RESUMO
Tempo e contrato: crítica ao pacto fáustico1
Xxxxxxxx Xxx*2
RESUMO
O texto explora conexões entre o tempo e o contrato a partir do mito de Xxxxxx e do pacto feito por ele com Xxxxxxx.
Palavras-chave: Tempo; Contrato; Xxxxxx.
Temps et contrat. Critique du pacte faustien
RÉSUMÉ
Etude du temps des contrats à partir du mythe de Xxxxx et du pacte dia- bolique.
Mots-clés: Temps; Contrat; Faust.
Ainda que não tenha sido frequentemente assinalado, o tempo é, sem dúvida, o elemento decisivo da economia contra- tual. O contrato é a antecipação do que virá, é o futuro irrevo- gavelmente comprometido – nisso consiste sua força específica e também sua função, particularmente econômica. Porém, é preciso que nos ponhamos de acordo acerca da natureza do tempo assim mobilizado. Duas fábulas literárias – o mito de Xxxxxx e a história do Mercador de Veneza – arrojam luz sobre uma primeira forma de temporalidade contratual: uma forma que é ao mesmo tempo instantânea e imutável e que conduz diretamente à destruição de quem se serve dela (tópico 1). Em alguns aspectos, a teoria clássi- ca do contrato se insere nesta perspectiva formalista e voluntaris- ta. A ficção literária a articula em seus extremos. Porém, tanto as práticas contratuais, como certas inovações jurisprudenciais dei- xam entrever, hoje, outra temporalidade mais contínua, mais fle- xível e mais solidária. Seguiremos seus meandros (tópico 2), não sem sugerir (tópico 3) quais evoluções similares se desenham no
1 A tradução, autorizada pelo autor, foi realizada por Xxxxxxx Xxxxxxxxxxxx, que é acadêmica na Escola de Direito da Universidade do Rio dos Sinos. A re- visão ficou por conta do professor Xxxxxx Xxxxxxx – Doutor summa cum laude em Direito pela Faculdade do Largo do São Francisco, Universidade de São Paulo. Os textos utilizados como lastro para a tradução foram: OST, Xxxxxxxx. Tiempo y contrato: crítica del pacto fáustico, Doxa, Alicante, n. 25, p. 597-626, 2002. Xxx, Xxxxxxxx. Temps et contrat. Critique du pacte faustien. Annales de Droit de Louvain: Revue Trimestrielle, v. 1999, n. 1999, p. 17-44, 1999.
2 Vice-reitor da Universidade de Saint-Louis em Bruxelas. Professor Titular de Filosofia do Direito na Universidade de Genebra.
REDES
Canoas, V. 6, N. 1, 2018
Ahead of Print
Recebido: 10.04.2018
Aprovado: 10.04.2018
DOI xxxx://xx.xxx.xxx/00.00000/XXXXX.x0x0.0000
*2 Universidade de Saint-Louis
Bruxelas, Bélgica
Direito Público, no Direito Internacional e no Direito do Trabalho. Por último (tópico 4), ocupar-me-ei de propor vários esquemas explicativos das distintas evoluções ocorridas: recorrerei sucessivamente à análise sociojurídica dos contratos, à teoria pragmática da ação e à Teoria do Direito. Ao tempo do pacto Xxxxxxxx, que termina, como Xxxxxxx, por devorar aquele a quem cria, espero poder opor um tempo neguentrópico, da aliança aberta e evolutiva entre companheiros; algo parecido com uma boa-fé compartilhada.
Xxxxxx e Xxxxxxx, duas negações do tempo
As diferentes versões do mito de Xxxxxx – desde o Faustbuch (ou Volkbuch) de 15873 até as leituras contemporâneas, passando pelo Xxxxxx xx Xxxxxxx (1590) e os de Xxxxxx (1808 e 1832) – mostram-nos um velho sábio que, decepcionado da vida e já de volta de todos os saberes, busca dominar as coisas e os seres; algo que, por certo, apresenta-se cada vez como mais e mais improvável. Confiando que as práticas da magia livrá-lo-ão dos limites materiais, entrega-se a elas: a magia é, em efeito, a abolição do tempo e do espaço, promessa de possessão imediata, poder transgressor exercido sobre as coisas e os seres, que parecem não ter condições de lhe opor4 resistência alguma. Para as pacientes pesquisas do sábio, que deve organizá-las com as leis da natureza buscando compreender seus segredos, a magia permite o milagre da iluminação imediata5. Xxxxxx tornou-se impaciente: da mesma forma que não suporta a alteridade do ob- jeto que deseja, não suporta, tampouco, o seu atraso temporal. Ademais, tanto o fascina o curto-circuito mágico que crê que ele poderia permitir o acesso imediato à possessão sem distância – ao controle, sem alteração nem alteridade6.
O outro reduzido a si mesmo e o tempo contraído dentro de um instante, isso é o que, ainda que em vão, o velho sábio busca na magia. Porém, eis aqui que, de repente, aparece-lhe o diabo e surge, então, a pergunta: saciará Xxxxxx seu desejo, estabelecendo o pacto com Mefisto? Ainda sem alterar sua identida- de, o objeto do pacto difere nas diversas versões do mito. Na narração popular (Faustbuch), o que Xxxxxx espera de Xxxxxxxxxxxx é que este lhe ensine e lhe instrua em todas as coisas e, em troca disso, promete, ao término do vigésimo quarto ano, que aquele “poderá dispor de seu corpo e de sua alma, ao seu prazer e por toda a eternidade7”. No primeiro Faust de Xxxxxx, o sábio busca “se unir” a Mefistófeles, busca se identifi- car, totalmente, com o seu espírito – “o espírito que sempre nega8” – para obter, por fim, acesso à verdadeira vida, à vida plena da que parece ter sido desviado pelo estudo dos livros. Nas versões posteriores do mito, o rejuvenescimento obtido por meio do contrato é o tema central; é, especificamente, o caso da célebre Ópera de Xxxxxx (1856) e também de Xxxxxxxxxx de la nuit (1925) de Xxxxxx Xxx Xxxxx, d’onde a Xxxxxx se permite que, por sessenta anos, tenha a aparência que possuía aos vinte.
Sob essas várias formas, o que, entretanto, segue sendo o tema em questão, é a limitação do desejo:
S Narração popular de Xxxxxx: l’histoire du docteur Xxxxx (1587). Trad. de J. Xxxxxxxx, Paris: Xxx Xxxxxx Xxxxxxx, 0000 ª N.T. “Opor”, à magia.
‘ A. Dabezies. Le mythe de Faust. Paris: Xxxxxx Xxxxx, 1972. p. 293.
ª F. Mies. Faust ou l’Autre en question. Dieu, la femme, le mal. Namur: Presses Universitaires de Namur, 1994. p. 115. O autor complementa o parágrafo enfatizando que “no coração da magia encontra-se enraizado o princípio de identidade que funciona por imitação e por transmissão”.
’ L’histoire du docteur Xxxxx 1587. p. 79. 8 Goethe. Faust. Paris: Librio, 1997. p. 40.
desejo de saber, de juventude, de amor, entendido, em cada caso, como domínio sem obstáculos, domínio sem alteração ou alteridade. Um Xxxxxx levado à possessão imediata e perdurável do objeto intensamente desejado. Nesse sentido, manifesta-se muito significativamente uma das cláusulas do pacto inicial e que aparece em Récit populaire. Ao entabular relação com o diabo, Xxxxxx declara expressamente: “e para atestar isso, renego a todos os seres vivos, a todas as cortes celestiais e a todos os homens”. O pacto Fáus- tico em sua forma mais imediata, nascido na fusão das declarações negociais, é ferramenta do solipsismo: emerge em um mundo sem mais além, sem profundidade – poderíamos dizer que é um mundo meramen- te aparente. Que temporalidade permite justificá-lo? Xxxxxx é bastante explícito sobre esse ponto: é in situ que o Maligno propõe a Xxxxxx que lhe pertença – “que assim acontece instantaneamente,” responde-lhe o sábio9. E o pacto, uma vez fechado, surte efeito a partir de então e por “toda a eternidade10”. Imediação e eternidade alocam o compromisso em algum lugar fora do tempo, traduzindo bem o projeto de domínio total que Xxxxxx xxxxxxx consigo: “Que soe a hora, que caia a agulha e que já não exista nunca mais o tempo para mim!”, xxxxxxx00.
Afinal de contas, o tema do rejuvenescimento é nada mais que modalidade particular da negação do tempo levada à cabo mediante a técnica contratual e formalizada pela redação do escrito autenticado por uma gota de sangue12 – Xxxxxx faz alusão a isso duas vezes seguidas13, sem que o motivo seja aqui central, como sim o é nas versões posteriores do Xxxxxx. O importante é que, mediante o contrato, o outro se reduz a si mesmo – fusão mágica, identidade solipsista – e o tempo se detém, pois, acaso não se lamenta Fausto14 de ver “todos os seus sonhos desvanecerem no abismo do tempo”?
A partir de então, esse tempo do pacto Xxxxxxxx torna-se um tempo coisificado: surge da sua per- manência, mais que da criatividade histórica – ou criatividade narrativa do eu exposto a outro. A distinção indicada por Xxxx Xxxxxxx entre duas formas de identidade ilumina esse ponto: de um lado, a identidade como “semelhança” – o “idem” em latim e o “same” em inglês –, que responde à questão: “que sou?”; de outro lado, a identidade como “ipseidade” – “ipse” em latim e o “self” em inglês –, que responde à pergun- ta: “quem sou?”15. Ainda quando repousa sobre a permanência do “mesmo” – algo que revela traços de caráter e disposições adquiridas –, o “eu” não saberia, sem a alienação, reduzir-se a essa figura invariável e à mesmice. Daí que lhe corresponde também existir, é dizer, ser afetado pelo tempo que flui e ser alterado pelo contato com o outro – em poucas palavras, haverá de comprometer-se com uma história na qual é, ao mesmo tempo, o ator e o expectador. Uma história que põe em ação os recursos éticos e jurídicos da responsabilidade – entende-se essa, precisamente, como a “resposta” à interpelação pelo outro.
Sem lugar para dúvidas, o contrato exsurge como ferramenta deveras eficaz quando se pensa o fun- cionamento desta responsabilidade: ao comprometer sua palavra, o outro pode, a partir de então, “contar”
ª Idem. p. 47 e 48.
¹º Idem. p. 49.
¹¹ Idem. p. 48.
¹² Idem. p. 49.
¹S Idem. p. 16 e 72. Conduzido ao antro da bruxaria, Xxxxxx se pergunta: “Existe, nesta cozinha, alguma mistura que possa re- mover trinta anos do corpo?
¹ª Idem. p. 23.
¹‘ P. Ricoeur. Soi-même comme un autre. Paris: Ed. du Seuil, 1990. p. 140-150.
comigo16, de sorte que me converto, para ele, em “alguém de quem se pode exigir a prestação de contas” de seus atos17. Entretanto, ainda é preciso que esse contrato não aliene totalmente os seus protagonistas: mas não é esse o sentido do compromisso de Xxxxxx, quando, em seu desejo de se livrar dos limites da realida- de, “vende sua alma ao diabo”? Essa é uma opção, às vezes, instantânea e irrevogável a ser executada ao pé da letra: agarrando-se à mesmice que deseja – e atraindo o outro para ela, como à Xxxxxxxxxx –, Xxxxxx se subtrai ao tempo que passa – o tempo que simboliza o tema do rejuvenescimento transitório – alienan- do, radicalmente, sua ipseidade18. O contrato passa, então, de instrumento de colaboração a ferramenta, moenda de alienação. Ao cristalizar-se em seu próprio texto e negar o espírito de confiança que deveria inspirá-lo, acaba por inscrever-se fora do tempo, da história e da narração e, em tais condições, não deve surpreender que chegue o momento de sua destruição, como dito antes, na emergência de sua violação e dos danos daí decorrentes. A permanência só é possível no fantasma: os signos da juventude se transfor- mam necessariamente da mesma forma que o texto estará sempre exposto às variações interpretativas das histórias compartilhadas. Negá-lo, encerrando-se na falsa crença da autonomia absoluta é, paradoxalmen- te, expor-se à alienação mais radical.
É certo que a narração literária é “um laboratório de julgamento moral”19 – e jurídico, adicio- naremos. Em O Mercador de Veneza de Xxxxxxxxxxx (1596), encontramos outro experimento de pacto atemporal e diabólico. Ao se levantarem as cortinas, Xxxxxxx, o rico mercador de Veneza, tal qual Xxxxxx, ruminava a sua tristeza decepcionado com a vida, entremeio a todos os saberes. É aqui que aparece Xxxxx- nio, o jovem amigo sem dinheiro, que vem pedir a soma necessária para cortejar a xxxx Xxxxxx, amor eleito por seu coração. Ocorre, no entanto, que Xxxxxxx, nesse momento, está totalmente desprovido de qualquer soma líquida de dinheiro, eis que toda a sua fortuna fora investida em operações marítimas em curso. Isso não é um problema! Pedirão o dinheiro a Xxxxxxx, usurário judeu. Três mil ducados que deverão ser resti- tuídos três meses mais tarde. Xxxxxxx se oferece como garantidor do acordo. Entretanto, Xxxxxxx duvida: Xxxxxxx é seu inimigo declarado, alguém que – estimulando desta forma, perigosa competição – empresta a outros sem juros e que, ademais, no passado, não deixou de “tratá-lo como um cachorro”. Dois homens, de fato, totalmente opostos: um é calculista, o outro, generoso e até mesmo pródigo; um entesoura o outro gasta; Xxxxxxx faz fortuna sobre a razão e a posse, o outro arrisca a sua em aventuras loucas – ademais, é Xxxxxxxxxxx quem insiste: o primeiro é judeu, o outro, cristão. Ainda assim, Xxxxxxx não hesita em con- tratar com Xxxxxxx, que é, por demais, “o diabo”20 – um diabo com quem, no entanto – tal qual ocorre com Xxxxxx – ele está disposto a contratar.
Apesar disso, Xxxxxxx também tomou a sua decisão: emprestar-lhe-á os três mil ducados e, ainda, o fará sem cobrar juros. Eles assinarão a nota promissória, imediatamente, sem demora, perante um notário. Porém, “por puro prazer”, Xxxxxxx introduz uma exigência complementar: “se a soma acordada não vier
¹ª N.T. Obviamente o autor tem em mente os contratos bilaterais.
¹’ Vale a pena destacar, nesse sentido, que Xxxxxxx utiliza precisamente o exemplo da promessa para ilustrar a especificidade da identidade concebida como ipseidade. Pela “palavra dada”, institui-se uma permanência no tempo de um tipo diferente da simples persistência do que permanece (mesmice). Idem. p. 148-149.
¹8 Nesse sentido F. Mies. Qui suis-je? Xxxxx ou le refus de viellir. Para uma interpretação radicalmente diferente do Xxxxxx xx Xxxxxx (compreendida essa vez como a interpretação da finitude humana), veja-se L. Xxx Xxxxx. La libre raison du phénomène.
¹ª P. Ricoeur. Soi-même comme un autre. p. 167.
²º Shakespeare. Le Marchand de Venise. Trad. de Xxxxxxxx-Xxxxxx Xxxx. Paris: Flamarion, 1997. p. 35.
a ser reembolsada ao final do prazo previsto, então ele terá direito a uma libra da carne do seu devedor – da parte do corpo que mais lhe agradar”21. Seguro do êxito de suas empresas, Xxxxxxx aceita a cláusula, subscrevendo com ela caução que, como o Xxxxxx xx Xxxxxx, é acompanhada de aposta potencialmente mortífera – que vem acompanhada do comprometido “do corpo e dos bens”.
Quando o prazo é alcançado, vemos que os atos de Xxxxxxx acabaram por levá-lo à ruína: todas as suas expedições fracassaram, seus navios foram presos por piratas, lançados contra as rochas ou arrastados por tempestades. Aí o temos, no dia em questão, incapaz de honrar sua dívida. Deverá ele pagar com as libras de carne? Xxxxxxx assim exige: a nota promissória grita a seu favor, bem como o Direito da cidade dos Duques que ele sabe bem invocar em seu interesse. Não repousa o crédito comercial, em Veneza, sobre o respeito absoluto aos compromissos contratuais, compreendidos, aqui, aqueles aos quais os estrangeiros são partes22?
Os amigos de Xxxxxxx mobilizam-se, oferecendo ao credor até duas vezes o valor garantido. Isso de nada serve. Xxxxxxx reclama a libra de carne: é isso o que lhe pertence; é seu triunfo, sua vingança. Assim está escrito e assim há de ser. Xxxxx não fora Xxxxxxx quem, a critério próprio, irresponsável como de hábito, firmara o instrumento de seu suplício? Como todos os párias, Xxxxxxx sempre buscou pautar a sua conduta no mais estrito legalismo exegético23: apelar à equidade dos juízes poderia implicar no recrudesci- mento dos escassos privilégios que a lei lhes reserva24. Há de ser o texto e nada mais que o texto. O mesmo Duque apelaria, em vão, por sua clemência – e como essa se articula no âmbito meta-legal, não poderá ser- lhe exigida. Assim como o perdão ou a graça, a clemência surge na abundância do dom. E como haveria de dá-la, Xxxxxxx, se ele, unicamente, empresta para logo poder tomar mais, ele, o usurário, a quem ninguém, jamais, presenteou?
Em qualquer caso, Xxxxxxx se envolve na lógica da vingança: o mais provável é que em nenhum momento ele tenha desejado vir a ser reembolsado, ao final do prazo ajustado. Como manifesta sua pró- pria filha, é a “pele” de Xxxxxxx que ele deseja25 desde o início – a vingança é sua verdadeira motivação26, a prática da Lei de Talião da qual os judeus, pelos outros – como ele, não sem razão, observa –, nada têm a aprender com os cristãos27. Damo-nos conta da existência de que o tempo da vingança ficara retido ou, até mesmo, fluísse como contagem regressiva; como se os relógios parassem no exato momento em que a falta, a violação pela qual se reclama o castigo, ganhasse concretude. O contrato é aqui o instrumento desse tempo retido: longe de evoluir à procura da colaboração das partes, deixa de se mover para dar ensejo à execução mecânica da vingança premeditada.
Porém, permitiremos a execução de um contrato que seja tão imoral? Mais que invocar um instru- mento legal que permita, sem dúvida, invalidar cláusula penal deveras aterradora – o que não reduziu a tensão dramática da obra –, Xxxxxxxxxxx faz surgir a solução no excesso de legalismo. Disfarçada de jovem
²¹ Idem. p. 37.
²² Idem. p. 75.
²S N.T. Nos permitimos interpolar o termo “exegético”. O signo não foi utilizado nos textos que embasam essa tradução.
²ª Nesse sentido R. Posner. Droit et littérature. Trad. de Chr. Hivet e Ph. Jouary. Paris: P.U.F., 1996. p. 114.
²‘ Idem. p. 73.
²ª Idem. p. 63.
²’ Idem. p. 64.
jurista, Xxxxxx, a esposa de Xxxxxxxx, é posta ao lado do Duque durante o processo. Sua erudição fará ma- ravilhas. Em um primeiro momento, parece ser favorável a Xxxxxxx: efetivamente – dirá –, não ser possível encontrar poder algum em Veneza que possa afastar o compromisso formal28. Porém, não por esse motivo, o usurário receberá sua prestação: o que a nota promissória estabelece é “uma libra de carne”, nem mais, nem menos – qualquer gota de sangue derramada ou qualquer grama de carne que exceda a quantidade estabelecida serão consideradas como violações às leis de Veneza. Que número teatral! É aqui que Xxxxxxx é confundido, levado a renunciar o seu crédito, vindo a ser penalmente processado, na sua condição de estrangeiro, por ter ameaçado a vida de um cidadão de Veneza.
O drama aqui apresentado em traços largos, aliás, como costuma acontecer, frequentemente, em Xxxxxxxxxxx é, ao menos, ambíguo. Podemos ver tanto uma obra antissemita e não nos equivocaremos29: a personagem de Xxxxxxx concentra todos os preconceitos sobre o seu povo e a sorte final reservada a ele é injusta; ainda que, o que Xxxxxxxxxxx ponha em sua boca, seja uma denúncia: a hipocrisia da sociedade elisabetana de seu tempo e, especialmente, de suas práticas escravistas30. Como também se pode ver, a obra denuncia a caricatura do contrato celebrado entre Xxxxxxx e Xxxxxxx, assim como a paródia impregna o processo em que aparecem como partes adversas. É certo que nenhum sistema jurídico civilizado do século XVI tenha prestado apoio à execução de cláusula penal tão gritantemente contrária à ordem pública. Já nessa época, o Tribunal de Equidade inglês livrava os devedores de sanções privadas exorbitantes e, no que se refere ao Direito Judaico, assinala R. Drai31, ele sempre proibira arrancar a carne de animal vivo e, a for- tiori, de seres humanos. Ademais, o processo que leva Xxxxxxx à bancarrota é uma farsa: curioso processo na verdade, sem juiz, sem advogado, no qual o amicus curiae – Xxxxxx – toma a decisão ignora que ela está diretamente interessada no assunto em pauta, que os direitos da parte acusada não foram respeitados e que um desacordo civil se encerra com uma sanção… penal32.
Pode-se assim vislumbrar, na personagem de Xxxxxxx – como o faz Xxxx Xxxxxxxxx –, o protótipo do capitão industrial, soberano e trágico na linha dos Loewenstein e dos Kreuger, destroçados pela decepção do Entre Guerras33. Enfim, também é possível ler no drama – curiosamente, qualificado como “comédia”
–, a fábula de Xxxxxx; duplo Xxxxxx, na verdade: o que Xxxxxxx, o usurário canibal, pretende exercer sobre Xxxxxxx e, esse que Veneza decide, também, ilegitimamente, e que acaba por impor a Shylock34.
No que se refere a nós, concentraremos nossa atenção na força jurídica e na intangibilidade tem- poral do contrato. Força jurídica que dá medo e que provém da nota promissória cuja mera menção quase pôde tirar a vida de Xxxxxxx. Todos estavam de acordo quanto a isso, até o Duque e o próprio Xxxxxxx: nada, nem ninguém, poderiam prevalecer frente ao rigor da cláusula escrita. Como precedente tão singular poderia pôr em jogo o crédito no Mercado Veneziano? A letra da nota promissória continha um futuro
²8 Idem. p. 90.
²ª Ph. Malaurie. Droit et literature. Paris: Editions Cujas, 1997. Também R. Drai. Le mythe de la loi du talion: une introduction au droit hébraique. Paris: Alinea, 1991. p. 37-48.
Sº Shakespeare. Le marchan de Venise. p. 96. S¹ Op. cit. p. 41.
S² Ph. Malaurie. Op. cit. p. 72-73. R. Posner. Op. cit. p. 110. R. Drai. Op. cit. p. 47. SS J. Carbonnier. Flexible droit. 8 ed. Paris: LGDJ, 1995. p. 367-368.
Xx X. Drai. Op. cit. p. 37-48.
inexorável que, como se pode ver, sacada em um passado prenhe de rancor, esperava por um presente que não poderia lhe frustrar as expectativas.
E, no entanto, todos e cada um acabamos sendo conscientes da ilegitimidade de algo assim: sum- mum ius, summa iniuria! Não seria então preciso vivenciar “pequena injustiça” – denunciar a letra do contrato – para evitar um mal maior? – pergunta Bassânio35. É possível dissociar, nesse momento, a letra do espírito do contrato? Ou, incluindo ainda mais, é tolerável que o espírito que preside a conclusão e a execução do contrato seja, nesse momento, selado pela má-fé? Quando imaginara a diabólica cláusula, Xxxxxxx não pretendia ser reembolsado e, uma vez vencida a aposta, não estaria disposto a fazer concessão alguma em sua execução. A reflexão acerca de tais questões interrogativas é o que parece propor a obra: ainda que faltem palavras e argumentos jurídicos, adivinhamos que o contrato deve apresentar utilidade econômica mínima para ambas as partes e deve descansar sobre o justo equilíbrio para que o Poder Público concorde com a sua execução. Não se havia proposto a Xxxxxxx a devolução de seu empréstimo unido a copiosos juros – que chegaram a 400%! –? Nessas condições, não seria abusiva e, finalmente, juridicamente insustentável qualquer outra interpretação do contrato? A segurança que há de acompanhar um contrato qualquer deve ser entendida como a inflexível execução de suas cláusulas menos razoáveis? Mas como ensejar a renegociação de seus termos quando um dos protagonistas se nega, com obstinação, a fazê-lo?
Finalmente, a solução nasce no extremo, a uma espécie de raciocínio absurdo: amplificando a li- teralidade do contrato até o seu paroxismo, Pórcia desencadeou o drama e desmascarou os sentimentos que moveram Shylock. Admitir a libra de carne e rechaçar o sangue equivale a demonstrar – mediante o recurso a argumento absurdo – que a cláusula ou é inaplicável ou é mortífera, o que, definitivamente, há de se voltar em desfavor daquele que a invoca. Xxxxxxx, com efeito, seria um suicida se perseguisse até o fim a execução do contrato. Como Xxxxxx, anteriormente lembrado por tentar assegurar sua ipseidade ao vender a alma ao diabo, Xxxxxxx aliena-se na sua obstinação ao exigir a execução da nota promissória. Ele está, com efeito, duplamente alienado: “louco”, desde o momento em que rechaçara todo arranjo economica- mente vantajoso e, mais do que nunca, “estrangeiro” na cidade, judeu e usurário por toda a eternidade, algo bem certo, na medida em que um destino fora criado para ele, destino para o qual os outros, com prazer, o empurrariam. A mesmice da letra – três mil ducados ou uma libra de carne – e a “personagem” – o judeu não pode ser mais que um usurário canibal – encerram, irrevogavelmente, a ipseidade, apagando toda a temporalidade evolutiva ao inviabilizar toda renegociação de boa-fé.
A lição serve também a Xxxxxxx, cuja figura, embora permaneça na sombra de Xxxxxxx, não é por isso menos fascinante. Intrigante a postura do magnífico armador que se encontra, de repente, melancó- lico, tão disposto a assinar cláusula suicida e cuja execução não discutiria diante dos erros de cálculo que fizeram soar os sinos na hora do fracasso. Desesperança real ou desafio teatral à maneira veneziana? Pouco importa, pois, definitivamente, é preciso terminar tudo isso. E isso reclama que o contrato seja executado
– carne e letra confundidas, como a máquina infernal imaginada por Xxxxx e usada na lapidação das sen- tenças sobre os corpos dos condenados na sua Colônia Penal.
35 Idem. p. 90.
Solidários em seus destinos, Xxxxxxx e Xxxxxxx, Xxxxxx e Xxxxxxxxxxxx fizeram do contrato que os ata uma máquina infernal cujas molas, uma vez estimuladas, jamais regressarão ao estágio inicial até que nada mais reste senão a destruição na medida em que o tempo se encerra em si mesmo.
O tempo contratual: do perfeito ao imperfeito
No limite da tensão possível, as fábulas de Xxxxxx e Xxxxxxx emergem como ilustrações do tempo contratual enquanto tempo instantâneo, fixo e, definitivamente, atemporal, privilegiado pela teoria clássica do contrato, um tempo desconstruído, atualmente, pelo direito positivo.
Antes de lavar à cabo a análise crítica da concepção clássica, convém sublinhar seus acertos. Com efeito, quando se busca pensar acerca da temporalidade em movimento é preciso resgatar que o contrato é, antes de qualquer outra coisa, ferramenta de dominação do futuro, instrumento destinado a reduzir a aleatoriedade do que está por vir e dominar tanto as mudanças de circunstâncias como os equívocos que impregnam o conteúdo das declarações de vontade. Ser credor de crédito que obriga a outro implica algo que parece equivaler ao poder de se apropriar de uma parte do futuro. Arrancado das contingências dos acontecimentos, subtraído das flutuações do tempo, o crédito representa a certeza de que o acordo, neces- sariamente, terá lugar. É como se, de repente, o futuro incorporasse e assumisse, na forma de antecipação segura de si, consistência normativa. É enorme o que está em jogo. No plano econômico, a simples pre- visão de vantagens contidas no futuro, a perspectiva dos frutos que a coisa ou a empresa hão de produzir representam um valor – uma vantagem, imediatamente, deslocada de seu lugar originário36. E em razão da teatralidade, da ficção que impregna o Jurídico, tais prestações e ganhos, apesar de serem apenas uma possibilidade, incorporam-se ao patrimônio do credor.
É evidente que, em tais antecipações, reside algum risco. O futuro comprometido não é, necessariamente, o futuro garantido. O risco contribui, até mesmo, para a valorização daquilo que está em jogo. De modo mais preciso: a regra do jogo contratual é que os contratantes, ou apenas um deles, assumirão os riscos que, inevitavelmente, estão alocados no futuro. Eis a consequência de integrar um contrato do qual consta a cláusula “sempre e enquanto o restante das circunstâncias permanecerem inalteradas”, pois, aqui, a segurança estará comprometida – contratar sob essa condição é, portanto, não se comprometer totalmente, eis que, sem dúvida, parece impossível ter em conta “todas as coisas” que possam ser relevantes e (ou) medir, rigorosamente, até que ponto permanecerão “iguais”. Isso, aliás, implicaria, também, a vinculação a processo de renegociação permanente nascido da perspectiva que valoriza a segurança ao pretender compensar o mínimo desequilíbrio e impedir a materialização do menor risco37.
Tais considerações, que insistem em perseguir certa fenomenologia do contrato, seguem sendo cor- retas. Resta, no entanto, assinalar que a confiança na iminência do futuro – o “crédito do tempo”, imanta- do ao contrato – está fundido à confiança na contraprestação nele igualmente prometida38. Todavia, esta
Sª N.T. Do patrimônio do devedor para o acervo de bens e direitos do credor.
S’ A. Seriaux. Le futur contractuel. In: J. J. Austruy et all (Org.). Le droit et le futur. Paris: P.U.F., 1985. p. 86-87. S8 N.T. Uma vez mais, o autor tem em mente contratos bilaterais.
condiciona aquela. Aqui o que foi redescoberto pela literatura e práticas contemporâneas: o contrato não é instrumento de dominação do futuro, não garantirá a esperada estabilidade linear exceto na condição de se manter a confiança recíproca sobre a que suas bases estão assentadas. Em tais condições, admitir que apenas se negocia progressivamente e com elevado nível de prudência e que pode vir a ser necessá- rio modificá-lo por meio da renegociação de algumas de suas cláusulas – de modo inscrevê-lo, para ser exaustivo, dentro da temporalidade móvel e evolutiva atada aos contratos – não significa minar a sua força performática – é dizer, sua capacidade de engendrar o futuro –, longe disso, implica aproximá-lo de sua máxima condição de êxito39.
Feitas tais precisões, passemos à teoria clássica da temporalidade contratual e à demonstração das transformações que, atualmente, tem-na atingido, ainda que, como sublinha Thibierge-Guelfucci, a lite- ratura contemporânea40 não tenha percebido qualquer ruptura paradigmática e siga se espraiando por emendas e exceções adicionadas a dogmas petrificados.
Para a teoria clássica, as negociações pré-contratuais não têm valor jurídico: tudo se sucede como se o contrato nascesse em um instante de razão, aquele no qual os consentimentos se fundem e no qual o nada normativo passa, instantaneamente, à vida jurídica, sendo, a partir de então, perfeito e portador de todos os efeitos jurídicos futuros antevistos pelos contratantes. É a doutrina – segundo escreve J. M. Mousseron41
– do “amor à primeira vista”, da “união espontânea e instantânea” de duas vontades. M. A. Xxxxxx-Xxxxx aponta, aqui, que “o contrato é um ponto no tempo no qual a vontade, viva como o relâmpago, escolhe outra vontade alter ego disposta a ir ao seu encontro para experimentar o desfrute atemporal dessa união42.
O contrato, uma vez formado, reivindica sua intangibilidade. Preso na imutabilidade de seus termos e na suposta “intenção comum das partes”, encontra-se aí seguro para atravessar o tempo sem ser afetado pelas mudanças das circunstâncias ou pelas inflexões da referida vontade. O contrato, uma vez concluído, opõe-se às partes escapando, daí em diante, às suas vontades; resistindo aos impulsos de intervenção judi- cial, eis que o juiz poderia estar tentado a ajustar-lhe os termos; opõe-se, com êxito, até mesmo à nova lei que venha a pretender exercer alguma ação imediata sobre seus efeitos postos em marcha. Como se pro- tegido por uma “bolha ou bloco”43, isola-se do fluxo do tempo e resiste a toda erosão a ponto de carregar condigo a sobrevivência de antigas leis, sob o título de previsões contratuais. “Bolha” atemporal, “bloco” cristalizado e no interior do qual direitos e obrigações foram imobilizados. Quaisquer que venham a ser as incertezas que o afetem ou que conduzam a ulteriores sucessos, o contrato elide, afasta, impossibilita todo e qualquer desafio ulterior. Exceto na hipótese extrema de força maior – que converte em impossível, o adimplemento das obrigações –, o contrato é vocacionado a ser cumprido, ainda que se torne inútil ou se- meie a injustiça entre os devedores. Basta recordar, em relação a isso, os surpreendentes termos da famosa sentença do “Canal de Craponne”, ocasião na qual a Corte de Cassação não permitiu a revisão do conteúdo
Sª N.T. De satisfação dos contratantes, portanto.
ªº C. Thibierge-Guelfucci. Libres propos sur la transformation du droit des contrats, Revue Trimestrielle de Droit Civil, abr. / jun. 1997. p. 370 e seguintes.
ª¹ X. X. Xxxxxxxxx. Études offertes à Xxxxxx Xxxxxxxx. Aix-Marseille: Faculté de Droit et de Science Politique. p. 509.
ª² M. A. Frison-Roche. Remarques sur la distinction de la volonté et du consentement en droits des contrats, Revue Trimestriel- le de Droit Civil, n. 3, jul. / set. 1995. p. 575.
ªS Essas expressões são de C. Thieberge-Guelfucci. Op.cit. p. 360.
de obrigação de pagamento de quantia em dinheiro que resultava de acordo instituído, pactuado… 316 anos atrás. Apoiado em concepção inflexível de segurança jurídica e em discutível interpretação do artigo
1.134 do Code, a Corte decidiu que: “em hipótese alguma integra a competência dos tribunais ou dos juízes,
por mais respeitosa com a equidade que parecesse ser a decisão44, a possibilidade de considerar o tempo ou as circunstâncias para modificar acordos formulados entre as partes e substituir, por cláusulas novas, aquelas que foram aceitas, livremente, pelos contratantes”45.
Fora negada também qualquer importância ao tempo transformador noutras decisões mais recen- tes. Na sentença de 31 de maio de 1988, a Corte de Cassação seguiu opondo-se à revisão do contrato pelo juiz, argumentando que, se as partes não introduziram cláusula de adaptação permitindo a variação do preço em função das datas de envio, dever-se-ia presumir que seu desejo era o de permanecer com o preço inicialmente ajustado46.
Porém, como ocorre no caso de qualquer frustração, o tempo, desde logo, regressa e é razoável pensar que, com ele, mais justiça, mais realismo. Para começar, no que se refere à conclusão do contrato, retornamos à instantaneidade para, consequentemente, a partir de agora, abordar a formação progressiva do acordo. A fase de negociação é, atualmente, objeto de maior atenção: em tais negociações, geralmente prolongadas no tempo e marcadas pela gênese de acordos parciais, com promessas de assunção de com- promissos, com cartas de intenções, descobrimos obrigações específicas. Se bem não se trata, todavia, de executar as cláusulas do contrato que temos entre as mãos, ao menos, nos comprometemos a negociar com lealdade, a não retirar a oferta de maneira intempestiva e, ainda, a nos esforçarmos por chegar a acordo equitativo dentro de prazo razoável. A propósito destes “contratos de negociação”47, foi desenvolvida uma “deontologia da negociação”48 e que possui o mérito de inserir o futuro contrato em perspectiva temporal mais prolongada, mais concreta: à luz das diferentes etapas de sua gênese, o pacto não poderá ser interpre- tado ou executado somente sob a luz de sua letra ou da hipotética intenção comum às partes de dimensão puramente formal.
Se, a partir de agora, a formação do contrato pode se estender no tempo, sua conclusão não mais se reduz, necessariamente, a determinado instante pontual: os prazos para a reflexão retardam e (ou) obstacu- lizam a formação do acordo, a faculdade do arrependimento e (ou) os prazos para o exercício do direito de retratação condicionam a sua manutenção49. A “flechada” do amor cego tratada, anteriormente, cede lugar para o consentimento racionalizado e para a aproximação progressiva dos pontos de vista, perspectiva mais sólida e realista diante do ajuste gradual.
ªª N.T. A alusão é a decisão reformada pela Corte de Cassação francesa no caso clássico. Aos que iniciam o contato com o direito dos contratos sugerimos: XXXXXXXXX, Xxxxxx; CATALAN, Xxxxxx. Duzentos anos de historicidade na ressignificação da ideia de contrato. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 90, p. 191-211, nov./dez. 2013.
ª‘ Cass. Fr. 6 de março de 1876. I. p. 193 em diante.
ªª Cass. Fr. 31 de março de 1988. Bull. Civ. IV. n. 189. p. 132.
ª’ Cfr. B. Frydman. Négociation ou marchandage? De l’éthique de la discusión au droit de la négociation. In: Ph. Xxxxxx; F. Ost;
M. xxx xx Xxxxxxxx (Dir.). Droit négocié, droit imposé? Bruxelas, 1996. p. 231 em diante.
ª8 A expressão é de M. Fontaine. Droit des contrats internationaux. Analyse et rédaction des clauses. Feduci: Fórum Europeu da Comunicação, 1989. p. 34.
ªª X. X. Xxxxxxxxx. La durée dans la formation des contrats. p. 519 em diante. Cf. também X. Hauser. Temps et liberté dans la
théorie genérale de l’acte juridique. In: Religión, société et politique. Mélanges en l’honneur de Xxxxxxx Xxxxx. Xxxxx, 0000. p. 503 em diante.
Por outro lado, o que resta da pretendida imutabilidade do contrato? Desde o momento em que ele passa a considerado como “vínculo” vivo, orgânico entre as partes unidas pela relação contratual, é previ- sível que nos adaptemos com mais facilidade que outrora ao ajuste de seus termos, na medida em que im- periosa necessidade o justifique. Exposto com mais frequência que no passado ao efeito imediato de novas leis50, o contrato não mais se encontra blindado de possíveis intervenções corretivas dos juízes, preocupa- dos com o reequilíbrio das prestações, com a necessidade de erradicar cláusulas abusivas ou modificar seus termos ao terem em conta a delicada situação do devedor. Assim, a ley Neiertz de 31 de dezembro de 1989, autoriza ao juiz – se as dificuldades enfrentadas pelo devedor o justifiquem – modificar o clausulado de um contrato concedendo maior prazo para o cumprimento ou reduzindo o montante de juros contratados.
A maior flexibilidade do contrato, longe de expor suas entranhas, confere-lhe melhores condições de adaptação e, com isso, maior chance de sobreviver às intempéries das circunstâncias. Testemunha-se, concretamente, o fato de que, a partir de agora, identificada a irregularidade do acordo, será preferível a “regularização” que o mantenha em vigor – afastando, por exemplo, uma cláusula ilegal –, em vez de optar- se pela sanção, radical, que implicaria em sua nulidade51.
Sabemos também que a Corte de Cassação aceita ulterior fixação do preço por referência à tarifa do vendedor, com a condição, entretanto, de que o último não abuse do seu poder formativo52; solução que parece melhor que a sanção radical, a declaração de nulidade, total e absoluta, ante a indeterminação do preço.
Igualmente, privilegia-se o espírito de colaboração entre as partes; uma espécie de a$ectio contrac- tus, ou desejo de cooperação para lograr êxito na obra comum, o que implica o cuidado com o vínculo contratual e com a sua execução de boa-fé. A partir de agora, poderão ser sancionados comportamentos desleais e (ou) a inadmissível conduta de ocultar-se atrás da letra escrita na tentativa de afastar a obrigação de renegociar o contrato cujas obrigações foram convertidas em fardo para o devedor. Dessa forma, a Corte de Apelações de Paris – e isso foi mantido pela Corte de Cassação – condenou companhia petrolífera por não ter cooperado com seu distribuidor na renegociação do preço da compra de carburantes, preço que não deixava nenhuma margem de lucros ao último53: aliás, em caso de ausência de cláusula contratual nes- se sentido, a boa-fé impõe ao credor renegociar os termos do contrato, que deixa de representar qualquer utilidade econômica à contraparte.
Na tentativa de sintetizarmos a evolução vivenciada pelo contrato, poderíamos dizer, com Thibier- ge-Guelfucci, que, de agora em diante, as relações entre liberdade e segurança se inverteram54.
Expliquemos isso: na teoria clássica, a liberdade está alocada no limite que antecede a conclusão do contrato e, a partir do instante ulterior – ou seja, do momento em que é concluído –, a segurança é
Լ H. Cousy. Invloed van de nieuwe wet op lopende overeenkomsten In: De retroactiviteit van rechtsregels, Leuven: Jura Falconi Libri, 1999. p. 39 em diante.
‘¹ C. Thibierge-Guelfucci. Op. cit. p. 362-363.
‘² Cass. Ass. Plén. 01 de dezembro de 1995. D. 1996. p. 13. Concl. Jéol e nota L. Aynes. Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1996.
p. 153. Obs. Mestre. J.C.P. 1993, II, 22565 e nota J. Ghestin.
‘S Cass. Com. 03 de novembro de 1992. J.C.P. 1993, II, 22164 e obs. Virassamy. ‘ª Op. cit. p. 375-376.
maximizada – a lei contratual, irrevogável e intangível, impede, adiante, que as partes se libertem dele55. É preciso ver, ademais, que em tal modelo prevalece o ponto de vista do mais forte: livre na hora de decidir contratar ou não, livre para escolher quem serão os parceiros contratuais e para fixar os termos do contrato em questão; o contratante mais forte se beneficia, então, da “segurança jurídica” que poderia, muito bem, significar insegurança e injustiça ao olhos de qualquer devedor menos afortunado. Tal situação, entretanto, atravessou o espelho e, ao fazê-lo, revela-se invertida. A liberdade contratual acaba por ser limitada quando da conclusão do contrato – as obrigações criadas na fase de negociação fluem desde as suas cláusulas –, em- bora, não esgotada, informa a possibilidade de abandonar o contrato ou, ao menos, de se buscar a revisão dos seus termos. Atualmente, tudo tem lugar como se após a fase preliminar – por meio da qual “garantias” são estabelecidas –, houvesse uma fase de execução, mais “libertadora”, mais “fluida”, e na qual se percebe a prevalência do cuidado com vulneráveis que devem ser devidamente informados antes de se vincularem e que, na sequência, devem poder experimentar compromissos impregnados de justiça contratual e que possam produzir efeitos úteis também em seu favor.
Consoante a concepção clássica, o contrato surgia na instantaneidade de sua conclusão, aprisio- nando o conteúdo de sua execução: a intangibilidade da letra bailava acompanhada da espontaneidade, quase mágica, de sua escrita. De fato, um contrato assim pensado situava-se “fora do tempo”. As narrativas contemporâneas devolveram ao contrato a vida concreta, permitindo que ele reencontre a linha do tempo e valorize, por exemplo, tanto o que houve antes, como o que venha a acontecer depois de sua conclusão. A imutabilidade de suas letras dá lugar à progressividade do espírito: o contrato é um vínculo com vida que se forma ao longo de suas distintas etapas de elaboração. Do contrato, tal e qual fora expressado, ao contrato querido ou deliberado; do contrato concluído, ao contrato executado. Observa-se boa quantidade de metamorfoses no curso das quais o tempo exerce a sua força – às vezes, também destrutiva: é a passa- gem progressiva do possível ao real, do indeterminado ao determinado, do informado ao formado e (ou) da potência ao ato. O ato jurídico que resulta não pode fingir que sua perfeição foi atingida no dia de sua conclusão formal. A teoria clássica via como perfeito esse ato e o justificava no tão-só fato da concordância das vontades que antecediam o seu resultado, a sua gênese. Em tal contexto, sua “atemporalidade” remetia ao tempo fictício e abstrato do perfeito e no qual o ato ou a ação foram alcançadas, como se o domínio que a vontade exerce sobre o tempo fosse tamanho a ponto de ela, desde o princípio, deter, por completo, quaisquer avatares. Poderíamos dizer, por outro lado, que o tempo contratual que se manifesta, atualmente, por meio de suas transformações pretorianas e legislativas, parece mais o tempo do imperfeito – tempo que dura e que é interativo, que se apresenta com ação em desenvolvimento e cujo começo e fim não são iden- tificáveis56 com precisão. Longe de traduzir a imperfeição do contrato, essa característica dá testemunhos de sua maior capacidade de sobrevivência na medida em que satisfaz, melhor do que ontem, as exigências de justiça contratual e de utilidade econômica.
É claro que a referida transformação do tempo contratual não é estranha à modificação da
‘‘ N.T. Exceto ante a ocorrência de pagamento ou na improvável manifestação do fortuito.
‘ª N.T. Ao menos, não antes da extinção do contrato – pelo pagamento, resolução, resilição, denúncia, enfim –, reflexão que não despreza, ademais, a existência de deveres que somente virão o existir após um destes instantes no curso do processo obrigacio- nal.
concepção acerca dos fundamentos que informam a ideia de contrato. O “perfeito” do contrato instantâneo e imutável caminha de mãos dadas com a hiperbolização tipicamente liberal da autonomia privada: uma vez acorrentado o tempo, a vontade das partes deve, também, ter força de lei sobre ele. Com o tempo do imperfeito, o centro de gravidade do contrato acaba por ser deslocado e não tanto, como o pensar dicotômico conduz, com frequência, a antever, rumo aos campos de uma ordem pública rígida – em última instância, somente teríamos substituído uma soberania por outra, a perfeição da vontade estática ocuparia o lugar deixado livre pelas partes –, mas em direção a elementos mais objetivos, realistas e institucionais da relação contratual: dito em duas palavras, “o útil e o justo”, para falar como J. Ghestin: “o fundamento da força vinculante reconhecida ao contrato pelo direito objetivo se deduz de sua utilidade social e de sua conformidade com a justiça contratual”57.
Xxxxxxxxxx havia antecipado a mudança: ele anunciou que a maior atenção que vinha dedicando a elementos realistas do contrato iria disparar progressiva mudança no centro de gravidade do contrato, des- de a sua formação até a sua execução58. A partir de então, é menos a vontade autônoma que conta – ainda que ela siga sendo o ideal de contrato e o elemento que dá início à constituição de vínculos duradouros –, que a põe em funcionamento uma instituição inspirada pelos ideais da boa-fé objetiva, do equilíbrio con- tratual e da utilidade econômica. Tal inconclusão, testemunhada pela imperfeição do contrato, convoca a elaboração progressiva de suas previsões e, se ocorre o caso, ao ajuste de seus termos, de suas cláusulas. Os novos princípios, menos próximos do “dirigismo” que do “objetivismo” contratual59, contribuem, a partir de agora, ao dar-lhe forma. Em primeiro lugar, a busca da igualdade subjetiva entre as partes explica que as obrigações de informação e de lealdade se impõem ao vendedor que justificam a interpretação extensiva dos vícios de consentimento ou, mais ainda, a interpretação das cláusulas – no Direito do Consumidor – no sentido que possa ser mais favorável aos consumidores. O equilíbrio contratual, entendido em sentido objetivo, permite ao juiz remodelar o acordo que tenha produzido obrigações desproporcionais a cargo de uma das partes e que, desde o momento em que remedia desequilíbrios iniciais, como cláusulas penais manifestamente injustas e, ainda, desproporções que surjam ulteriormente, legitima entreabrir a porta à revisão diante do imprevisto. Evocaremos, por último, o novo princípio da “fraternidade contratual”, que implica que cada um deve “levar em conta, além de seus próprios interesses, o interesse contratual da outra parte, aceitando certos sacrifícios com a finalidade de favorecer a conclusão, a execução e a manutenção do vínculo contratual entendido como fundamento de colaboração”60. Em virtude desse princípio – que quiçá prefiramos conduzir à boa-fé –, em ocasiões, como temos visto, impõe-se a obrigação de renegociação com o fito de assegurar a continuação de suas relações negociais.
Diremos que essa concepção é, decididamente, demasiado idealista e que a fraternidade se ins- creve mais além do Direito? Preferiremos partir de uma antropologia mais pessimista e não ver entre os co-contratantes mais que dois inimigos com interesses contrapostos e que somente buscam maximizar suas respectivas posições? Essa é a postura adotada por Xxxxxx-Xxxxx, embora, seja deveras significativo
‘’ J. Ghestin. La notion de contrat, In: Recueil Dalloz, 1990, Chronique XXV. p. 149. ‘8 J. Carbonnier. Flexible droit. Op. cit. p. 577.
‘ª A distinção é de M. A. Frison-Roche. Op. cit. p. 577. ªº C. Thibierge-Guelfucci. Op. cit. p. 382.
perceber que a autora, desde ponto desde vista radicalmente oposto ao aqui assumido, chega à mesma concepção quanto a um contrato “que se estende no tempo”: “um mecanismo suspeito, instrumental, ten- tador e [ao mesmo tempo] prudente, arma pessimista desta guerra fria, fonte dos conflitos sobre os quais é construído”, um contrato “que se estende no tempo e que ao fazê-lo converte em obsessão questões acerca de procedimentos e provas”61.
Concluamos: aspirando a proteger-se na “perfeição” do ato jurídico, o contrato clássico acreditava possuir uma “mesmice” intangível e independente do que viesse a acontecer, o contrato seria “mantido”. Porém, isso implicaria desprezar a finitude de todos os nossos projetos, negar a falta de completude em nossas previsões e a indeterminação de nossas intenções, ocultar as inevitáveis contingências dos impon- deráveis acontecimentos que estão por vir e no porvir. E assim, agarrando-se à letra do acordo, corria-se o risco de afogar o espírito de colaboração sobre o qual estava assentado. Ao reestabelecer a imperfeição da duração concreta do tempo, a concepção contemporânea do contrato dá oportunidade a sua ipseidade – isto é, a sua capacidade de permanecer o mesmo, ao tempo em que se reinventa de outro modo, cada vez que as circunstâncias assim exijam.
Contrato social, tratado internacional, contrato de trabalho…
As análises em que temos submergido não são somente a panaceia do Direito Privado: em outros setores jurídicos aparecem, também, a elas conformados. A questão do contrato social, fundamento do edi- fício político-jurídico Moderno, oferece uma primeira ilustração, particularmente, significativa. No espíri- to dos “pais fundadores” (Xxxxxx, Xxxxx, Xxxxxxxx), o contrato social é caracterizado, seguindo o exemplo do contrato privado, pela instantaneidade de sua conclusão e a intangibilidade de sua execução.
Para Hobbes, por exemplo, o fim do estado da natureza com a transferência do poder absoluto por parte do povo ao Leviatã tem lugar em um instante de razão e não vem acompanhado de nenhuma espé- cie de deliberação, nem entre os cidadãos, nem por parte daquele que é designado soberano, para quem, a partir de então, todos devem manifestar seu respeito62. Como em um registro mágico, é “instantanea- mente” que se produz o efeito prodigioso: um se vincula e, no mesmo segundo, sob a sombra do soberano todo poderoso, resta impossível retornar às condições iniciais. “Curto-circuito” político pelo qual o povo, tão de pronto se constitui em ator político, anula a si próprio, entregando toda a sua lealdade ao poder absoluto do grande autômato político. O poder confiado ao Leviatã é perpétuo, desde o momento em que o compromisso que o produz seja, ele mesmo, irrevogável. Desde esse preciso momento, encontramo-nos sem a menor possibilidade de revisão dos termos desse contrato. Ao poder se assegura “eternidade de vida artificial” – é dizer: institucional – e isso ocorre tendo em vista a “segurança perpétua”63: de fato o povo, temeroso e alienado pelo contrato e sob a liderança do grande Leviatã, busca segurança. E ao trocar a sua liberdade por pretensa segurança, o povo acaba confinando-se a uma atemporalidade que o converte, a
ª¹ M. A. Frison-Roche. Op. cit. p. 575.
ª² Th. Hobbes. Léviathan. Trad. ao francês de F. Tricaud. Paris: Sirey, 1971. p. 177. Também S. Goyard-Fabre. Le droit et la loi dans la philosophie de Xxxxxx Xxxxxx. Paris: Klincksieck, 1975. p. 116.
ªS Th. Hobbes. Leviatán. Op. cit. p. 202.
partir desse momento, em um estranho para si mesmo – eis, aqui, uma vez mais, a dialética da mesmice/ semelhança e da ipseidade.
Também para Xxxxx e para Xxxxxxx, é de maneira instantânea – por meio do contrato social – que se dá a passagem do estado de natureza para o estado social. Xxxxx: “Quando, nomeando a qualquer dentre eles, os homens decidem construir uma única comunidade, tal ato tem como efeito associá-los, de forma instantânea e, a partir de então, acabam formando um corpo político único”64. Xxxxxxx: afirma que “no instante e no lugar da pessoa particular de cada contratante, este ato de associação produz um corpo moral e coletivo”65. Essa forma de contração do tempo não deixa de suscitar, entretanto, problema que não passa despercebido a Rosseau: como conceber que, em um instante tão breve, a vontade geral que se forma possa vir a ser determinada na escolha de suas instituições à luz da razão? O problema é formulado desta forma: “para que um povo que nasce possa provar das máximas da política e obedecer as regras fundamentais do Estado, faltaria que o efeito pudesse tornar-se causa, que o espírito social que deve ser a obra da instituição, presida essa mesma instituição e que, já antes das leis, os homens sejam aqueles que devam chegar a ser por elas”66. Será preciso então que, por algum processo de conversão íntima ou de iluminação coletiva, os indi- víduos e o povo se antecipem, de certa forma, ao efeito pedagógico previsto pelas leis e ao fluir do tempo.
Da mesma maneira, Xxxxxxx desconfia da deliberação política enquanto que, ao estar frequente- mente assimilada à promoção de interesses partidários, poderia minar as instituições pondo-as sob o efeito das “associações particulares”: assim, o “nó social começa a relaxar (…), as pequenas sociedades influen- ciam as grandes, o interesse comum se altera, a unanimidade não mais reina nas vozes e surgem contradi- ções e debates”67. Como podemos então apartar o espectro da divisão social e restaurar a “unanimidade” necessária para a fundação sagrada da política? Conhecemos as receitas imaginadas por Xxxxxxx: as leis escritas por um legislador inspirado e, para ser exaustivo, supra-humano – “os deuses seriam necessários para dar leis aos homens”68 –, o recurso às origens da religião civil e às virtudes do juramento e, depois, especialmente – em um surpreendente retorno do reprimido –, a atenção extrema dada pelo legislador aos costumes e às tradições que fazem a vida real dos povos, marcam o coração dos cidadãos e são “a verda- deira Constituição do Estado”69. O grande legislador não deixa de se interessar por essas tradições, reflexo de um tempo prolongado, evolutivo e coletivo que transborda por todos os lados, o tempo instantâneo do contrato social. De fato, escreve Xxxxxxx, “ainda que pareça se contentar com regulamentos particulares, em segredo se ocupa daquele”70. E, com efeito, faz bem ocupando-se disto: a opinião, as regras e os costu- mes vêm a formar o espírito das leis; suprem suas inevitáveis carências e mantêm o vínculo social mesmo que elas relaxem; ao substituir o hábito pela autoridade, permitem também economizar a força.
Em princípio, o contrato social havia sido então concebido na mesma linha instantânea e imutável sobre a qual estava assentado o contrato civil; disso se seguia uma concepção formal e positivista da Consti-
64 J. Locke. Deuxième traité du gouvernement civil. Trad. ao francês por B. Xxxxxx, Xxxxx, 0000. p. 129.
65 J. J. Rousseau. Du contrat social. Ou principes du Droit politique. Paris: Bordas, 1972. p. 76.
66 Idem. p. 109-110.
67 Idem. p. 182.
68 Idem. p. 107.
69 Idem. p. 126.
70 Idem. p. 126.
tuição (e, de forma mais geral, da produção das leis); somente a letra dessa, expressão da vontade soberana da nação, era autoridade – tendo sido inspirada e guiada em sua interpretação, por valores e princípios e, estando a sua execução ulterior, constrangida às margens do Direito; como, aliás, o tempo prolongado, so
bre cujo fundo teve lugar a sua edição. Porém, Xxxxxxx antecipara bem o problema: privado desse cimento de valores e princípios, separada da duração real e evolutiva da História, encerrada na perfeição de sua letra e surda às transformações de seu espírito, a lei não poderia corresponder a essas expectativas. Da mesma maneira, temos nos aproximado, progressivamente, de uma concepção mais material da Constituição e da lei, algo que também não deixa de ser uma forma de retomar o tempo contínuo e evolutivo do imperfeito71. Um Direito pré e transconstitucional passou a assegurar as transições e a emoldurar as revisões constitu- cionais, princípios supraconstitucionais transitam com alguma liberdade72 e certas estruturas normativas fundantes foram postas ao abrigo de revisões constitucionais intempestivas. Tribunais constitucionais asse- guram, de um dia para o outro, a atualização da Lei Fundamental. Em Estrasburgo, uma Corte Internacio- nal73 relembra os países europeus a primazia dos direitos fundamentais sobre as razões de Estado. Tantas instituições e técnicas instituídas buscando delimitar as soberanias nacionais e minimizar o voluntarismo das leis ao subordiná-las aos princípios tentando assegurar o funcionamento evolutivo e o respeito aos movimentos longos e profundos do que é coletivamente concebido.
Uma rápida incursão ao domínio do Direito Internacional Público deveria nos convencer de que os Tratados Internacionais – eles são contratos entre Estados (ou) Nações –, não são, tampouco, alheios à evo- lução que aqui nos ocupa. Qualquer que possa ter sido a concepção voluntarista-formalista que prevalecera até ontem em relação a eles, hodiernamente predomina uma aproximação mais realista em cujo centro figura a noção da boa-fé. “Todo Tratado deve ser executado de boa-fé”, estabelece o artigo 26 da Conven- ção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969). É igualmente de “boa-fé” que há de ser interpretado esse Tratado (artigo 31). Dessas exigências, o Tribunal Internacional de Justiça de Haia deduz a obrigação de renegociar o Tratado – mais do que estabelecer a sua ruptura – quando as circunstâncias tenham modifi- cado os seus elementos. Tal foi a decisão tomada em 25 de setembro de 1997 no marco de um litígio entre Hungria e Eslováquia. Vinte anos antes, os dois Estados haviam concluído um Tratado com a finalidade de realizarem, em comum, alguns trabalhos faraônicos de acondicionamento e desenvolvimento da zona do Danúbio: fora prevista uma imensa central hidroelétrica, assim como algumas barreiras, lagos artificiais, um sistema de canais e de eclusas. Entretanto, de pronto, acumularam-se as dificuldades: problemas finan- ceiros e, também, ecológicos. Os trabalhos se realizaram e, em 1989, a Hungria suspendeu a sua partici- pação no projeto: então, a liberalização política em curso permitiu aos cientistas e aos defensores do meio ambiente expressarem os seus medos em relação aos danos causados à natureza. No entanto, a Eslováquia persiste e constrói em seu território uma central de dimensões reduzidas. Para alimentá-la, entretanto, desvia não menos de novos décimos de volume de água do Danúbio.
’¹ Cfr. Particularmente O. Beaud. La puissance de l’Etat. Paris: P.U.F., 1994; D. Rosseau (Dir.) La democratie continue. Paris: LGDJ, 1995; F. Ost. Le glaive et le sablier. Donner le temps, dire le droit, por aparecer.
’² N. T. Transitam pelos distintos direitos nacionais.
’S N. T. O autor refere-se ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
O Tribunal entendera que esse desvio implica grave lesão ao meio ambiente húngaro. E apesar de entender ser ilícita a conduta eslovaca, não atende o pedido húngaro que entendia que o Tratado deveria ser rompido. O que disse o Tribunal foi que o acordo, que segue vinculando as partes, contém dispositi- vos evolutivos suscetíveis de completar as preocupações normativas ambientais mais recentes. Longe de ser rígido, o Tratado prevê obrigação contínua e, portanto, evolutiva de velar pela qualidade das águas do Danúbio e pela proteção do meio ambiente. Os dois Estados são, então, reenviados à mesa de negociações com a obrigação de cooperar, “de boa-fé”. Prevalecem os fundamentos do Tratado sobre a sua literalidade. “A boa-fé”, conclui o Tribunal, “obriga as partes a compreenderem o acordo de forma razoável, de tal forma que seu objeto, compreendendo o respeito pelo ambiente, possa ser alcançado”74.
O Direito do Trabalho é o terceiro terreno privilegiado de observação da superação da concepção atemporal e individualista do contrato. Acaso não discorre Xxxxx Xxxxxx sobre o contrato de trabalho como “uma síntese original dos conceitos de estatuto e contrato”75? Estas duas categorias – explica-nos ele –, uma das quais postula, enquanto a outra exclui a vontade dos contratantes, têm sido “reelaboradas para respon- der às questões consideradas pela relação laboral”76.
No começo, contudo – isto é, no Code de 1804 –, não se tratava de relação laboral, senão de trabalho
– pensado como outra mercadoria qualquer – negociado pelo trabalhador enquanto contrato de prestação de serviços, negócio assemelhado ao contrato de locação de coisas77. É tão pequena a diferença desta forma de locação, da locação de mercadorias, que a elas o Código dedicou – no mesmo espaço topológico – os artigos 1.780 e o 1.78178. Dentro da perspectiva liberal da época, o trabalhador, pessoa, ser humano, dotado de autonomia, poderia vincular-se, livremente, ao empregador em uma relação, supostamente, equitativa; arrenda ao empregador a sua força de trabalho, o trabalho, mercadoria, é como elemento que integra o patrimônio. A contradição fundamental sobre a qual repousam tais classificações jurídicas está em que, apesar da mutação legislativa, o objeto do contrato não é outra coisa senão o corpo do trabalhador – um corpo sobre o qual exerce, toda a sua supremacia, o empregador.
Contudo – não paremos, por outro lado, de afirmar –, o corpo humano se encontra, em princípio, fora do comércio. Como conciliar então a validade do contrato de trabalho com a ilegalidades das con- venções que têm, no corpo, o seu objeto? É preciso superar essa contradição, pois a coisificação da pessoa avança ameaçadoramente. A alienação na qual trabalhadores – compreendidas, aqui, também as crianças
– foram vítimas ao longo do Século XIX é, ademais, ilustração histórica indiscutível.
Não estamos, pois, tão distantes da libra de carne ofertada em garantia por Xxxxxxx, tampouco da renúncia de todo o seu ser, do seu corpo e da sua alma, prometidas por Xxxxxx a Mefistófeles. No interior da moldura que envolve o contrato individualista, instantâneo, o trabalho-objeto recobra e arrasta o trabalha- dor-pessoa. Na nossa língua, diremos que a “mesmice” do trabalho-mercadoria e (ou) do corpo alienado
’ª Tribunal Internacional de Justiça. Sentença de 25 de setembro de 1997. Assunto relativo ao projeto Gabcokovo-Nagynaros (Hungria-Eslováquia) parágrafos 141-142.
’‘ A. Supiot. Critique du Droit du travail Paris: P.U.F., 1994. p. 13.
’ª Idem. Grifo do autor.
’’ N. T. E, subordinados ao mesmo regime jurídico abstratamente positivado. ’8 N. T. O artigo 1.781 do Code foi revogado.
encerra a “ipseidade” do trabalhador. Às custas de empregos precários, condenado a ganhar a vida “dia a dia”, privado de todo status e de toda estabilidade, o trabalhador é transformado em coisa afetada pelo con- trato – empregado certo dia, jogado, no dia seguinte, em contextos de não Direito.
O progresso chegará pela mão da emergência progressiva, ao longo do século XX, do Direito do Trabalho que se empenhará em reinserir a dimensão extrapatrimonial do trabalhador-pessoa na relação mercantil sobre o trabalho-coisa. Para começar, deixará de ser ignorado que, no trabalho, é o corpo – a vida, a pele – do trabalhador que está comprometido: a partir de então, preocupar-nos-emos em assegu- rar-lhe melhor proteção – segurança no trabalho. Na sequência, tomaremos consciência de que, ao com- prometer o seu corpo, é todo o ser do trabalhador que está em jogo: progressivamente, cuidaremos, então, de garantir a segurança de sua existência para além do tempo dedicado ao trabalho – segurança mediante o trabalho. Em definitivo, dar-nos-emos conta de que, mediante o trabalho, o que ganha o trabalhador é uma identidade, entendida, agora, como ipseidade, é dizer, liberdade em movimento; queremos dizer, é preciso garantir-lhe lugar na sociedade, utilidade e, como consequência, vida digna – para ser exaustivo, garantir-lhe status e com ele um conjunto de direitos e obrigações baseados em uma relação laboral estável
– status de funcionário. E para além da segurança, o trabalho de tal modo personificado acaba conferindo
ao trabalhador a possibilidade de pertencimento a determinada comunidade. Como observa A. Supiot, “o desenvolvimento do Direito social tem provocado, desta forma, o retorno a aspectos desprezados pelo con- trato79: da expressão inicial puramente individual da relação de trabalho, o contrato vem se convertendo, através dos anos, no sésamo que permite acessar a um Direito dos trabalhadores coletivamente definido”80. Tendo deixado de depender dos acasos do ato jurídico pontual que representa o contrato, o trabalhador se beneficia, a partir de então, da proteção contínua implicada no desfrute do status de trabalhador. Liberto da tutela das vontades individuais, tem-se, a partir deste momento, um sistema institucional acompanhado de proteções coletivas.
Se até então a forma contratual não desapareceu – é inegável a existência do ato-condição da relação salarial que ativa a experimentação do status outrora referido –, a sua superveniência não mais tem lugar diante da superveniência do êxito alcançado na integração do dispositivo legal que assegura ao trabalhador o status do qual acabamos de falar81. A ordem pública social, imposta pela força pública, não é, ademais, sua única fonte: as convenções coletivas, os usos e os tribunais contribuem, desta forma, a lhe dar corpo. Nesse sentido, por exemplo, podem ser citadas as decisões da Câmara Social da Corte de Cassação, que identificou, de forma pretoriana, a obrigação de reclassificação do assalariado em caso de demissão eco- nômica. Na sentença de 25 de fevereiro de 1992, a alta jurisdição julgara “que o empregador, obrigado a executar de boa-fé o contrato de trabalho, tem o dever de assegurar a adaptação dos salários à evolução de seus empregos”82. No mesmo sentido, a Câmara Social julgara, na sentença de 08 de abril de 1992, que “no marco de sua obrigação de reclassificação, o empregador deve, em caso de supressão ou de transformação de determinada função, propor aos assalariados afetados os empregos disponíveis da mesma categoria ou,
’ª N. T. O autor refere-se, aqui, ao contrato sob a perspectiva clássica.
8º Idem. p. 89. As linhas precedentes são uma síntese sumária das teses defendidas por A. Supiot nas páginas 13 a 110 do tra- balho citado.
8¹ A. Supiot, Op. cit. p. 30.
8² D. 1992. p. 390, véase M. Defossez.
na impossibilidade, de categoria inferior, mesmo se necessária modificação substancial do contrato de tra- balho”83. Impondo, assim, ao empregador, o dever de adaptar eficazmente o contrato, pode o juiz melhor expressar o cuidado que, considerando-se o tempo evolutivo, deve dedicar à pessoa dos trabalhadores?
É certo que hoje, como sabemos, tal evolução foi comprometida pela flexibilização e pela desregulamentação da economia. Multiplicam-se os sinais de regressão que tornam empregos cada vez mais precários e atípicos ou que traduzem certa desnaturação do status de assalariado. É significativo que
R. Castel fale da “desfiliação” para referir-se à precariedade da condição salarial e destacar que a “exclu- são” seria, no extremo, o seu último indício84. Se tais transformações se confirmarem, encontraremos-nos, novamente, com o lado aterrorizante que impregna um dos espectros da violência contratual: o tempo ameaça devorar suas obras.
Três tentativas de interpretação
Ricouer dizia “que o símbolo nos faz pensar”. Podemos dizer o mesmo de narrações tais como as de Xxxxxx e Xxxxxxx: em efeito, aí encontramos matéria para a reflexão, algo como uma intuição espontânea dos problemas que remetem a certa lógica contratual. Confirmadas pela análise do Direito positivo, tais instituições podem, agora, ser conceituadas com a ajuda de aproximações mais teóricas. São os recursos provenientes da teoria sociojurídica dos contratos, depois, os da teoria pragmática da ação e, enfim, os da Teoria Geral do Direito, aqueles que invocaremos, sucessivamente.
A aproximação sociojurídica amplia a área de estudo do contrato ao alocá-lo em um contexto eco- nômico e social global, o que acaba por integrar seus comandos e sua temporalidade em uma normati- vidade e um espaço temporal maiores e mais diversificados. O trabalho recente de Xxxx-Xxx Xxxxxx – Le contrat entre droit, économie et société85 – pode ser considerado como modelo da referida espécie de análise. Inspirado pela “teoria relacional do contrato”, do americano I. R. MacNeil86, Belley se lança ao estudo siste- mático da prática contratual da Sociedade Americana Alcan, gigante do alumínio, que opera em Quebec. O deslocamento promovido por estudos amparados na referida modalidade de análise – que, ao ultrapas- sar a compreensão do contrato enquanto conceito jurídico, acaba por identificá-lo como fato social – e os interesses que as práticas contratuais por entre espaços que não se encontram, necessariamente, permea- dos por regras jurídicas, autoriza a denúncia – aqui feita – do reducionismo que informa a compreensão do contrato pelas lentes da teoria clássica que sistematicamente subestima o aspecto organizacional das sociedades empresárias, não nota a diversidade das ordens jurídicas que informam seus acordos e, ainda, despreza o tempo contínuo no qual os negócios são pactuados e (in)cumpridos.
Partindo da distinção entre “contrato predominantemente transacional” – o contrato de compra e venda – e “contrato predominantemente relacional” – o contrato de trabalho –, Belley assinala, seguin-
8S J.C.P. 1992. Ed. E, II. p. 360, nota J. Savatier.
8ª R. Castel. Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1995. p. 000 x xx.
0‘ Xxxxxxxxxxx (Xxxxxx, edições Y. Blais, 1998).
8ª I. R. MacNeil. The New Social Contract. An Inquiry into Modern Contractual Relations. New Haven: Yale University Press, 1980.
do MacNeil, a importância crescente da dimensão relacional que informa os intercâmbios. Os contratos transacionais não irão desaparecer. A prática aponta, entretanto, que eles vêm sendo mui frequentemente insertos no interior das molduras delineadoras dos marcos que definem a política empresarial a ser vi- venciada a longo prazo, tanto em relação aos seus clientes e aos seus fornecedores, como em relação aos empregados e a região em que exercem as suas atividades87.
A intensificação e a extensão da cooperação entre as partes levam à prevalência de regras e princí- pios tipicamente relacionais em detrimento de imperativos especificamente transacionais: a exigência de benefício mútuo, maior flexibilidade e a busca pela preservação do futuro da relação têm, então, maior importância que a conformidade das condutas lapidadas no planejamento inicial. “A relação global das partes, as exigências concretas de cooperação, a solidariedade dentro da qual há de fluir a relação de troca servem como contrapeso às pretensões daqueles que se apegam à letra do contrato e (ou) à estática proje- ção inicialmente concebida acerca da troca a ser futuramente realizada”88.
Entre essas condições, a fonte das projeções de futuro formuladas pela atividade empresarial não se situa mais, exclusivamente, na troca de consentimentos e na autonomia dos contratantes, mas em um emaranhado complexo de regras, usos, práticas, valores e exigências inscritas em espaços diferenciados e às quais somente a ideia de “internormatividade” poderá vir a fazer jus. É assim como os contratos da Al- can fazem surgir ao menos cinco “estratos” ou “ordens” jurídicas diferentes89: a ordem estática que impõe respeito às prescrições imperativas, a lógica regulamentária “burocrática” interna da sociedade empresária que conduz à padronização minudente de suas operações, a normalização técnica de suas políticas de pro- visionamento e a consequente análise macroeconômica ante os influxos da mundialização da economia, as alianças jurídico-políticas subscritas com a região e que traduzem a vontade de cooperar, à largo prazo, para o progresso dos envolvidos e, enfim, as relações individuais nas quais predominam as exigências “mo- rais” da associação, da confiança e da lealdade e nas quais é possível perceber o modelo de “contrato-status” de que falava Weber90. Entremeio ao respeito à “expectativa legítima” de uma das partes que são inerentes a esta ideia de “contrato-status”, à implementação rotineira das prescrições burocráticas internas, à inte- gração dos objetivos políticos da região, ao respeito pelas regulamentações estáticas e a conformação às exigências de planejamento econômico, damo-nos conta de que os contratos pactuados pela Alcan devem buscar, diariamente, promover a conciliação dinâmica entre os diversificados objetivos que transbordam em demasia através da literalidade do contrato e pelo tempo supostamente aprisionado por cada um dos compromissos pontuais assumidos. Em tal modelo interativo e complexo, a prática contratual atua de for- ma suave ao direcionar as condutas futuras, suscetível, sempre, a ajustes e à revisão do percurso projetado inicialmente. Longe de atar as partes à rígidas correntes, o contrato converte-se em instrumento de uma política “reflexiva” aberta à importância do aprender com os próprios erros e à valorização dos êxitos inte- grados a suas previsões futuras, de modo a conciliar, na melhor medida possível, as múltiplas exigências e, às vezes, contraditórias – as do mercado e as da cidadania, por exemplo –, com as quais deve lidar no dia a
8’ X. X. Xxxxxx. Le contrat entre droit, économie et société. Op. cit. p. 302.
88 Idem. p. 304.
8ª Idem. p. 205 e seguintes.
ªº Idem. p. 223.
dia de sua atividade empresarial.
O tempo “relacional” que se desprende dessas práticas é ao mesmo tempo contínuo e mais evoluído que o tempo “transacional” da troca pontual. É um tempo institucional, poderíamos dizer, reenviando, dessa forma, às antecipações de Xxxxxxx Xxxxxxx, que, há várias décadas, assinalara a multiplicação de acordos que, mesmo sendo contratuais em sua origem, convertiam-se, progressivamente, em institucio- nais91. O caso das sociedades comerciais – cuja natureza jurídica é ao menos, tão estatutária, quanto con- tratual – é uma ilustração significativa desse fenômeno. Em tais hipóteses, ensinava Hauriou, um elemento de solidariedade se desenvolve entre as partes fazendo que seus desacordos de pronto não surjam mais da solitária justiça “comutativa” própria do contrato; se surgem riscos imprevisíveis, eles serão tratados a partir de então segundo a lógica “distributiva” adequada à instituição92. Vejamos: as análises “relacionais” (XxXxxx, Belley) e “institucionais” (Hauriou) convergem; em um bom número de casos, o contrato flui no movimento de um tempo mais suave, mais complexo e mais solidário que aquele de outrora, rígido e fixo, preso à literalidade e à intenção inicial que se supõe poder traduzir.
A teoria pragmática da ação que ilustra, por exemplo, a obra de Xxxxxx Xxxxx: La communauté vir- tuelle. Action et coopération93 confirma esses ensinamentos. Escreve Livet que “temos abandonado a ideia de uma ação definida a partir de sua intenção para estudar ações cujos sentidos estão forjados ao longo do caminho segundo as correções das trajetórias que os erros e os imprevistos sugerem”94. Deste abandono – típico de uma aproximação “pragmática” –, tripla descentralização será deduzida em relação à teoria clássi- ca da essência “semântica”. Quando buscamos o sentido da ação, mais que nos concentrarmos na iniciativa do emissor da mensagem – aquilo que ele quis dizer ou fazer –, atentaremos à maneira como seus atos e comportamentos são interpretados pelo receptor – que expectativas legítimas, portanto, foram criadas95 – e, mais que nos atermos, unicamente, aos termos explicitados no acordo, tenhamos em conta, igualmente, seu “background” implícito – como foi preparado, como deverá ser executado, que normativa o mobiliza. Enfim, mais que atender à concepção rígida de um contrato cristalizado na forma de um arquivo, aferre- mo-nos a uma concepção dinâmica da colaboração, sempre suscetível de revisão e de ajuste96.
Meçamos as objeções que – desde esta aproximação – podem ser dirigidas à perspectiva clássica. Essa, recordemos, vê o contrato enquanto resultado da “intenção comum e real” das partes. Uma intenção
ª¹ Cfr. X. X. Xxxxxxxxx. La notion d’ ‘institution’ de Xxxxxxx Xxxxxxx dans ses rapports avec le contrat en droit positif francais. Archives de philosophie du Droit, 1968. p. 143 e seguintes; M. Hauriou. L’imprévision et les contratas dominés par les insti- tutions sociales. Cahiers de la Xxxxxxxx Xxxxxxx, 0000, v. 23. p. 129 e seguintes.
ª² M. Hauriou. Op. cit. p. 138 e seguintes.
ªS P. Livet. La communauté virtuelle. Action et coopération. Paris: l’Eclat, 1994. Para uma transposição da tese deste traba- lho ao domínio da cooperação contratual, cfr. B. Frydman. Le droit des contrats á la lumiere de la philosophie de l’action: indécidabilité, coopération et revisión, por aparecer.
ªª P. Livet. Op. cit. p. 159.
ª‘ Cfr. Concretamente X. Ghestin. La notion de contrat. Op. cit. p. 151: “Não é o valor que o interessado tem entendido que lhe concedia seu comportamento o que deve ser levado em consideração, senão o significado o significado objetivo que os terceiros, especialmente o co-contratante, puderem, legitimamente, atribuir-lhe. Todo comportamento, ativo ou passivo, pode, dessa forma, manifestar a vontade de seu autor, desde o momento em que se torna usual reconhecer tal significação, ou igual- mente quando esta resulte normalmente de um determinado tipo de circunstâncias. Essa solução vem imposta pelo princípio da segurança jurídica”.
ªª N. T. Nos textos originais o autor abusa de pontos de interrogação. Neles, pontos de interrogação estão espalhados, mormente, pelas interpolações. Nos pareceu, entretanto, por ocaisão da transposição idiomática, que na forma aqui grafada os leitores de língua portuguesa melhor compreenderão as ideias originais do professor Xxx.
que se supõe que deva ser, irrevogavelmente, fixada no instante mágico no qual se forma o contrato. Por esse prisma, durante toda a vida do acordo, de sua negociação à regulação ulterior dos incidentes havidos em sua execução, os termos do acordo estarão encerrados em um tempo puramente abstrato e fictício, separado e roubado do funcionamento concreto do tempo fenomênico.
O contrato era considerado “perfeito”, recordemos, desde o momento em que a oferta fosse aceita de forma pura e simples: na medida em que as vontades não estivessem “viciadas”, o acordo seria cristalizado no reencontro de duas vontades concordantes. Entretanto, precisamente, não nos ensinam hoje as ciências cognitivas que as intenções reais de cada ser são, decididamente, pouco “demonstráveis”97? O que dizer então das pretendidas intenções comuns? Sobretudo, o que dizer das intenções comuns que se supõe terem sido fixadas, definitivamente, no exato instante da conclusão do contrato, como se a conduta ulterior não contribuísse na transformação dos sentidos que se quer aprisionar?
Mais que cristalizar as prováveis vontades imantadas ao exato instante do nascimento do acordo inicial, não seria melhor, desde esse momento – como demonstra a prática jurisprudencial –, construir um espaço para deliberação e um campo no qual possam ser exploradas práticas que, antes ou depois do acordo, contribuam na identificação dos sentidos contidos no contrato, sentidos a serem alcançados pelo espírito de colaboração, essa regra fundamental da instituição contratual?
Temos visto que é neste contexto que hoje se desenvolve um direito “pré-contratual” que emoldura as negociações preliminares ao acordo: se dispõe, à cargo das partes, obrigações de informação e de di- ligência; impõe-se que elas colaborem com a finalidade de concluir um contrato que tenha vigência por prazo razoável. É o mesmo espírito que deveria, segundo a doutrina e jurisprudência em vias de formação, dirigir, igualmente, a resolução das dificuldades ulteriores na interpretação e na execução do contrato. Ou bem a referência à “boa-fé” e às “expectativas legítimas” da contraparte98 permitirão o preenchimento das lacunas contratuais, impondo o respeito às implicações normativas aí gestadas – como quando a boa-fé permite afastar o “abuso” no exercício de um direito, impedindo que se alcance vantagem desproporcional
–, ou bem, finalmente, elas conduzirão à renegociação do acordo diante de circunstâncias excepcionais.
Não nos encontramos, de novo, aqui, com o que denominávamos o tempo do “imperfeito”? A rela- tiva incerteza quanto ao conteúdo das intenções iniciais, a essencial incompletude das palavras e dos atos, longe de conduzir à imperfeição do acordo, justificam tanto maior atenção a sua execução concreta, quanto a obrigação transeunte de colaboração que reafirma tais promessas.
A teoria do direito oferece outra explicação para os fenômenos estudados. Assim, como deve ser, tomando da altura e estendendo o propósito à produção de balizas gerais, a teoria do direito vê, na evolu- ção estudada, um caminhar iniciado nas concepções positivistas do tempo jurídico e que atravessa, hoje, na ausência de expressão melhor, cenários pós-positivistas – não se recorre, aqui, ao “jusnaturalismo” para evitar a posição dicotômica e estéril entre Direito Natural e Direito Positivo.
ª’ P. Livet. Op. cit. p. 70-89.
ª8 Sobre esta noção, cfr. X. Dieux. Le respect dû aux anticipations légitimes d’autrui. Essai sur la genèse de droit. Paris-Bru- xelles: LGDJ-Bruylant, 1995.
O tempo positivista concentra-se na formação dos atos99 jurídicos enquanto expressões da vontade individual ou da soberania estatal. Tais atos, espontaneamente gerados, hão de ter vida eterna, benefi- ciando-se, instantaneamente – como se tem visto –, da força do Direito que os manterá em vigor até que outra fonte, também “espontânea”, venha a revogá-los ou substituí-los. Tanto a teoria privatista do contrato, como a teoria publicista da lei têm a marca da instantaneidade. Deduz-se disso um modelo sincopado do sistema reduzido a sucessão de atos e de regras sem vínculo inteligível. Um modelo que está, em efeito, desprovido de um pensamento e de uma deontologia acerca da relação entre as regras; os princípios que o informam permanecem fora do campo jurídico, exceto os imanentes à sua regulação procedimental.
Isolado desta forma dos movimentos de opinião e das pressões sociais exercidas sobre suas regras, sobre suas práticas e sobre suas interpretações, o modelo positivista busca garantir a segurança jurídica. Porém, como se trata, também e com frequência, exclusivamente, da segurança do mais forte, tal segurança é vulnerável como carvalho, que resiste até o dia em que, na falta de flexibilidade, parte-se ao meio.
Este tempo positivista rende, progressivamente, o passo a uma temporalidade mais “metafórica” –, um tempo de transformação progressiva, das identidades que sabem se converter em outras sem deixar de ser elas mesmas. Essas entidades não se interpretam mais, exclusivamente, como “atos”, senão, também, como “instituições” que são correntes de atos, de processos em curso, de procedimentos evolutivos. A dialética que elas põem em ação é, a partir de agora, menos esta, de natureza descontínua, instantânea e intangível, que a outra, muito mais contínua, instituída e instituinte: as manifestações de vontade tomam corpo em formas instituídas transformadas ao longo do tempo por forças instituintes. O modelo se enri- quece dessa forma com uma teoria e deontologia da transformação normativa que deixa de fazer surgir, unicamente, regras procedimentais. Temos visto: ao encontro do estatismo da convenção-lei, atualmente, enseja a regulação do momento que precede a negociação e que sucede ao acordo. Também no Direito Pú- blico se reintroduz a ideia de continuidade jurídica do Estado, da nação e “das ideias do Direito”, geradoras de um Direito pré e transconstitucional. E desde o ponto de vista da segurança, o que esse modelo perde em previsibilidade – dada à possibilidade, sempre aberta, de reajuste da convenção –, ganha em capacidade de previsão de adaptação – a sua segurança, poderíamos dizer, é a do junto que se dobra, mas não se que- bra. Sublinharemos, enfim, que, se o modelo positivista valora as vontades ao se inserir em uma perspec- tiva monista e hierarquizada do sistema jurídico, o modelo pós-positivista, pelo contrário, pressupõe que o Direito se articula em rede, isto é, pressupõe a pluralidade e o enfeixamento das fontes normativas que impõe o desenvolvimento de redes de colaboração.
Desta forma, passo a passo, a prática jurídica do contrato comprova a existência de um tempo neguentrópico, um tempo criador enquanto imperfeito – um tempo aberto e plural que não traz o outro voltado a si mesmo, tampouco o eu que olha apenas para si. E tudo isto estava, sem dúvida, contido, de uma forma muito sugestiva, tanto na história de Xxxxxxx, como no mito de Xxxxxx.
ªª N. T. A tradição francesa não se ampara na dicotomia ato/negócio jurídico adotada no Brasil. Na hipótese, optou-se pela manutenção da redação original.