EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA CÍVEL DA COMARCA DE CABO FRIO/RJ
EXCELENTÍSSIMO XXXXXX XXXXXX XXXX XX XXXXXXX XX XXXX XXXXX XX XXXXXXX XX XXXX XXXX/XX
REF: Inquérito Civil n° 01-018/07
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO,
inscrito no CNPJ sob o n° 28.305.936/0001-40, pela 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio, no exercício de suas atribuições legais e constitucionais, com fundamento no artigo 129, inciso III, da Constituição da República e nos artigos 1º, incisos II e IV, da Lei Federal n° 7.347/85 e artigo 34, inciso VI, alínea a da Lei Complementar Estadual 106/2013, lastreado nas informações existentes no procedimento investigatório que a esta serve de base, vem propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE DEFESA DO CONSUMIDOR
com requerimento de tutela provisória de urgência antecipada
em face de:
ENEL BRASIL S.A, CNPJ Nº 07.523.555/0001-67, com endereço à
Xxxxx Xxxxx Xxxxx, xx00, bloco 2, 7º andar, bairro São Domingos, cidade de Niterói-RJ, XXX 00000-000; e
AMPLA ENERGIA E SERVIÇOS S/A, sociedade com sede na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, com sede à Xxxxx Xxxxx Xxxxx, xx00, Xxx Xxxxxxxx, inscrita no CNPJ sob o nº 33.050.071/0001-58
pelos motivos que passa a expor:
1. DOS FATOS
O procedimento investigatório que lastreia a presente ação civil pública foi instaurado com o escopo de apurar suposto vício de qualidade dos serviços públicos prestados pelas rés, concessionárias responsáveis pela distribuição de energia elétrica no Município de Cabo Frio, ante os constantes episódios de interrupção no fornecimento de energia elétrica.
Com efeito, a 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio vem acompanhando os relatos de descontinuidade no fornecimento de energia elétrica nos Municípios de Arraial do Cabo, Cabo Frio e Armação dos Búzios desde o ano de 2007, por meio do Inquérito Civil 01-018/2007.
Desde o nascedouro, e ao longo dos 13 anos de tramitação do presente procedimento, inúmeras reclamações de moradores, da Ordem dos Advogados, políticos locais e associações de classe foram juntadas aos autos, relatando, dentre outras coisas, recorrentes interrupções injustificadas no fornecimento de energia elétrica, causando prejuízos aos usuários dos serviços.
Nesse contexto, esclarece-se que a qualidade do serviço de fornecimento de energia elétrica pode ser verificada por meio da análise dos indicadores de continuidade do serviço, que são estabelecidos pela ANEEL e servem para que as distribuidoras, os consumidores e a própria agência reguladora possam avaliar a qualidade do serviço prestado e o desempenho do sistema elétrico1.
É preciso destacar que existem indicadores de continuidade do serviço coletivos e individuais. Em relação aos primeiros, a agência reguladora exige que as concessionárias mantenham um padrão de continuidade e, para tal, edita limites para os indicadores coletivos de continuidade, quais sejam, o DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora), conforme definido no Módulo 8 dos Procedimentos de Distribuição - PRODIST.2 Vejamos os conceitos:
- Indicadores Coletivos, acompanhados pela ANEEL através de subdivisões das distribuidoras, denominadas Conjuntos Elétricos, referindo-se,
1 Vide Resolução 395/2009, Módulo 8 (disponível em xxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxx/XXX/Xxxxxx0_Xxxxxxx_0.xxx
2 xxxxx://xxx.xxxxx.xxx.xx/xxxxxxxxxxx-xxxxxxxxx-xx-xxxxxxxxxxxx acesso em 04.02.2020.
pois, a um conjunto de unidades consumidores (regiões, municípios etc). São eles:
DEC – duração equivalente de interrupção por unidade consumidora: intervalo de tempo que, em média, no período de apuração, em cada unidade consumidora do conjunto considerado, ocorreu descontinuidade da distribuição de energia elétrica;
FEC – frequência equivalente de interrupção por unidade consumidora: número de interrupções ocorridas, em média, no período de apuração, em cada unidade consumidora do conjunto considerado.
Já os indicadores individuais apontam o tempo e a frequência com que cada unidade consumidora ficou sem energia durante um período considerado. Avaliam, portanto, as interrupções percebidas em cada unidade consumidora. São eles:
DIC – Duração de interrupção por unidade consumidora: intervalo de tempo que, no período de apuração, em cada unidade consumidora ou ponto de conexão ocorreu a descontinuidade da distribuição de energia elétrica;
FIC – Frequência de interrupção por unidade consumidora: número de interrupções ocorridas, no período em apuração, em cada unidade consumidora ou ponto de conexão.
Indicam por quanto tempo e o número de vezes, respectivamente, que uma unidade consumidora ficou sem energia elétrica durante um período considerado.
DMIC – Duração máxima de interrupção por unidade consumidora: Indicador que afere o tempo máximo de cada interrupção contínua de energia elétrica, em uma unidade consumidora ou ponto de conexão, visando impedir que a concessionária deixe o consumidor sem energia elétrica durante um período muito longo.
DICRI – Duração da interrupção individual ocorrida em dia crítico por unidade consumidora: Apura a duração das interrupções ocorridas em dias cuja quantidade de ocorrências emergenciais seja muito acima da média – dia crítico.
De acordo com as respostas apresentadas pela ANEEL a esta Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva, bem como por meio de consulta ao site da ANEEL, constatou-se que, nos últimos 8 anos houve violação, pela concessionária, dos limites máximos fixados para o indicador coletivo DEC (duração equivalente de interrupção por unidade consumidora) e, ainda, para o FEC (frequência equivalente de interrupção por unidade consumidora) em todos os conjuntos associados do município. (Doc. 1 e Doc. 2)
Na mais recente informação prestada pela ANEEL, emitida em abril de 2019, a agência reguladora apresentou os indicadores de continuidade dos conjuntos elétricos que servem às cidades de Arraial do Cabo, Cabo Frio e Armação dos Búzios, no período compreendido entre 2014 e 2019. Foram constatadas transgressões em praticamente todos os indicadores anuais no período. (Doc. 1 e Doc.2)
A fim de facilitar a visualização da situação, inserimos abaixo as tabelas extraídas do site da ANEEL, contendo os indicadores de continuidade por conjunto, abrangendo apenas os conjuntos elétricos que servem à cidade de Cabo Frio.
O site da ANEEL somente disponibiliza o índice de indicadores coletivos por conjunto até o ano de 2018. Os dados de 2019 constam do oficio mencionado anteriormente (DOC 1). Destacamos em vermelho os períodos em que a concessionária não observou o limite de continuidade estabelecido pela agência reguladora:
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2018) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 28.079 | 17,32 | 11,00 | 12,61 | 8,00 |
CABO FRIO | 13028 | 50.762 | 12,35 | 7,00 | 9,44 | 4,00 |
CEDAEMA | 13097 | 3.621 | 41,37 | 15,00 | 14,17 | 9,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 68.195 | 16,98 | 11,00 | 16,72 | 6,00 |
TAMOIOS | 13088 | 41.391 | 27,87 | 14,00 | 17,18 | 9,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 32.817 | 14,13 | 11,00 | 10,40 | 7,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2017) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE | DEC | DEC | FEC | FEC |
BUZIOS CABO FRIO | 13027 13028 | CONSUMIDORES 27.240 51.153 | APURADO | LIMITE 12,00 | APURADO | LIMITE 8,00 |
22,43 | 9,78 | |||||
16,72 | 7,00 | 8,49 | 4,00 | |||
CEDAEMA | 13097 | 3.553 | 57,00 | 15,00 | 22,76 | 10,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 64.418 | 18,01 | 11,00 | 8,76 | 6,00 |
TAMOIOS | 13088 | 40.311 | 34,27 | 15,00 | 19,25 | 9,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 32.152 | 18,99 | 11,00 | 9,10 | 8,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2016) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 25.863 | 24,10 | 14,00 | 11,84 | 9,00 |
CABO FRIO | 13028 | 49.386 | 18,22 | 7,00 | 12,48 | 4,00 |
CEDAEMA | 13097 | 3.594 | 50,11 | 15,00 | 23,90 | 10,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 62.044 | 20,15 | 11,00 | 12,26 | 6,00 |
TAMOIOS | 13088 | 38.509 | 42,52 | 16,00 | 19,88 | 10,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 30.573 | 23,77 | 12,00 | 19,37 | 8,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2015) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 25.044 | 25,24 | 15,00 | 12,66 | 10,00 |
CABO FRIO | 13028 | 47.352 | 16,48 | 7,00 | 11,11 | 4,00 |
CEDAEMA | 13097 | 3.693 | 45,98 | 15,00 | 16,55 | 10,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 62.258 | 22,41 | 11,00 | 14,76 | 6,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 29.750 | 26,89 | 13,00 | 18,27 | 8,00 |
TAMOIOS | 13088 | 37.404 | 51,10 | 17,00 | 22,86 | 11,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2014) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 24.172 | 15,41 | 17,00 | 7,65 | 10,00 |
CABO FRIO | 13028 | 45.627 | 17,26 | 7,00 | 10,06 | 4,00 |
CEDAEMA | 13097 | 3.815 | 54,41 | 15,00 | 22,45 | 10,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 60.131 | 12,74 | 11,00 | 8,70 | 6,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 29.001 | 16,36 | 13,00 | 13,04 | 8,00 |
TAMOIOS | 13088 | 35.595 | 32,85 | 17,00 | 14,61 | 11,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2013) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 25.510 | 15,58 | 19,00 | 11,40 | 11,00 |
CABO FRIO | 13028 | 50.704 | 12,17 | 8,00 | 8,70 | 5,00 |
CEDAEMA | 13097 | 4.185 | 39,03 | 16,00 | 19,30 | 11,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 65.061 | 15,88 | 11,00 | 13,29 | 7,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 31.826 | 14,81 | 14,00 | 8,84 | 9,00 |
TAMOIOS | 13088 | 37.131 | 23,06 | 19,00 | 12,46 | 12,00 |
Indicadores de Continuidade por Conjunto | ||||||
ENEL RJ - Ano (2012) | ||||||
CONJUNTO | CÓDIGO | Nº DE CONSUMIDORES | DEC APURADO | DEC LIMITE | FEC APURADO | FEC LIMITE |
BUZIOS | 13027 | 24.632 | 18,91 | 20,00 | 8,32 | 13,00 |
CABO FRIO | 13028 | 48.281 | 9,69 | 9,00 | 5,64 | 5,00 |
CEDAEMA | 13097 | 4.150 | 47,50 | 17,00 | 19,07 | 12,00 |
PORTO DO CARRO | 13071 | 64.443 | 14,48 | 12,00 | 8,17 | 7,00 |
XXX XXXXX XX XXXXXX | 00000 | 30.998 | 14,55 | 15,00 | 8,55 | 10,00 |
TAMOIOS | 13088 | 35.593 | 31,25 | 20,00 | 14,12 | 13,00 |
À luz dos fatos narrados, conclui-se que as informações disponibilizadas pela ANEEL indicam com clareza que a concessionária ré vem prestando tal serviço de forma deficiente, desde o ano de 2012, aos consumidores do Município de Cabo Frio.
A conclusão acima quanto ao péssimo serviço prestado pela demandada no município é corroborada pela ANEEL. Em missiva dirigida a esta Promotoria de Justiça, a agência reguladora prestou as seguintes informações: (doc.1)
1. Os indicadores de continuidade dos conjuntos elétricos que atendem as cidades de Arraial do Cabo, Cabo Frio e Armação dos Búzios, medidos no período compreendido entre 2014 e 2019, revelam transgressões aos limites estabelecidos pela ANEEL em praticamente todos os indicadores anuais no período.
2. Para combater o mal serviço prestado pela ENEL, a concessionária foi selecionada para o 2º ciclo do plano de resultados, que é uma abordagem da ANEEL sobre as piores concessionárias sob diversos aspectos, incluindo a continuidade do fornecimento. Nesse processo a empresa deve elaborar um plano com duração de 24 meses, onde apresenta as ações e obras para o atingimento dos limites estabelecidos.
3. No ranking de continuidade estabelecido pela agência reguladora, a ENEL-RJ ficou em 28ª posição dentre as 30 empresas com mais de 400 mil unidades consumidoras na apuração de 2018.
Em acréscimo, a demandada apresentou ao MPRJ relatório de interrupções no fornecimento de energia elétrica no Município, bem como o número de clientes afetados. (Doc 3) O relatório compreende o período de junho a novembro de 2017. Constata-se que centenas de interrupções ocorreram, afetando milhares de consumidores.
Assim, resta devidamente comprovado que as ações até então adotadas pela demandada se mostraram insuficientes para a regularização do serviço e cessação dos danos causados a todas as classes de consumidores de Cabo Frio, eis que os indicadores coletivos de qualidade evidenciam o vício do serviço prestado pela ré aos munícipes.
É importante fazer aqui uma consideração sobre as compensações realizadas pela demandada no âmbito da violação aos indicadores individuais de continuidade. Conforme dito linhas acima, os indicadores individuais apontam o tempo e a frequência com que cada unidade consumidora ficou sem energia
durante um período considerado. A violação dos limites definidos pela ANEEL para os indicadores individuais de continuidade gera compensação financeira automática às unidades consumidoras. (Doc.1).
Contudo, as compensações pecuniárias feitas aos consumidores abrangidos pelos conjuntos de transmissão associados ao Município de Cabo Frio, por óbvio, não se prestam à integral recomposição dos danos causados à coletividade, decorrentes de frequentes e duradouras interrupções do fornecimento de energia elétrica, que continuam a existir.
É bem de ver, portanto, que ainda que haja alguma compensação financeira aos consumidores afetados pelas falhas na prestação do serviço, o que se busca com a propositura da presente ação coletiva é justamente prevenir, evitar que as frequentes e demoradas interrupções na distribuição de energia elétrica continuem a ocorrer, eis que o serviço deve ser prestado contínua, eficaz e adequadamente aos munícipes de Cabo Frio, o que não vem acontecendo.
Além disso, as compensações são feitas automaticamente, conforme regulamento descrito no módulo 8 dos procedimentos de distribuição, não sendo, portanto, proporcionais aos eventuais prejuízos materiais e morais que são causados há anos aos moradores da cidade de Cabo Frio.
§
Além das constatações feitas a partir dos dados disponibilizados pela agência reguladora, há nos autos evidências de que a população cabo-friense vem se indignando há muito tempo com a qualidade do serviço oferecido pela demandada. É pública e notória a intranquilidade gerada nos munícipes em razão do inadequado serviço prestado pela ré.
Em agosto de 2015 esta Promotoria de Justiça recebeu um abaixo assinado de moradores da Rua primeiro de março, bairro São Francisco, Cabo Frio, relatando inúmeras interrupções no fornecimento de energia e solicitando providencias ao Parquet. Naquela oportunidade os subscritores relataram que a inadequação do serviço prestado afetou dezenas de famílias, afetando inclusive a dignidade dos atingidos. (DOC 4).3
Em Dezembro de 2015 o representante legal do edifício Leste Shopping encaminhou representação a esta Promotoria de Justiça, relatando inúmeras oscilações de tensão na energia, provocando mal funcionamento nos elevadores do shopping. Em razão da pane nos elevadores, a missiva relata inclusive casos de
3 Fls. 671/675 do IC 01-018/07.
pessoas passando mal e se acidentando em razão do desnível do elevador com o piso. (DOC 5).4
Em Outubro de 2017, o então Deputado Estadual Xxxxx Xxxxxx encaminhou oficio à 1 Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Cabo Frio. (DOC 6)5. O Parlamentar relatou que vinha recebendo inúmeras denúncias de constantes quedas de energia e interrupções no fornecimento de energia elétrica, causando diversos prejuízos à população, transtornos pela ausência de serviço essencial, queima de eletrodomésticos, mal funcionamento de semáforos e outros inconvenientes. A missiva se fez acompanhar de inúmeras matérias de jornais relatando as constantes interrupções no fornecimento de energia e a indignação da comunidade local.
Também em outubro de 2017, a 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio instaurou o inquérito civil 84/2017, para apurar especificamente denuncia de má prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica no Bairro do Foguete, em Cabo Frio. (Doc. 7) O procedimento foi instaurado a partir do recebimento de representação da Associação de Moradores do sobredito bairro, acompanhada de expressivo abaixo-assinado6, solicitando providencias do MPRJ em relação às constantes interrupções no fornecimento de energia elétrica ao bairro.7 Destaco da representação o seguinte trecho8:
“Como é de conhecimento público, os usuários do serviço de energia elétrica no Bairro Praia do Foguete da cidade de Cabo Frio vêm sofrendo com as constantes interrupções no fornecimento de energia elétrica, provocadas pela prestação inadequada e deficiente de serviços públicos que a Ampla Energia e Serviços
S.A vem proporcionando...
Certo é que os moradores do bairro sofrem com a interrupção de energia elétrica ao longo de aproximadamente 20 anos, sendo de conhecimento geral esse fato... No período em que se concentram mais forte os ventos e as chuvas, as interrupções no fornecimento de energia tornam-se mais constantes, sendo que os reparos levam de 05 (cinco) a 15 (quinze) horas para serem realizados... nos casos em que o problema ocorre no período noturno, a manutenção somente se consumará no dia seguinte...
Em consequência são constantes os inconvenientes imputados aos moradores, como por exemplo: prejuízos com a perda de produtos perecíveis e de remédios caros que devam ser mantidos sob refrigeração; a queima de aparelhos elétricos e eletrodomésticos; a falta de agua que atinge inclusive todas as pousadas e
4 Fls. 714/718 do IC 01-018/07.
5 Fls. 841/856 do IC 84.2017.
6 Fls. 18-27 do IC 84.2017.
7 Fls. 08 do IC 84.2017.
8 Fls. 08-17 do IC 84.2017.
condomínios, visto que necessitam de energia elétrica para ligar a bomba d´agua para abastecer suas caixas d´agua...
No bairro do foguete residem ainda muitos idosos que utilizam equipamentos médicos que dependem de energia para seu funcionamento, sem contar que a falta de energia elétrica causa uma tremenda insegurança no bairro...
Em março de 2019, a Câmara Municipal de Cabo Frio instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar problemas no fornecimento de energia elétrica pela concessionária ré (Doc 8).9 Pode-se verificar que as principais reclamações dos usuários gravitaram em torno da interrupção de energia onde há aparelhos para consumidores vitais, constantes quedas de energia na região, especialmente na alta temporada, e o consequente impacto dessas quedas no comercio local.10 Também se apontou na CPI, pelos representantes do Procon Cabo Frio, o elevado número de reclamações contra o serviço prestado pela ré.11
Especificamente às fls. 16 do relatório final da CPI, apontou-se a existência de várias reclamações de consumidores junto ao PROCON sobre picos de energia e sobretensão forte após apagão, e consequente queima de aparelhos eletrodomésticos. Concluiu-se, naquela comissão, após extensa oitiva de populares e Instituições da sociedade civil, que o serviço prestado pela ré seria evidentemente defeituoso, a demandar, na visão dos autores do relatório, a medida extrema de extinção da concessão.12
Por sua vez, o PROCON de Cabo Frio instaurou procedimento para apurar centenas de reclamações de consumidores quanto ao serviço prestado pela ré, formuladas desde o ano de 2015, culminando na aplicação de multa no valor de R$1.176.000,00 em razão do defeituoso serviço prestado na região. (Doc 9) 13. O procedimento foi instaurado a partir de missiva subscrita pela Dra. Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxx Xxxxxxxxx, coordenadora geral do Procon Cabo Frio.
Segundo o relato da Dra. Xxxxxx, o Procon vinha recebendo inúmeras reclamações quanto à qualidade dos serviços prestados pela ré desde o ano de 2015. Dentre as reclamações, foram destacadas as quedas constantes de energia, com danificação de objetos, prejuízos em estabelecimentos comerciais, lesão à saúde, segurança e vida dos consumidores. 14 Destacou-se ainda, na mesma missiva, que embora alguns casos individuais fossem resolvidos, posteriormente
9 Procedimento MPRJ nº 2019.01228627.
10 fls. 08 do relatório final.
11 Fls. 09 do relatório final.
12 fls. 17 do relatório final.
13 Processo nº 37.261/2019.
14 Fls. 06 do procedimento 37261/2019.
outros consumidores reclamavam dos mesmos problemas, demonstrando que no âmbito coletivo as falhas na prestação do serviço perpetuavam-se.15
Constam do procedimento instaurado pelo Procon inúmeras reclamações individuais relatando diversas falhas na prestação do serviço pelas rés, dentre elas a descontinuidade no fornecimento de energia elétrica; bem como matérias de jornais relatando o descontentamento da população com os serviços prestados pelas demandadas.16 Destaco o seguinte trecho do relatório elaborado pelo Procon Xxxx Xxxx00:
“Em relação às quedas constantes de energia, a concessionária responde objetivamente por interrupções, seguidas e demoradas, do fornecimento de energia elétrica, que desrespeitem os índices de qualidade fixados pela ANEEL. Por exemplo: uma empresa que deixa de funcionar, em virtude de problemas na rede elétrica, tem direito de ser indenizada em relação ao que deixou de lucrar nesse período. Assim ocorre também nos casos de prejuízos com consumido doméstico.
Importante alertar ainda que a queda, oscilação, sobrecarga de energia pode acarretar outros prejuízos que vão além dos danos em equipamentos eletro eletrônicos, como óbitos decorrentes da paralisação de equipamentos que garantem a continuidade da vida de pessoas, o perecimento de remédios acondicionados em refrigeradores...
Logo, é perceptível que o serviço não esta sendo prestado de maneira adequada, a cada 10 reclamações recebidas por este órgão, 07 são referentes à empresa ENEL, o que de fato vem gerando grandes transtornos a toda a população.”
Percebe-se, portanto, que a insatisfação histórica da população cabofriense com os serviços prestados pela ENEL – RJ, em especial quanto à descontinuidade na prestação do serviço, encontra firme e seguro amparo nos indicadores coletivos de continuidade do serviço apresentados pela ANEEL, não restando qualquer dúvida quanto ao descumprimento do dever de prestar um serviço adequado, conforme demonstraremos nos capítulos seguintes.
15 Fls. 06 do procedimento 37261/2019.
16 Fls. 08-74 do procedimento 37261/2019.
17 Fls. 107-111 do procedimento 37261/2019.
2. DO DIREITO.
2.1 Do evidente vício de qualidade do serviço prestado aos consumidores do Município de Cabo Frio.
A Constituição da República prevê a proteção do consumidor como direito e garantia fundamental do indivíduo e, ainda, como princípio geral da atividade econômica, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, da Carta Política, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
V – defesa do consumidor.
É de se destacar que a presente ação se submete aos ditames da Lei 8.078/1990, ante a inequívoca relação consumerista estabelecida entre os usuários do serviço no Município de Cabo Frio e a sociedade empresária ENEL-RJ. Não é outra a interpretação que se extrai do artigo 4º, VII da lei 8078/90, quando dispõe que a racionalização e melhoria dos serviços públicos é um dos princípios da política nacional das relações de consumo. Ou mesmo do disposto no art. 6º, X do mesmo diploma legal, que garante, como direito básico do consumidor, a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.
Ao ultrapassar os limites fixados para os indicadores coletivos de qualidade (DEC e FEC), relativamente aos conjuntos que atendem ao Município, sem mencionar a extrapolação dos indicadores individuais, a concessionária ré contraria os princípios básicos do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), assim como os princípios informadores da Política Nacional das Relações de Consumo, conforme se depreende da leitura dos dispositivos que seguem transcritos:
“Art. 4°. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de
sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(...)
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;”
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) estabelece, em seu artigo 6º, inciso X, que a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral constituem direito básico do consumidor, senão vejamos:
“Art. 6°. São direitos básicos do consumidor: (...)
X – adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”
Em reforço ao diploma consumerista, é de se registrar o que estabelece a lei 8.897/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos. Confira-se a redação dos arts. 6º, §1º, 7º e 31º, todos da lei acima destacada, que impõe às concessionárias o dever de prestarem serviços adequados:
Art. 6o Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1o Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
Art. 7º. Sem prejuízo do disposto na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários:
I - receber serviço adequado;
Art. 31. Incumbe à concessionária:
I - prestar serviço adequado, na forma prevista nesta Lei, nas normas técnicas aplicáveis e no contrato;
Frise-se que a adequada e eficaz prestação do serviço pressupõe o atendimento às normas estabelecidas pelos entes reguladores, sendo vedado à
Concessionária a sua execução em dissonância com os regulamentos da ANEEL que definem padrões (indicadores de desempenho e de qualidade do serviço) às distribuidoras de energia elétrica.
Os elementos coligidos aos autos do procedimento que lastreia a presente ação civil pública indicam que as rés tem deixado de cumprir o dever de prestar um serviço público adequado, ferindo, ainda, o princípio da eficiência a que aludem os artigos 37, caput e 175, parágrafo único, inciso IV da Carta Magna.
Isso porque a prestação dos serviços públicos pressupõe sua continuidade, sendo inadmissível a ocorrência e até mesmo subsistência de interrupções frequentes na distribuição de energia elétrica aos munícipes de Cabo Frio, notadamente em se tratando de serviços considerados essenciais, como é o caso do serviço de fornecimento de energia elétrica, conforme estabelecido no artigo 10, inciso I da Lei 7.783/199918.
Nesse diapasão, cumpre trazer à baila a lição do insigne mestre Xxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx00:
“A Constituição Federal, referindo-se ao regime das empresas concessionárias e permissionárias, deixou registrado que tais particulares colaboradores, a par dos direitos a que farão jus, têm o dever de manter adequado o serviço que executarem, exigindo-lhes, portanto, observância ao princípio da eficiência (art. 175, parágrafo único, inciso IV)”
Na mesma linha segue Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxx00, quando afirma que:
“O serviço público deve ser prestado de maneira contínua, o que significa dizer que não é possível de interrupção. Isto ocorre pela própria importância de que o serviço público se reveste, o que implica ser colocado à disposição do usuário com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e oportunidade. (...) Essa continuidade afigura-se em alguns casos de maneira absoluta, quer dizer, sem qualquer abrandamento, como ocorre com serviços que atendem necessidades permanentes, como é o caso do fornecimento de água, gás, eletricidade. Diante, pois, da recusa de um serviço público, ou do seu fornecimento, ou mesmo da cessação indevida deste, pode o usuário utilizar-se das ações judiciais cabíveis, até as de rito mais célere, como o mandado de segurança e a ação cominatória.”
18 Lei 7.783/1989. Dispõe sobre o exercício do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências.
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis;
19 XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx. Direito Administrativo. 22ª edição, páginas 322/323
20 In Curso de Direito Administrativo, 2ª edição – São Paulo: Saraiva, 1996, página 165
Incide na hipótese vertente, ainda, o disposto no art. 20, caput e § 2º do Código de Defesa do Consumidor, que versa sobre a responsabilidade do fornecedor por vício de quantidade e qualidade dos produtos colocados à disposição do consumidor, in verbis:
“Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;
II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III - o abatimento proporcional do preço.
§ 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor.
§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.” (grifou-se)
Ressalte-se, por fim, que o caso em tela denota flagrante violação ao preconizado pelo artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor, que determina a prestação adequada e eficaz dos serviços públicos, inclusive, pelas empresas concessionárias, senão vejamos:
“Artigo 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.”
É certo, pois, que a Concessionária demandada violou, flagrante e inequivocamente, todos os dispositivos acima transcritos, à medida que prestou aos consumidores de Cabo Frio serviço que não atende aos padrões de continuidade e qualidade estabelecidos pela Agência Reguladora ANEEL, consubstanciando verdadeiro vício de qualidade.
2.2 Do dano moral coletivo ante a violação a interesses dos consumidores.
De acordo com o art. 37, §6º da CRFB/88, as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Cuida-se do fundamento constitucional para a aplicação do regime da responsabilidade objetiva às prestadoras de serviço público quando, nessa condição, causarem danos a terceiros no exercício de suas atividades. Essa responsabilidade objetiva é reforçada pelo disposto no artigo 1421 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços.
Fixada esta relevante premissa, para que sejam as demandadas responsabilizadas, é necessário a configuração dos seguintes elementos: o dano, a ação do agente e o nexo causal.
No presente caso, os indicadores coletivos divulgados pela ANEEL revelam, sem sombra de dúvidas, que a ré vem prestando serviço defeituoso e inadequado, à luz das metas de continuidade e qualidade fixadas pela agência reguladora. Comprovada, portanto, a ação.
Também há inegável relação de causalidade entre a ofensa perpetrada em desfavor da comunidade local e o serviço defeituoso prestado pela demandada. Contudo, por conta de suas peculiaridades, cuidaremos de, na próxima seção, demonstrar a configuração do dano moral coletivo no presente caso, em razão da conduta da demandada.
§
No caso vertente, entende o MPRJ que a conduta da ré provocou lesão a valores essenciais da coletividade, relacionados a prestação de serviço público
21 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
essencial, motivo pelo qual deve ser condenada ao pagamento de danos morais coletivos.
No plano normativo pátrio não há qualquer dúvida quanto à existência da figura jurídica do dano moral coletivo (ou difuso). Os incisos V e X do art. 5º da Constituição asseguram a indenização por dano moral, sem fazer nenhum tipo de limitação ao dano causado, se individual ou coletivo.22 Como se pode notar, tal dispositivo não faz distinção entre direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos para fins de verificação de qual deles é passível de dano, pelo que descabe ao intérprete, em interpretação restritiva e que não preserva a aplicação imediata do direito fundamental ali previsto, fazer distinção.
O caso é de interpretação da norma constitucional segundo a exegese que maior eficácia lhe preserva, abrangendo, portanto, não apenas o dano perpetrado a pessoa ou pessoas individualizáveis e identificáveis, mas também aquele causado a pessoas indeterminadas, ainda que ligadas entre si por circunstâncias meramente fáticas.
Conferindo lastro a esse entendimento, previu o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 81, que “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo” (grifo oposto). Esta defesa, por sua vez, é exercida quando se tratar de direitos coletivos, individuais homogêneos e também difusos, considerados estes “(...) os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato”.
Veja-se, pois, que em momento algum o legislador enunciou que apenas as coletividades individualizadas ou individualizáveis é que seriam passíveis de sofrer danos morais. Tal ideia, em verdade, equivaleria a dizer que pessoas indeterminadas podem sofrer danos de ordem patrimonial, tão somente, mas nunca de ordem moral, o que, obviamente, não se sustenta.
Em reforço a este argumento, é de se observar a norma do artigo 1º, inciso IV, da Lei nº 7.347/85, segundo a qual são regidas pelas disposições da Lei de Ação Civil Pública, “as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados a qualquer outro interesse difuso ou coletivo” (grifo
22 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
oposto).23 Em complemento, o art. 6º, VI do CDC lista como um dos direitos básicos do consumidor a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.
Destarte, defender-se a existência hipotética de um dano moral difuso não se trata de mera divagação teórica. Cuida-se, isto sim, de simples leitura de texto legal, sendo qualquer interpretação no sentido da sua inexistência uma interpretação contra legem, a autorizar, eventual e oportunamente, a interposição do recurso constitucional cabível por violação ao teor expresso de lei federal. Tal discussão, inclusive, já se encontra ultrapassada, posto que a existência do dano moral coletivo já é tese sedimentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, conforme demonstraremos nas próximas linhas.
§
Conquanto a legislação não tenha definido o conceito de dano moral coletivo, doutrina e jurisprudência vem se encarregando da tarefa de lhe traçar os contornos e definir as hipóteses de sua incidência. Em sede doutrinária, já se definiu o dano moral coletivo como “a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, ou seja, violação antijurídica de um determinado círculo de valores coletivos”.24
Em breves palavras, pode-se entender o dano moral coletivo como o resultado de toda ação ou omissão lesiva contra o patrimônio, material ou imaterial, da coletividade, incluído no conceito as gerações futuras.25 Necessário, portanto, que a lesão transborde os lindes do individualismo, afetando, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais.26
Contudo, não é qualquer lesão a interesses comunitários que se presta a configurar os danos morais coletivos. Extensa gama de julgados do Superior
23 Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).
l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor;
24 Xxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxx, em sua festejada obra: “Improbidade Administrativa”, 4ª ed, Xx. Xxxxx Xxxxx, Xxx xx Xxxxxxx, 0000, p. 668 e 689
25 Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx Xxxxx. Manual de Direito Civil, 2ª edição. Volume Único, editora jus podivum, 2018. pg. 931.
26 REsp 1.473.846/SP, Terceira Turma, DJe 24/02/2017
Tribunal de Justiça já abordaram o tema27, fornecendo norte aos operadores do direito para identificarem situações aptas a configuração do dano moral coletivo.
Com efeito, é pacífico no Superior Tribunal de Justiça que a lesão apta a configurar o dano moral coletivo é aquela que atinge valores essenciais da coletividade, mediante grave ofensa à moralidade pública. Evita-se aqui o tratamento trivial de tão importante instituto jurídico, a fim de não o banalizar.28
Com arrimo nas lições de Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx Xxxxxxx00, a Ministra Xxxxx Xxxxxxxx argumentou que “os valores essenciais da sociedade abrangem matéria totalmente insubordinada aos danos morais individuais, relacionando-se a “ato que atinge a toda a sociedade, num rebaixamento imediato do nível de vida da população [...] que traz diminuição da tranquilidade social, ou de quebra de confiança, em situações contratuais ou extracontratuais, que acarreta redução da qualidade coletiva de vida”30
Em diversos julgados, o Superior Tribunal de Justiça acrescentou outros fatores a serem considerados na caracterização da lesão apta a configurar o dano moral coletivo. Afirmou-se naquele colegiado que, quando a conduta agride valores éticos fundamentais da sociedade, gerando repulsa e indignação na consciência coletiva, resta configurado o dano moral coletivo. 31
Também já se afirmou, com propriedade, que “o dano moral coletivo é a lesão na esfera moral de uma comunidade, isto é, a violação de direito transindividual de ordem coletiva, valores de uma sociedade atingidos do ponto de vista jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas qualquer
27 Há vários julgados do Superior Tribunal de Justiça no sentido do cabimento da condenação por danos morais coletivos em sede de ação civil pública. Precedentes: EDcl no AgRg no AgRg no REsp 1440847/RJ, Rel. Ministro XXXXX XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 15/10/2014, REsp 1269494/MG, Rel. Ministra XXXXXX XXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013; REsp 1367923/RJ, Rel. Ministro XXXXXXXX XXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 06/09/2013; REsp 1197654/MG, Rel. Ministro XXXXXX XXXXXXXX, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 08/03/2012.
28 RECURSO ESPECIAL Nº 1.823.072 - RJ (2019/0185366-1) e REsp 1.303.014/RS, Quarta Turma,
Relator para acórdão o Ministro Xxxx Xxxxxx e REsp 1.502.967/RS, Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, Terceira Turma
29 XXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxxx xx. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. Revista Trimestral de Direito Civil 19/215
30 RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.346 - SP
31 REsp 1.473.846/SP, Terceira Turma, DJe 24/02/2017
abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na verdade, apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial de uma pessoa”.32
Vê-se, portanto, que o STJ vem exigindo, para a caracterização do dano moral coletivo, que a conduta ilegal resulte em violação a valores essenciais da comunidade, aptos a gerar – ainda que em tese-33 intranquilidade social, repulsa coletiva, rebaixamento do nível de vida, quebra de confiança, etc.
A gama de interesses coletivos e difusos passiveis de serem vulnerados e dar ensejo à indenização por danos morais coletivos também é extensa. O STJ já reconheceu a configuração de danos morais coletivos por ofensa a direitos coletivos ou difusos de caráter extrapatrimonial, como direitos do consumidor, meio ambiente, ordem urbanística, entre outros.34 Mais especificamente, já se reconheceu a configuração de danos morais coletivos por violação aos seguintes interesses coletivos: segurança alimentar35, tráfego de veículo em rodovia com excesso de peso36, venda casada de serviços de telecomunicações37, violação a normas de atendimento presencial em agências bancárias38, violação da honra de uma comunidade difusa39, discriminação contra idosos40, interrupção no fornecimento de energia elétrica com transtornos à comunidade41, ausência de acessibilidade em agencia bancária42, etc.
Conclui-se, portanto, que somente a lesão a valores essenciais da coletividade podem configurar o dano moral coletivo, como corre no presente caso, que versa sobre descontinuidade grave na prestação de serviço público essencial a toda uma cidade. Contudo, a análise do dano moral difuso enseja outras reflexões. Vejamos.
32 AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.342.846 - RS (2012/0187802-9
33 A ressalva feita aqui, com o uso da expressão “em tese”, se justifica na medida em que a constatação do dano moral se faz em “in re ipsa”, conforme abordaremos mais adiante.
34 REsp n. 1.410.698/MG, Rel. Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxx, Segunda Turma, DJe 30/6/2015
35 RECURSO ESPECIAL Nº 1.799.346 - SP (2017/0206978-0) RELATORA : MINISTRA XXXXX XXXXXXXX
36 AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.517.245 - MG (2019/0160040-5) XXXXXXXXX XXXXXX
37 AgInt no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 900.932 - MG (2016/0093966-6) e Resp
1.397.870/MG.
38 REsp 1737412/ SE RECURSO ESPECIAL 2017/0067071-8 . Relatora: Ministra Xxxxx Xxxxxxxx
39 Xxxxxxxxx xxxxxx, ob. Citada. 931.
40 Xxxxxxxxx xxxxxx, ob. Citada. 931. Resp 1.057.274/RS.
41 Xxxxxxxxx xxxxxx, ob. Citada. 931.
42 REsp nº 0000000 / XX (2010/0197076-6), Rel. Ministro Xxxxxxxx Xxxxx
§
Prosseguindo na abordagem dos elementos caracterizadores do dano moral difuso, importa ressaltar que a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de que a constatação do dano moral coletivo se dá in re ipsa, isto é, independentemente da comprovação de dor, sofrimento ou abalo psicológico dos indivíduos que integram a comunidade afetada.43
Isto porque doutrina44 e jurisprudência45 já avançaram no tratamento do tema para reconhecer que dor e sofrimento não são requisitos da configuração do dano moral, mas sim traços externos que não necessariamente acompanham todos os danos morais. Não são o dano em si, mas apenas reflexos. Nesse sentido o enunciado 444 das Jornadas de Direito Civil:
“ O dano moral indenizável não pressupõe necessariamente a verificação de sentimentos humanos desagradáveis como dor ou sofrimento.”
Em acréscimo, o interesse extrapatrimonial da coletividade atingida não se confunde com o interesse individual dos lesados. Esse traço distintivo, qual seja, ausência de personalidade da comunidade, simplesmente impossibilita por completo que se vincule a configuração do dano moral coletivo à dor, sofrimento ou outros dissabores dos lesados individuais.
Portanto, a análise do dano moral coletivo se procede à luz dos fatos objetivamente considerados e da presença ou não de lesão intolerável a interesse socialmente relevante. Deriva do fato por si só.46
Confira-se o julgamento abaixo transcrito, que bem ilustra o que foi aqui colocado:
“Importante assinalar que, ante a ausência de personalidade (ao menos em seus moldes clássicos), é prescindível a demonstração da efetiva vulneração do interesse extrapatrimonial da coletividade atingida, não obstante seja possível, em algumas hipóteses, constatar-se os efeitos negativos da conduta lesiva. Em razão disso, a jurisprudência desta Corte Superior se firmou no sentido de que a constatação do dano moral coletivo se dá in re ipsa, isto é, independentemente da comprovação de dor, sofrimento
43 RECURSO ESPECIAL Nº 1.823.072 - RJ (2019/0185366-1), Rel. Ministro Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxx
44 Xxxxxxxxx Xxxxxx, ob. Citada. pg. 924.
45 STJ, RESP 1.292.141 / SP (2011/0265264-3), Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx
46 REsp n. 1.410.698/MG, Rel. Ministro Xxxxxxxx Xxxxxxx, Segunda Turma, DJe 30/6/2015
ou abalo psicológico. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.823.072 - RJ . 2019/0185366-1)
O dano moral extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou coletividade como realidade massificada, que a cada dia reclama mais soluções jurídicas para sua proteção. Isso não importa exigir da coletividade dor, repulsa, indignação tal qual fosse um indivíduo isolado, pois a avaliação que se faz é simplesmente objetiva, e não personalizada, tal qual no manuseio judicial da boa-fé objetiva. Na noção inclui-se tanto o dano moral coletivo indivisível (por ofensa a interesses difusos e coletivos de uma comunidade) como o divisível (por afronta a interesses individuais homogêneos)" (REsp n. 1.574.350/SC, Rel. Ministro xxxxxx Xxxxxxxx, Segunda Turma, julgado em 3/10/2017, DJe 6/3/2019). Nesse sentido também o precedente desta Segunda Turma: REsp n. 1.057.274, Segunda Turma, Rel. Ministra Xxxxxx Xxxxxx, Dje 26/2/2010.
Conforme asseverado na decisão agravada, verifica-se que o entendimento adotado pela instância de origem encontra-se em consonância com a jurisprudência desta Corte, firmada no sentido do cabimento da condenação por danos morais coletivos, em sede de ação civil pública, considerando o STJ, inclusive, que o dano moral coletivo é aferível in re ipsa, ou seja, sua configuração decorre da mera constatação da prática de conduta ilícita que, de maneira injusta e intolerável, viole direitos de conteúdo extrapatrimonial da coletividade, revelando-se despicienda a demonstração de prejuízos concretos ou de efetivo abalo moral. (AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.342.846 - RS (2012/0187802-9)
§
Ainda pertinente a esta fase de fixação de premissas, importante ressaltar que a existência de penalidades administrativas, já aplicadas ou passiveis de aplicação futura, não excluem a possibilidade de condenação judicial ao pagamento de danos morais coletivos.
Em primeiro lugar, a CRFB/88 estabelece que a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito47. Logo, a imposição de penalidade na seara administrativa, ou a mera possibilidade de aplicação desta, não pode servir como argumento de afastamento de lesão a direito da apreciação do Poder Judiciário. O comportamento anterior da administração não condiciona o agir do judiciário, especialmente quando a atuação branda do administrador convida o sancionado a perpetuar seu agir inadequado48.
47 Art. 5º, XXXV.
48 AgInt no AREsp 1517245 / MG AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
2019/0160040-5;
Ademais, as instâncias civil, penal e administrativa são, em regra49, independentes e autônomas. Os atos sancionatórios na esfera administrativa são punições aplicadas àqueles que transgridam normas administrativas.50 Na esfera administrativa, a legislação descreve algumas condutas como infrações, prevendo a aplicação de multa e/ou outras penalidades.51 Tipicamente preventiva, a responsabilidade administrativa tem como objetivo tanto intimidar potenciais infratores como castigar os que descumpriram o mandamento normativo ou contratual.
Concessionárias de serviços públicos, por exemplo, quando descumprem total ou parcialmente as cláusulas de seus respectivos contratos, estão sujeitas às penalidades contratuais e administrativas, conforme estabelece o art. 23, VIII da Lei 8987/95.52
Já a condenação por danos morais se presta a indenizar uma lesão causada à esfera moral da coletividade, encontrando seu fundamento legal no art. 186 do Código Civil.53
Portanto, uma mesma conduta pode, simultaneamente, dar causa a responsabilidades nos campos administrativo, civil e penal. Como ressalva o professor Xxxx Xxxxxxxx xxx Xxxxxx Xxxxx, “ao executar o serviço, o concessionário assume todos os riscos do empreendimento. Por esse motivo, cabe- lhe responsabilidade civil e administrativa pelos prejuízos que causar ao poder concedente, usuários ou terceiros.54
Esse entendimento encontra abrigo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Em lapidar precedente, assim se manifestou o colegiado:
“A existência de penalidade ou outra medida administrativa in abstracto (para o futuro) ou in concreto (já infligida), como resposta a determinada conduta ilegal, não exclui a possibilidade e a necessidade de providência judicial, nela contida a de índole cautelar ou inibitória, com o intuito de proteger os mesmos direitos e deveres garantidos, em tese, pelo poder de polícia da administração, seja com cumprimento forçado de obrigação de
49 Há exceções, mas que não apresentam relação de pertinência com a presente demanda.
50 Xxxxxxxx Xxxxx, Xxxx xxx Xxxxxx. Manual de Direito Administrativo. Editora atlas., pg. 154.
51 Xxxxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxx Xxxxxxxxxx. Direito Ambiental. Editora Gen. Fls. 354.
52 Art. 23. São cláusulas essenciais do contrato de concessão as relativas:
VI - aos direitos e deveres dos usuários para obtenção e utilização do serviço;
53 Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
54 Xxxxxxxx Xxxxx, ob. Citada. pg. 417.
fazer ou de não fazer, seja com determinação de restaurar e indenizar eventuais danos materiais e morais causados ao indivíduo, à coletividade, às gerações futuras e a bens estatais...”55
Em acréscimo, lançamos os seguintes argumentos. Muitas vezes a conduta do administrador ao aplicar sanções administrativas não é suficiente para impor ao administrado a mudança de comportamento. Com isso, a penalidade na seara civil se torna não só desejável, como imprescindível para complementar o prévio atuar da Administração Pública.
Outras vezes, são as sanções administrativas, por si só, insuficientes para atingir o desiderato de impor ao administrado um atuar mais adequado e compatível com as normas de qualidade do serviço. Esta desproporcionalidade entre as multas concretamente aplicadas – ou abstratamente cominadas- e o benefício usufruído pela concessionária faz com que as multas passem simplesmente a fazer parte dos seus registros de receitas e despesas. Incorporam- se na contabilidade da sociedade empresária.
Em suma, o que se quer dizer aqui é que, mesmo diante da penalidade, compensa ao infrator prosseguir no atuar ilícito, estimulando-se aqui, nas palavras do Ministro Xxxxx Xxxxxxxx, um “investimento empresarial na antijuridicidade do ato”56. Confira-se:57
“A confessada inobservância da norma legal pela empresa recorrida autoriza - ou melhor - exige a pronta atuação do Poder Judiciário, com o fito de inibir o prosseguimento dessas práticas nefastas, em que as sanções administrativas, reiteradamente aplicadas no decorrer de 10 anos, não se revelaram capazes de coibir ou minimizar a perpetração de infrações ao Código de Trânsito Brasileiro.
Nesse passo, a multa civil assume enorme importância, surgindo como o verdadeiro fator desestimulante de perpetuação de práticas ilegais ou de prestação de serviços inadequados. Prestigia-se aqui a função punitiva do dano moral, já largamente aceita pela doutrina e jurisprudência pátrias. Como ensinam os professores Xxxxxxx Xxxxxxx, Xxxxxx Xxxxxx e Xxxxxxxx Xxxxxxx:58
“ A par desses argumentos, acrescente-se que a possibilidade de reparação do dano moral coletivo contribui para desestimular as práticas abusivas contra os direitos do consumidor, o que está em perfeita consonância com o
55 REsp nº 0000000 / XX (2015/0315458-4). Rel. Ministro Xxxxxx Xxxxxxxx.
56 AgInt no AREsp 1517245 / MG. Ministro Xxxxxxxxx Xxxxxx. Julgado em 07.11.2019. 57 AgInt no AREsp 1517245 / MG. Ministro Xxxxxxxxx Xxxxxx. Julgado em 07.11.2019. 58 Interesses Difusos e Coletivos. Editora método. 7 edição. 2017. Pg. 461
mandamento constitucional de efetiva defesa desse agente econômico vulnerável e com a atual jurisprudência do STJ, que tem admitido a função punitiva na reparação do dano moral.
Já os professores Xxxxxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxxx e Xxxxxx Xxxxx Xxxx nos oferecem as seguintes lições:59
“ É inegável que a função primária da responsabilidade civil contemporânea provavelmente continuará sendo compensatória, abrangendo o ressarcimento do dano patrimonial e a satisfação dos danos extrapatrimoniais. Todavia, cremos que a função compensatória, isoladamente, é incapaz de explicar a complexa dinâmica da responsabilidade civil. Defendemos a necessidade do sistema de responsabilidade civil contar com mecanismos capazes de sancionar comportamentos ilícitos, em caráter preventivo e de forma autônoma ao ressarcimento de danos. Há uma perspectiva de operabilidade da responsabilidade civil à luz de uma função dissuasória de ilícitos.
Não destoa do ensinamento doutrinário o corpo de decisões que vem sendo proferidas no Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo a função punitiva do dano moral, conforme atestam o seguinte julgado:
No dano moral coletivo, a função punitiva - sancionamento exemplar ao ofensor - é, aliada ao caráter preventivo - de inibição da reiteração da prática ilícita - e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade. [...] O reconhecimento do dano moral coletivo cumpre, por outro lado, funções específicas, com a finalidade precípua de punição do responsável pela lesão e de inibição da prática ofensiva e, apenas como consequência, a redistribuição do lucro obtido de forma ilegítima pelo ofensor à sociedade... A jurisprudência desta Corte adota essa orientação, ao asseverar que a condenação em reparar o dano moral coletivo visa punir e inibir a injusta lesão da esfera moral de uma coletividade, preservando, em ultima ratio, seus valores primordiais. [...] No dano moral coletivo, a função punitiva – sancionamento exemplar ao ofensor
– é, pois, aliada ao caráter preventivo – de inibição da reiteração da prática ilícita – e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade. RECURSO ESPECIAL Nº 1.737.412 - SE (2017/0067071-8).
59 Manual de Direito Civil, volume único. 2 edição. Editora jus podivum. Pgs. 883/884.
Logo, uma vez verificada a insuficiência da sanção administrativa como forma de dissuadir a atuação inadequada, a multa civil surge como verdadeira resposta à sociedade. Vilipendiada em seus direitos básicos, estabelecidos em lei, como o Código de Defesa do Consumir e a lei de concessões e permissões, a população precisa do conforto em saber que não está relegada a própria sorte. A punição surge como forma de alivio à angustia da comunidade e fator estimulante do cumprimento das normas.
§
No caso em tela, as demandadas atentaram flagrantemente contra a ordem extrapatrimonial coletiva dos munícipes-consumidores de Cabo Frio, à medida que enfraqueceu a já corroída noção de respeito à ordem jurídica. A demandada fez incutir ainda mais na convicção dos cidadãos a ideia de menosprezo, menoscabo aos Poderes Constituídos, Instituições e à ordem jurídica com o descumprimento do Código de Defesa do Consumidor e da regulamentação oriunda da ANEEL.
Vale destacar que a condenação da ré a reparar os danos morais sofridos pelos munícipes de Cabo Frio, coletivamente considerados, é perfeitamente admissível e, mais que isso, imperiosa, sendo certo que tal pleito não se confunde tampouco obsta o direito à eventual indenização individual, por danos individuais comprovadamente sofridos pelos consumidores.
No caso vertente, tratamos de prestação de serviço essencial, qual seja, fornecimento de energia elétrica. Se a descontinuidade no fornecimento de energia elétrica, no simples âmbito individual, já é suficiente para caracterizar dano moral aos lesados, no âmbito coletivo não se pode chegar a conclusão diversa. Nesse contexto, apenas para ilustrar o tratamento que vem sendo dado ao tema no âmbito individual, colacionamos entendimento sumulado no âmbito do Tribunal de Justiça Fluminense:
“Súmula nº 192 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: A indevida interrupção na prestação de serviços essenciais de água, energia elétrica, telefone e gás configura dano moral.”
Também encontramos no Tribunal de Justiça Fluminense uma variada gama de julgados reconhecendo a configuração do dano moral, em casos individuais, ante a descontinuidade na prestação do serviço de fornecimento de energia elétrica. In verbis:
0005138-53.2016.8.19.0075 - APELAÇÃO Des(a). XXXX XXXXXXXX XXXXXXXX XXXXXXX - Julgamento: 29/01/2020 - DÉCIMA PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL
APELAÇÕES CÍVEIS. DIREITO DO CONSUMIDOR. AÇÃO INDENIZATÓRIA. AMPLA. INTERRUPÇÃO NO SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DE AMBAS AS PARTES. APLICAÇÃO DO ART. 3º, § 2º
DO CDC. Concessionária ré que, em sua defesa, não afasta a interrupção do serviço de energia eletrica, afirmando, contudo, que houve falha técnica e por breve período, sem produzir provas capazes de infirmar o direito alegado, ônus que lhe recai por força do art. 373, inciso ii, do ncpc/15. aplicação da súmula nº 193 do tjrj. período que não é breve. falha na prestação do serviço. dano moral configurado. quantum indenizatório fixado de acordo com os parâmetros adotados por esta corte de justiça, e em observância aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade. manutenção da sentença que se impõe. precedentes jurisprudenciais. desprovimento dos recursos.
0015735-72.2017.8.19.0002 - APELAÇÃO
Des(a). XXXXXX XXXXXXX XX XXXX XX XXXXXXX XXXXXX - Julgamento: 29/01/2020 - DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL APELAÇÃO CÍVEL. RELAÇÃO DE CONSUMO. SERVIÇO DE
ENERGIA ELÉTRICA. PESSOA JURÍDICA. Estabelecimento empresarial. Paralisação do fornecimento da tensão elétrica de 220-v, essencial à operação de diversos equipamentos do restaurante. Funcionamento irregular seguido da interrupção indevida do serviço de energia. Prestação inadequada e descontínua pelo período de quatro dias. Hipótese de breve interrupção afastada. Dano moral. Admissibilidade de sua incidência em caso de ofensa à honra externa. Atendimento insatisfatório da clientela comprovado. Abalo ao nome e à imagem da pessoa jurídica, em face da exposição perante consumidores. Lesão extrapatrimonial caracterizada. Verba compensatória bem dosada. Dano material não refutado em sede de contestação. Desatendimento do ônus da impugnação especificada. Impossibilidade de inovação em sede recursal. Recurso desprovido
001402-53.2018.8.19.0076 - APELAÇÃO Des(a). XXXXXXX XXXX XXXXX XXXX'ORTO - Julgamento: 29/01/2020 - DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL
APELAÇÃO. FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. RELAÇÃO
DE CONSUMO. Interrupção de fornecimento de energia elétrica. Reconhecimento da suspensão do serviço. Necessidade extemporânea de reparo na rede elétrica. Fato incontroverso. Sentença de procedência do pedido. Inconformismo da ré. Ainda que a suspensão no fornecimento tenha ocorrido por deficiência operacional ou força maior, em nada se justifica a demora desarrazoada para o seu restabelecimento. Dano moral caracterizado in re ipsa. Quantum indenizatório, a título de dano imaterial, arbitrado em valor que é necessário e suficiente para reprovação e prevenção do dano
moral, observados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, bem como da vedação ao enriquecimento ilícito. Acerto da sentença. Precedentes. RECURSO NÃO PROVIDO
0012756-49.2015.8.19.0054 – APELAÇÃO Des(a). XXXXXXX XXX XXXXXX XXXXXXX XXXX - Julgamento: 28/01/2020 - DÉCIMA QUINTA
CÂMARA CÍVELDireito do Consumidor. Energia elétrica. Interrupção do fornecimento. Ato ilícito. Danos morais. Apelação desprovida. 1. A relação entre as partes é de consumo, sendo a apelante prestadora do serviço de distribuição de energia elétrica tomado pelo apelado. 2. É obrigada a prestar serviço adequado, contínuo e eficiente. 3. No caso vertente, não nega a apelante em sua contestação a interrupção do serviço. 4. A suspensão indevida do serviço de energia elétrica causa danos morais. 5. Valor adequado, ante o tempo de duração da ofensa e a idade do apelado. 6. Apelação a que se nega provimento
No âmbito coletivo, em precedente oriundo do TRF da 3ª região, a conduta de concessionária de energia elétrica em interromper fornecimento de energia elétrica em unidade consumidora adimplente, apenas em razão de o consumidor ser responsável por outra unidade que não esteja em dia com suas obrigações perante a concessionária, foi reconhecida como ilegal e apta a causar dano moral coletivo. Confira-se trecho do voto da relatora, Desembargadora Xxxxxxxx Xxxxxxx:60
“a indenização por danos morais tem por finalidade compensar os prejuízos ao interesse extrapatrimonial sofridos pelo ofendido, que não são, por sua natureza, ressarcíveis e não se confundem com os danos patrimoniais, estes sim, suscetíveis de recomposição ou, se impossível, de indenização pecuniária... Para a caracterização da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos ensejadora da indenização por dano moral é essencial a ocorrência de três fatores: o dano, a ação do agente e o nexo causal... No presente caso, existe demonstração inequívoca da alegada ofensa à coletividade, sendo possível concluir que das condutas praticadas com fulcro no art. 76, IV, da Portaria DNAEE n.º 466/97, enquanto vigente, resultou efetivo prejuízo de ordem moral à coletividade, configurado conduta capaz de ensejar indenização a título de danos morais.
A ré, no caso concreto, descumpre há quase uma década os índices de continuidade na prestação do serviço de energia elétrica, serviço este de caráter essencial, afetando o cotidiano de milhares de pessoas. Importante frisar que os
60 APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO Nº 0011678-60.1999.4.03.6100/SP. (1999.61.00.011678-3/SP)
conjuntos elétricos que servem à cidade de Cabo Frio atendem um total de 220.2241 unidades consumidoras. (Doc. 2)61
A conduta é antijurídica, pois viola a legislação consumerista, a legislação que disciplina as concessões e permissões em nosso ordenamento jurídico, as cláusulas contratuais da concessão e a regulamentação expedida pela agência reguladora, todas já fartamente analisadas na presente ação civil pública.
Entendo que por se tratar de serviço de caráter essencial, sua descontinuidade em afronta à legislação representa inegavelmente violação a um valor essencial da vida da comunidade afetada. Os prejuízos ao cidadão são inúmeros. Equipamentos são danificados; comércios são obrigados a fechar as portas; produtos perecem; compromissos profissionais e pessoais são perdidos; e para solucionar os efeitos adversos provenientes das oscilações, as pessoas precisam dedicar tempo para reparar máquinas, obter o ressarcimento dos prejuízos, deslocarem-se para o Procon ou para advogados; perder tempo em filas de atendimento da Defensoria Pública e comparecer a audiências, quando a deflagração da medida judicial foi o último remédio utilizado pelos lesados.
Frise-se que essa perda de tempo útil do consumidor vem merecendo a atenção da jurisprudência. Em lapidar precedente da Ministra Xxxxx Xxxxxxxx, afirmou-se o quanto se segue, reconhecendo a indenizabilidade de tais transtornos quando provocados pela falha na prestação de serviços:62
o tempo útil e seu máximo aproveitamento são, como visto, interesses coletivos, subjacentes aos deveres da qualidade, segurança, durabilidade e desempenho que são atribuídos aos fornecedores de produtos e serviços e à função social da atividade produtiva.
A proteção à perda do tempo útil do consumidor deve ser, portanto, realizada sob a vertente coletiva, a qual, por possuir finalidades precípuas de sanção, inibição e reparação indireta, permite seja aplicada a teoria do desvio produtivo do consumidor e a responsabilidade civil pela perda do tempo. Essa proteção à intolerável e injusta perda do tempo útil do consumidor ocorre, portanto, pelo “desrespeito voluntário das garantias legais [...], com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço”, revelando “ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé” (REsp 1645744/SP, Terceira Turma, DJe 13/06/2017), conduta que enseja a condenação em danos morais coletivos.”
61 Conjuntos Búzios, Cabo Frio, Cedaema, Porto do Carro, São Pedro da Aldeia e Tamoios. Fls. 882 do IC 01-018/2007. Este número representa o total de unidades consumidoras ligadas aos conjuntos elétricos que servem à cidade de Cabo Frio. Contudo, os conjuntos elétricos não servem apenas à cidade de Cabo Frio, abrangendo também unidades consumidoras em outras cidades.
62 RECURSO ESPECIAL Nº 1.737.412 - SE (2017/0067071-8). Rel. Ministra Xxxxx Xxxxxxxx
Essa gama de prejuízos e contratempos, associados a descontinuidade no fornecimento de energia elétrica é apta, por obvio, a gerar indignação social. Cuida-se de conduta grave, com ampla repercussão negativa junto aos usuários afetados, no caso uma cidade inteira. E a repulsa é ainda maior quando grande parte dos usuários afetados estão adimplentes com a concessionária.
Embora sequer fosse necessário, há nos autos farta comprovação da indignação da comunidade local com os serviços prestados pela demandada, seja pela instauração de procedimento pelo Procon, em razão do alto número de reclamações dos moradores; seja pela instauração de uma CPI na Câmara de Vereadores, pela insatisfação da população com o serviço prestado pela ré; seja pelas inúmeras reclamações constantes deste procedimento e formuladas diretamente no Procon de Cabo Frio; seja pelas inúmeras noticias de jornais contidas nos documentos que acompanham esta petição inicial.
Vale lembrar que a análise do dano moral coletivo se procede à luz dos fatos objetivamente considerados, e da presença ou não de lesão intolerável a interesse socialmente relevante. E no caso vertente, a lesão à esfera moral da coletividade atingida restou plenamente demonstrada.
Por todo o exposto, é de se concluir que o dano moral coletivo resta configurado na hipótese em tela, por se tratar de transgressão de elevada significância e repercussão social, podendo mesmo afirmar-se que se trata de incivil conduta da ré, que em franco desrespeito à legislação e regulamentação sobre tema, prossegue fornecendo serviço que não atende aos padrões de qualidade legitimamente esperados pelos consumidores do Município de Cabo Frio.
3. DO QUANTUM INDENIZATÓRIO
Em relação ao quantum indenizatório, o MPRJ entende que se aplica aqui o disposto no artigo 324, §1º, II e III do Código de Processo Civil. Eis o dispositivo em apreço:
“Art. 324. O pedido deve ser determinado.
§ 1º É lícito, porém, formular pedido genérico:
I - nas ações universais, se o autor não puder individuar os bens demandados; II - quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato;
III - quando a determinação do objeto ou do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu.
O cálculo do valor a ser fixado a titulo de danos morais coletivos depende essencialmente de se verificar o faturamento bruto e lucro da demandada nos últimos 5 anos, e tais documentos não constam nos autos, havendo pedido expresso ao fim desta petição inicial para que a demandada os apresente em juízo.
Também consta desta inicial requerimento dirigido ao Procon, para que informe o total de reclamações recebidas em relação aos serviços prestados pela ENEL-RJ nos últimos 5 anos; e requerimento de informações à ANEEL, para que informe o total de reclamações recebidas em relação aos serviços da demandada, bem como o valor total já pago pela demandada a titulo de compensações individuais, nos últimos 5 anos.
Todas essas informações, ao nosso sentir, são essenciais para que se fixe um quantum indenizatório proporcional e razoável, não sendo possível nesse momento indicá-lo com segurança ao Juízo. Daí o MPRJ formular pedido genérico de condenação ao pagamento de danos morais coletivos.
4. DA INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA
Em regra, compete ao autor o ônus de comprovar o fato constitutivo do seu direito, e ao réu a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor, na forma dos incisos I e II do art. 373 do Código de Processo Civil.63
Contudo, o parágrafo primeiro do sobredito dispositivo legal estabeleceu uma exceção à regra geral. Dispõe o parágrafo em testilha que “nos
63 Código de Processo Civil.
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
casos previstos em lei, ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput, ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.
Na hipótese dos autos, estamos diante de uma demanda coletiva em favor de interesses dos consumidores, aplicando-se ao caso o disposto no art. 6, VIII do CDC, in verbis:
“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
Em segundo lugar, cuida-se de demanda na seara de prestação de serviços de energia elétrica, serviço este de alta complexidade, cujo perfeito conhecimento do funcionamento do sistema e de suas estruturas é primordialmente dominado pela própria prestadora.
Sendo assim, absolutamente necessária a inversão do ônus da prova, ante as peculiaridades do caso em questão, bem como em decorrência do mandamento legal veiculado pelo diploma consumerista. Não destoam desse entendimento os precedentes do Tribunal de Justiça Fluminense, do qual destacamos o seguinte julgado:
“Milita em prol da parte Autora, segundo os princípios e as regras do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, presunção de defeito na prestação do serviço, operando-se, em seu benefício, inversão legal do ônus da prova em relação do defeito de segurança do produto/serviço. Competirá ao fornecedor, deste modo, para se eximir de qualquer responsabilidade, provar a inexistência de defeito na prestação do serviço ou que o fato danoso seria atribuível exclusivamente a terceiros. É, portanto, ônus da parte Ré a produção inequívoca da prova liberatória. Desse ônus, todavia, não se desincumbiu a concessionária. 64
64 0030907-25.2015.8.19.0002 - APELAÇÃO Des(a). XXXXXX XXXXXX XXXXXXX XXXX - Julgamento: 29/01/2020 - VIGÉSIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL
No mesmo sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Pública em favor de consumidores pobres, por conta da péssima qualidade e da deficiência dos serviços de telefonia móvel e internet prestados pela TIM na cidade de Parauapebas, Estado do Pará... A recorrente aduz também ofensa ao art. 6º, VIII, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), porque o ônus da prova não poderia ter sido invertido em seu desfavor, tendo em vista a falta de comprovação da verossimilhança das alegações feitas pela recorrida e da hipossuficiência desta. Contudo, a instância de origem decidiu a questão com fundamento no suporte fático-probatório dos autos, cujo reexame é inviável em Recurso Especial. No mais, a posição do Tribunal de origem está em sintonia com a jurisprudência do STJ. 7. De toda a sorte, ninguém duvida que, no mercado brasileiro de consumo de telefonia, os consumidores, em particular as pessoas físicas, encarnam, como regra, a posição de sujeito "hipossuficiente", na exata acepção do art. 6º, VII, do Código de Defesa do Consumidor. São dezenas de milhões de pobres, trabalhadores urbanos e rurais, pessoas humildes, que dependem absolutamente de serviços de telefonia, sobretudo de celular pós-pago. Por outro lado, não são poucos os casos em que, indo além das "regras ordinárias de experiência", a "verossimilhança" (CDC, art. 6º, VIII) das alegações do consumidor mostra-se tão manifesta, de conhecimento público, que atrai status jurídico de fatos notórios, os quais "não dependem de prova" (art. 374, I, do Código de Processo Civil). Tal notoriedade transmuda a inversão do ônus da prova de ope judicis para ope legis, decorrência da própria lógica do nosso sistema processual (princípio notoria non egent probatione).65
Ante o exposto, requer o Ministério Público que seja decretada por V. Exa., em decisão fundamentada, a inversão do ônus da prova.
5. DA TUTELA DE URGÊNCIA ANTECIPADA
Lançadas as questões de fato e direito que fundamentam os pedidos deste órgão ministerial, impõe-se salientar a imprescindibilidade da antecipação dos efeitos da tutela pretendida com lastro em um juízo de cognição sumária, como forma de tutelar o interesse coletivo em discussão.
Isso porque, em sede de ação coletiva cujo pedido consista na condenação em cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o art. 84, §3° da Lei 8.078/1990 estabelece que:
65 REsp 0000000 / XX RECURSO ESPECIAL 2018/0336459-7 Relator(a) Ministro XXXXXX XXXXXXXX Xxxxx Julgador SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 21/03/2019.
“Art. 84 - Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(...)
§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu.”
No mesmo sentido o disposto no art. 300 do Código de Processo Civil, segundo o qual “a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”.
Da análise dos dispositivos legais em comento, depreende-se que, sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citada a empresa ré.
Em suma, constituem requisitos para a concessão da tutela antecipada das obrigações de fazer e não fazer: o relevante fundamento da demanda e o justificado receio de ineficácia do provimento final.
O relevante fundamento da demanda, que representa o fumus boni juris e o justificado receio de ineficácia do provimento final, que consiste no periculum in mora, estão devidamente demonstrados nos documentos coligidos ao inquérito civil que embasa a propositura da ação coletiva em comento.
Com efeito, o fumus boni iuris resta devidamente demonstrado pelo acervo probatório carreado aos autos, estando bem caracterizada a inobservância dos padrões de continuidade e qualidade de serviço fixados pela ANEEL e, consequentemente, a violação aos direitos de inúmeros consumidores de Cabo Frio.
Outrossim, tem-se que está presente, igualmente, o periculum in mora, eis que demonstrado que a extrapolação dos limites máximos de frequência e duração das interrupções do serviço de distribuição de energia elétrica vem ocorrendo ininterruptamente, sendo certo que, desde a deflagração da inquisa, o Ministério Público Fluminense busca, pela via extrajudicial e sem êxito, que a concessionária adote as medidas necessárias (e suficientes!) para fazer cessar as constantes quedas de energia que tanto afetam a comunidade local.
Em outras palavras, consubstancia-se o periculum in mora no fundado receio de que o transcurso natural dessa demanda venha a causar danos irreparáveis aos consumidores, eis que, conforme fartamente provado pelos elementos coligidos ao procedimento investigatório que instrui a presente ação, são constantes os episódios de interrupção do serviço de distribuição de energia elétrica.
De mais a mais, o período de espera pela prolação da decisão definitiva decerto ensejará a continuidade da má prestação de um serviço essencial a milhares de usuários, o que configura violação frontal aos seus direitos básicos de consumidor.
Destarte, apenas com a intervenção ativa do Poder Judiciário, por intermédio da antecipação da tutela jurisdicional, o objetivo visado com esta demanda será alcançado.
Ante todo o exposto, o Ministério Público requer a concessão de tutela antecipada, inaudita altera pars, nos termos do art. 300, §2º do Código de Processo Civil, para que sejam impostas à ré as seguintes obrigações de fazer:
(i) apresentação, em prazo não superior a 60 (sessenta) dias, de estudo técnico que identifique as causas que ensejam a extrapolação dos limites máximos para os indicadores coletivos de qualidade do serviço (DEC e FEC) dos conjuntos associados que atendem ao Município de Cabo Frio, e aponte as ações que deverão ser adotadas para sanar as falhas constatadas, com o respectivo cronograma de implantação, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para a hipótese de descumprimento, parcial ou total, da obrigação imposta em antecipação da tutela;
(ii) implementação das ações contempladas no estudo/projeto técnico referidos no item anterior, integral e satisfatoriamente, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta dias) a contar da conclusão do trabalho, com a rigorosa observância do cronograma nele previsto, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para a hipótese de descumprimento, parcial ou total, da obrigação imposta em antecipação da tutela;
(iii) efetivo cumprimento das metas dos indicadores de qualidade e continuidade do serviço fixadas pela ANEEL, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta dias), sob pena de pagamento de multa fixada em, no mínimo, R$ 100.000,00 (cem mil reais) por mês em que os limites máximos dos indicadores de continuidade coletivos, relativos aos conjuntos associados de Cabo Frio, forem desrespeitados.
6 - DOS PEDIDOS
Ao fio de todo o exposto, requer o Ministério Público seja julgada inteiramente procedente a pretensão autoral, a fim de que a ré seja condenada ao cumprimento das seguintes obrigações:
(i) apresentação, em prazo não superior a 60 (sessenta) dias, de estudo técnico que identifique as causas que ensejam a extrapolação dos limites máximos para os indicadores coletivos de qualidade do serviço (DEC e FEC) dos conjuntos associados que atendem ao Município de Cabo Frio e aponte as ações que deverão ser adotadas para sanar as falhas constatadas, com o respectivo cronograma de implantação, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para a hipótese de descumprimento, parcial ou total, da obrigação imposta;
(ii) implementação das ações contempladas no estudo/projeto técnico referidos no item anterior, integral e satisfatoriamente, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta dias) a contar da conclusão do trabalho, com a rigorosa observância do cronograma nele previsto, sob pena de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para a hipótese de descumprimento, parcial ou total, da obrigação imposta;
(iii) cumprir as metas dos indicadores de qualidade e continuidade do serviço fixadas pela ANEEL, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta dias), sob pena de pagamento de multa fixada de, no mínimo, R$ 100.000,00 (cem mil reais) por mês em que os limites máximos dos indicadores de continuidade coletivos, relativos aos conjuntos associados de Cabo Frio, forem desrespeitados;
(iv) a reparar os danos morais coletivos ocasionados pela violação dos direitos metaindividuais dos consumidores, na forma da fundamentação fática e jurídica exposta na presente inicial, em valor em pecúnia a ser arbitrado pelo Juízo.
7- DOS REQUERIMENTOS
Ante todo o exposto, requer o Ministério Público:
a) A autuação e distribuição da presente ação, instruída com os autos originais do IC nº 01-018/07 e apensos.
b) A concessão inaudita altera parte da tutela de urgência de natureza antecipatória, nos termos do capítulo 5.
c) A citação das demandadas para, querendo, contestar a presente ação, no prazo legal, sob pena de revelia e confissão quanto à matéria de fato;
d) A publicação do edital a que se refere o artigo 94, do Código de Defesa do Consumidor;
e) A intimação pessoal do Promotor de Justiça em atuação junto à 1ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Núcleo Cabo Frio, para todos os atos do processo, nos termos do art. 41, inc. IV, da Lei nº. 8.625/93 e do art. 82, inc. III, da Lei Complementar nº 106/03 do Estado do Rio de Janeiro, ante o que determina a Resolução GPGJ n° 1.713, de 23.01.2012;
f) a condenação da Xxxxxxxxx ao pagamento das despesas processuais e honorários sucumbenciais, sendo estes recolhidos ao Fundo Especial do Ministério Público, criado pela Lei Estadual n° 2.819, de 07.11.1997, e regulamentado pela Resolução GPGJ n° 801, de 19.03.1998.
g) Intimação da ré a apresentar: a) faturamento bruto e lucro liquido nos anos de 2015 a 2020, por ano. (pedido imprescindível para estimar o valor da condenação ao pagamento de danos morais coletivos); b) relatório de interrupções no fornecimento de energia elétrica ao município de Cabo Frio e clientes afetados, dos últimos 5 anos.
h) intimação do Procon Cabo Frio para que informe o número de reclamações formuladas contra a ré, no período compreendido entre os anos de 2015 a 2020;
i) intimação do Juizado Especial Cível de Cabo Frio para que informe o número de ações individuais propostas em face da ENEL-RJ E AMPLA nos anos de 2015 a 2020, por ano.
j) Intimação da ANEEL para que: a) informe o número de reclamações dirigidas àquela agência reguladora, no período compreendido entre 2015 a 2020, em face da ampla RJ e ENEL RJ, em relação aos conjuntos elétricos que servem à cidade de Cabo Frio; b) relatório de desempenho das rés no cumprimento dos indicadores de continuidade coletiva pelas demandadas, nos conjuntos elétricos
que abastecem a cidade de Cabo Frio, nos anos de 2019 e 2020; c) valor total já despendido pelas rés para pagamento de compensações individuais aos usuários atendidos pelos conjuntos elétricos que servem à cidade de Cabo Frio, entre 2015 e 2020.
k) Intimação da Prefeitura de Cabo Frio para que, querendo, integrem o polo ativo da presente demanda, eis que legitimados a tanto pela lei 7347/85 e 8078/90;
l) Designação de audiência de conciliação, na forma do art. 334 do Código de Processo Civil, intimando-se para dela participar a ANEEL E A Prefeitura de Cabo Frio;
Nesta oportunidade, protesta o Ministério Público, nos termos do artigo 332 do Código de Processo Civil, pela produção de todas as modalidades de prova em direito admitidas, notadamente a documental suplementar.
Dá-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), meramente para os fins do art. 319, V e 292, V, ambos do Código de Processo Civil.
Cabo Frio, 19.02.2020.
Xxxxxxxx Xxxxxxx Bernardo Promotor de Justiça - Mat. 3.475