SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL
Processo
1069/15.9T8AMT-P.P1.S1
Data do documento
3 de novembro de 2021
Relator
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx
DESCRITORES
Arrendamento para fins não habitacionais > Venda
judicial > Hipoteca > Caducidade > Acórdão uniformizador de jurisprudência > Contrato de arrendamento > Bem imóvel > Interpretação da lei > Direito real > Direito pessoal de gozo > Abuso do direito > Revista excecional
SUMÁRIO
I - A venda, em processo executivo, de imóvel arrendado para fim não habitacional (em concreto, indústria de confeção de vestuário), quando o contrato de arrendamento tenha sido celebrado depois da constituição de hipoteca sobre esse imóvel, não faz caducar o arrendamento, como decorre do art. 1057.º do CC, não sendo aplicável o art. 824.º, n.º 2, do CC.
II - O facto de a venda executiva (do imóvel arrendado) ser sido, posteriormente, dada sem efeito não afeta a subsistência do contrato de arrendamento, o qual se mantém como se a modificação subjetiva temporária (do locador) não tivesse ocorrido.
TEXTO INTEGRAL
Processo nº 1069/15.9T8AMT-P.P1.S1
Recorrente: “Supercorte – Empresa de Confecções, S.A.”
Recorridos: “Massa Insolvente de Profato – Empresa de Confecções, S.A.” e AA
I. RELATÓRIO
1. “Supercorte – Empresa de Confecções, S.A.” propôs contra Massa Insolvente de Profato – Empresa de Confecções S.A. e AA (administrador da insolvência), por apenso ao processo de insolvência, ação destinada a que lhe fosse reconhecida a validade de um contrato de arrendamento para fim não habitacional.
2. A primeira instância proferiu a seguinte decisão:
«a) julgar a ação instaurada pela Autora totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver os Réus de todos os pedidos contra si formulados;
b) julgar a reconvenção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência condenar a Autora a restituir à Ré Massa Insolvente da “Profato – Empresa de Confeções, S.A.”, livre e devoluto de pessoas e de bens, o espaço que a Autora vem ocupando no prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, inscrito sob a matriz nº …65 da freguesia ..., ..., apreendido sob a verba … do Auto de Apreensão de Xxxx, e condenar a Autora a pagar à Ré Massa Insolvente da “Profato – Empresa de Confeções, S.A.” uma indemnização pela ocupação que vem fazendo de tal espaço, à razão de €5.500 (cinco mil e quinhentos euros), por cada mês, desde 29.02.2016 e até efetiva entrega do mesmo espaço.
A autora foi condenada a entregar o imóvel em causa, no prazo de 2 meses, após o transito em julgado.
3. Inconformada, a autora apelou, mas a Relação confirmou a decisão da primeira instância, subscrevendo os seus fundamentos. Divergiu apenas quanto ao prazo que fixou à autora para desocupar o imóvel (que passou de 2 para 4 meses).
4. Inconformada com a improcedência do essencial da apelação, a autora interpôs recurso que qualificou como revista excecional, alegando que se verificavam os fundamentos correspondentes às alíneas a), b) e
c) do art. 672º, nº 1 do CPC.
Nas suas alegações, a recorrente formulou extensas e repetitivas conclusões que parcialmente se transcrevem, expurgadas de alguns pontos irrelevantes para a apreciação da matéria em causa, bem como das considerações que se destinavam a justificar a admissibilidade da revista excecional:
«[…] K. Em causa está aferir se o facto de a sentença e o acórdão recorridos, ao sustentarem as respetivas posições numa corrente jurisprudencial por aqueles considerada como maioritária, sem aprofundar os fundamentos jurídicos que poderiam levar à manutenção do contrato de arrendamento, e sem explorar os argumentos que levaram à decisão que ignorou factos provados, e ao lançar mão do artigo 687.º nº 1 e nº 2 do C.C., normas que não existem, seria suficiente para estamos perante uma sentença nula.
L. Posições, aquelas, que dada a falta de fundamentação, só podem ser consideradas gravosos e violadoras da lei e dos princípios da proteção da confiança dos cidadãos e da segurança jurídica que pautam o nosso sistema, os quais se assumem como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.
M. Posto isto, continua a ser divergente se o nº 2 do artigo 824.º do C.C. se aplica ou não aos contratos de arrendamento, apesar de aqueles não estarem previstos no corpo da norma, nem, pela sua natureza, produzirem efeitos quanto a terceiros, isto é, quanto aos arrendatários.
[…]
V. Revertendo ao caso concreto, a sentença recorrida é manifesta ao determinar que foi celebrado um contrato de arrendamento comercial entre a Autora e a insolvente Profato, no ano de 2006, consubstanciado nos factos provados número 3, 4, e 5.
W. Mais determinou que “é inequívoco que, na data da transmissão para a BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A., da propriedade de tal imóvel, a Autora tinha a seu favor o contrato de arrendamento celebrado com a Profato – Empresa de Confeções, S.A., já que o contrato que haviam celebrado tinha a duração de 10 anos e, por isso, o seu términus apenas ocorreria em 30.09.2016, já que não há notícia de ter sido denunciado por qualquer das partes em data anterior.”
X. Não obstante, quer o tribunal de primeira instância, quero o douto tribunal da Relação do Porto determinaram que o referido contrato de arrendamento caducou com a transmissão do imóvel à Barcamaia em sede de acção executiva, através da venda judicial.
[…]
AA. Tendo ambas as instâncias concluído que:
- tendo sido constituída a hipoteca em 08.04.2002;
- tendo o contrato de arrendamento invocado pela Autora sido celebrado em 30.09.2006;
- este contrato não era oponível à Barcamaia, crédito hipotecário, atento o disposto no artigo 824.º, nº 2 do C.C.
BB. Em suma, pugnaram pela caducidade do referido contrato, sustentando o efeito extintivo do contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e a Profato, datado de 30.09.2006, com recurso ao artigo 824.º, nº 2 do Código Civil.
CC. Por via de uma interpretação errónea do referido preceito, determinaram, a folhas 24 da douta sentença e a folhas 31 e 32 do douto acórdão, conforme se transcreve, que “… o credor hipotecário nunca pode ser prejudicado por efeitos da alienação ou da oneração do bem hipotecado, já que tais direitos sendo constituídos após o registo constitutivo da hipoteca são inoponíveis ao credor hipotecário, por força da anterioridade do registo da hipoteca e da sua ineficácia em relação a esta, cfr. Artigo 687.º, nº 1, alínea h), e nº 2.º do Código Civil, e artigo 4.º, nº 2 do Código do Registo Predial.
DD. Terminam, concluindo, quer na douta sentença, quer a folhas 32 do douto acórdão que “… o contrato de arrendamento celebrado entre a autora, ora recorrente e a insolvente “Profato – Empresa de Confeções, S.A.”, caducou com a venda do imóvel arrendado no processo executivo, por aplicação do citado artigo 824.º, nº 2, do Código Civil, ou seja, com a transmissão da propriedade do imóvel para a Exequente, credora hipotecária, “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, em 08.03.2014.”
EE. Fundamentação com que a Recorrente não se conforma dado o facto de quer a sentença, quero o acórdão sustentarem a mesma em normas que não existem.
FF. Veja-se a referência ao artigo 687.º, nº 1, alínea h), e nº 2, do Código Civil, que não existe, sendo, por isso, a fundamentação nula, nos termos da alínea b) e c), do nº 1, do artigo 615.º do C.P.C, o que se invoca para os devidos efeitos.
GG. Nem se pode conformar com a errada interpretação feita ao artigo 824.º do Código Civil, nem com a convicção dos julgadores que resultou daquela interpretação que, a final, concluíram pela caducidade do contrato de arrendamento.
HH. Quer o tribunal de primeira instância, quer o douto tribunal da Relação partilham da posição defendida por parte da doutrina jurisprudência portuguesa, sendo certo que aquela posição não retrata a posição defendida pela totalidade da doutrina e jurisprudência, carecendo, ainda, de vir a ser proferido um acórdão uniformizador de jurisprudência para que a mesma se considere inabalável.
II. Ora, preceitua o artigo 824.º, nº 1 do Código Civil que “A venda e m execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.”
JJ. Prescreve o nº 2 do referido artigo que “Os bens são transmitidos livres de direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a
terceiros independentemente de registo.”
KK. Aquando da leitura da supracitada norma, atente-se às expressões “...livres de direitos de garantia que os onerarem...” e “...demais direitos reais...”, expressões, estas, essenciais à correcta interpretação da mesma e do próprio caso concreto. Vejamos,
LL. O contrato de locação, comummente designado por contrato de arrendamento, encontra-se inserido no Livro II – Direito das Obrigações, do Código Civil, caraterizando-se por ser um contrato através do qual se proporciona o gozo de uma determinada coisa a outrem, por um determinado período temporal, contra uma contrapartida pecuniária.
MM. Vários autores, tais como Galvão Telles, Pires de Lima e Xxxxxxx Xxxxxx, Xxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxxxx Xxxxx e Xxxxxxx Xxxxxx, qualificam o contrato de locação como um contrato de natureza obrigacional, sendo o locatário meramente o titular de um direito pessoal de gozo, não produzindo, consequentemente, o contrato de locação quaisquer efeitos reais.
NNº Galvão Telles acrescenta que a concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação – de natureza obrigacional – e não qualquer direito sobre a coisa.
OO. Defendem aqueles autores uma tese personalista do contrato de locação, ensinando que: o legislador o teria inserido no livro relativo aos direitos reais ao invés de o inserir no livro da obrigações, caso lhe pretendesse atribuir efeitos reais; o artigo 1031.º, alínea b) do Código Civil expressamente qualifica o gozo da coisa como sendo uma obrigação do locador, caracterizando-o como um direito pessoal de gozo; pela razão precedente exclui o contrato de locação do elenco dos “..demais direitos reais...” indicado no artigo 824.º, nº 2, do Código Civil, rejeitando a caducidade do contrato de arrendamento em caso de venda judicial em processo executivo.
PP. Por outro lado, os autores que sustentam uma tese realista e defendem a caducidade do arrendamento, interpretam o artigo 824.º, nº 2, do Código Civil no sentido de a expressão “outros direitos reais” abranger o arrendamento e, em consequência, sustentam: a inaplicabilidade do artigo 1057.º do Código Civil no caso de venda executiva em virtude da norma específica do artigo 824.º, nº 2, do Código Civil; a similitude com os direitos reais de gozo (usufruto e uso e habitação), a determinar igualdade de regime; - a inoponibilidade do arrendamento porquanto este diminui o valor do prédio dificultando a satisfação integral do direito do credor garantido; a prevalência do interesse do credor garantido relativamente aos interesses do arrendatário.
QQ. Conforme já supra exposto, nenhum dos fundamentos da tese realista se nos afigura como válido.
RR. O artigo 1057.º do Código Civil consagra o princípio “emptio non tollit locatum” sem estabelecer qualquer distinção quanto ao modo de aquisição do direito com base no qual foi celebrado o arrendamento, pelo que não se vê motivo para restringir o seu âmbito de aplicação, salvo nos casos expressamente previstos na lei – se o arrendamento foi celebrado depois da penhora (art.º 819º do CCiv) ou se a coisa ainda não tiver sido entregue ao locatário (art.º 109º, nº 2, do CIRE).
SS. Por outro lado, não temos como existente uma relação de especialidade entre o artigo 824.º, nº 2, do Código Civil (norma especial para a venda em execução) e o artigo 1057.º do Código Civil (norma genérica do arrendamento), considerando que a existir essa relação de especialidade ela será antes entre o artigo 1057.º do Código Civil (regra especial para o arrendamento) e o artigo 824.º, nº 2, do Código Civil (regra geral para a venda executiva).
TT. Ao contrário do que ocorre no usufruto e no uso e habitação, no arrendamento o senhorio (adquirente) tem a possibilidade de por ato exclusivo de sua vontade proceder à respetiva denúncia, pondo termo ao arrendamento; o que arreda a similitude de situação a impor, por força do princípio da igualdade, a solução da caducidade.
UU. Entendemos que (pelo menos atualmente, em face da evolução da regulamentação do contrato de arrendamento que tem esbatido o seu carácter vinculístico e acentuado o seu carácter temporário) não se pode ter como regra geral que a locação implica uma desvalorização para o bem a que se reporta constituindo um pesado ónus de que o senhorio não pode libertar-se a breve prazo, assim se impedindo ou dificultando a cobrança do crédito por parte daquele que tem tal crédito garantido por hipoteca sobre o imóvel locado.
VV. Desde logo porque casos ocorrerão em que o valor da venda do imóvel, ainda que anuncie o vínculo do arrendamento, seja suficiente para liquidar a dívida do credor garantido.
WW. Por outro lado, não se compreende porque se haverá de considerar como negativa (ostracizar mesmo) uma circunstância que não só é lícita como, até, considerada como boa prática.
XX. É consensual o entendimento de que resulta das disposições legais reguladoras da hipoteca que o devedor não fica inibido de dispor do imóvel hipotecado e de praticar relativamente a ele atos de mera administração (ordinária). Sendo atos de administração aqueles que correspondem a uma gestão patrimonial limitada e prudente em que não são permitidas certas operações – arrojadas e ao mesmo tempo perigosas – que podem ser de alta vantagem, mas que podem ocasionar graves prejuízos para o património administrado, como tal se devendo considerar tudo quanto diga respeito à prover à conservação dos bens administrados e a promover a sua frutificação normal (tendo-se como atos tendentes à frutificação normal os destinados a prover ao cultivo de uma terra nos termos usuais ou ao seu
arrendamento, desde que não sujeito a registo).
YY. O arrendamento por prazo inferior a seis anos é qualificado legalmente como ato de administração ordinária (art.º 1024º do C.C.) e é tido como medida de racionalidade económica, penalizando-se, nomeadamente a nível fiscal, a existência de imóveis devolutos.
ZZ. Mas se assim é não se encontra justificação para a convicção formulada pelo tribunal em que o arrendamento é um ato violador dos direitos do credor hipotecário determinante da caducidade do arrendamento em caso de venda executiva.
AAA. Sendo a cobrança integral do seu crédito um interesse relevante do credor, titulado na garantia do direito de propriedade, não se vê que seja de menor relevância o interesse do inquilino na estabilidade do arrendamento titulado no direito pessoal de gozo que permite o funcionamento da unidade industrial da Recorrente no imóvel objeto da ação, pelo que não se encontra fundamento para atribuir prevalência àquele primeiro interesse.
BBB. Numa outra perspetiva, não vislumbramos que o interesse do adquirente do imóvel arrendado previamente hipotecado em venda executiva que não seja o credor garantido seja diferente do de qualquer outro adquirente, que terá de assumir a posição de senhorio por força do art.º 1057.º do Código Civil. Pelo que carece de justificação a imposição da caducidade do arrendamento de uma forma genérica para todas as situações de venda executiva, estabelecendo uma situação de privilégio para o adquirente do imóvel arrendado previamente hipotecado.
CCC. Por último não pode deixar de se ter em conta que com a reforma do processo executivo levada a cabo através do DL 38/2003, de 30ABR, o legislador incluiu o arrendamento no elenco dos atos inoponíveis à execução constantes do artigo 819.º do C.P.C. (acolhendo posição que já era doutrinal e jurisprudencialmente defendida) mas já não o fez relativamente à inclusão do arrendamento no elenco dos direitos que caducam com a venda executiva previstos no art.º 824º do C.C. (apesar de não poder desconhecer as posições doutrinárias e jurisprudenciais nesse sentido), assim manifestando a sua intenção de não acolher tal posição (sendo certo que, como já referido, até parece ter consagrado entendimento diverso no art.º 109º do CIRE).
DDD. Razões pelas quais aderimos ao entendimento de que a venda executiva de prédio previamente hipotecado não determina a caducidade do arrendamento entretanto celebrado, em contrário do decidido na decisão recorrida, que deve ser revogada.
EEE. Sob igual argumentação navega o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo nº 1268/16.6T8FAR.E1.S2, datado de 27.11.2018, em que é relator Xxxxxxxx Xxxxxx (…)
[…]
III. Fechado este pequeno parêntesis, e concluindo-se pela natureza meramente creditícia ou obrigacional do direito do locatário, cremos não poder aplicar-se directamente a norma do artigo 824º, nº 2, ao arrendamento.
JJJ. E também não vemos como possa ser aplicado analogicamente.
KKK. Como refere Xxxxx Xxxxxxx, as disposições que concedem ao locatário tratamento jurídico análogo ao dos direitos reais são raras e de natureza incontestavelmente excepcional, não podendo ser submetidas a integração analógica. Diz esse autor que não parece ser coerente “defender-se que as equiparações legais, dada a natureza proeminentemente pessoal do direito do locatário, só se aplicam porque há disposição a concedê-las e, depois, admitir-se (…) um tratamento real para casos omissos do regime legal locatício”.
LLL. Diz-se e insiste-se, porém, que a existência de um arrendamento no imóvel hipotecado constitui um ónus, um gravame sobre a coisa e que, portanto, sempre se deveria considerar tal ónus inserido na previsão da norma do artigo 824º, nº 2, pois que, diminuindo o valor venal da coisa, o arrendamento afectaria a garantia dada pelo devedor ao seu credor.
MMM. Este argumento, forçado perante a letra da lei - como tem de reconhecer-se -, é rebatível.
NNN. É verdade que a ratio legis do preceito em causa é assegurar que o valor do bem vendido em execução judicial, pelo facto de sobre o mesmo incidirem direitos reais, não sofrerá uma significativa desvalorização ou depreciação em prejuízo dos credores.
OOO. Todavia a hipoteca, apesar de ser uma garantia real que acompanha o imóvel sobre que incide, não impede o titular desse imóvel de o alienar ou de o onerar, como resulta nitidamente do dispositivo do artigo 695º do C.C.
PPP. Como se obtempera no acórdão deste STJ de 27.03.2007, se se tornar insuficiente a segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce, e, não o fazendo, pode o credor exigir o imediato cumprimento da obrigação, ou tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor, nos termos do artigo 701°, n° 1, do CC. “E, por outro lado, não parece de afastar a possibilidade de exercer acção pauliana contra o devedor que onerar com arrendamento o prédio objecto da garantia, verificando-se os respectivos requisitos (artigo 610° e seguintes do CC)”.
QQQ. Acresce a tudo isto que o regime vinculístico, característico do arrendamento, especialmente do urbano, tem vindo a estiolar-se nas últimas alterações legislativas.
RRR. Acresce também que a regressão das medidas protecionistas em benefício de uma maior liberalização no mercado de arrendamento, traduzida na abolição do princípio da renovação do contrato de arrendamento e no esbatimento da política de bloqueio das rendas, permitiu a atribuição de poderes mais amplos ao locador para proceder à denúncia do arrendamento (sendo, em consequência, menor o nível de desvalorização que a subsistência do arrendamento produz para o valor da venda do imóvel na acção executiva) e, por outro lado, abriu espaço à criação de um adequado regime de actualização do valor das rendas, indexando o valor destas ao índice de preços do consumidor, evitando assim a sua depreciação.
SSS. Parece-nos, pois, que no actual contexto legal, o arrendamento de um imóvel não constitui, sem mais, um factor de desvalorização do mesmo, ou seja, não constitui necessariamente um ónus, com o sentido pretendido, nem constitui um obstáculo à satisfação integral do crédito garantido.
TTT. Aliás, no caso do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a Autora sabia, à data da venda judicial, que o imóvel que servia de garantia ao mútuo que concedera à anterior proprietária, se encontrava arrendado – v. ponto 23. dos factos provados.
UUU. Assim, conclui-se que o artigo 824º, nº 2, do CC não se aplica, nem directa nem analogicamente, ao arrendamento, havendo agora que ponderar a situação concreta dos autos, de acordo com a posição que acabamos de expressar.”
VVV. Tal como no supracitado acórdão, a Barcamaia – credor hipotecário – tinha conhecimento que à data da venda judicial ocorrida em 08.03.2014 o imóvel se encontrava arrendado à ora Recorrente, aceitava-o e batalhou pela sua continuidade, nunca pela sua caducidade.
WWW. Caso dúvidas restassem acerca da real “voluntas” do credor hipotecário, a Barcamaia, sempre caberia ao tribunal, no uso dos seus poderes de indagação e procura da verdade material, chamar a si o referido credor que este se pronunciasse, ao invés de presumir que o mesmo não pretendia continuar com o arrendamento em questão, presunção contrária ao que resulta da prova produzida. Por outro lado, e não menos importante, é a posição do próprio credor hipotecário que a sentença e o acórdão recorrido tanto procuram salvaguardar
[…]
CCCC. Ainda assim, a primeira e a segunda instância persistem na tese e concluem pela caducidade do contrato de arrendamento sempre que se verifique uma venda judicial, afirmando a fls. 25 da douta sentença afirmando que “… só assim se compreende que a Autora tivesse celebrado um segundo contrato de arrendamento, em 24.11.2016, agora com a Barcamaia- Consultoria e gestão de empresas, S.A.”
DDDD. Novamente, conclusões infundadas, reitera-se!
EEEE. Sendo, na verdade, aquilo que o tribunal apelida de “novo contrato”, a formalização escrita de outras condições para o arrendamento e que já haviam sido acordadas verbalmente, mal se andando ao concluir que o referido escrito era novo contrato.
FFFF. Crê o Recorrente que tal “convicção” sustada em conjecturações que não passam de meras hipóteses não é mais do que a procura de uma solução para tão convenientemente julgar caducado o contrato de arrendamento inicial em consequência da venda judicial do imóvel, libertando, assim, o referido para que a Recorrente possa promover a venda sem menção qualidade de arrendatária da Recorrente.
GGGG. Pelo exposto, a sentença e o acórdão recorridos fazem uma incorreta aplicação das mais elementares normas de direito ao caso aplicáveis, violando nomeadamente as normas legais contidas nos artigos 9.º, 686.º, 687.º, 695.º, 824.º e 1057.º do Código Civil e 126.º do C.I.R.E.
HHHH. Por fim, não se admite, com o devido respeito que é muito, a decisão de que ora se recorre, uma vez que existe, pelo menos um acórdão no sentido contrário que dá razão à Recorrente.
IIII. Encontra-se em contradição com outro acórdão já transitado em julgado, (cfr. art.672.º, nº 1, al. b) do CPC), nomeadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2018 proferido no âmbito do processo 1268/16.6T8FAR.E1.S2 (cfr. documento 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
[…]
WWWW. No seguimento do acórdão em análise, na ponderação dos interesses económicos dos credores hipotecários, que visam a prossecução do lucro, face ao interesse social do arrendamento, que visa a habitação ou a instalação de uma unidade industrial e o direito àqueles por entidades singulares ou coletivas que não conseguem obter um imóvel com recurso à compra, não pode o primeiro ultrapassar o segundo.
XXXX. O arrendamento é um ato de mera administração, gerador de rendimentos, podendo ser determinante na prossecução dos interesses do credor hipotecário em ver o seu crédito ressarcido e, por isso, não é admissível o sacrifício dos interesses preponderantes de um terceiro de boa-fé para proteção de entidades que têm o seu crédito garantido pelo bem que oneram.
[…]
ZZZZ. Em face ao exposto, não se podem aceitar as decisões da primeira instância e do Douto Tribunal da
Relação do Porto, pugnando, antes pela revogação do acórdão objeto do presente recurso, cumprindo, para o efeito, formular as competentes conclusões.
Nestes termos, deve a decisão ora em crise ser revogada, sendo substituída por outra em sentido contrário, com as legais consequências, julgando-se a procedência integral da presente ação, fazendo-se, assim, a mais inteira e sã justiça.»
5. Os recorridos contra-alegaram, em conjunto, defendendo (além da não admissibilidade da revista) que o acórdão recorrido fez a correta interpretação do art. 824º, nº 2 do CC e que, ainda que assim não se entendesse, o contrato de arrendamento em causa sempre se encontraria extinto em consequência da falta de pagamento atempado de rendas, ou por se ter verificado a resolução da venda do imóvel arrendado. De todo o modo, sempre a autora, agora recorrente, agiria em abuso de direito e com má-fé processual ao pedir o reconhecimento da subsistência do contrato de arrendamento.
6. Verificando-se a existência de dupla conformidade decisória (art.671º, nº 3 do CPC), foram os autos remetidos à Formação a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC.
7. A Formação veio a admitir a revista excecional com a seguinte fundamentação:
«Não importa apreciar cada um dos referidos fundamentos excecionais, bastando para o caso assinalar que se encontra pendente de decisão neste Supremo Tribunal de Justiça um recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que visa uniformizar o entendimento acerca da questão de direito em causa, ao qual está subjacente uma contradição jurisprudencial que, no caso, sempre constituiria também motivo para a admissão da revista excecional.
Trata-se de apurar e uniformizar o entendimento sobre a aplicabilidade ou não do n° 2 do art. 824° do CC a uma situação, como a dos autos, em que foi outorgado um contrato de arrendamento comercial depois de ter sido constituída uma garantia hipotecária sobre um imóvel que foi adjudicado no âmbito de uma ação executiva.
Por conseguinte, sem necessidade de outras considerações, é manifesto o relevo jurídico que mantém a questão de direito em causa, pelo menos enquanto não transitar em julgado o acórdão que venha a ser proferido por este Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do referido recurso de uniformização.»
8. Dado que se encontrava a correr no STJ processo tendente à uniformização de jurisprudência, sobre o problema central em discussão nos autos, a instância foi suspensa até à prolação do respetivo acórdão, o qual veio a corresponder ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021 (Série I de 05.08.2021).
II. ANÁLISE E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS:
1. Admissibilidade e objeto do recurso.
Dada a existência de dupla conformidade decisória, o presente recurso foi admitido como revista excecional, pela Formação a que alude o art. 672º, nº 3 do CPC.
O objeto da revista é, consequentemente, o que resulta do âmbito de admissibilidade enquanto revista excecional, para além das questões de conhecimento oficioso. Nestes termos, o objeto do recurso respeita à questão de saber se a venda executiva do imóvel arrendado para atividade industrial determinou, ou não, a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do art. 824º, nº 2 do Código Civil, com as inerentes consequências.
Cabe ainda apreciar (porque de conhecimento oficioso) a questão de saber se a recorrente agiu com abuso de direito ou com má-fé processual, como sustentaram os recorridos nas suas contra-alegações.
2. A factualidade provada.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
«1. A Autora foi constituída em 27.03.1961, com o capital social atual de €1.500000,00 (um milhão e quinhentos mil euros), constituído por 300.000 ações nominativas, no valor nominal de 5,00 euros, com o objeto de indústria de confeções, com sede social na Avenida …, nº …, freguesia ..., …-… ..., ..., desde 06.02.2008; e tendo sido nomeado Presidente do Conselho de Administração BB, e como vogal do Conselho de administração CC, para o triénio 2019/2021, por deliberação de 01.04.2019, e anteriormente haviam sido nomeados, para o triénio de 2005/2007, DD, como Presidente, e EE, como vogal, por deliberação de 14.03.2005, as quais renunciaram ao cargo em 29.02.2008; para o triénio de 2008/2010, FF, para o cargo de Presidente, e GG, como vogal, por deliberação de 29.01.2008, tendo o vogal sido destituído em 11.03.2009, e tendo sido nomeado vogal HH, com efeito a partir de 01.06.2009 e para o mandato em curso, o qual renunciou em 21.01.2010, para o Triénio 2011/2013, FF, para o cargo de Presidente, por deliberação de 28.11.2011, para o Triénio 2016/2018, para o cargo de Presidente do Conselho de Administração, BB, e como vogal do Conselho de administração CC, por deliberação de 24.11.2016.
2. A Insolvente foi constituída em 25.06.1971, com o capital social atual de 1.000 000,00 euros, dividido em 200.000 ações de valor unitário de 5,00 euros, nominativas e convertíveis ao portador, tendo sido nomeado Presidente do Conselho de Administração FF, para o mandato de 2005/2007, por deliberação de 06.08.2007, e tendo sido reconduzido no cargo para o triénio 2008/2010 e para o triénio de 2011/2013.
3. Entre a Autora e a Insolvente foi assinado um acordo escrito, denominado de contrato de arrendamento,
com data de 30.09.2006, tendo por objeto parte do edifício composto de rés-do-chão destinado a indústria e logradouro sito no Lugar …, freguesia ..., ..., com a área de 2.417m2, de um total de 13.670,70 m2, prédio inscrito na matriz predial sob o artigo …, atualmente artigo …, sito no local atualmente designado por Avenida …, nº …, freguesia ..., tendo sido estipulada a renda anual de 43.500,00 euros, a ser paga em duodécimos de 3. 625,00 euros, destinado à atividade industrial e comercial de vestuário e escritórios, com início em 01.10.2006 e termo em 30.09.2016, renovando-se por períodos de 05 anos, caso não fosse objeto de oposição à renovação deduzida por qualquer das partes com a antecedência de um ano para o termo do prazo inicial.
4. A Autora tem a sua unidade industrial de confeções instalada no imóvel sito na Avenida ..., nº ..., freguesia ..., …-… ..., ..., desde o verão de 2006, onde confeciona os seus artigos, nomeadamente camisas, e recebe os seus clientes.
5. A Autora pagou à Insolvente duodécimos de rendas vencidas entre outubro de 2006 e janeiro de 2014.
6. Do Título de Transmissão assinado pela Agente de execução, datado de 08.03.2014, junto ao processo de execução nº 1975/09… (apenso G), consta ter sido transmitida a propriedade do prédio urbano inscrito sob a matriz nº …65 da freguesia ..., ..., e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, para a Exequente “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, livre de quaisquer ónus ou encargos.
7. A sociedade “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.” xxxxxxx a propriedade do imóvel que lhe foi transmitida na Execução nº 1975/09..., na respetiva Conservatória de Registo Predial, conforme AP. 107, de 10 de março de 2014.
8. Após a Transmissão da propriedade para a “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, ocorrida em 08.03.2014, na Execução nºº 1975/09..., a Autora continuou a ocupar o espaço que vinha ocupando, até essa data, no prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o nº …79, apreendido sob a verba …. do Auto de Apreensão de Bens.
9. A partir de data anterior à da declaração de insolvência da “Profato”, a Autora passou a ocupar uma área de aproximadamente 4.500 m2, no prédio urbano apreendido sob a verba … do Auto de Apreensão de Bens.
10. Desde 08.03.2014 e até à data em que foi proferida a sentença no apenso I, de impugnação da Resolução, em 14.01.2017, transitada em julgado em 06.11.2018, a Autora não pagou à “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, os duodécimos da renda estipulada no acordo escrito referido em 3, nem qualquer outra contrapartida.
11. E no mesmo período (de 08.03.2014 a 14.01.2017), a Autora não pagou à Insolvente, nem ao Administrador de Insolvência nomeado, após a declaração de insolvência em 21.12.2015, os duodécimos da renda estipulada no acordo escrito referido em 3, nem qualquer outra contrapartida.
12. Só após ter sido notificada no apenso de Liquidação, na sequência do despacho proferido em 18.03.2019, para comprovar o pagamento das rendas vencidas desde a data da declaração de insolvência, referentes ao contrato de arrendamento que invocou ter celebrado com a insolvente, a Autora procedeu ao depósito, em 27.03.2019, da quantia de €111.468,75 (cento e onze mil quatrocentos e sessenta e oito euros e setenta e cinco cêntimos), referente a 41 duodécimos da renda estipulada no acordo escrito referido em 3, deduzidos da retenção obrigatória de IRC.
13. Em sede de negociações existentes entre ambas, ao longo do ano de 2016, a Autora teve conhecimento da carta remetida pelo Sr. Administrador de Insolvência à “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, a comunicar-lhe a resolução do negócio celebrado no processo de execução nº 1975/09... e de que a “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, e que esta instaurou ação de Impugnação de tal resolução.
14. A “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.” foi notificada, em 13.10.2016, da decisão proferida em 1.ª Instância, a que se alude em E dos factos provados.
15. Com data de 24.11.2016, entre a Autora e a “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.” foi assinado um acordo escrito, denominado de Contrato de Arrendamento Comercial, a iniciar-se em de 01.12.2016, com a duração de 5 anos, renovável por períodos de 3 anos, se nenhuma das partes se opuser à sua renovação, tendo por objeto a totalidade do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o nº .…65, ocupando a Autora de imediato uma área de 5 500m2 e ocupando a parte restante do prédio logo que a 1.ª Ré a desocupe de pessoas e bens, destinado a industria têxtil, mediante o pagamento de uma renda anual no valor de 108.000 euros, a pagar em duodécimos de 9.000,00 euros, que logo que a Autora ocupasse a totalidade do imóvel seria atualizada de acordo com a proporção da área restante a ocupar, com um período de carência de seis meses sem pagamento do acréscimo de renda, e decorrido o primeiro ano será atualizada de acordo com as atualizações legais para as rendas comerciais dos anos subsequentes.
16. Em 26.01.2017, por intermédio da sua mandatária, a Autora informou o 2.º Réu, da data em que celebrou contrato de arrendamento com a “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”.
17. Entre a Insolvente e a “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.” foi assinado um acordo escrito, com data de 01.06.2015, denominado de Contrato de Arrendamento Comercial, a iniciar-se em de 01.06.2015, com a duração de 5 anos, renovável por períodos de 3 anos, se nenhuma das partes se opuser
à sua renovação, tendo por objeto uma área de 6209m2, do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o nº …65, destinada a industria têxtil, mediante o pagamento de uma renda anual no valor de 74.508,00 euros, a pagar em duodécimos de 6.209,00 euros, que decorrido o primeiro ano será atualizada de acordo com as atualizações legais para as rendas comerciais dos anos subsequentes.
18. Em sede de liquidação, em 21.10.2016, entre a massa Insolvente da “Profato – Empresa de Confeções, S.A.”, representada pelo Administrador de Insolvência (2.º Réu), na qualidade de Senhoria, a “Believetheory, Unipessoal, Lda.”, na qualidade de Inquilina, e a “Cut Out Têxtil, SL.”, na qualidade de Fiadora, foi assinado um acordo escrito denominado de Contrato de Arrendamento Para Fins não Habitacionais de Duração Limitada, mediante o qual a primeira declarou dar de arrendamento à segunda, uma área de 6209m2, do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o nº …65, apreendido sob a verba … do Auto de Apreensão de Bens, com inicio em 01.11.2016 e com a duração de 14 meses, terminando em 31.12.2017, renovando-se por períodos de seis meses, mas não podendo vigorar após decurso do prazo de 30 dias após ter sido proferida decisão final na ação de impugnação da resolução que correu termos sob o apenso I, mediante o pagamento de uma renda mensal de 3.500 euros.
19. O Administrador de Insolvência (2.º Réu) solicitou à Autora que abandonasse a parte do imóvel que se encontrava a ocupar, restituindo-o à Massa Insolvente, verbalmente e também por escrito, nomeadamente em 03.04.2018 e em 04 de outubro de 2018.
20. A partir de junho de 2018, o Administrador de Insolvência (2.º Réu) promoveu a venda do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... apreendido sob a verba … do Auto de Apreensão de Bens, na plataforma eletrónica do “E-Leilões”, com termo às 10:00 horas do dia 13.11.2018, não tendo recebido qualquer proposta.
21. Na venda anunciada no leilão eletrónico, para a verba … do Auto de Apreensão de Bens, não consta qualquer referência a um arrendamento deste imóvel.
22. Na plataforma eletrónica do “E-Leilões”, não foi recebida qualquer proposta para a venda da verba … do Auto de Apreensão de Bens, conforme consta da informação prestada no apenso de Liquidação pelo 2.º Réu, em 21.11.2018.
23. Na venda em propostas por carta fechada, a Autora apresentou uma proposta para a verba … do Auto de Apreensão de Bens, no valor de 1.000.000,00 euros, que não foi aceite por estar abaixo do valor mínimo proposto para a venda, de 1.617.544,00 euros, conforme Ata de Abertura de Propostas de 19.12.2018.
24. Aquando da abertura de propostas por carta fechada, em 19.12.2018, verificou-se que não foi
apresentada qualquer outra proposta para a verba ... do Auto de Apreensão de Bens.
25. O processo de insolvência da “Profato – Empresa de Confeções, S.A.” iniciou-se em 21.08.2015.
26. A “Profato – Empresa de Confeções, S.A.” foi citada para a ação, por 2.ª carta registada remetida em 15.09.2015, após devolução da primeira carta, tendo apresentado a sua contestação em 28.09.2015.
27. Por sentença proferida no apenso de reclamação de créditos, transitada em julgado, foi reconhecido ao credor “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, um crédito garantido sob condição de vir a ser julgada improcedente a Impugnação da Resolução apresentada por este credor no apenso I, no montante de 4.233.981,25 euros, por hipoteca constituída a seu favor sob o prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o nº …65, apreendido sob a verba ... do Auto de Apreensão de Bens.
28. A hipoteca a que se refere o crédito garantido reconhecido à “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.” foi constituída por escritura celebrada em 08.04.2002, a favor do Banco Comercial Português, e registada sob o Ap. 9 de 24.04.2002, tendo o crédito sido transmitido com a respetiva garantia para a “Luckenhaus Portuguesa Têxteis, Lda.”, por escritura de Cessão de Créditos Hipotecários, celebrada em 29.01.2008, que por sua vez o cedeu com a respetiva garantia à “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, por contrato de Cessão de Créditos Hipotecários, celebrado em 11.03.2008.
29. À data da declaração da insolvência, no imóvel apreendido sob a verba ... do Auto de Apreensão de Bens, existiam diversos bens móveis pertencentes à Devedora, tais como máquinas e equipamentos, que começaram a ser vendidos no final do ano de 2016, sendo uma parte deles vendida em 25.09.2018.
30. O valor patrimonial, atribuído pela Autoridade Tributária, do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº …71, da freguesia ... apreendido sob a verba ... do Auto de Apreensão de Bens, é de 1.576.050,83 euros.
31. Do endereço eletrónico da mandatária da Autora foi remetido, em 26.03.2018, um email onde solicita ao 2.º Réu o envio do IBAN da Massa Insolvente da “Profato – Empresa de Confeções, S.A.” para realização da transferência da respetiva renda.»
3. O direito aplicável:
3.1. A questão de saber se a venda executiva do imóvel arrendado para comércio determina a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do art. 824º, nº 2 do Código Civil:
Sustenta a recorrente que o acórdão recorrido não fez a correta aplicação do direito ao caso concreto, por
ter entendido que o contrato de arrendamento celebrado com a “Profato”, em 2006, teria caducado com a venda executiva do imóvel, em 2014, à “Barcamaia”, por aplicação do art. 824º, nº 2 do Código Civil.
3.2. O acórdão recorrido manteve a sentença, alterando-a apenas quanto ao prazo fixado para a restituição do imóvel, após o trânsito em julgado da decisão, que passou para quatro meses (em vez dos dois meses fixados pela primeira instância).
Colhem-se, na fundamentação do acórdão recorrido, as seguintes considerações:
«Do Título de Transmissão assinado pela Agente de execução, de 08.03.2014, junto ao processo de execução nº 1975/09... (apenso G), a propriedade do prédio urbano inscrito sob a matriz nº …65 da freguesia …, ..., e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº….71, para a Exequente “BARCAMAIA – Consultoria e gestão de Empresas, S.A.”, foi transmitida livre de quaisquer ónus ou encargos, facto provado em 6. Ora, tal circunstância decorreu, por certo, do facto de o contrato de arrendamento celebrado entre a insolvente e a Autora, ser posterior à constituição da hipoteca a favor do credor ali Exequente e Adjudicatário de tal bem. (…)
Donde, tendo sido constituída tal hipoteca em 08.04.2002 e sendo o contrato de arrendamento invocado pela Autora celebrado em 30.09.2006, este contrato não era oponível ao crédito hipotecário, no processo de execução nº 1975/09..., atento o disposto no artigo 824º, nº 2, do Código de Processo Civil em conjugação com o disposto no artigo 686º, nº 1, do Código Civil.
(…) o credor hipotecário nunca pode ser prejudicado por efeitos da alienação ou da oneração do bem hipotecado, já que, tais direitos sendo constituídos após o registo constitutivo da hipoteca são inoponíveis ao credor hipotecário, por força da anterioridade do registo da hipoteca e da sua ineficácia em relação a esta, cfr. art. 687.º, nº 1, alínea h), e nº 2, do Código Civil, e artigo 4.º, nº 2, do Código de Registo Predial.
Pelo exposto conclui-se que o contrato de arrendamento celebrado entre a autora, ora recorrente e a insolvente Profato - Empresa de Confecções S.A. caducou com a venda do imóvel arrendado no processo executivo, por aplicação do citado art. 824º, nº 2, do Código Civil, ou seja, com a transmissão da propriedade do imóvel para a credora hipotecária “Barcamaia - Consultoria e Gestão de Empresas S.A”, em 8 de Março de 2014.
E resulta da celebração pela Autora com a “Barcamaia - Consultoria e Gestão de Empresas S.A.” de um segundo contrato de arrendamento em 24 de Novembro de 2016, sob condição de ser julgada procedente a impugnação da resolução na acção instaurada pela referida “Barcamaia”, que quer a Autora, ora recorrente, quer a Barcamaia entendiam que o referido contrato de arrendamento celebrado entre a autora/recorrente e a Profato em 30 de Setembro de 2006 tinha caducado.»
3.3. A jurisprudência sustentada no acórdão recorrido foi, entretanto, contrariada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021, (Série I de 05.08.2021). Este AUJ uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
«A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, nº 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 824.º do Código Civil»
Embora a factualidade subjacente ao processo no qual foi proferido aquele AUJ não seja integralmente equiparável à factualidade subjacente à dos presentes autos (dado que naquele estava em causa um arrendamento para habitação e neste está em causa um arrendamento para fim não habitacional, concretamente para fim industrial), o modo como o art. 824º. nº 2 do CC foi interpretado nesse caso é plenamente aplicável ao caso concreto.
Efetivamente, em ambos os casos está em equação a questão central de saber se um contrato de arrendamento, celebrado depois de o imóvel ter sido hipotecado (mas antes de ter sido penhorado ou apreendido para a massa insolvente), deve caducar com a venda judicial, por aplicação do art. 824º, nº 2 do CC, considerando-se incluído na categoria dos “direitos reais” ou dos ónus a que essa norma se refere.
No referido AUJ uniformizou-se jurisprudência no sentido da não aplicação do art. 824º, nº 2 do CC ao contrato de arrendamento para habitação. Porém, as razões essenciais aí apontadas são plenamente válidas quando se trata de apreciar a subsistência de um arrendamento para fim não habitacional, na medida em que tais razões não assentam na circunstância específica da finalidade habitacional do contrato, mas sim na equação estrutural do confronto entre a figura locativa e os efeitos da alienação do imóvel locado.
Acresce que, e ainda que o AUJ nº 2/2021 não existisse, sempre a solução dele emergente é a mais defensável ponto de vista conjugado da interpretação literal, sistemática e teleológica do quadro normativo aplicável.
Literalmente, o arrendamento não se encontra previsto no art. 824º nº 2 do CC, entre os direitos que não se transmitem com a venda executiva. Por tal razão, ao longo de algumas décadas, doutrina e jurisprudência dividiram-se quanto à questão de saber se a intenção do legislador foi a de incluir o arrendamento nessa previsão normativa, quando se refere a direitos reais, ou se deveria entender-se que existe uma lacuna legal, e que, ainda que se entenda que o direito do arrendatário não é um direito real, sempre a aplicação do art. 824º, nº 2 seria defensável por uma razão de equiparação teleológica com a solução prevista para os direitos reais (de gozo).
Do ponto de vista da interpretação sistemática, não se pode afirmar que a não inclusão expressa do arrendamento no art. 824º, nº 2 do CC constitua uma lacuna legal, pois o art. 1057º deste Código soluciona a questão, ao determinar que a transmissão do direito com base no qual o arrendamento foi celebrado tem como consequência a sucessão na posição do locador, sem estabelecer qualquer restrição quanto ao modo, voluntário ou forçado, de transmissão do direito. Trata-se de normas que, tendo sido consagradas, em simultâneo, pelo mesmo legislador, no Código Civil de 1966 (independentemente da sua prévia evolução legislativa em diplomas diversos), não sofreram qualquer alteração até ao presente. O legislador estabeleceu, assim, claramente, para o direito do locatário uma norma especial (a emptio non tollit locatum), que constitui um desvio temporal (correspondente à duração do contrato de locação) ao princípio da prevalência dos direitos reais. E deve notar-se que o art. 1057º é uma norma imperativa, que não admite, por isso, convenção em contrário.
Acresce que, quando o legislador alterou o art. 819º (através do DL nº 38/2003), nele passando a incluir o arrendamento posterior à penhora, entre os atos inoponíveis à execução, podia ter alterado o art. 824º, nº 2, caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca.
Sustentou-se, na doutrina e na jurisprudência, que o arrendamento seria qualificável como um direito real (total ou parcialmente) e, por isso, enquanto direito real de gozo, seria comportável no âmbito do art. 824º, nº 2. Todavia, a raiz de tal entendimento encontra-se datada no tempo, tendo sido ancorada, há várias décadas, sobretudo, no facto de o regime do arrendamento apresentar, a esse tempo, fortes limitações à liberdade do senhorio para extinguir o contrato de arrendamento. Todavia, as caraterísticas perenes do direito do arrendatário, que se situam para além das flutuações legislativas do seu regime,
demonstram que tal direito não pode ser qualificado como um direito real (nem total nem parcialmente).
De forma sucinta, podem enunciar-se algumas das razões nesse sentido: para além da inserção sistemática do contrato de locação no Livro das Obrigações, e de o art. 1682º-A designar, expressamente, o arrendamento como um direito pessoal de xxxx, a tutela possessória conferida ao locatário pelo art. 1037º desvia-se das caraterísticas típicas da tutela possessória própria dos direitos reais (por razões de praticabilidade processual de defesa do direito), e sempre a indicação expressa dessa tutela seria desnecessária, caso o arrendatário tivesse um verdadeiro direito real. Acresce que, nem desta norma, nem do disposto no art. 1057º se poderá retirar a caraterística da sequela. O art. 1057º (acolhendo princípio inverso ao que vigorava no Direito Romano) é uma norma inerente à natureza duradoura do contrato de locação e particularmente do contrato de arrendamento, e ínsita à sustentação de todo o quadro legal do arrendamento destinado à manutenção do gozo do imóvel durante o tempo convencionado. Se o direito do arrendatário pudesse, a qualquer momento (pela alienação do imóvel), ser transformado num simples direito a uma indemnização por danos, o contrato de arrendamento perderia, praticamente, toda a sua importância enquanto instrumento de organização das relações económicas duradouras numa sociedade.
Por outro lado, a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral (por via de oposição à renovação, denúncia, resolução), sendo esta uma caraterística que não encontra paralelo no regime dos direitos reais de gozo, os quais não são, em regra, suscetíveis de extinção por simples ato de vontade de um terceiro (vd. art. 1476º, quanto ao usufruto).
Deve ainda notar-se que o nível de “oneração” que a subsistência do direito do arrendatário representa (do ponto de vista do interesse do terceiro adquirente do imóvel) não é, em regra, equiparável à oneração que pode decorrer de um direito real de gozo, como o usufruto ou o direito real de uso e habitação, pois estes direitos podem ser constituídos a título vitalício e ter natureza gratuita. O direito do arrendatário nunca tem, obviamente, estas caraterísticas.
Não existem, portanto, argumentos de natureza literal ou sistemática que permitam incluir o arrendamento no âmbito do art. 824º, nº 2.
Do ponto de vista do alcance teleológico da interpretação do art. 824º, nº 2 do CC, a solução que mereceu acolhimento do referido AUJ é também a mais justificável, não apenas quando está em causa um arrendamento para habitação (como era o caso daquele AUJ), mas também quando se trata de arrendamentos para fins não habitacionais, mormente de arrendamentos de locais onde se encontram instalados estabelecimentos comerciais, como acontece no caso concreto. Efetivamente, a estabilidade das atividades económicas, desenvolvidas através do estabelecimento comercial, tem merecido particular tutela legislativa, como revela o disposto no art. 1112º do CC, que permite o trespasse do estabelecimento (bem como do local onde se desenvolve a atividade do profissional liberal) por ato inter vivos sem necessidade do consentimento do locador. Esta preocupação de estabilidade é também revelada pela solução consagrada no art. 1113º, ao estabelecer a regra da não caducidade destes arrendamentos por morte do arrendatário.
Sustentar a caducidade do contrato de arrendamento, em consequência da venda executiva, ou defender a manutenção do contrato de arrendamento até ao final do prazo convencionado ou renovado ou até que o novo locador possa denunciar o contrato (dependendo da respetiva modalidade temporal), implica harmonizar os interesses em jogo com os propósitos legislativos que se colhem tanto numa interpretação intra-sitemática como extra-sitemática.
Assim, de um lado, identifica-se o interesse dos credores do executado em que seja alcançado um valor de venda mais elevado, para maior satisfação dos seus créditos.
Do outro lado estará o interesse do arrendatário em não sofrer uma privação abrupta do local arrendado. Efetivamente, caso se verificasse a caducidade do contrato de arrendamento, por aplicação do art. 824º, nº 2, o arrendatário (independentemente da finalidade do contrato) teria a obrigação de imediatamente
restituir o imóvel, como decorreria dos artigos 1038º, xxxxxx x) e 1081º, nº 1 do CC. Acresce que, não se encontrando esta hipótese de caducidade prevista no art. 1051º, não lhe seria aplicável a moratória prevista no art. 1053º do CC. A obrigação de restituir o imóvel seria, portanto, imediatamente exigível. Não sendo tal obrigação cumprida, e existindo interpelação para a restituição, o ex-arrendatário torna-se-ia responsável pelo pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro da renda que pagava, como determina o art. 1045º, nº 2. A severidade desta solução, tratando-se de local onde se encontra instalado um estabelecimento comercial (com dezenas de trabalhadores, como no caso concreto) seria teleologicamente incompreensível no quadro de uma legislação locatícia que, com maiores ou menores restrições da liberdade contratual das partes, nunca deixou de ser integrada por múltiplas normas de natureza imperativa, tuteladoras da estabilidade do gozo do local arrendado e da previsibilidade da duração do contrato, como os supra referidos artigos 1112º e 1113º e as normas que estabelecem prazos de pré-aviso para o exercício dos direitos extintivos (art. 1110º e artigos 1097º e 1101º por remissão).
Nestes termos, apesar de as circunstâncias fáctico-processuais do presente caso serem parcialmente distintas daquelas que subjazeram ao referido AUJ, dado estar aqui em causa um arrendamento para fim não habitacional, as razões de fundo que o sustentaram têm pleno cabimento na fundamentação do caso agora em revista, pelo que para elas se remete.
3.4. Entre os fundamentos do acórdão recorrido encontra-se a referência ao facto de, em 24.11.2016, a recorrente ter celebrado um “novo” contrato de arrendamento com a adquirente do imóvel, “Barcamaia”, extraindo-se daí a ideia de que tal comportamento revelaria uma conformação da arrendatária com a extinção do contrato, que se teria operado por força do art. 824º, nº 2 do CC.
Porém, a celebração desse “novo” contrato de arrendamento [sob condição de ser julgada procedente a impugnação da resolução na ação instaurada pela “Barcamaia”] não pode ter essa leitura, compreendendo-se, antes, no quadro de um sentimento de insegurança ou incerteza quanto à situação jurídica do contrato de arrendamento, face à resolução daquela alienação operada pelo administrador da insolvência da “Profato”.
Efetivamente, se a alienação do imóvel se tivesse mantido válida e eficaz, o artigo 1057º do CC teria produzido os seus efeitos a título definitivo e, consequentemente, a adquirente “Barcamaia” passava a ser o novo senhorio. Como aquela alienação foi alvo de resolução, voltando o imóvel à titularidade da anterior proprietária, “Profato” (entretanto, declarada insolvente), o contrato de arrendamento também continuou sem alterações quanto aos seus sujeitos, dado ter sido neutralizada (por força da resolução da alienação do imóvel) a modificação subjetiva (mudança temporária de locador) que, em termos normais, teria sido operada pelo artigo 1057º do CC.
3.5. Dizem os recorridos (nas suas contra-alegações) que o contrato de arrendamento sempre estaria extinto por falta de pagamento de rendas. Ora, essa não foi uma questão autonomamente apreciada pelo
acórdão recorrido, pelo que não integraria o objeto da presente recursa. De todo o modo, sempre se poderia afirmar, brevemente, que a falta de pagamento de rendas não conduz automaticamente à extinção do contrato (atendendo à imperatividade dos modos de extinção do contrato, prevista no art. 1080º do CC). Tal facto confere, sim, ao locador o direito de invocar a resolução do contrato, nos termos do art. 1083º, nº 3 e 1084º, nº 3 do CC. Todavia, dos autos não resulta que o contrato de arrendamento haja sido alvo de resolução por falta de pagamento de rendas.
3.6. Afirma a recorrente [no ponto FF.] das conclusões das alegações que a fundamentação do acórdão recorrido seria nula, nos termos do art. 615º, nº 1, alíneas b) e c) do CPC, dado ter-se baseado em normas legais que não existem, concretamente, o art. 687º, nº 1 alínea h) e nº 2 do CC. Efetivamente, o art. 687º do CC não tem números nem alíneas. Todavia, parece tratar-se de um lapso de escrita, que não é decisivo para o sentido interpretativo sustentado pelo acórdão em revista, pois esse sentido encontra-se suficientemente justificado. Não se vê, assim, que se encontre preenchido qualquer dos fundamentos de nulidade apontados pela recorrida.
3.7. Importa ainda explicitar (para que não subsistam dúvidas interpretativas) o seguinte aspeto.
A primeira instância, por ter entendido que o arrendamento tinha caducado, ex vi do art. 824º, nº 2 do CC, condenou a autora não só a entregar o imóvel, mas também a pagar uma indemnização pela sua ocupação (não titulada) «à razão de €5.500 (cinco mil e quinhentos euros), por cada mês, desde 29.02.2016 e até efetiva entrega do mesmo espaço». O acórdão recorrido confirmou esta condenação.
Embora nas conclusões das suas alegações, a recorrente não se refira expressamente a esta condenação, deve entender-se que a revogação do acórdão agora em revista deverá abranger esse segmento, na medida em que tal indemnização era uma consequência de uma ocupação para além do momento em que o contrato de arrendamento havia caducado. Assim, entendendo-se que o contrato de arrendamento não caducou, a contrapartida devida pela arrendatária à locadora será, obviamente, a renda convencionada (ou decorrente de aplicáveis critérios legais).
3.8. Sustentam os recorridos, nas suas contra-alegações, que a recorrente teria agido com abuso de direito, com base em comportamento contraditório, e com má-fé processual [pontos 35, 39 e 40 das respetivas conclusões]. Todavia, não emergem dos autos, nomeadamente da factualidade provada, elementos ou indícios que permitam reconduzir o comportamento da recorrente ao quadro normativo traçado pelo art. 334º do CC. Efetivamente, não resulta dos autos que a recorrente tivesse procedido voluntariamente à extinção do contrato de arrendamento, cuja subsistência vem pedir que seja reconhecida. Na realidade, as pretensões da recorrente, processualmente formuladas, não se traduzem no exercício de um direito que exceda manifestamente os limites da boa-fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito. Do mesmo modo, se tem de concluir que os recorridos não têm razão quando alegam a existência de má-fé processual da recorrente por propor a presente ação quando, em
momento anterior, se teria conformado com a caducidade do contrato, pois não existem elementos processuais que sustentem essa conclusão. O que razoavelmente se pode concluir do comportamento da autora, agora recorrente, é que ela pretende ver ultrapassada uma situação de dúvida e pretende ver clarificada a situação do contrato de arrendamento, face às específicas vicissitudes respeitantes à titularidade do imóvel arrendado.
3.9. Em resumo, na linha da jurisprudência firmada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021, publicado no Diário da República nº 151/2021 (Série I de 05.08.2021), tem de se concluir que o contrato de arrendamento celebrado entre a recorrente e a recorrida (agora Massa Insolvente), em 30.09.2006, não caducou em consequência da venda executiva do imóvel arrendado, ocorrida em 08.03.2014. Também não se identifica nos autos suficiência probatória para concluir que esse contrato de arrendamento, entretanto, tivesse sido extinto por alguma outra causa. Assim, não tendo o contrato de arrendamento caducado (por não lhe ser aplicável o art. 824º, nº 2 do CC), não tem a recorrente de restituir o imóvel com esse fundamento.
DECISÃO: Xxxx exposto, decide-se conceder a revista, revogando o acórdão recorrido, e condenando-se os recorridos a reconhecerem a existência do contrato de arrendamento, com os inerentes efeitos legais.
Custas na revista: pelos recorridos.
Lisboa, 03.11.2021
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxx (Relatora)
Xxxxxxx Xxxxx
Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx (com voto de vencido)
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
Voto de Vencido
Entendo que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento celebrado após o registo da hipoteca, solução esta que, a meu ver, está de acordo com a teleologia do art. 824.º/2 do C. Civil, cuja ratio é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer ónus.
Trata-se de questão que há muito divide a nossa doutrina e jurisprudência (tendo dado azo, bem
recentemente, ao referido AUJ nº 2/2021), o que só por si significa que há bons e ponderosos argumentos quer a favor da tese da caducidade do contrato de arrendamento quer a favor da tese (contrária) da transmissão (não caducidade) da posição do locador.
Tendo isto presente, “alinho” na posição que defende – em hipóteses como a dos autos, do arrendamento ser posterior ao registo da hipoteca – a caducidade do contrato de arrendamento pelo seguinte:
Não considero, como é evidente, o arrendamento um direito real (não cabendo assim a tese da caducidade numa interpretação literal do art. 824.º/2 do C. Civil) e não ignoro o disposto no art. 1057.º do C. Civil (segundo o qual “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”), porém, também não posso ignorar que o 824.º/2 do C. Civil estabelece e dele irradia o “princípio” dos bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.
Ademais, para o fim da hipoteca – garantia de um crédito – o valor do imóvel dado em hipoteca é fundamental (na atribuição do empréstimo/crédito e na determinação do respetivo quantitativo) e, depois, na sua venda em execução, o respetivo valor/avaliação será menor se o imóvel tiver (e se mantiver) arrendado, importando assim ponderar que, caso no momento da constituição da hipoteca o prédio já estiver arrendado, o credor hipotecário não pode desconhecer esse facto, ou seja, não pode desconhecer que sobre a garantia incidia um tal “ónus”, porém, caso no momento da hipoteca o prédio estiver livre, o arrendamento posterior confronta o credor com um “facto novo”, causador da desvalorização do imóvel.
E embora a hipoteca não impeça o poder de disposição dos bens, mediante alienação ou oneração (faculdades que decorrem da respetiva inoponibilidade ao credor hipotecário, na medida em que este goza da preferência que lhe é concedida pela prioridade do registo), não deixa de produzir limitações de vária ordem ao direito de propriedade do hipotecador, a quem fica vedado praticar livremente atos que ponham em causa o valor da coisa hipotecada, estando limitado aos atos que caibam nos poderes de administração ordinária (arts. 695º, 700º e 701º C. Civil), pelo que, manter oponível ao adquirente (em venda judicial em que se executa a garantia anterior) o contrato de arrendamento, é consentir (ao arrepio de tais poderes) que possam ser praticados atos que coloquem em causa o valor da coisa hipotecada.
Sendo justamente aqui, neste ponto do raciocínio, que o apelo à “ratio” que emana do art. 824.º/2 do C. Civil – serem os bens vendidos judicialmente transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada – faz sentido: ou por interpretação teleológica ou porventura até por analogia – face à “semelhança” entre o arrendamento e os direitos reais menores de gozo – entendo que o art. 824º/2 do C. Civil se aplica a todos os direitos de gozo, quer de natureza real quer pessoal, de que a coisa vendida seja objeto e que produzam efeitos em relação a terceiros.
Sairá, assim, objetivamente penalizado o arrendatário, mas não pode esquecer-se que, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que o arrendatário não ignorava ou não devia ignorar que tomou de arrendamento um bem que já estava dado em garantia/hipoteca.
Em conclusão, a tese da caducidade é a que, a meu ver, dirime com mais justiça os interesses em confronto e a que melhor respeita a teleologia ínsita no art. 824.º/2 do C. Civil, inciso em cujo espírito está presente a ideia da alienação judicial ser livre de qualquer encargo, inciso cuja ratio, repete-se, é os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres dos encargos que não tenham registo ou constituição temporalmente anterior à garantia executada.
E, sendo este o meu entendimento – sendo o arrendamento posterior ao registo da hipoteca, consideraria que o arrendamento caducou, automaticamente, por aplicação do art. 824º/2 do C. Civil, com a venda executiva do imóvel – negaria a revista.
Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxxx