) O pagamento de um preço;
É um contrato sinalagmático (emergem obrigações recíprocas e interdependentes – obra e preço), oneroso (esforço económico suportado pelas partes), comutativo (vantagens são conhecidas das partes) e consensual (a validade das declarações negociais depende do mero consenso).
Levantam-se dúvidas quanto à classificação das suas prestações, cabendo saber se são instantâneas ou
permanentes:
» ROXXXX XXXXXXXX – as partes podem convencionar um contrato de empreitada cujas prestações sejam permanentes, por exemplo, numa empreitada relativa à conservação de um imóvel, ou instantânea, como colocar um vidro, afinar um carburador. Mas regra geral, a execução da empreitada protela-se no tempo e, nessa medida, assemelha-se aos contratos com prestações permanentes. Não é, no entanto, um contrato de execução continuada, porque cada ato singular de execução não satisfaz uma parte do interesse, que só se realiza completamente com a entrega da obra.
Sendo a empreitada um contrato cujas prestações se prolongam no tempo, é frequente que as partes acordem quanto aos termos inicial e final de execução da obra, a fim de que a indeterminação dos mesmos não seja causa de incerteza. Não tendo as partes chegado a acordo em relação aos prazos, pode qualquer uma delas recorrer a tribunal exigindo a respetiva fixação, nos termos do art. 400º/2 e 777º/2. Apesar desta faculdade ser bilateral, só o dono da obra tem necessidade de enveredar por esse caminho.
⮚ Forma
A empreitada é, em princípio, um contrato não formal, dado que a lei não a sujeita a forma especial – 219º - mas em certos casos, como na empreitada de obras públicas e na construção de navios, a lei exige forma escrita.
⮚ Sujeitos
São partes no contrato de empreitada o dono da obra (ou comitente) e o empreiteiro. O dono da obra/comitente é a pessoa singular ou coletiva que encarrega outra de executar certa obra; o empreiteiro é a pessoa singular ou coletiva a quem foi encomendada a execução de uma obra.
Questões relativas à capacidade não apresentam qualquer especificidade no contrato de empreitada.
O dono da obra pode não ter legitimidade para celebrar o contrato de empreitada, mas a sua falta de legitimidade não invalida o contrato de empreitada. Pode, contudo, ser causa de responsabilidade deste, tanto em relação a terceiros como perante o empreiteiro.
Estando o bem locado, nada obsta a que o seu proprietário o mande reparar ou modificar, sempre com responsabilidade pelos danos.
Se sobre o bem incidirem direitos reais menores, não é inválida uma empreitada em que a execução não ponha em causa esses direitos – mas são responsáveis por danos causados a terceiros.
Havendo pluralidade de donos, os respetivos direitos e obrigações são exercidos conjuntamente – art. 513º. Porém, muitas vezes, correspondem a situações indivisíveis que seguem o respetivo regime – art. 538º.
Se houver pluralidade de empreiteiros, há que distinguir se se está perante uma coempreitada ou um único contrato de empreitada. No primeiro caso, os empreiteiros estão todos diretamente relacionados com o dono da obra, mas para contratos distintos, e cada um só está obrigado pela respectiva execução. No segundo caso, respondem conjuntamente pela execução da obra – 513º. Se for indivisível – 538º.
⮚ Direitos do Dono da Obra
i. Obtenção de um resultado – o comitente que celebra uma empreitada, tem direito a que, no prazo acordado, lhe seja entregue uma obra realizada nos moldes convencionados. Tem o direito subjetivo a exigir do empreiteiro a obtenção do resultado a que ele se obrigou.
ii. Fiscalização da obra (art. 1209º) – o comitente tem o direito de fiscalização da execução da obra, a fim de verificar se ela está a ser realizada segundo as regras da arte, se o empreiteiro não ocultou, etc. É assim possível ao dono da obra controlar a forma como o empreiteiro a vem executando, designadamente quanto a materiais, vícios na construção, etc. Será esta uma norma imperativa?
o ROXXXX XXXXXXXX – não, porque através da fiscalização poderia o comitente tomar conhecimento de certos dados técnicos que o empreiteiro não estaria interessado em revelar, como novas técnicas de algo.
o MENEZES LEITÃO – melhor posição é a que considera injuntiva a faculdade de fiscalização do dono da obra, uma vez que, sem esta faculdade, ele perderia todo e qualquer controlo sobre a execução que contratou, sendo o contrato qualificável como venda de bens futuros e não como empreitada. A ausência de fiscalização não implica qualquer renúncia tácita do dono da obra aos direitos resultantes da má execução, mesmo que ele não se pronuncie sobre a mesma –
1209º/2. ROXXXX XXXXXXXX xiscorda da última parte, dizendo que é um venire contra factum proprium se o dono descobre um defeito durante a fiscalização e só depois o denuncia.
⮚ Deveres do Dono da Obra
i. Prestação do preço – a retribuição faz parte da noção legal de empreitada, pois sem esse elemento, estaríamos perante um contrato gratuito de prestação de serviço.
a) Art. 1211º/2 – na falta de cláusula ou uso em contrário, o preço deve ser pago no ato de aceitação;
b) Se se convencionar que o preço é pago antes, se não o for, então pode haver lugar a exceção de não cumprimento – art. 428º.
ii. Colaboração necessária – torna-se, por vezes, necessário que o comitente colabore na execução do trabalho do empreiteiro, para que este possa realizar a obra a que se obrigou: fornecer o terreno, plano, materiais e utensílios, etc. (arts. 762º/2 e 813º in fine). Esta não é, contudo, uma verdadeira obrigação, mas um dever do credor, cuja violação faz incorrer o comitente em mora accipiendi (art. 813º). Assim, o empreiteiro não pode exigir a colaboração do dono da obra, mas não lhe tendo sido esta prestada espontaneamente, pode invocar exceção do não cumprimento.
iii. Aceitação da Obra – referida ao de leve no art. 1211º/2. É uma situação especial de colaboração o de aceitar a obra depois de concluída, se tiver sido executada sem defeito e nos termos acordados, ou quando o defeito seja insignificante, caso em que a não aceitação consubstanciará má fé. A violação deste dever tem como consequência que o comitente incorra em mora accipiendi por desrespeito a um dever de colaboração, e eventualmente, mora solvendi se, por falta de aceitação, a prestação do preço se vence na data em que a aceitação deveria ter ocorrido.
Perante uma não aceitação injustificada, o empreiteiro poderá consignar a obra em depósito – art. 841º.
O comitente não está obrigado a aceitar a obra por partes se isso não foi acordado – art. 763º/1, mas nada impede essa proposta feita pelo empreiteiro.
A aceitação tem importância, especialmente no que respeita ao vencimento da remuneração (art. 1211º/2), à transferência da propriedade (art. 1212º), à assunção do risco (art. 1228º) e à responsabilidade por defeitos da obra, e para o comitente o dever de aceitar a obra.
⮚ Direitos do Empreiteiro
O empreiteiro é titular dos direitos que correspondem aos deveres do dono da obra.
Perante o incumprimento das obrigações da contraparte, cabe ao empreiteiro recurso à exceção do não cumprimento (art. 428º) ou condição resolutiva tácita (art. 801º/2).
O empreiteiro goza de liberdade de atuação, tanto no que respeita aos meios como à forma de obter o resultado prometido, podendo contratar ajudantes ou subempreiteiros.
Este tem direito de retenção (arts. 758º e 759º), de forma a garantir o pagamento do preço e de certas indemnizações derivadas do incumprimento de deveres contratuais sobre as coisas criadas ou modificadas:
o ROXXXX XXXXXXXX – de iure condito, o direito de retenção pode recair sobre bens que sejam propriedade de terceiro, desde que o dono da obra os possua a título legítimo; de iure condendo, esta solução será contestável, na medida em que pode limitar o direito de propriedade de quem nada tem a ver com a realização daquele contrato.
o Não há direito de retenção no caso de construção de coisa móvel se os materiais são fornecidos pelo empreiteiro, pois só se pode exercer o direito de retenção sobre coisas alheias.
o MENEZES LEITÃO – isso significa que o empreiteiro pode igualmente exercer o direito de retenção em relação à coisa propriedade do dono da obra, embora o seu crédito respeite ao empreiteiro.
⮚ Deveres do Empreiteiro
(a) Realização da obra (art. 1207º) – obter certo resultado em conformidade com o convencionado e sem vícios (art. 1208º), sendo o contrato cumprido pontualmente (art. 406º) e de boa fé (art. 762º/2). Esta é a principal obrigação do empreiteiro.
Alguns deveres laterais resultantes da boa fé – condições de segurança, informação, excesso de orçamento, etc.
Se o lugar do cumprimento não tiver sido acordado ou não estiver dependente da natureza da obra, é o empreiteiro quem sabe qual o melhor local para levar a cabo a tarefa que lhe foi incumbida.
(b) Fornecimento de materiais e utensílios (art. 1210º) – deve haver uma interpretação extensiva, de modo a abranger também outros meios de que o empreiteiro se sirva. A qualidade necessária dos materiais está prevista no art. 1210º/2. Se não existirem bens com a qualidade necessária, recorrer- se-á ao art. 1215º.
(c) Conservação da obra – o empreiteiro tem a obrigação de conservar a obra realizada até a entregar ao comitente, sendo um dever lateral que poderá emergir do contrato, por, muitas das vezes, o empreiteiro ficar adstrito a guardar a coisa que, mais tarde, tem de entregar. Não emerge naturalmente do contrato.
Tal dever só tem razão de ser quando a coisa tiver sido confiada ao empreiteiro ou no caso da propriedade da obra se ter transmitido para o comitente antes da entrega, nos termos do art. 1212º. O mesmo se diga dos materiais fornecidos pelo comitente até à sua incorporação na obra. Aplicam-se a ambos os casos, com as necessárias adaptações, as regras do contrato de depósito – art. 1187º/a).
É possível que, por força do contrato ou da natureza das circunstâncias, os deveres de guardar a coisa e de conservação possam impender sobre o dono (ex: se a obra tiver sido realizada em sua casa).
(d) Entrega da obra – o empreiteiro não só se obriga a realizar determinada obra, como também a proceder à sua entrega, no prazo estabelecido ou após a respetiva aceitação. Se nada mais for acordado, a obrigação de entrega só surge após a conclusão. Não tendo sido estabelecido prazo para a entrega da coisa, deverá ser fixado pelo tribunal se partes não se entenderem – art. 777º/2.
A obrigação de entrega tem natureza instrumental e é acessória do dever de realizar a obra. Note-se que as despesas de entrega correm por conta do empreiteiro.
O local da entrega varia consoante se trate de:
i. Bem imóvel – o lugar da entrega deve ser o do local onde se encontra, salvo convenção em contrário;
ii. Bem móvel – deverá ser entregue no lugar onde foi realizada.
⇒ A Realização de uma Obra
A obra, para efeitos da empreitada, não se identifica com o sentido geral de serviço, sendo antes uma modalidade específica de serviço que se traduz num resultado material, correspondente à criação, modificação ou reparação de uma coisa, como o fabrico, manufatura, construção, benfeitorias, etc.
Existiu uma controvérsia na doutrina sobre se a obra teria que ser entendida em sentido material, ou se a obra intelectual poderia igualmente ser objeto do contrato de empreitada, ou seja, se a “obra” referida no art. 1207º abrange coisas corpóreas e incorpóreas ou apenas corpóreas:
o MENEZES LEXXXX x ROXXXX XXXXXXXX xonsideram que a obra intelectual não pode ser objeto do contrato de empreitada, que se restringe a coisas corpóreas, sendo antes objeto do contrato de encomenda de obra intelectual, nominado no art. 14º do CDAC. Efetivamente, a noção de obra constante do art. 1207º é restringida às coisas corpóreas, dado que o regime da fiscalização (art. 1209º), da transferência da propriedade (art. 1212º), das alterações (arts. 1214º e ss.) e dos defeitos da obra (arts. 1218º e ss.) é dificilmente compatível com a criação de obras intelectuais, uma vez que nestas tem que ser assegurada uma maior liberdade ao criador e a questão principal prende-se com a atribuição do direito de autor sobre a obra, questão que o regime da empreitada não resolve. Por último, se viesse a abranger as obras intelectuais, o contrato de empreitada passaria a ser uma figura demasiado ampla, esgotando quase completamente o regime da prestação de serviços. A essas situações aplicam-se, em primeira linha, as regras relativas ao direito de autor, e, subsidiariamente as regras da empreitada.
o PEXXX XX XXXXXXXXXXX x FEXXXX XXXXXXX, em sentido contrário, integram a obra intelectual no contrato de empreitada. MEXXXXX XXXXXXXX xefende que, em relação ao contrato de empreitada, se verificou uma evolução que levou à desmaterialização deste contrato, parecendo por isso que a empreitada possa acolher coisas incorpóreas.
⮚ Preço:
O art. 1211º/1 dispõe que é aplicável à determinação do preço, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 883º. Já o nº 2 estipula que o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no ato de aceitação da obra.
⮚ Subempreitada:
A subempreitada é um contrato subordinado a um negócio jurídico precedente; é uma empreitada de
‘segunda’ mão, que entra na categoria geral do subcontrato.
A empreitada e a subempreitada não se fundem num único negócio jurídico, mas antes mantêm-se distintas e individualizadas – o empreiteiro (que é o dono da obra na subempreitada) continua adstrito para com o dono da obra principal a todas as obrigações emergentes. O subempreiteiro, por via do contrato de subempreitada, vincula-se a realizar uma prestação relacionada com a obra.
Os contratos prosseguem a mesma finalidade, apesar de serem distintos, e a subempreitada enquadra-se no projeto geral.
A subempreitada pode ser celebrada sem autorização (arts. 1213º/2 e 264º/1).
» Regime Jurídico
Aplicam-se as mesmas regras devido à semelhança dos contratos, mas pode ficar sujeita a cláusulas diferentes da empreitada-base por vontade das partes, quanto ao preço, forma de determinação, termo, etc.
No caso de ter sido celebrada subempreitada sem a autorização do dono da obra, quando exigível, o contrato será válido, mas inoponível em relação ao dono da obra, gerando responsabilidade contratual para o empreiteiro a realização pelo subempreiteiro de qualquer parte da obra.
Relações entre o dono da obra principal e o subempreiteiro – a admissibilidade de uma relação destas
contraria o princípio da relatividade dos contratos.
Contudo, ROXXXX XXXXXXXX xceita a existência de uma ação direta com caráter de reciprocidade. Assim, o dono da obra, como credor de uma determinada prestação, pode exigir o seu cumprimento ou a responsabilidade derivada do incumprimento ao subempreiteiro, em razão da íntima conexão existente entre os dois negócios jurídicos, que visam a prossecução do mesmo fim. Poderá ainda o dono da obra principal fiscalizar a obra, estando lá apenas o subempreiteiro (ML rejeita esta possibilidade, por se contrariar princípio da relatividade dos contratos).
Também funciona ao contrário: ao subempreiteiro deve ser concedida ação direta contra o dono da obra principal para exigir o pagamento do preço da obra realizada em subempreitada. Caso não seja pago, nada obsta a que o subempreiteiro exerça o direito de retenção com respeito à parte da obra por ele executada, mesmo que seja propriedade do primeiro contraente – ação direta legitimada por motivos de ordem económico-social, e devido à confiança criada.
No caso das alterações necessárias na subempreitada, o acordo deve ser celebrado entre empreiteiro e subempreiteiro, cabendo àquele obter a aprovação do dono da obra (art. 1214º/1). Há toda a conveniência em que o acordo envolva as três partes. Caso a obra seja alterada sem autorização, é havida como defeituosa, mas se o dono quiser aceita-la tal como foi executada, não fica obrigado a qualquer suplemento nem a indemnização por enriquecimento sem causa (art. 1214º/2).
No caso de alterações exigidas pelo dono da obra, as mesmas podem ser dirigidas diretamente ao subempreiteiro (neste sentido, CAXXXXXX XXXXXXXXX; contra, MEXXXXX XXXXXX: a parte no contrato é o empreiteiro, não o subempreiteiro).
Como a subempreitada é dependente da empreitada, a extinção desta por aquela, nomeadamente por desistência do dono (art. 1229º) faz extinguir o contrato de subempreitada, aplicando-se o regime do art. 1227º, podendo o empreiteiro desistir da subempreitada ao abrigo do art. 1229º.
⇒ Formação e Execução do Contrato
⮚ Formação do Contrato:
Não há especificidades. Às vezes, mete um pedido de orçamento ao empreiteiro, feito, por regra, sem compromisso.
Define-se o programa, seleciona-se o projetista, elabora-se o projeto, elabora-se um caderno de encargos, uma proposta altamente pormenorizada.
⮚ Execução do Contrato:
Alterações ao plano convencionado:
Estas alterações podem ser:
a) Por iniciativa do empreiteiro (art. 1214º) – as alterações não autorizadas são proibidas, em harmonia com o princípio da estabilidade dos contratos (nº 1). Relativamente às autorizadas, se tiver sido fixado preço global, a alteração terá de ser feita por escrito, com fixação do aumento do preço; caso contrário, o empreiteiro só pode exigir do dono da obra uma indemnização correspondente ao enriquecimento sem causa (nº 3).
b) Exigidas pelo dono da obra (art. 1216º) – desvio à regra de que um contrato não pode ser unilateralmente revogado por uma das partes (art. 406º/1).
c) Nexxxxxxxxx (art. 1215º) – abrange situações em que a execução da obra impõe, em consequência de direitos de terceiro ou de regras técnicas, que sejam efetuadas alterações ao plano convencionado. Nesse caso, as partes deverão fixar por acordo quais as alterações a efetuar e os termos em que estas ocorrerão, e na sua falta, caberá ao tribunal determinar essas alterações e fixar as correspondentes modificações quanto ao preço e prazo de execução da obra. Neste caso, não se prevê o direito de o dono da obra denunciar o contrato face ao aumento do preço em consequência das alterações. O que ele poderá fazer é desistir da empreitada, nos termos do art. 1229º, ainda que a indemnização que nesse caso tenha de pagar ao empreiteiro seja consideravelmente superior.
MENEZES LEITÃO – não se abrange aqui o facto de se ter tornado mais onerosa ou difícil a execução, caso em que empreiteiro só poderá invocar alteração das circunstâncias (art. 437º) nem abrange situações devidas a factos imputáveis às partes, caso em que é aplicável o regime geral do incumprimento. ROXXXX XXXXXXXX xiz que, nessa última situação, aplica-se o art. 1215º, sendo que a parte responsável suportará os danos todos.
d) Posteriores à entrega e novas obras (art. 1217º) – como distinguir, apesar de terem o mesmo regime? Alterações serão as modificações ao plano convencionado que não alterem a natureza, nem revistam autonomia; já serão obras novas, aquelas que, apesar de terem relação com a obra original, não são necessárias para a sua realização.
⇒ Cumprimento Defeituoso
Cabe ao comitente a verificação final da obra (art. 1218º). A existência de defeitos indicia um cumprimento defeituoso do contrato de empreitada, tendo a existência do vício de ser provada pelo dono da obra, atribuindo-se ao dono os direitos de eliminação dos defeitos, nova construção, redução de preço, resolução do contrato e indemnização (arts. 1221º, 1222º e 1223º).
Quatro situações:
a) Desconformidade da obra em relação ao convencionado;
b) Vícios que reduzam o seu valor;
c) A sua inaptidão para o uso ordinário;
d) Vícios que reduzam o valor da obra para o uso previsto no contrato.
Não é o empreiteiro que deve avaliar objetivamente se é impossível a eliminação de defeito (como diz RUX XX XXXXX) nem é o dono: tem de ser um terceiro imparcial e objetivo (MENEZES LEITÃO). Deve ter-se atenção à exigência de proporcionalidade do art. 1221º/2.
Relativamente ao prazo para a verificação de defeitos, esta deve ser feita dentro do prazo usual ou, na falta de uso, dentro do período que se julgue razoável depois de o empreiteiro colocar o dono da obra em condições de a poder fazer (art. 1218º/2). Já o prazo para a denúncia dos defeitos ao empreiteiro está previsto no art. 1220º/1, que fixa um prazo de 30 dias seguintes ao descobrimento desses defeitos.
O art. 1225º estabelece uma garantia suplementar no caso de empreitadas destinadas a longa duração. É um direito de indemnização autónomo que acresce aos direitos referidos nos arts. 1219º ss. Tem de incidir sobre imóveis, destinados a longa duração. Para ROXXXX XXXXXXXX, estamos perante uma responsabilidade subjetiva, pelo que o empreiteiro não deve responder pela ruína resultante de qualquer vício do solo, mas apenas daqueles a que se deveria ter apercebido. Para MENEZES LEITÃO, trata-se de responsabilidade objetiva, resultante de uma garantia legalmente concedida ao dono da obra neste tipo de empreitadas. Mas, mesmo seguindo esta última opinião, um tremor de terra, sendo facto exterior, não contará.
As cláusulas de exclusão da responsabilidade do empreiteiro são nulas nos termos do art. 809º, e as cláusulas de limitação da mesma poderão ser estipuladas, ainda que sem efeitos perante terceiros.
⇒ Responsabilidade do Empreiteiro:
O empreiteiro é responsável, não só pela violação dos deveres emergentes do contrato, mas também por desrespeitar ilicitamente com culpa direitos de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios (art. 483º).
O incumprimento dos deveres emergentes do negócio faz com que o empreiteiro incorra em responsabilidade contratual.
Na apreciação da existência de culpa do empreiteiro, o critério aplicável é o da diligência do bom pai de família (art. 487º/2) e tem de ser aferido tendo em conta as regras da arte vigentes naquele domínio. A sua violação não constitui ilicitude, mas é critério para aferir a culpa.
⇒ Empreitada de Bens de Consumo:
O regime especial da venda de bens de consumo no DL 67/2003 (art. 1º-A) declara expressamente a aplicação do diploma “com as devidas adaptações” à empreitada.
O art. 3º/2 possibilita a aplicação a empreitada de imóveis. O art. 2º/3 prende-se com o conhecimento do defeito.
Caso se verifique a não conformidade com o contrato, o dono da obra tem direito a que a conformidade seja reposta sem encargos, por reparação, obra nova, redução do preço ou resolução (art. 4º).
⇒ Extinção do contrato de empreitada:
⮚ Impossibilidade de Cumprimento – art. 1227º + 790º:
A impossibilidade de execução da obra não determina apenas a liberação do empreiteiro em relação ao dono da obra, mas também vai extinguir a obrigação do dono em pagar. Contudo, o art. 1227º vem admitir que o empreiteiro, embora perdendo direito ao pagamento, venha a adquirir o direito a uma compensação pelo
trabalho executado e despesas realizadas (caso não lhe seja imputável a impossibilidade): forma equitativa de repartir as consequências da impossibilidade de execução da obra.
⮚ Risco pela perda ou deterioração da obra:
Continua a ser possível efetuar a obra, mas esta vem a ser perdida ou a ser objeto de deterioração. O regime encontra-se no art. 1228º, que estabelece a regra res perit domino, i.e., que o risco pelo perecimento ou deterioração da coisa corre por conta do proprietário – assim, há que aplicar as regras do art. 1212º para definir quem é o proprietário da obra:
a) Se a coisa perecer enquanto for propriedade do empreiteiro (o que sucederá se for ele a fornecer os materiais nas empreitadas de coisas móveis ou se for o dono do solo nas imóveis) – o risco corre por conta do empreiteiro. Há casos em que, mesmo sendo o empreiteiro o proprietário da obra, o risco corre por conta do dono da obra: no caso de este se encontrar em mora quanto à verificação ou aceitação da coisa, já que, nos termos do 1228º/2, há aí uma inversão do risco.
b) Se a coisa perecer enquanto for propriedade do dono (o que sucederá se for ele a fornecer os materiais nas empreitadas de coisas móveis ou se for o dono do solo nas imóveis) – o risco corre por conta do dono.
⮚ Desistência do dono (art. 1229º):
Há uma derrogação à regra geral do art. 406º, mas com obrigação de indemnizar a outra parte pelo interesse contratual positivo. É uma faculdade que a lei coloca no arbítrio do dono da obra, pelo que é de exercício livre, não tendo este que apresentar qualquer motivo.
Pode ser realizada a todo o tempo, mas fica precludida, a partir do momento em que, após a conclusão da obra, o empreiteiro coloca o dono em condições de efetuar a sua verificação: aí a desistência não faria sentido, pois o seu objetivo é obstar à conclusão da obra.
A desistência do dono da obra não destrói retroativamente o contrato de empreitada, tendo apenas efeitos para o futuro, liberando o empreiteiro do dever de concluir a obra, mas atribuindo ao dono da obra a parte já executada.
⮚ Morte ou incapacidade do empreiteiro (art. 1230º).