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XXXXXXX, P. F. C. Da Aplicabilidade da Legislação Consumerista aos Contratos Interempresariais. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília, n. 8, p. 146-174, 2009.
DA APLICABILIDADE DA LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA AOS CONTRATOS INTEREMPRESARIAIS
Empresário como consumidor stricto sensu e por equiparação
Paulo Felipe Carneiro de Freitas1
Resumo: A proposta deste trabalho é a investigação da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às relações entre empresários, seja por considerar o empresário consumidor stricto sensu, seja pela sua equiparação a tanto nos termos desse diploma legal. Por meio de um melhor entendimento e desenvolvimento do tema, tem-se como objetivo contribuir para a tutela do comerciante que trava contratos com fornecedores dotados de maior poder contratual, levando-se em conta as características próprias do Direito Empresarial.
Palavras Chave: consumidor; conceito; empresário; contrato.
Abstract: The purpose of this work is the investigation of Brazilian Consumer Defense Statute in relationships between entrepreneurs, considering the entrepreneur a stricto sensu consumer or a “treated as” consumer in the terms of this Statute. With a better understanding and development of the subject, it has as objective to contribute to the protection of traders that hold contracts with suppliers with more contractual power, taking into account the characteristics of entrepreneur law.
Keywords: consumer; concept; entrepreneur; contract.
1. Introdução
O fenômeno da produção e do consumo em massa tornou imperiosa a atribuição de caráter jurídico às relações de consumo. A vulnerabilidade do consumidor afasta as relações por ele travadas do esquema tradicional de Direito Privado, que, segundo seu fundamento liberal, pressupõe equilíbrio de poder contratual entre as partes. Dessa forma, os dogmas contratuais liberais da autonomia da vontade e da liberdade de contratar são mitigados porque se percebe disparidade relevante no poder contratual das partes, com abuso deste pelo contratante mais forte, que é o fornecedor. A proteção do consumidor é resultado dessa nova consciência, e as prerrogativas a ele concedidas visam a compensar a sua vulnerabilidade.
Por outro lado, quando dois empresários celebram um determinado contrato, a doutrina clássica entende que eles possuem o necessário conhecimento dos negócios que celebram, visto que, ao atuarem no mercado, agem profissionalmente e conhecem as regras norteadoras do ambiente institucional. Dessa maneira, o empresário seria capaz de prever todas as vantagens e riscos que o contrato celebrado apresenta e qualquer prejuízo que porventura possa aparecer será derivado do erro empresarial, de uma jogada equivocada.
Todavia, a prática demonstra que o mercado não funciona tão perfeitamente. A economia passa, então, a reestruturar seus pressupostos, admitindo diferenças substanciais de poder econômico, assimetria informacional, autonomia da vontade restrita, custos de transação, dentre outros. E como não há mercado sem estruturas institucionais, o Direito precisa conformar essa nova necessidade econômica para a própria manutenção do mercado.
1 Graduando em Direito pela USP (5° período).
Se a tutela do consumidor se destacou como tutela especial pelo reconhecimento de sua situação de vulnerabilidade, importante questionar se esse regramento especial se aplicaria a empresários em condição de dependência econômica. Em outras palavras, se no passado, como afirmou Ascarelli2, houve uma comercialização do Direito Civil, poderia se falar agora em consumerização do Direito Empresarial? Não há dúvida de que o Direito deve atuar para um melhor equilíbrio das relações comerciais, mas o questionamento reside justamente na possibilidade da utilização do CDC para tal fim.
Nesse sentido, há discussão na doutrina e jurisprudência acerca da possibilidade da caracterização do empresário como consumidor já que o conceito de consumidor no ordenamento jurídico brasileiro dado pelo artigo 2º caput da Lei 8.078/90 é impreciso e, além disso, este estatuto jurídico traz uma série equiparações que expandem seu âmbito de aplicação além do consumidor.
2. Empresário e Destinação Final
A primeira hipótese de invocação da legislação consumerista pelo empresário ou sociedade empresária seria através da sua caracterização como consumidor nos termos do artigo 2º da Lei 8.078/90, ou seja, como destinatário final de produto ou serviço.
A possibilidade de se considerar um empresário consumidor stricto sensu nos termos do disposto no artigo 2º do CDC perpassa a análise de dois elementos distintos. O primeiro, eminentemente de Direito do Consumidor, diz respeito aos contornos da expressão destinatário final. O segundo se refere à abrangência do Direito Empresarial, em especial o estudo da discussão acerca do ato de comércio bifronte e do conceito de atividade empresarial.
2.1 Consumidor stricto sensu e o conceito de destinação final
A conceituação de consumidor no Direito Comparado pode ser dividida em duas grandes vertentes. A primeira, objetiva, ressalta que consumidor é aquele que põe fim à cadeia produtiva de um bem ou serviço, destruindo o seu valor de troca. Aqui é desconsiderado qualquer questionamento acerca do caráter profissional do agente. A outra vertente, denominada subjetiva, enfatiza a qualidade de não profissional do consumidor – o critério diferenciador é a expertise do sujeito.3
O artigo 2º do CDC parece ter adotado o critério objetivo pois toma o consumidor como a pessoa física ou jurídica que seja destinatária final do produto ou serviço. Ao permitir a pessoa jurídica como consumidora e ao não exigir expressamente o caráter não profissional para que um agente receba a tutela especial, o CDC abre espaço para discussões acerca da abrangência da proteção deste conceito em relação aos empresários.4 O problema surge quando o bem ou serviço é adquirido pelo empresário como meio para a consecução de sua atividade profissional e é novamente inserido na cadeia produtiva mesmo que de forma indireta.
A doutrina não encontrou uma solução pacífica para a devida interpretação da expressão destinatário final, requisito indispensável para definir se um empresário pode ser considerado consumidor stricto sensu. MARQUES5 divide a abordagem dos autores pátrios na
2 XXXXXXXXX, Xxxxxx. Panorama do direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 13 e ss.
3 XXXXXXXXXXX, Xxxxxxx. O conceito jurídico de consumidor. Direito do Consumidor. São Paulo, RT, n. 2, 1992.
4 “Com efeito, o texto brasileiro consagra concepção objetiva de consumidor, e, apesar disso, a questão da possibilidade de o empresário invocar a tutela dos consumidores em seu favor, nas relações com outros empresários, não se encontra só por isso resolvida” (XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. O Empresário e os Direitos do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 47)
5 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, O Novo Regime das Relações Contratuais.
Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002. p. 254
análise dessa complexa questão em duas grandes vertentes que serão abordadas a seguir, a Teoria Maximalista e a Teoria Finalista.
2.1.1 Teoria Maximalista
Para a Teoria Maximalista, o Código de Defesa do Consumidor se dirige a todo o mercado, como Código geral que rege a sociedade de consumo. Assim, o CDC não se limitaria apenas à proteção do consumidor não-profissional: é o novo regime contratual privado que atenua os dogmas liberais da ampla liberdade contratual e do pacta sunt servanda.
Segundo este posicionamento, a definição do artigo 2º da Lei 8078/90 deveria ser interpretada extensivamente para que as normas do CDC possam ser aplicadas a um maior grupo de relações no mercado, incluindo até mesmo aquelas entre profissionais. Considera-se que se o art. 2º caput do CDC seguiu a tendência objetiva, não deve haver qualquer questionamento quanto à vulnerabilidade do agente ou à destinação dada por ele ao bem ou serviço.
Destinatário final seria, portanto, o destinatário fático do produto, aquele que o retira do mercado e o utiliza, seja no exercício de sua atividade profissional, seja para uso próprio e familiar. Todavia, os atos de mera intermediação física do bem não se caracterizam como relação de consumo porque aqui não há destinação final do produto, pois ele é devolvido ao mercado da mesma forma como foi comprado.
Nesse sentido, MARINS afirma que se o CDC em seu artigo segundo não restringe o conceito de consumidor ao não profissional não seria lícito transportar para a ordem jurídica brasileira interpretações restritivas adotadas pelo Direito Europeu. Assim, não restaria dúvida de que também é consumidor stricto sensu a pessoa jurídica na qualidade de adquirente ou destinatária final de produtos ou serviços sem qualquer espécie de restrição.6
UNES
De acordo com N 7 o Código de Defesa do Consumidor é aplicável à hipótese em que o empresário adquire bens ou serviços oferecidos em série ao mercado de consumo como destinatário final, mesmo que com o intuito de empregá-los em atividade econômica. Isso porque nesta hipótese o fornecedor não distingue entre os seus consumidores os que farão uso especulativo do bem transacionado, o que não justificaria um tratamento diferente daquele previsto para os que o adquirem para destinação privada. Apresenta, assim, uma visão que amplia o conceito de consumidor ao não levar em conta a presença de aspecto especulativo e profissional, mas restringe este posicionamento às hipóteses em que o produto for oferecido em série.
XXXXXX, por sua vez, defende que se o CDC tem por base a tutela do consumidor como parte frágil de determinada relação obrigacional, esta proteção também deve se estender a outros agentes em situação de vulnerabilidade. As matérias comercial e civil também deveriam ser interpretadas em consonância com este princípio de compensar as possíveis desigualdades entre os agentes porque o CDC trouxe novo paradigma ao Direito Privado. Chega a afirmar que essa conformação é necessária para a manutenção da constitucionalidade da norma de Direito Privado não especial.8
Nesse sentido, defende que destinação final é a utilidade pessoal do bem. Como trata da questão do utilizador de crédito como consumidor, tem que a utilidade pessoal do crédito bancário pode ser o pagamento de contas de uma pessoa física ou a compra de maquinário para uma empresa. Entende-se, com isso, que também alberga dentre os destinatários finais os profissionais.9
6 XXXXXX, Xxxxx. Responsabilidade da Empresa pelo fato do produto. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 73 a 74.
7 XXXXX, Xxxx Xxxxxxx. A empresa e o Código de Defesa do Consumidor. São Paulo, Artpress, 1991.
8 CASADO, Xxxxxx Xxxxx. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. Op. cit. p. 24.
9 CASADO, Xxxxxx Xxxxx. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. Op. cit. p. 26.
2.1.2 Teoria Finalista
A corrente finalista (também conhecida como teleológica) toma o consumidor stricto sensu como destinatário fático e econômico do bem ou serviço, o que restringe a amplitude de aplicação deste diploma legal. A destinação fática não basta, o consumidor deve ser também o destinatário final econômico, isto é, a utilização deve romper a atividade econômica para o atendimento de necessidade privada.
Por isso, se o adquirente utiliza o bem no exercício de sua atividade profissional, não há destinação final sob o ponto de vista econômico, o que retiraria o caráter de consumo desta relação. Consumidor seria apenas o não profissional porque o CDC tem por finalidade tutelar os agentes mais vulneráveis do mercado, e tal proteção restaria desnaturada se alcançasse também profissionais.
A interpretação teleológica da expressão destinatário final a que se refere esta corrente leva em conta os princípios básicos do CDC contidos nos artigos 4º e 6º, com destaque à vulnerabilidade do consumidor, como discutido no Capítulo 1.10 Nesse sentido, os que adotam esta tese restritiva afirmam que o alargamento da aplicação da legislação consumerista acabaria com a própria proteção do consumidor, pois essa legislação específica se tornaria a regra geral de contratos, o que implicaria em neutralizar seu aspecto compensatório ao consumidor final.11
A esta corrente se liga a maior parte dos doutrinadores nacionais. COMPARATO, em estudo pioneiro e anterior à promulgação do Código de Defesa do Consumidor, escreve que consumidor é o indivíduo que se submete ao poder de controle dos empresários. Entretanto, mesmo que um empresário estivesse nessa mesma situação de dependência na aquisição de insumos para sua atividade econômica não deveria ser considerado consumidor, pois estaria adquirindo bens de produção e não de consumo. A tutela do consumidor só se estenderia aos simples adquirentes, excluindo do rol de sua proteção os empresários ou sociedades empresárias.12
XXXXXX XXXXXX enfoca como diferencial do consumidor, além da submissão ao controlador dos meios de produção, a sua não profissionalidade. Assim, o “traço essencial que caracteriza o consumidor é a aquisição ou utilização de bens ou serviços para fins não profissionais”, o que impediria a aplicação do CDC a empresários em estado de vulnerabilidade.13
Na mesma toada segue XXXXXX DE LUCCA, afirmando que o Direito do Consumidor se destina a tutelar as relações de consumo em que a parte mais fraca é uma simples adquirente de produtos ou usuária de serviços.14 Também exclui, portanto, o consumo intermediário e ligado a uma atividade profissional.
No mesmo sentido, MARQUES destaca que destinatário final é aquele que retira o bem
10 “A regra do art. 2º deve ser interpretada de acordo com o sistema de tutela especial do Código e conforme a finalidade da norma, a qual vem determinada de maneira clara pelo art. 4º do CDC. Só uma interpretação teleológica da norma do art. 2º permitirá definir quem são os consumidores no sistema do CDC.” MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 279.
11 “Esta interpretação restringe a figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um produto para uso próprio e de sua família, consumidor seria o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável. Consideram que restringindo o campo de aplicação do CDC àqueles que necessitam de proteção, ficará assegurado um nível mais alto de proteção para estes, pois a jurisprudência será construída em casos, onde o consumidor era realmente a parte mais fraca da relação de consumo e não sobre casos em que profissionais-consumidores reclamam mais benesses do que o Direito Comercial já lhes concede.” (MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 254)
12 COMPARATO, Xxxxx Xxxxxx. A proteção do consumidor: importante capítulo do direito econômico. In: Ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro, Forense, 1978.
13 XXXXXX XX Xxxxxxx do. Proteção do consumidor no contrato de compra e venda. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. pp. 104-105.
14 DE LUCCA, Newton. O Código de Defesa do Consumidor: discussões sobre o seu âmbito de aplicação. Revista de Direito do Consumidor. Sao Paulo. n.6. abr./jun. 1993. p. 63
do mercado para utilização privada, daí que o empresário nunca é consumidor porque adquire bens para reinseri-los na cadeia produtiva. Apresenta conceito muito citado na doutrina e jurisprudência, que merece ser transcrito:
O destinatário final é o Endverbraucher, o consumidor final, o que retira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (destinatário final fático), aquele que coloca um fim na cadeia de produção (destinatário final econômico) e não aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor-final, ele está transformando o bem, utilizando o bem para oferecê- lo por sua vez ao seu cliente, seu consumidor. 15
VIDIGAL, por sua vez, considera que a empresa nunca é consumidora, já que as relações entre empresas produtivas se caracterizam tão somente por insumo (no seu sentido econômico), e não propriamente de consumo, porque se incorporam materialmente ou economicamente (no preço final do produto) ao bem produzido.16
Para delimitar os âmbitos de aplicação do CDC e das normas comerciais FÁBIO ULHOA COELHO se utiliza da noção jurídica de insumo. Para este doutrinador, seriam insumos aqueles bens que são estritamente indispensáveis à atividade econômica do empresário e à sua aquisição não é aplicável a tutela do consumidor.17 Entretanto, haveria relação de consumo naqueles bens adquiridos pelo empresário sem os quais a atividade produtiva pudesse ser desenvolvida sem mudanças qualitativas ou quantitativas em seus resultados.18
O critério apontado pelo autor é por demais fluido, e de aplicação muito difícil, já que a indispensabilidade do bem é algo variável e em casos limite de difícil apreciação. É o caso, por exemplo, de fornecimento de energia elétrica, cujo uso pode ser tanto para fins necessários (movimentação da planta fabril) ou dispensáveis à cadeia produtiva (ar condicionado dos escritórios).
2.1.3 Teoria Finalista aprofundada
A teoria finalista desenvolveu uma vertente que, mantendo o viés teleológico, amplia o campo de aplicabilidade do diploma consumerista para abarcar aquele que atua profissionalmente, mas que contrata em condição de vulnerabilidade.
De acordo com este entendimento, há uma presunção de que profissionais e pessoas jurídicas com fins lucrativos não são vulneráveis, mas a vulnerabilidade pode ser reconhecida pelo Judiciário quando provada. Percebe-se, assim, um abrandamento da posição finalista, pois se o judiciário reconhecer a vulnerabilidade de uma pequena empresa e profissional num caso concreto (como um produto não pertencente à sua especialidade, v.g.) é possível teleologicamente enquadrar estes agentes no conceito de destinatário final.
O que difere o maximalismo do finalismo aprofundado é que neste não há a banalização da aplicação do CDC. Aqui há mitigação do critério da destinação final para a aplicação do CDC a uma situação de vulnerabilidade, mas a destinação final continua sendo considerada econômica como regra geral. As normas protetivas do consumidor só alcançariam o empresário em última instância e somente se provada a sua vulnerabilidade.
Em outras palavras, ao contrário do que preconiza o maximalismo, o finalismo aprofundado não considera as inovações trazidas pelo CDC um novo direito comum a ser aplicado mesmo em casos em que os agentes estejam em condição de igualdade. A ratio legis do CDC continua sendo a proteção do consumidor destinatário final pela sua vulnerabilidade
15 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 279.
16 XXXXXXX, Xxxxxxx. Lei de defesa do consumidor. Cadernos IBCB 22, S. Xxxxx, IBCB, 1991, pp. 5-27
17 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Curso de Direito Comercial, vol 3. O Empresário e os Direitos do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 172
18 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. A compra e venda, os empresários e o Código do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. n.3. set./dez. 1992. p. 43
intrínseca no mercado. A presença dessa mesma vulnerabilidade em relações que em princípio não seriam de consumo justificaria, excepcionalmente, as equiparações a consumidor e até a aplicação analógica deste diploma legal. Todavia, esta ampliação se dá na exceção e não como regra geral, pois se todos forem considerados consumidores o direito para proteger o desigual se torna direito comum e perde o seu efeito de discriminação positiva.19
XXXXX XXXXXX também adota a teoria finalista aprofundada.20 Afirma que os princípios positivados na legislação consumerista, como a boa-fé e o equilíbrio contratual, persistem no ordenamento jurídico como princípios gerais norteadores. Dessa forma, seria possível a aplicação analógica das disposições do CDC em situações de vulnerabilidade a não destinatários finais por força do disposto no artigo 4º da LICC (Decreto-lei nº 4.657/42).21
2.2 Um precedente histórico: a discussão do ato de comércio bifronte
No regime do Código Comercial de 1850 (CCo) o que distinguia o direito dos comerciantes era a classificação dos atos de comércio, que delimitava a aplicação da legislação comercialista e, por conseguinte, as fronteiras do direito civil.22-23 O rol de atos de comércio era disposto no Regulamento 737 no seu artigo 19, que servia como parâmetro para determinar a matéria da mercancia e era passível de extensão analógica para que fosse aplicado a novas atividades de comércio que viessem a se desenvolver.24
Na doutrina comercialista brasileira muito se discutiu a existência de um ato de comércio bifronte, que seria de um lado civil e do outro comercial. “Se a operação comercial é concluída entre comerciantes, não resta a menor dúvida que o ato é comercial relativamente às duas partes; mas se nela intervém, de um lado, comerciante, de outro, pessoa não comerciante, êste ato será comercial para o primeiro e civil para o segundo?” 25
OSTA
Um grande comercialista a defender tal posicionamento foi SILVA C 26. Segundo este autor, os atos mistos ou bifrontes têm aspectos tanto civis e comerciais, como a compra e venda efetuada por um comerciante e um não-comerciante em que este praticaria um ato regido pelo direito civil, a compra, e aquele um ato de comércio, a venda. O não comerciante, no antigo regime da jurisdição dos tribunais de comércio, acionaria o comerciante no juízo do comércio, ao passo que o comerciante, ao ter que acionar o não comerciante, teria que ingressar no juízo civil.
A discussão tinha origem na interpretação do artigo 11 do regulamento nº 737 de 1850. Seu conteúdo era eminentemente processual, se a causa deveria ser proposta na justiça comercial ou civil. Por isso, WALDEMAR FERREIRA acredita que a discussão é meramente doutrinária porque desde 1875 essas jurisdições se unificaram, extinguindo-se os Tribunais do Comércio.27 Baseando-se no artigo 54 do Código Comercial Italiano, escreve: “Se o ato é comercial para uma só das partes, todos os contraentes submetem-se, pôr força, às leis comerciais, afora as relativas às pessoas dos comerciantes, e salvo quando disposto em
19 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 279.
20 NOBRE JÚNIOR, Xxxxxxx Xxxxxxx. A Proteção Contratual no Código do Consumidor e o âmbito de sua aplicação. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados. Ano 22, Set/Out 1998, vol 166. São Paulo: Xxxxx Xxxxxxxxx, 0000. p. 107
21 Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
22 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 422.
23 O direito comercial vem a ser, destarte, a disciplina jurídica reguladora dos atos de comércio e, ao mesmo tempo, dos direitos e obrigações das pessoas que os exercem profissionalmente e dos seus auxiliares. Cf. CARVALHO DE MENDONÇA, José Xavier. Tratado de Direito Comercial Brasileiro Op. cit. p. 16
24 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 460
25 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Tratado de Direito Comercial, vol. I. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 219
26 XXXXXXX, Xxxxxx. Curso de Direito Comercial, vol. 1, 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 42-43
27 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Tratado de Direito Comercial, vol. I. São Paulo: Saraiva, 1960, p. 215-216
contrário. Tem a lei comercial, dessarte, vis attractiva, de molde a comercializar os atos, em que não intervém comerciantes.”28
XXXXXXXX XX XXXXXXXX também combateu a existência do ato bifronte a partir da análise do disposto nos arts. 18 do CCo e nos arts. 11 e 12 do Regulamento 737, de 1850. Em primeiro lugar, asseverou que a intervenção unilateral do comerciante torna o ato comercial e sujeito às disposições do Código Comercial, exceto o disposto no artigo 20 do Regulamento n. 737 que alarga a competência do juízo comercial a causas em que não intervenham comerciantes. Assim, o “ato passado entre o comerciante e o não comerciante, assumindo o colorido comercial pelo fato da intervenção do primeiro, permanece disciplinado, para ambos, pela legislação comercial.”29 Além disso, sendo o ato comercial, mesmo o não comerciante está sujeito à jurisdição comercial pois o ato é uno. “O nosso direito estabelece o princípio da integridade do ato de comércio, repudiando a inexplicável e injustificável anomalia de o mesmo ato ser comercial para uma e civil para outra parte, ato bifronte, ato anfíbio.”30
Mesmo aos atos de comércio por dependência ou conexão se aplica o princípio da integridade: “A construção jurídica dos atos de comércio por dependência ou conexão tem por fim especial justificar a colocação no domínio do direito comercial de atos civis que de outro modo não se poderiam transformar em atos comerciais.”31 Segundo este posicionamento, são atos de comércio mesmo os atos meio, daí a impossibilidade de o comerciante praticar um “ato” de consumo por causa da vis atractiva do direito profissional.
XXXXXXXX XX XXXXXXXX destacava como diferencial do ato de comércio o fato dele ser praticado com o intuito de lucro, pois este seria o objetivo de toda a atividade econômica. Esse caráter especulativo se destacava pelo menos para um dos agentes: nas trocas entre comerciantes ambos tinham o fito do lucro, mas nas relações entre comerciante e consumidor somente o primeiro teria por objetivo maximizar a própria riqueza e o adquirente se limitaria a usufruir o objeto da transação ou satisfazer sua necessidade.32 Ressalte-se, por óbvio, que à época não havia um Direito do Consumidor.
2.3 O novo código Civil e a teoria da empresa
O CC/02, inspirando-se no art. 2.082 do Código Civil Italiano de 1942, adota a teoria da empresa para a delimitação do direito empresarial por meio do conceito de empresário, como disposto no art. 966 do CC/02. O que qualifica o empresário é uma atividade econômica: é empresário quem exerce profissionalmente uma atividade econômica organizada, dirigida à produção ou à troca de bens e serviços. A prática, quando continuamente reiterada, de negócios jurídicos, de modo organizado e estável, por um mesmo sujeito, na busca de uma finalidade unitária e permanente, cria, em torno desta, uma série de relações interdependentes que, conjugando o exercício coordenado dos negócios jurídicos, o transubstancia em atividade negocial.
28 XXXXXXXX, Xxxxxxxx. Tratado de Direito Comercial. Op. cit. p. 217
29 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 453. 30 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 453. 31 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 496. 32 XXXXXXXX XX XXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. Op. cit. p. 426.
A matéria empresarial não se limita mais aos atos de comércio assim qualificados por causa de elementos do sujeito que os pratica (como nas corporações de ofício medievais) ou em função de elementos objetivos relacionados a caracteres intrínsecos do ato praticado (como no sistema dos atos de comércio). O foco sai do ato ou do sujeito individualmente considerado e vai para a atividade, entendida como “uma série de atos coordenáveis entre si, em função de uma finalidade em comum.” 33 Destaca-se que ao falar em ato neste contexto não se refere ao sentido jurídico técnico do termo, mas sim a negócio jurídico.
Da qualificação do sujeito pelo exercício da atividade (para as pessoas físicas) ou pelo escopo de exercê-la (para as pessoas jurídicas) constitui-se, por sua vez, “o pressuposto para a aplicação ao sujeito de uma disciplina especial, ou para a aplicação de uma disciplina especial aos atos por eles praticados no exercício da atividade.” 34 Dessa forma, também na teoria da empresa os atos praticados pelo empresário são atraídos pelo regramento profissional pela caracterização da atividade. Por isso, não há que se falar em prática de negócio jurídico de consumo por parte do empresário no exercício de sua atividade, pois neste caso as relações por ele entabuladas com outros empresários terá sempre o caráter de insumo.
2.4 Síntese Crítica
A aplicação irrestrita do diploma consumerista preconizada pelos maximalistas é inadequada para fins de proteção do empresário vulnerável, uma vez que não leva em conta as diferenças principiológicas destes dois microssistemas jurídicos. A entrada em vigor do CDC não extinguiu o Direito Privado geral nem o Comercial (ou, com a entrada em vigor do CC/02, Direito Empresarial) é apenas um diploma que visa a tutelar aqueles que estão em uma posição mais vulnerável no mercado.
Correta a corrente finalista, pois há verdadeiro perigo que a interpretação extensiva da norma do art. 2.° transforme o CDC em lei de proteção do consumidor-profissional, quando destinatário final fático do produto e, via de regra, destinatário final fático do serviço. Observando os princípios positivados no CDC, uma interpretação maximalista estaria em desa- cordo com o espírito excepcional da tutela e o fim visado pelo Código, que é a proteção do não profissional que utiliza o bem para fruição privada.
Além da restrição dada pelo próprio direito do consumidor, é importante ressaltar que nos parece, à luz da doutrina empresarial, difícil admitir que um empresário pratique um ato de consumo na consecução de sua atividade. Como ficou demonstrado pela análise da discussão do ato de comércio bifronte, a prática da mercancia trazia para o regramento do Direito Comercial mesmo os atos-meio por conexão. Da mesma forma, no conceito de atividade empresária positivado pelo CC/02, o ato não é empresarial por um elemento objetivo ou subjetivo considerado; tem esta natureza porque inserido numa atividade reiterada com a finalidade de obter lucro.
Seria possível questionar que se a força de trabalho, que economicamente também é insumo, tem tratamento jurídico próprio, não poderia haver tratamento jurídico próprio a possíveis atos de consumo praticados pelo empresário. Para a solução dessa indagação é importante notar que se o Direito do Trabalho e o do Consumidor têm em comum o fato de lidarem com relações forte-fraco, (respectivamente, empregador-empregado e consumidor- fornecedor), esses dois ramos do direito tem como diferencial o fato de que tratam de diferentes relações de sujeição. Dessa forma, o contrato de trabalho e as diferentes relações de consumo foram afastadas do direito comum essas normas especiais seguem racionalidades
33 XXXXXXXXX, Xxxxxx. O desenvolvimento histórico do direito comercial e o significado do direito privado. Trad. Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo. Malheiros. Ano XXXVII, n. 114, Abril-Junho/1999, p. 183.
34 XXXXXXXXX, Xxxxxx. O desenvolvimento histórico do direito comercial e o significado do direito privado. Op. cit. p. 187.
específicas que dizem respeito às relações por elas agasalhadas, que não são interempresariais.
A sujeição de um empresário a outro também deve ser tratada juridicamente levando em conta as características do microssistema empresarial, daí que a discriminação positiva aqui também é diferente da do sistema do consumidor. O direito empresarial atual comporta certas correções de rota para eliminar imperfeições do mercado, como no caso a dependência econômica.35 Todavia, considerar que o empresário possa ser destinatário final nos termos do art. 2º do CDC é desvirtuar o sistema, tanto por tornar direito comum uma norma especial – ainda mais em prejuízo daquele que é o destinatário especial desta norma – quanto por desconsiderar o conceito de atividade empresária e as normas e princípios que informam este ramo do direito.
3. Da Equiparação do Empresário a Consumidor
Se os atos praticados pelo empresário no desempenho de sua atividade não podem qualificá-lo como consumidor stricto sensu nos termos já expostos, não fica afastada de pronto uma aplicação subsidiária da legislação consumerista por equiparação ou analogia se presente vulnerabilidade na relação interempresarial. Em outras palavras, além da análise da possibilidade do empresário poder ser destinatário final, já afastada, deve-se discutir se por uma situação de vulnerabilidade pode o empresário pedir a aplicação da tutela do consumidor por equiparação ou analogia.
3.1 As equiparações legais
Mesmo não sendo destinatário final (fático ou econômico) do produto ou serviço, pode o agente econômico vir a ser beneficiado das normas tutelares do CDC enquanto consumidor-equiparado (arts. 2º § único, 17 e 29 da Lei 8.078/90).
Importante ressaltar que um agente equiparado a consumidor não pratica atos de consumo propriamente ditos. A equiparação é uma ficção legal que estende a aplicação do diploma consumerista a não consumidores stricto sensu. Essa distinção é relevante porque sem ela poder-se-ia acreditar que defender uma possível equiparação do empresário a consumidor contradiria a conclusão anterior de que o empresário não pratica negócios jurídicos de consumo como destinatário final de bens ou serviços.
O art. 2º § único da Lei 8.078/90 equipara a consumidor toda a coletividade de pessoas sujeita às praticas decorrentes da relação de consumo. Sua finalidade é proteger interesses difusos e coletivos da massa consumidora, dotando legitimidade a determinados órgãos para atuar em sua defesa. A importância do parágrafo único do art. 2.° é seu caráter de xxxxx xxxxxxxx, interpretadora, aplicável a todos os capítulos e seções do Código.
O artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, tutela o terceiro prejudicado por dano decorrente da relação de consumo da qual não participou. Portanto, a proteção do consumidor é estendida a pessoa que não se enquadra no conceito de destinatário final mas que sofreu conseqüências danosas de um acidente de consumo. Esta figura é conhecida pela doutrina como bystander.
O artigo 29 estende a aplicação dos Capítulos das Práticas Comerciais e da Proteção Contratual a não consumidores destinatários finais expostos às práticas aí previstas. Interessante ressaltar o termo utilizado pelo código, qual seja, estar exposto. Aqui não há a necessidade da concreção da relação, basta estar exposto à prática.
3.2 Análise do artigo 29 do CDC
35 Nesse sentido: XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo. v.42. n.130, abr./jun. 2003.
Para o estudo empreendido neste trabalho, que é acerca da aplicabilidade do CDC aos contratos interempresariais, ganha destaque a intelecção do artigo 29 que estende o regramento das práticas contratuais abusivas. Por isso, a partir de agora, iremos nos deter na análise do alcance do artigo 29, seja a partir dos limites do direito do consumidor, seja a partir dos limites impostos pelo Direito Empresarial.
Os doutrinadores pátrios parecem se dividir em dois grupos quanto ao entendimento da amplitude deste dispositivo. De um lado, há os que entendem que o artigo 29 encerra uma forma de tutela de direitos difusos e coletivos de consumidores stricto sensu, enquanto outros consideram que este dispositivo pode ser entendido para tutela de direitos já consubstanciados numa relação jurídica que não tem como parte um consumidor destinatário final.
OELHO
No primeiro grupo, ULHOA C 36, que entende que deve ser equiparado a consumidor o destinatário final in potentia, aquele que não faz parte de um contrato de consumo mas pode vir a ocupar este papel. A extensão a um momento anterior à consubstanciação de uma relação de consumo se justificaria para dar uma proteção prévia e mais ampla àquele já considerado consumidor stricto sensu.
Em sentido contrário o magistério de CASADO.37 Poderia, segundo este autor, até mesmo uma grande empresa estar vulnerável numa relação contratual devido ao fato de não poder alterar substancialmente um contrato, estando exposta a uma prática abusiva pela contraparte. Assim, segundo CASADO, o artigo 29 seria um canal de oxigenação do Direito Privado, e perderia importância a discussão acerca da delimitação do conceito de destinatário final para que haja a incidência do CDC em matéria contratual, pois a equiparação trazida pelo artigo 29 também alcançaria os expostos às práticas dos capítulos V e VI, mesmo que empresários.38
M 39
ARINS também é adepto deste posicionamento, ampliando radicalmente a amplitude de aplicação da legislação consumerista. Inclui no âmbito de aplicação do CDC qualquer contrato interempresarial, ainda que não haja destinação final ou relação de consumo, se presente a abusividade dos termos do contrato.
Todavia, entendemos que a aplicação irrestrita do diploma consumerista preconizada pelos maximalistas é inadequada para fins de proteção do empresário vulnerável, uma vez que não se leva em conta as diferenças principiológicas destes dois microssistemas jurídicos. A entrada em vigor do CDC não extinguiu o Direito Privado geral nem o Empresarial, é apenas um diploma que visa a tutelar aqueles que estão em uma posição mais vulnerável no mercado.
Nesse sentido, a extensão demasiada da legislação protetiva do consumidor pode desnaturar elementos ínsitos à atividade empresarial, como o próprio risco. Da mesma forma, se não houver disparidade relevante entre os empresários e abuso de possível situação de dependência não há que se cogitar aplicação do CDC. E mais: a dependência entre os agentes econômicos pode decorrer da natureza do próprio negócio (como os arranjos agente- principal), daí a necessidade de um cuidado especial na aplicação de uma legislação tão protetiva.
Dessa forma, um primeiro limite que se impõe é a necessidade de respeitar a função do diploma consumerista no ordenamento jurídico. Propugna-se, portanto, uma interpretação teleológica do dispositivo que deve perpassar o conceito de vulnerabilidade, que é a ratio legis desse diploma legislativo. Também a disparidade entre os agentes deve ser relevante a tal ponto de se equiparar a relação a uma de consumo, sob pena de reduzir essa proteção ao seu
36 XXXXXX, Xxxxx Xxxxx. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor, 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 148.
37 CASADO, Xxxxxx Xxxxx. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. Op. cit. p. 34. 38 CASADO, Xxxxxx Xxxxx. Proteção do consumidor de crédito bancário e financeiro. Op. cit. p. 36. 39 XXXXXX, Xxxxx. Responsabilidade da Empresa pelo fato do produto. Op. cit. 74-78.
maior necessitado e acabar com as relações do mercado desnaturando o Direito Empresarial e o do Consumidor. Nesse sentido, também é indispensável levar em conta a idéia de que se este microssistema tem como objetivo tutelar os mais fracos do mercado, a ampliação de sua aplicação não pode prejudicar o consumidor final.40
3.3. Aplicação analógica do CDC (art. 4º da Licc)
A equiparação do empresário a consumidor também pode ser feita por meio da analogia, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, quando determina que, nas lacunas legislativas, a integração do ordenamento jurídico deve ser feita pelo Juiz com recurso à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito.
Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor, apesar de voltado à proteção de consumidor tomado na sua vulnerabilidade no mercado de consumo, representou a positivação dos novos princípios do direito contratual. Seus novos princípios, normas e institutos jurídicos poderiam ser estendidos a outros contratos, desde que constatada a desigualdade material entre os contratantes. Como o CC/16 e o CCo não tratavam de cláusulas abusivas e contratos de adesão a lei tutelar dos consumidores poderia ser aplicada analogicamente aos comerciantes.
Entendemos que as mesmas restrições acima referidas para a equiparação devem ser também aplicadas neste caso para que não se desvirtue os pressupostos e características próprias dos dois microssistemas de direito privado em discussão.
3.4. Compatibilização com a racionalidade própria do Direito Empresarial
Se em tese é possível ampliar o regramento contratual do CDC a empresários em situação de vulnerabilidade numa relação contratual pela equiparação do artigo 29 ou pelo uso da analogia nos termos do art. 4º da LICC, é preciso averiguar quais são os limites dessa extensão sob a ótica do Direito Empresarial. Como já ressaltado, a questão da possibilidade do empresário ser considerado consumidor equiparado é também um problema de Direito Empresarial e deve ser analisado sob os princípios próprios desse microssistema jurídico.
FORGIONI41 ressalta que o direito empresarial, no passado, tinha cunho
demasiadamente liberal (e por isso jurídica e socialmente inadequado) e atualmente é um sistema que incorpora correções de rota de três espécies principais: (i) repressão ao abuso do poder econômico e de tutela da concorrência; (ii) direito ambiental; e (iii) direito do consumidor. “O direito existe para subjugar a lógica econômica; se assim não fosse, os efeitos autodestrutíveis do mercado colocariam em perigo o seu funcionamento.”42
Entretanto, estas normas que mitigam os dogmas liberais afetam diferentemente as relações interempresariais e aquelas que envolvem empresários e não empresários (consumidores, por exemplo). Por isso, mesmo o reconhecimento de possível existência de vulnerabilidade por parte do agente econômico não poderia levar a uma total aplicação da tutela ao consumidor para a proteção desse sujeito no mercado. Pelo fato de o Direito Empresarial ter uma lógica própria, os textos normativos devem ser interpretados de forma consentânea com a realidade que disciplinam. Assim, por exemplo, a tutela do empresário mais fraco não deve esquecer que o erro faz parte da atividade empresarial, e a sua neutralização demasiada pode distorcer o mercado e enfraquecer a tutela do crédito pela condenação da vantagem competitiva.
Da mesma forma, o dogma do pacta sunt servanda, deve ser abrandado mas não
40 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 280.
41 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo. v.42. n.130, abr./jun. 2003, p. 8.
42 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro. Op.cit. p. 9.
totalmente afastado. Num contexto de vulnerabilidade e dependência econômica, o empresário que detém poder relacional pode “impor sua vontade, o contrato e as respectivas condições, dominando o jogo da contratação e utilizando-o a seu exclusivo favor”.43 Por outro lado, se a tutela desse contratante mais fraco é indispensável para evitar abuso de mercado que gera insegurança e imprevisibilidade, uma aplicação inadequada do CDC também pode comprometer o fluxo das relações econômicas.
Por isso, não seria adequada uma consumerização do Direito Empresarial e qualquer aplicação de normas consumeristas deve antes passar pelo filtro dos pressupostos próprios do direito empresarial. Os negócios empresariais merecem tratamento interpretativo diverso daquele reservado às relações entre fornecedores e consumidores, porque estas últimas obedecem a princípios que não podem ser aplicados aos vínculos entre empresários.
A proteção do empresário sujeito ao abuso de poder contratual de outro agente econômico deve ter sempre como norte o aprimoramento das relações econômicas; a aplicação irrestrita dessas normas fará diametralmente o oposto. Qualquer tutela dessa natureza tem o objetivo de eliminar possíveis imperfeições do mercado e não pode ter como resultado o prêmio à ineficiência do agente econômico. Em outras palavras, a vulnerabilidade de um não profissional difere da do profissional e comércio não deve ser confundido com consumo.
3.5 Superveniência e Suficiência do CC/02
O novo Código Civil unificou em grande medida as obrigações civis e comerciais e apresenta normas gerais que mitigam os dogmas liberais exacerbados. Dessa forma, o CC/02 regula "o direito da empresa" (art. 966 e ss.) e impõe como patamar igualitário para todos os contratos o princípio da boa-fé (art. 422), função social do contrato (art. 421) e intervenção reequilibradora nos contratos de adesão (arts. 423 e 424).
Logo, com a entrada em vigor do CC/02 o comerciante vulnerável terá ferramentas adequadas para lidar com a sua situação de dependência econômica no direito privado geral. Ressalte-se que o CC/02 traz em seu bojo uma série de cláusulas gerais, mais propensas à adaptação aos princípios e substrato fático inerentes ao Direito Empresarial.
Assim, por exemplo, há diferenças entre o conceito de cláusula abusiva, consagrado no art. 51 do Código de Defesa do Consumidor, e o de cláusula ambígua ou contraditória, disposto no Código Civil no art. 423. A disposição do Código Civil é mais ampla, mas, em contrapartida, não é causa de nulidade, facultando, apenas, a interpretação mais favorável ao aderente, enquanto que no art. 51, caracterizada a cláusula abusiva em contratos relativos ao fornecimento de produtos e serviços, torna-se imperativo reconhecer a nulidade. Ocorre que em ambas as situações a finalidade da regra é garantir a igualdade de contratar e, por conseqüência, o equilíbrio das partes na relação contratual. Todavia, o tratamento é diferente justamente porque se supõe um maior equilíbrio nas relações civis e comerciais.
Nessa mesma toada, importante ressaltar que o novo Código Civil já incorporou os princípios que eram expressos no Código do Consumidor. Esse novo regramento geral, levando em conta uma série de fatores como as condições gerais de contratação, já é capaz de solucionar adequadamente os problemas dos contratos, não sendo mais necessário tentar transplantar mutatis mutandis para a relação entre empresários a disciplina do Direito do Consumidor.
Percebe-se, portanto, uma tendência em formação que indica o afastamento de qualquer aplicação aos contratos interempresariais do regramento consumerista. Esta tendência que se avizinha tem paralelos com o que ocorreu no direito alemão.
A Alemanha, por meio da XXX-Xxxxxx xx 0000 (Xxxxxx xxx Xxxxxxxx des Rechts der allgemeinen Geschaeftsbedingungen), regrou as condições gerais dos contratos. Além dos
43 XXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxx. A interpretação dos negócios empresariais no novo Código Civil Brasileiro. Op.cit. p. 11.
contratos inseridos numa relação de consumo, também eram controladas as condições gerais inseridas em contratos entre dois profissionais ou comerciantes.
Preferindo aplicar o princípio da boa-fé a todos os contratos por adesão ou com condições gerais de contratação, a AGB-Gesetz se aplicava a todos os contratantes (empresários ou consumidores), desde que o método de contratação fosse este. Havia proteção mitigada, entretanto, quando o contrato entre empresários e versasse sobre a atividade do estabelecimento do adquirente direta ou indiretamente, em que o § 24 da AGBG mandava aplicar além da cláusula geral de boa-fé, os usos e costumes comerciais.
Como a jurisprudência alemã já estava habituada a aplicar o princípio da boa-fé pelo fato deste ser a base de sua ordem jurídica, interpretou extensivamente a cláusula geral do § 9 da lei, concedendo praticamente a mesma tutela aos contratos entre empresários. Entendia-se que sendo a contratação por adesão ou através do uso de cláusulas gerais, pouco importava o status de comerciante ou de consumidor pois o direito almejava um reequilíbrio contratual sempre que um dos sujeitos estivesse em situação mais fraca.44
Todavia, a questão muda de figura a partir do ano 2000, com a reforma do BGB. O BGB em 2000 inseriu entre as pessoas a figura do consumidor e do empresário na parte geral. O consumidor surge, então, como a pessoa física que conclui negócio jurídico cuja finalidade não tem ligação com atividade profissional, em consonância com as diretivas européias.
Posteriormente, também foi modificada toda a parte especial de obrigações para incluir normas especiais (e gerais) de proteção do parceiro contratual mais fraco, em especial dos consumidores, ressistematizando todas as diretivas européias sobre contratos e leis especiais alemãs, que instrumentalizavam a proteção do consumidor. Assim, a proteção das relações contratuais intercomerciais deve ser feita pelo sistema geral do direito civil e as normas especiais, mesmo que inseridas no BGB, devem proteger de forma qualificada o mais vulnerável, que é o consumidor.
A experiência alemã é importante porque o “sistema geral e social alemão atual não difere em muito do sistema brasileiro, após a entrada em vigor do novo Código Civil de 2002, que traz esta visão social e de controle para todos os contratos, mas que deixa ao CDC a tarefa de proteger de forma especial o consumidor.”45 Dessa forma, não faz mais sentido falar em uma aplicação subsidiária do CDC se o próprio sistema geral já oferece ferramentas aptas a tutelar o empresário sujeito a práticas contratuais abusivas.
3. Conclusão
Por todo o exposto é possível perceber que as duas hipóteses de aplicação do CDC aos contratos empresariais, seja por equiparação seja por se considerar o empresário consumidor destinatário final foram progressivamente afastadas. Resta, agora, à doutrina e à jurisprudência analisar em que medida as cláusulas gerais do novo Código Civil afetarão os contratos interempresariais, respeitando a necessidade de segurança e previsibilidade que o mercado demanda e o ideal de justiça contratual positivado neste diploma legal.
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44 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. pp. 260-261.
45 MARQUES, Xxxxxxx Xxxx. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. Op. cit. p. 266.
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