O CONTROLO DO CONTEÚDO DOS CONTRATOS: UMA NOVA DIMENSÃO DA BOA FÉ*
O CONTROLO DO CONTEÚDO DOS CONTRATOS: UMA NOVA DIMENSÃO DA BOA FÉ*
Xxxxxxx xx Xxxxx Xxxxxxx**
RESUMO: Xxxxxxx a boa fé como princípio normativo e sua actuação como norma comportamental para a superação do modelo formal de contrato. Apresenta o princípio da boa fé como critério de validade de conteúdos contratuais examinando significado desta dimensão funcional. Controlo do conteúdo e abuso do direito. Trata do campo de operatividade e do controlo do conteúdo dos contratos de adesão a partir do papel da boa fé. Enfoca a boa fé como critério valorativo no quadro da cláusula geral de controlo do conteúdo dos contratos de adesão, mas direito português e cláusulas gerais do controlo do conteúdo no direito brasileiro.
1 A BOA FÉ COMO PRINCÍPIO NORMATIVO. SUA ACTUAÇÃO COMO NORMACOMPORTAMENTAL
Falar da boa fé, em seu sentido objectivo, é falar de um princípio normativo, que apresenta, em grau extremo, a característica comum de todos eles: uma grande abertura semântica e valorativa e, por consequência, uma acentuada indeterminação do alcance prescritivo.
Mas, constituindo uma norma em aberto, ela é, não obstante, uma norma, com
* Versão desenvolvida, com notas de rodapé, do texto que serviu de base a uma exposição no III Congresso Nacional de Direito Civil, organizado pela Associação dos Magistrados do Paraná, que teve lugar em Curitiba, de 15 a 17 de Setembro de 2005.
conteúdo material próprio,1 contendo uma base de valoração a que o intérprete/aplicador está vinculado.
Essa pauta de ordenação corresponde a uma ideia regulativa identificada com exigências de conduta correcta, honesta e leal. Com esta primeira indicação, obtemos apenas um ponto de partida e uma direcção de sentido a seguir na busca de uma solução que
1 Por isso, o juízo segundo a boa fé não pode confundir-se com o juízo de equidade. Ela é, ainda, uma decisão dentro do sistema, pelo que é susceptível de generalização, apresentando pretensões de validade para todos os casos semelhantes. A boa fé, justamente, absorve, juridificando-os, parâmetros, na origem, extrajurídicos (de natureza ética e de razoabilidade económica, designadamente).
traduza, na justa medida, com atendimento simultâneo de princípios conflituantes, aquelas exigências.
Compete, pois, à doutrina e à jurisprudência, em mediação concretizadora, extrair do princípio padrões de comportamento operativos, ajustados aos diversificados contextos situacionais a que ele se aplica. A positivação, nos códigos mais recentes, inclusive no Código Civil brasileiro, de cláusulas gerais que acolhem o princípio da boa fé, inserindo-o em campos sectoriais de regulação, bem como a enunciação legislativa de regras específicas que tipificam, exemplificativamente, o seu conteúdo normativo para uma situação determinada, facilitam, de algum modo, essa tarefa.
Ora, nos últimos decénios, a boa fé tem-se revelado uma fecunda matriz normativa de prescrições actuantes na esfera das relações intersubjectivas, em particular das relações negociais e circum-negociais (contratuais, pré-contratuais e pós-contratuais).
De tal modo que pode hoje dizer-se, sem receio de desmentido, que o princípio da boa fé, mais do que qualquer outro, se caracteriza pela multifuncionalidade, pelo desempenho, dentro do sistema, de diferenciadas funções reguladoras – de “camadas funcionais” fala, a propósito, WIEACKER.2 Ele é, verdadeiramente, um princípio pluridimensional.
Mas, na pluralidade das suas dimensões, a boa fé actua classicamente como norma comportamental, concorrendo para determinar o comportamento devido pelos sujeitos envolvidos numa relação. Se concebermos
2 Cfr. Zur rechtstheoretischen Präzisierung des
§ 242 BGB, Tübingen, 1956, 20 s.
esta como um processo que se desenrola no tempo, a boa fé direcciona, nas suas várias fases, a conduta dos participantes. No seu núcleo, ela constitui, pois, um factor de determinação, em concreto, dos efeitos de um vínculo obrigacional.
Nesse sentido, desempenha funções normativas de concretização reguladora, de integração e também de delimitação. Pelos critérios da boa fé, alcançámos a indicação precisa dos modos correctos de efectuar a prestação e de exigir o seu cumprimento; por eles, preenchemos integrativamente, com deveres secundários e deveres laterais, o conteúdo vinculativo da relação; por eles, ainda, demarcamos certos limites ao exercício legítimo de um poder formalmente reconhecido pela ordem jurídica, no quadro da cláusula geral do abuso do direito.
Sendo, nestas projecções funcionais, uma norma comportamental, a boa fé é simultaneamente uma norma de responsabilidade. De facto, em qualquer daquelas modalidades operativas, está basicamente em causa a prevenção e a imputação de danos, derivados, quer da afectação de bens já integrantes da esfera de qualquer dos participantes na relação, quer da não consecução, ou da consecução imperfeita, dos fins que presidiram à constituição desta. No que se refere à fase formativa do contrato, isso mesmo nos diz, com toda a clareza, o art. 227.º do Código Civil português, que regula a responsabilidade pré-contratual, nos seguintes termos: “Quem negoceia com outro para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos
que culposamente causar à outra parte”.
No que diz respeito à fase executiva do contrato, a boa fé contribui, de modo análogo, para a definição de situações de responsabilidade. No quadro de uma dada estrutura de posições negociais voluntariamente assumidas na prossecução de certos interesses, a boa fé co- determina o programa obrigacional apto a realizá-los do modo normativamente adequado. A sua violação traduz um incumprimento contratual, com a correlativa responsabilidade. E a força representativa desta ideia, que associa a boa fé a exigências de conduta, é de tal ordem que ela continua presente, mesmo quando o princípio desempenha, já não uma função integrativa, mas antes uma função correctiva de estipulações contratuais. Em confirmação do que acaba de ser dito,
atente-se na formulação escolhida pelo legislador português, ao definir, na cláusula geral do art. 437.º do Código Civil, os pressupostos do regime de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias. Para a parte lesada ter direito à produção de qualquer daqueles efeitos, requer-se, além do mais, “que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé”. Apesar de estar em causa um dado puramente objectivo, atinente ao desequilíbrio do conteúdo do contrato, ou à frustração do seu fim, a tónica é posta num dever de conduta de um dos contraentes – o de se abster da exigência do cumprimento estrito do contrato, nos termos convencionados, na medida em que tal represente uma violação grave dos ditames da boa fé. A lisura negocial que o princípio impõe traduz-se, neste contexto, no dever de não se prevalecer oportunisticamente de um conteúdo contratual que, em face das
novas e imprevistas circunstâncias, se tornou excessivamente oneroso ou inútil para a outra parte. O não cumprimento desse dever justifica uma decisão judicial correctiva ou extintiva. Quer dizer: uma solução que resulta de uma ponderação objectiva da incidência de factores externos na originária conformação de interesses, destinando-se a evitar a desvirtuação do seu sentido ou da sua funcionalidade, é aqui, em termos redaccionais, apresentada em veste de cominação de um
modo de agir negocial.
Atendendo apenas a estas clássicas dimensões aplicativas, dir-se-ia que não há espaço de intervenção para o princípio da boa fé, com vista a ajuizar da validade de estipulações contratuais, por razões presas ao seu conteúdo. Esse espaço parece estar integralmente preenchido pelas normas imperativas e pelas cláusulas gerais da ordem pública e dos bons costumes.
Tanto mais que os critérios de valoração que do princípio de inferem e a sua metódica aplicativa parecem rejeitar, em absoluto, uma tal dimensão funcional. Na verdade, o que a boa fé impõe não é possível enunciar pré- determinadamente, de modo acabado e fixo, em abstracto. Só depois de impregnarmos as suas directrizes de base com o concreto- factual a que elas se vão aplicar é possível entrever, de modo minimamente preciso, as exigências que do princípio promanam. A ordem de condutas por ela prescrita tem a ver com as posições assumidas, um em face do outro, pelos sujeitos em relação, só por esse entrelace se desvendando, em termos operativos, o sentido vinculativo do princípio. Por isso mesmo, quanto aos pressupostos aplicativos, a boa fé requer, no entendimento
largamente dominante, um relacionamento particularizado entre dois sujeitos, um “contacto social qualificado”, como diz XXXX,3 pois só nesse quadro se estabelece, por um lado, uma interacção comunicativa que gera a confiança, e só ele potencia, por outro, a recíproca interferência danosa que os deveres de conduta correcta intentam prevenir. É esse estreitamento da relação, com as expectativas que cria e as vulnerabilidades que engendra, que justifica o acréscimo de vinculação que a aplicação da boa fé representa. As suas qualificadas exigências de conduta não são de alcance geral,4 apenas vigorando para certos sujeitos em virtude das relações que estabeleceram com outros.
Estando, pois, o paradigma regulador da
boa fé irremediavelmente preso ao contexto situacional, aos dados singularizadores e ao circunstancialismo específico de uma dada relação, ele afigura-se, prima facie, inteiramente “fora do seu lugar” como fundamento de restrições directas à liberdade de estipulação dos termos contratuais. Parece que não se poderá fugir a uma tal conclusão, pois essas restrições operam de plano, por si sós, como uma heteronomia inevitável,5 já pré-formada, à margem de quaisquer factores circunstanciais da prática relacional em causa.
3 V. Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, II, 2. ed. Xxxxxxx, 0000, anot. 55 ao
§ 242.
4 Ao contrário, por exemplo, dos bons costumes.
5 Contrariamente às formas de tutela da confiança, que, nas palavras de XXXXXXXX XXXXXXX,
2 SUPERAÇÃO DO MODELO FORMAL DE CONTRATO. CONTROLO DO CONTEÚDO: SUPORTE CONSTITUCIONAL
As metamorfoses trazidas pela superação do modelo formal de contrato abriram, todavia, um campo de actuação à boa fé, como norma de validade.
Frequentemente designada como materialização do direito dos contratos, esta evolução levou a dar relevância jurídica, na definição do campo de actuação e da disciplina da liberdade contratual, aos factores materiais que, na esfera do real, condicionam e diferenciam a capacidade efectiva de categorias de sujeitos em defenderem os interesses próprios, através de actos de autonomia privada. Com isso, a racionalidade estritamente auto-referencial, fechada dentro do universo jurídico, justificadamente apontada como caracterizando a concepção formal do contrato,6 abre brechas, em certas zonas, passando as condições materiais e o resultado do exercício da liberdade contratual a ser problematizados e ponderados, na fixação do regime aplicável.
Entre essas condições, contam-se as formas organizacionais de produção e de consumo e as condicionantes sistémicas que delas resultam para o agir negocial dos privados. E o que há de qualitativamente novo, nesta tendência, é, sobretudo, o facto de o acto contratual deixar de ser visionado isoladamente, para passar a ser visto como
representariam uma “heteronomia evitável” – “A
cláusula do razoável”, in Obra dispersa, I, Braga, 1991, 539 e 546 s.
6 Cfr. XXXX XXXXXXX, Regulating Contracts, Oxford, 1999, 32.
integrando uma dada actividade, cujos dados estruturais são tidos em conta.7
Deste modo, a disciplina do acto é pensada como instrumento de regulação de um determinado sector da actividade jurídico-económica, muito especialmente na área da contratação final das empresas com os consumidores.8 Com este alargamento de perspectiva, para lá dos factores individuais de turbação funcional do exercício da autonomia privada, já contemplados pelos instrumentos clássicos, são tidos em consideração factores de expressão colectiva, porque ligados a características estruturais das economias dos nossos dias. Daí que, retirada a máscara abstractizante da “pessoa”, que a todos iguala, se ponderem interesses de categorias de sujeitos, definidas e diferenciadas por uma determinada posição e papel no âmbito do económico-social (os trabalhadores, os inquilinos, os consumidores, os investidores, os segurados, os turistas etc.). Significativas zonas do direito dos contratos contribuem, deste modo, para a regulação dos mercados. E a regulação assume, com frequência, uma função de
7 Este alargamento do horizonte de ponderação às relações de mercado em que o contrato se insere está sobremodo patente nos termos da proibição do abuso de dependência económica, pelo art. 7.º, n.º 1 da lei n.º 18/2003, de 11 de Junho: “É proibida, na medida em que seja susceptível de afectar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equivalente” [sublinhado nosso].
8 Cfr. XXXXXXX XXXXXXXXXX, “La disciplina dell’atto e dell’attività: i contratti tra imprese e tra imprese e consumatori”, in XXXXXX XXXXXX (a cura di), Diritto privato europeo, II, Milano, 1997, esp. 521.
tutela de grupos de contraentes, quando se considera que eles se encontram tipicamente impossibilitados de uma adequada defesa dos seus interesses, por força de défices estruturais de vária ordem, conexionados com o estatuto pessoal dos sujeitos intervenientes, as modalidades ou as circunstâncias da contratação.
Com a perda de crença na universal funcionalidade do contrato, como instrumento de autotutela de interesses privados, fica, assim, aberta a porta a uma intervenção normativa de compensação ou correcção. Essas medidas representam o reconhecimento dos limites da autonomia privada, por falta de condições efectivas de liberdade de decisão e, logo, de auto-responsabilidade de um dos contraentes. Onde se constata, em certas zonas do tráfego ou em relação a certos mecanismos e circunstâncias da contratação, que os processos de auto-regulação, deixados a si próprios, não desempenham satisfatoriamente a tarefa de ordenação que lhes cabe, por não darem voz a todos os interesses relevantes,9 à liberdade contratual é retirada a sua genérica competência reguladora, ficando legitimado um directo controlo da razoabilidade e do equilibrio dos termos contratuais.
Dando como assente que o funcionamento, com sentido, da autonomia privada, pressupõe, na esfera contratual, a autodeterminação de ambas as partes e que esta é afectada quando há, entre elas, uma situação de disparidade de poder negocial, o ordenamento procura
9 Que uma “boa ordem” deve ter em consideração todos os interesses relevantes, acentua-o XXXXX XXXX, “ La c.d. giurificazione delle logiche dell’economia di mercato”, Riv. trimm. dir. proc. civile, 1999, 728.
combater as consequências disfuncionais do seu exercício. Nessas soluções, a autodeterminação desempenha o papel de pressuposto negativo da intervenção: constatada a inoperância funcional da autonomia privada, por falta de autodeterminação em medida bastante, o ordenamento institui medidas de tutela compensatórias, a favor do contraente em situação de inferioridade.
Para isso, não lança mão apenas de instrumentos que intentam melhorar a autodeterminação em sentido material, potenciando uma efectiva e esclarecida liberdade de decisão, para o que actuam a nível informativo e de garantia de condições de ponderação de utilidades e conveniência. De facto, em certas áreas, o que se tem em vista já não é (ou já não é apenas) disciplinar os processos formativos do contrato. Consciente de que as medidas de apoio a um consentimento negocial informado são, nessas áreas, insuficientes ou inoperantes, a generalidade das ordens jurídicas não hesitou em avançar para a introdução de restrições directas ao conteúdo dos contratos. Já não se trata de fazer funcionar, com sentido, a autonomia privada, colmatando os défices cognitivos de uma das partes. Dando por insanável a falha dos seus pressupostos de actuação (ou, noutro plano, a “falha do mercado”), trata-se antes de impedir que o contraente em situação de superioridade retire dela vantagens excessivas. O que, naturalmente, leva à fixação de proibições ou à imposição de conteúdos, em directa restrição à liberdade de conformação que o
regime comum amplamente admite.
Não está só em causa a “qualidade da contratação”, isto é, um nível satisfatório de
condições informativas e situacionais de formação da vontade negocial. Está também em causa a “qualidade do contrato”, vale por dizer, um conteúdo contratual que não se afaste excessivamente dos parâmetros de uma justa composição de interesses. Objecto da intervenção não é apenas o acto, mas também, e directamente, o regulamento contratual que dele resulta.10
Estabelecem-se, assim, em certas zonas e modalidades do tráfico negocial, mais apertados limites à liberdade contratual do que os vigentes no regime comum. Estipulações que seriam válidas por aplicação deste regime são tidas por ineficazes, à luz da disciplina que especialmente as regulam. Gera-se, assim, como uma das mais salientes características do direito dos contratos, uma dualidade de espaços normativos, diferenciados pelo distinto grau de acolhimento da liberdade contratual. Na verdade, ao lado de uma área em que, dentro dos limites gerais, esse princípio é consagrado com muita amplitude, figura uma outra em que vigoram limites especiais de conteúdo, fortemente restritivos da liberdade de modelação.
Esta orientação, bem sedimentada no moderno sistema de direito civil, encontra também suporte e enquadramento constitucional, designadamente na concepção de CANARIS dos direitos fundamentais. De acordo com esta concepção, hoje dominante no espaço jurídico germânico e, mesmo, europeu, os direitos fundamentais, ao lado
10 Cfr. XXXXX XXXXX, “Predisposizione di clausole e procedimento de formazione del contratto”, Studi in onore di F. Santoro-Passarelli, III, Napoli, 1972, 571.
da sua eficácia como direitos de defesa, conduzindo a “proibições de intervenção” endereçadas ao poder público, em qualquer das suas facetas, carregam igualmente no seu conteúdo normativo “imperativos de tutela”, com “proibição de insuficiência”.11 Compete ao Estado, também no campo jurídico-privado, proteger os sujeitos em situação deficitária de capacidade de defesa dos interesses próprios. Fá-lo-á com recurso a instrumentos de direito ordinário. Onde este apresente lacunas de protecção inconstitucionais, o juiz está autorizado a cumprir essa tarefa, designadamente através do desenvolvimento judicial do direito.
E note-se que o imperativo de tutela não fica desactivado perante vinculações negociais, como tal cobertas pelo consentimento do obrigado. Na verdade, a ideia da garantia de efectividade das posições jurídicas constitucionalmente reconhecidas, vinculativa de uma acção estadual de protecção, quando necessária, tem um sentido normativo paralelo ao da materialização dos contratos, acima referida, representando, neste campo, tal como esta, a superação de uma concepção apenas formal, jurídica, da autonomia privada. Nesta óptica, relevam as condições materiais de exercício da autonomia, pelo que, em face de um conteúdo significativamente oneroso para uma das partes, o juiz não pode decidir, sem mais, pela sua execução tal como acordado, confortando-se com o entendimento de que “contrato é contrato”. Cabe-lhe, nessa situação, controlar se esse conteúdo é imputável à auto-responsabilidade do
11 Cfr., por último, CANARIS, Direitos fundamentais e direito privado, trad. portug., Coimbra, 2003, passim.
contraente prejudicado ou, antes, à sua impossibilidade fáctica de autodeterminação. Nesta segunda hipótese, estão legitimadas soluções correctivas de resultados negociais, em tutela do contraente em situação de inferioridade.
Esta visão jurídico-civil e jurídico- constitucional da autonomia privada e do contrato foi claramente sufragada numa histórica decisão do Tribunal Constitucional alemão, de 10 de Outubro de 1993,12 seguida em jurisprudência posterior.
A decisão tem, para nós, o interesse suplementar de sufragar a posição da doutrina civilística de que “o princípio da boa fé indica limites imanentes ao poder de conformação contratual, fundamentando a autorização para o controlo judicial do conteúdo do contrato”.13
Aqui temos, pois, a boa fé claramente apontada como um instrumento imprescindível de tutela do contraente em situação de vulnerabilidade negocial. Nessa função, o princípio serve de matriz geradora de directas restrições ao conteúdo dos contratos, funcionando, consequentemente, como critério da validade das estipulações que o integram.
12 A “queixa constitucional” foi apresentada por uma jovem de 19 anos, uma operária sem qualificações, de baixo salário e sem património relevante, a qual, por imposição do banco mutuante, afiançara uma dívida comercial, de montante significativo, contraída por seu pai. Contra decisões anteriores do Supremo Tribunal alemão, em casos análogos, o Tribunal Constitucional considerou a fiança ineficaz. Poucas sentenças de apreciação de constitucionalidade terão motivado, como esta, um tão apaixonado debate na doutrina, e não só na alemã. Contam-se seguramente por largas dezenas os comentários que a têm por objecto.
13 Cfr. Juristenzeitung, 1994, 410.
3 O PRINCÍPIO DA BOA FÉ COMO CRITÉRIO DE VALIDADE DE CONTEÚDOS CONTRATUAIS: SIGNIFICADO DESTA DIMENSÃO FUNCIONAL. CONTROLO DO CONTEÚDO E ABUSO DO DIREITO
Esta dimensão funcional do princípio da boa fé merece ser sublinhada, pois ela representa, em nosso entender, um novum em relação aos seus campos e modo de actuação tradicionais.
De facto, actuando aqui em directa restrição à liberdade de conformação de conteúdos contratuais, o princípio desempenha uma função distinta da hermenêutico- integrativa e da limitativa do exercício de posições activas, em proibição do abuso do direito.
Esta última asserção parece ser contrariada pela quase universal qualificação como “cláusulas abusivas” daquelas estipulações que são tidas por inadmissíveis, em razão do seu conteúdo. Com origem na ordem jurídica francesa,14 o termo vulgarizou-se, no espaço jurídico europeu, sobretudo após a sua recepção na directiva que regula esta matéria – a directiva sobre cláusulas abusivas em contratos com consumidores, de 5 de Abril de 1993.15
E, por outro lado, não é desapropriado falar-se, a este respeito, de um “abuso da liberdade contratual”. Sabendo nós que o abuso do direito não se restringe aos direitos
14 Onde foi utilizado, como termo técnico-legal, logo no primeiro diploma sobre a matéria – a Loi Scrivenner, de 1978.
15 Directiva 93/13/CEE, do Conselho (JOCE, de 21.4.93, n.º L 95/29).
subjectivos, propriamente ditos, abarcando antes todas as posições activas, incluindo as faculdades jurídicas, compreender-se-á a propensão de alguma doutrina em situar nesse campo o regime do controlo do conteúdo.
Mas essa não é, do nosso ponto de vista, uma inserção sistemática adequada. Em termos não puramente descritivos, mas de indicação de uma estrutura normativa fundante e operante, o abuso de que aqui se trata não se enquadra no contexto dogmático do abuso do direito. Fundamentalmente porque está em causa a determinação limitativa do conteúdo do contrato, não de restrições ao exercicio de posições dele derivadas. Não se visa fixar um limite à discricionariedade de actuação do agente dentro de uma relação já eficazmente constituída, mas antes traçar limites a respeitar para a sua válida constituição.
Não pode, pois, negar-se que a boa fé intervém aqui como norma de validade, não como princípio definidor de comportamentos negociais. E o juízo de validade é, neste domínio, um puro juízo de compatibilidade entre a normação privada e o sistema jurídico em que ela visa integrar-se. Está em causa uma relação comunicante entre a norma convencional e as normas do ordenamento geral da colectividade que delimitam imperativamente a esfera da auto-regulação de interesses. E essa é uma relação puramente objectiva, que conexiona conteúdos prescritivos, sem questionar formas comportamentais que se lhes refiram, na esfera da intersubjectividade.
Seja qual for a propriedade da utilização do termo, neste contexto, não nos podemos esquecer, pois, que abusiva é a cláusula, em si mesma, atendendo às consequências
lesivas que produz na esfera de uma das partes. Não se trata, como no campo do abuso do direito, de considerar inadmissível, por factores circunstanciais,16 uma determinada forma de exercício de um direito reconhecido por uma estipulação contratual em si eficaz, mas de negar eficácia à própria estipulação. “Controlo do conteúdo” não é o mesmo que controlo do exercício de um direito. A sua incidência dá-se a montante, é prévia a este, pois o que se procura é ajuizar se a cláusula é válida, se, produzindo efeitos, dela nascem direitos (e eventualmente obrigações). Só depois de respondida afirmativamente esta questão (e apenas disso se ocupa o controlo do conteúdo), faz sentido averiguar se a invocação dessa cláusula, nas circunstâncias concretas da relação, representa uma ilegitimidade de conduta, sancionada pelo abuso do direito.17
Esta segunda questão pode, naturalmente, pôr-se aqui, no domínio dos contratos submetidos ao controlo do conteúdo, não estando afastado que se julgue inadmissível o exercício de um direito atribuído por uma estipulação válida.18 Mas não é uma questão
específica desta área, não tem, nela, relevo próprio, sendo regulada pela disposição genérica do art. 334.º do Código Civil português ou, no caso brasileiro, pelo art. 187.º do Código Civil.
4 CAMPO DE OPERATIVIDADE. CONTROLO DO CONTEÚDO DOS CONTRATOS DE ADESÃO: O PAPEL DA BOA FÉ
O controlo do conteúdo dos contratos tem uma incidência variável, de ordenamento para ordenamento, consoante os factores considerados atendíveis. Ou depende apenas da natureza da relação e da qualidade dos intervenientes, abrangendo então todos os contratos de consumo, como nos sistemas brasileiro e francês, ou está “situativamente condicionado” pelo modo de contratar, independentemente do estatuto dos intervenientes, coincidindo então o seu âmbito com o dos contratos de adesão, como nos direitos alemão e português, numa primeira fase,19 ou combina os dois critérios,
16 Muitas vezes atinentes à conduta anterior do titular, como na proibição do tu quoque e do venire contra factum proprium.
17 Diga-se que nem sempre a jurisprudência portuguesa se mostrou inteiramente consciente da especificidade do controlo do conteúdo em confronto com o controlo do exercício de um direito, mesmo depois da promulgação do diploma sobre as cláusulas contratuais gerais. Veja-se, por exemplo, a sentença de 14.12.1994, do Supremo Tribunal de Justiça (xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x), onde se considera que uma cláusula penal gravosa para o aderente é nula, porque “representa o exercício ilegítimo de um direito”.
18 Cfr. XXXXXXX XXXXXXXXX, “§ 242 BGB – Funktionen und Tatbestände”, JuS, 1983, 767.
19 Dizemos “numa primeira fase” porque a posterior promulgação da directiva europeia trouxe modificações ao âmbito dos diplomas alemão e português. A disciplina aí inicialmente estabelecida era, por confronto com a da directiva, simultaneamente mais e menos abrangente: mais abrangente, porque não se restringia às relações de consumo; menos abrangente, por não se estender a todas as cláusulas preformuladas e inseridas sem negociação, mas apenas às que revestissem a natureza de condições negociais gerais. Este último desfasamento do âmbito objectivo de aplicação punha os regimes vigentes nessas duas ordens jurídicas aquém do nível de protecção ao consumidor requerido pela directiva, tornando inevitável uma alteração legislativa. Esta só veio a ser realizada, no ordenamento português, pelo Decreto-lei n.º 249/99, de 7 de Julho, que acrescentou um novo número ao art. 1.º do Decreto-
como na directiva europeia sobre cláusulas abusivas em contratos com consumidores e nas legislações que fielmente a seguiram.
Mas é indiscutível que o controlo do conteúdo contratual tem o seu berço de origem no domínio dos contratos de adesão, nele encontrando, numa visão comparatística, o seu campo privilegiado de actuação.
Na verdade, desde muito cedo, a partir de fins do século XIX – muito antes, pois, da consagração de legislação específica – a jurisprudência alemã tomou consciência da necessidade de um especial regime limitativo do conteúdo destes contratos, não hesitando na permanente busca de soluções que impedissem desequilíbrios excessivos, em detrimento dos interesses do aderente. A reflexão doutrinária não tardou a acompanhar e consolidar esta orientação, bastando referir que a mais clássica monografia sobre o tema, ainda hoje de leitura incontornável, data do já longínquo ano de 1935!20
Não custa perceber o porquê desta sensibilidade precoce e progressivamente generalizada para o tratamento especial dos contratos de adesão. Ao predispor de forma rígida, sem possibilidade de alteração, os termos em que está disposto a contratar, uma das partes reivindica para si, em exclusivo, o exercício do poder de conformação que, idealmente, deveria ser compartilhado com a contraparte. Vedando a esta qualquer influência na determinação do conteúdo, com isso liberta-se da acção reequilibradora que a bilateralidade de modelação proporciona. Mas este modo de contratar deixa desprotegidos os interesses do aderente, inviabilizando a sua autotutela eficaz. Daí o fundamento para uma intervenção compensatória, traduzida na imposição de limites de conteúdo, como forma de impedir excessivos desequilíbrios na repartição de direitos e deveres.
E quando o contrato se celebra por adesão a condições negociais gerais, e muito
em particular no domínio do tráfego em
lei n.º 446/85, com o seguinte teor: “O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”. É muito discutido na doutrina portuguesa se, quanto ao âmbito subjectivo, a aplicação desta norma exige a presença do consumidor como contraente, ou se tem aplicação geral, como o termo “destinatário” parece sugerir. Já no direito alemão o problema não se põe, uma vez que o § 24 a, introduzido pela Lei de alteração à AGB-Gesetz, de 19 de Julho de 1996 – hoje o § 310, III, 2, do BGB –, é muito claro ao dispor que o regime do diploma se aplica também “às cláusulas preformuladas para uma única utilização, na medida em que o consumidor, devido à preformulação, não tenha podido influir no seu conteúdo”.
20 Referimo-nos à obra fundamental de XXXXXX XXXXXX, Das Recht der Allgemeinen Xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, Xxxxxxx, 0000.
massa, o controlo do conteúdo ganha razões acrescidas. Por um lado, porque o predisponente goza aqui, como a prática tem abundantemente demonstrado, de uma quase irrestrita liberdade para o favorecimento dos seus interesses, já que o teor destas cláusulas comprovadamente não funciona como factor de concorrência; por outro, porque, tendo elas uma incidência à escala colectiva, a sua vigência importa a sobreposição de uma ordem particular de interesses aos padrões normativos, representando o exercício de um autêntico law making power privado, que reduz a letra morta as equilibradas disposições do ordenamento.
Não obstante a fundada convicção, cedo adquirida, no ambiente jurídico germânico, da legitimidade de uma intervenção restritiva, reinou durante décadas a incerteza e a falta de uniformidade quanto ao critério e à justificação dogmática da solução. A admissão de um controlo directo do conteúdo, por tão frontalmente contrário ao dominante princípio da liberdade contratual, abriu dificilmente caminho, através de uma evolução não linear, onde raras não foram as descontinuidades e as inflexões doutrinais e jurisprudenciais.
Só por volta da década de sessenta do século passado, os tempos ficaram maduros para um controlo aberto e directo da observância de limites objectivos de conteúdo, distinto (ainda que sem o dispensar) de um controlo da inclusão das cláusulas no contrato. E foi a boa fé, já invocada pontualmente, no passado, neste contexto, que serviu definitivamente aos tribunais alemães de contraprincípio fundamentador e agregador desses limites, a ele recorrendo uma jurisprudência abundantíssima e constante.
Não estando em causa, pelo menos directamente, a regulação de condutas, mas antes a fixação de limites à autonomia privada, como se justifica o recurso ao princípio?
Particularidades do direito alemão, em especial a inexistência de uma cláusula geral autónoma da ordem pública,21 fornecem, em parte, as razões explicativas do aproveitamento
da boa fé para uma tarefa ordenadora que lhe não era própria. Mas também o conteúdo normativo do princípio e a ductilidade apreciativa que o caracteriza o vocacionaram para esta função.
Na verdade, o controlo do conteúdo dos contratos de adesão visa apenas, em regra, a “proibição do excesso”, não a de divergir dos padrões legais supletivamente aplicáveis. Só assim, em termos de política interventiva, se pôde atender equilibradamente a interesses empresariais razoáveis, sem desproteger, para além do justificado, os interesses dos aderentes.22
Ora, dificilmente a ideia regulativa da ordem pública asseguraria, neste campo, esse resultado. Ela é do domínio da imperatividade absoluta, sem transgências nem acomodações, estando submetida a uma lógica binária, de “ou tudo ou nada”.
A resposta normativa aos contratos de adesão caracteriza-se, antes, por um “sim, mas…”, pela restrição, não pela eliminação, in toto, da liberdade contratual do predisponente.
Significa isto que preceitos supletivos, livremente derrogáveis quando ambas as partes estão em condições de exercitar, de facto, a sua autodeterminação negocial, ganham, no âmbito dos contratos de adesão, resistência ao seu afastamento arbitrário, tornando-se, por assim dizer, menos dispositivos, pois só podem ser contrariados até certo ponto, dentro de certos limites.
21 No direito alemão, a ordem pública é uma componente da cláusula geral dos bons costumes (gute Sitten).
22 É oportuno lembrar aqui que o art. 4.º do Código de Defesa do Consumidor associa expressamente a boa fé ao equilíbrio e harmonização de interesses entre consumidores e fornecedores.
A fixação desses limites passa, inevitavelmente, por uma ponderação de interesses. Para a levar a cabo, o imperativo de atendimento, em certas condições, dos interesses legítimos da contraparte, que a ideia de boa fé transporta nuclearmente consigo, pôde fornecer, no termo de um longo processo evolutivo, uma base de valoração funcionalmente ajustada.
Os limites de conteúdo podem ser vistos, nesta óptica, como a expressão objectiva de deveres acrescidos de lealdade e solidariedade contratual: privando a contraparte de qualquer influência na estipulação dos termos do contrato, o predisponente simultaneamente se obriga, em boa fé, a atender também aos seus interesses.23 Não o fazendo, o mesmo é dizer, excedendo aqueles limites, sujeita-se à invalidade dessas estipulações.
Mas, seja qual for o ponto de vista discursivo que o intérprete privilegie, para integração coerente deste regime no sistema contratual, o que não sofre dúvidas é que a contrariedade à boa fé resulta aqui apenas da natureza e conteúdo das cláusulas, não de
23 Mas é claro que a apresentação dos limites de validade do conteúdo contratual como fonte de um dever de conduta – o dever de respeitar esses limites – corresponde apenas a um enunciado retórico, ao nível das formulações expositivas, não pondo em causa a natureza puramente objectiva desses limites. De resto, como acentua XXXXXXXX X. STORME, “Good faith and Contents of Contracts in European Contract Law”, in ESPIAU/XXXXXX XXXX (eds.), Bases de un derecho contractual europeo, Valência, 2003, 21 e n. 9, a distinção entre a função integrativa e a correctiva da boa fé é “highly artificial”, pois “any corrective mechanism based on good faith can inversely be framed in terms of an additional duty”. Dá como exemplo a conversão de uma situação de hardship no dever de renegociar.
uma particular forma de conduta do seu utilizador. Não estamos aqui, como nas outras dimensões funcionais do princípio, em face de uma normatividade emergente da concreta vida da relação, e por ela condicionada, mas da supra-ordenação do modelo legal – com força normativa reforçada, neste âmbito –, à regulação contratual de fonte privada.
O papel da boa fé, neste quadro, parece ser, antes de mais, o de servir de porta de entrada, de suporte legitimador a um especial regime limitativo da liberdade de estipulação,24 de outro modo insustentável,
24 Pelo que é quase irresistível ver aqui a confirmação da ideia de XXXXXXXX (ob. cit., 47) de que a boa fé funciona, por vezes, como “ajuda ao nascimento” (Geburtshilfe) de novas soluções de criação judicial, inspiradas por razões de justiça, constituindo como que uma “ponte para asnos” (Eselsbrücke), um expediente retórico-argumentativo que facilita a fundamentação dessas soluções. Já anteriormente evocamos, a este propósito, a imagem, inspirada na pons asinorum, figura da lógica escolástica, que XXXXXXXX utilizou – cfr. O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Coimbra, 1999, 560 e n. 776. É essa dimensão da boa fé que XXXXXXXX XXXX, noutra perspectiva, designa por dimensão formal (“Good Faith. A Semiotic Approach”, European Rev. of Private Law, 2002, 279 s). Mas há que dizer que, em nossa opinião, como adiante mais desenvolvidamente se sustenta em texto, a boa fé não se limita aqui a servir de “fundamento legitimador da intervenção”, operando também como critério material de soluções. Para XXXXXX XXXXXXX, pelo contrário, o § 242 do BGB é apenas uma “norma material aparente” (Schein- Sachnorm) – cfr. J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführungsgesetz und Nebengesetzen, zweites Buch, 12.ª ed., Berlin, 1981, anot. 160 – a qual, para além de desempenhar uma “função apelativa” (Appellfunktion), contém sobretudo uma “figura metódica auxiliar (Hilfsfigur der Methodenlehre) – ob. cit., anot. 155 –, não podendo fundar decisões (ob. cit., anots. 144 e 154).
dada a vigência do princípio da liberdade contratual. Mas os parâmetros materiais de apreciação são basicamente extraídos do próprio ordenamento. Numa área em que a justeza dos termos negociais não pode ser vista como assegurada pelo processo de contratação, a boa fé activa compensatoriamente a função reguladora do sistema, oferecendo-se como uma espécie de título de chamamento à operatividade de padrões legais que, de outro modo, poderiam ser afastados.
5 A BOA FÉ COMO CRITÉRIO VALORATIVO NO QUADRO DA CLÁUSULA GERAL DE CONTROLO DO CONTEÚDO DOS CONTRATOS DE ADESÃO
Mas, a consagração da boa fé como causa de ineficácia de condições gerais do contrato, pela lei alemã de 1977, na linha
Esta fórmula combinatória da contrariedade à boa fé com os seus reflexos prejudiciais para o aderente fez escola, sendo adoptada, designadamente, pela directiva sobre cláusulas abusivas. O art. 3.º, n.º 1, deste diploma dispõe, na verdade, que “uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência da boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato”.
Esta opção do direito comunitário é responsável pela difusão desta formulação da cláusula geral de controlo do conteúdo pela generalidade dos ordenamentos dos países integrantes da União Europeia, mesmo os daqueles que inicialmente tinham consagrado outras soluções.26
da jurisprudência anterior, inseriu, todavia,
a referência ao princípio numa cláusula geral mais ampla, contendo outros elementos de ordenação.
O n.º 1 do § 9 da AGB-Gesetz rezava assim: “As estipulações contidas em condições negociais gerais são ineficazes quando, contra os ditames da boa fé, prejudicam de maneira inadequada a contraparte do utilizador”.25
25 Na língua original: “Bestimmungen in Allgemeinen Geschäftsbedingungen sind unwirksam, wenn sie den Vertragspartner des Verwenders entgegen den Geboten von Treu und Glauben unangemessen benachteiligen”. Esta formulação manteve-se integralmente, no § 307, I, 1, do BGB, para onde, em 2002, foram transpostas, com algumas alterações, as disposições materiais da lei sobre condições negociais gerais.
26 É o caso do direito inglês. Na verdade, o Unfair Contract Terms Act, a primeira intervenção, em 1977, do legislador britânico neste domínio, não continha qualquer referência à boa fé. O standard avaliativo a que pontualmente se fazia apelo era o “requirement of reasonableness”, cuja satisfação justificava, fora das relações de consumo, certas isenções ou limitações de responsabilidade (cfr. o art. 6.º, n.º 3). Mas, em transposição da directiva, The Unfair Terms in Consumer Contracts Regulations, de 1994, contém, para além de uma lista “indicative and illustrative” de cláusulas proibidas, uma cláusula geral análoga à da directiva (art. 4.º, n.º 1), onde se dispõe que são unfair as cláusulas “contrary to the requirement of good faith […]”. Esse diploma foi revisto em 1999, com o objectivo principal de alargar a outras instituições a legitimidade activa para a acção inibitória, até aí unicamente detida pelo Director General do Office of Fair Trading – cfr. DEFLORIAN, “I contratti dei consumatori nel diritto inglese fra common law e diritto comunitário: legal process e forme di tutela”, Riv. dir. civile, 2002, 804. Já foi apresentado um projecto de reforma deste diploma, basicamente para efectuar a unificação da sua disciplina como a do
A associação da boa fé ao “prejuízo inadequado” ou ao “desequilíbrio significativo” se, por um lado, é expressiva do tipo de controlo aqui exercitado, de valoração objectiva dos efeitos contratuais e dos seus reflexos nos interesses do aderente, levanta, por outro, dúvidas quanto ao modo de articular as duas referências e ao papel que a cada uma delas cabe.
Dúvidas que foram potenciadas pela acolhimento do princípio como instrumento de controlo do conteúdo, por via da transposição da directiva comunitária, em ordens jurídicas, como a britânica, pouco familiarizadas com o princípio, ou, pelo menos, não abertas, ainda, a esta específica utilização funcional, como era o caso da italiana. Essas dúvidas tornam oportuno um repensamento crítico do significado da boa
Unfair Contract Terms Act, de 1977 – cfr. XXXX XXXXX, “Unfair Terms in Contracts: Proposals for Reform in the UK”, Journal of Consumer Policy, 2004, 289 s.
Também o legislador francês alterou, em consequência da directiva, o regime aplicável. Inicialmente, na lei n.º 78-23, de 10 de Janeiro de 1978 (vulgarmente referenciada como Xxx Xxxxxxxxxx), não estava prevista qualquer cláusula geral de aplicação directa pelos tribunais, servindo o conceito de cláusula abusiva, constante do art. 35.º, apenas de directriz para o Conselho de Estado, órgão a quem cabia emitir decretos de interdição de cláusulas dessa natureza. A lei n.º 95-96, de 1 de Fevereiro de 1995, veio introduzir na Loi de Consommation uma estrutura normativa de controlo do conteúdo em conformidade com a directiva. A cláusula geral consta do art. L.132-1, de acordo com o qual “sont abusives les clauses qui ont pour objet ou pour effet de créer, au detriment du non professionnels ou du consommateur, un déséquilibre significatif entre les droits et obligations dês parties au contrat”. Note-se que, contrariamente às restantes legislações, o preceito não contém qualquer referência ao princípio da boa fé.
fé, agora já não como critério isolado do controlo do conteúdo, como na jurisprudência alemã imediatamente anterior à AGB-Gesetz, mas enquanto elemento da cláusula geral que lhe serve de base. Há que testar, designadamente, se a boa fé foi adoptada pela legislação europeia e transposta para as ordens nacionais sempre com o alcance que lhe era predominantemente dado no ambiente jurídico germânico.
E a questão fundamental que, a nosso ver, se deve encarar é a de saber se a referência à boa fé, na cláusula geral de controlo, remete para uma apreciação da conduta do utilizador ou fixa um parâmetro também exclusivamente atinente ao conteúdo. Trata-se de saber se a contrariedade à boa fé é uma componente adicional do juízo de abusividade, a somar ao desequilíbrio do conteúdo, ou se, pelo contrário, basta o conteúdo significativamente desequilibrado para que, sem mais, a cláusula deva ser considerada abusiva. Por outras palavras: para apreciar o carácter abusivo da estipulação basta proceder a uma valoração do seu conteúdo, ou, a mais disso, é também necessário emitir uma apreciação negativa quanto ao procedimento do utilizador?
A vingar esta segunda hipótese, a cláusula geral de controlo conteria dois critérios autónomos, de aplicação cumulativa: só seria ineficaz a estipulação cujo conteúdo inequitativo resultasse de um comportamento abusivo do utilizador. A ser assim, não seria de afastar que circunstâncias atinentes à relação singular e ao seu processo formativo possam justificar um conteúdo desequilibrado, em termos de se ajuizar a cláusula como não contrária à boa fé.
18
Diga-se que, prima facie, a leitura comportamental da boa fé tem por si o facto
de o outro elemento de valoração apontar, inquestionavelmente, para uma avaliação do conteúdo. Averiguar se há um “prejuízo desproporcionado” ou um “desequilíbrio significativo” implica, seguramente, numa apreciação puramente objectiva, identificar e medir os efeitos vantajosos e desvantajosos que a cláusula provoca. Se assim é, poderá entender-se que seria pleonástica e inútil uma referência expressa à boa fé também ela para fixar parâmetros atinentes ao conteúdo. Só situando a referência noutro campo normativo, o da regulação e valoração de condutas, se preservaria a sua autonomia como critério de controlo.
Acresce que esta leitura, que conjuga factores procedimentais com limites de conteúdo, corresponde a um paradigma mais familiar aos civilistas – tanto os da civil law, como os da common law – do que a valência autosuficiente de restrições conteudísticas. A esse modelo obedece, de facto, a disciplina dos negócios usurários, nos direitos continentais, e a da unconscionability e da undue influence e, em geral, da unfairness, nos direitos anglo-saxónicos. A atenção, nestes casos, não está virada apenas para o conteúdo, mas também para o “meio”, o processo através do qual ele foi imposto.27
27 Sem prejuízo de tentativas de revisão do modelo ortodoxo, no sentido da valoração, em si mesmos, de termos contratuais gravosamente desequilibrados – cfr. XXXXXXX X. XXXXX, “In Defense of Substantive Fairness”, Law Quaterly Review, 1996, 138 s., e, quanto à unconscionability, XXXXX XXXXXXXXXX, Contracts, 3. ed. New York, 1999, 313, e CRISTIANA CICORIA, “The Protection of the Weak Contractual Party in Italy vs. United States Doctrine of Unconscionability. A Comparative Analysis, Global Jurist Advances, 2003, n.º 3. article 2, 9, n. 26 (xxx.xxxxxxx.xxx/xx.). Ambos os
E é tentador estabelecer uma linha de continuidade entre essas soluções e a norma geral de controlo do conteúdo dos contratos de adesão.28
Se concebermos a proibição de certos conteúdos como uma concretização dos ditames da boa fé, de acordo com o modelo explicativo atrás traçado, o princípio actuaria aqui com uma dupla face: em restrição directa à liberdade contratual, por um lado, e como padrão de condutas negociais, por outro. Impor-se-ia, nesta óptica, um duplo controlo, ou um controlo em dois momentos sucessivos, distintos um do outro: apurar-se-ia, em primeiro lugar, se o conteúdo
Autores citam sentenças em que a substantive unconscionability foi julgada suficiente, como uma de 1996, da N.Y. Ct. App., segundo a qual “gross disparity in terms, absent evidence of procedural unconscionability, can support a finding of unconscionability”. Diga-se que a consagração legal da doutrina da unconscionability, na secção 2-302 do Uniform Commercial Code, foca apenas o conteúdo do contrato. De facto, aquela norma reza assim: “If the court as a matter of law finds the contract or any clause of the contract to have been unconscionable at the time it was made, the court may refuse to enforce the contract […]”.
28 CANARIS parece ter cedido, de algum modo, a essa tentação, ao escrever que “[…] o controlo do conteúdo segundo o § 9 da AGBG assemelha-se, na sua estrutura fundamental, ao modelo acima analisado do § 138, 2, do BGB, com o seu trio de critérios: existe uma afectação da liberdade fáctica de decisão, para além disso verifica-se uma inadequação (Unangemessenheit) do conteúdo, e ambas são imputáveis ao utilizador de condições negociais gerais”. Mas o Autor não deixa de reconhecer que “em todo o caso, todos os três critérios estão muito mais fracamente expressos do que no quadro do § 138 do BGB, de tal modo que o controlo segundo o § 9 da AGBG é de longe mais estrito” – “Wandlungen des Schuldvertragsrechts – Tendenzen zu seiner “Materialisierung”, Archiv für die civilistische Praxis, 2000, 326.
é significativamente desequilibrado, para depois se ajuizar se tal viola a boa fé.29 E não estaria excluído que a conformidade à boa fé pudesse valer como razão justificativa do desequilíbrio.
Antes de tomarmos posição sobre a questão posta, convém prevenir que dificilmente ela terá uma resposta unitária, no conjunto dos direitos europeus. Na verdade, como standard eminentemente juscultural, a compreensão do significado da boa fé, neste âmbito, será sempre “filtrada” pelo relevo atribuído, em cada sistema, ao princípio, pelo grau de autonomia operativa que se lhe reconhece, pelas dimensões funcionais que se lhe outorgam. Há que contar, pois, com divergências interpretativas, que a harmonização de formulações legislativas, por efeito da transposição da directiva, está longe de conseguir eliminar.30 No ordenamento alemão, predominou
quase unanimemente uma concepção
29 Nesse sentido, por exemplo, F. XXXXXX XXXXXXXX/XXXXXXX XXXXXXX, “La direttiva 93/ 13/CEE del 5 aprile 1993 sulle clausole abusive nei contratti stipulati com i consumatori”, Riv. del notariato, 1995, 374, XXXXXXXXXX XXXXXXXXX, “La definizione atípica delle “clausole abusive” tra controllo giudiziale e trattativa individuale”, Riv. trimm. dir. proc. civile, 1997, 972 e 975, XXXXX XXXXXXXXXX, ob. cit., 32-35, e XXXXX XXXXXX, ob. cit., 119-121,
30 Num texto amiúde citado, e reflectindo sobre a recepção do princípio da boa fé no direito inglês, XXXXXXX põe em destaque que o próprio processo de hermonização é de molde a provocar “novas divergências”. O título diz tudo: “Legal Irritants: Good Faith in British Law or How Unifying Law Ends up in New Divergences”, The Modern Law Review, 1998, 11 s. O Autor é peremptório em considerar que “[…] it is inconceivable that British good faith will be the same as Treu und Glauben German style […]” – ob. cit., 20.
objectivista do controlo. Tal reflectiu-se na sistemática da AGB-Gesetz, que apresenta como uma das suas características mais marcantes e inovadoras a separação nítida entre o controlo de inclusão e o controlo do conteúdo. Por controlo do conteúdo devia entender-se controlo exclusivamente do conteúdo, dos termos contratuais, em si mesmos, sem atender a variáveis que não lhes dissessem respeito.
Tanto assim é que as directrizes de solução dos casos de dúvida, consagradas no § 9, II, da AGB-Gesetz, remetem também apenas para critérios atinentes ao conteúdo, determinando a ineficácia das cláusulas que sejam incompatíveis com “princípios fundamentais da regulação legal” ou limitativas de direitos ou deveres essenciais, de modo a pôr em perigo a consecução do fim contratual.31
Mas, para além desta matriz histórica, há que atentar que o preenchimento do “critério de valoração” do conteúdo não pode ser desligado do “critério de intervenção”, isto é, das razões que aqui o legitimam. A boa fé faz a ponte entre ambos: a rígida predeterminação unilateral dos termos do contrato justifica restrições à liberdade da sua conformação, de modo a que os interesses desprovidos de tutela autónoma não sejam
31 O § 9, II, da AGB-Gesetz dá hoje conteúdo ao
§ 307, II, do BGB, com o seguinte teor: “Eine unangemessene Benachteilung ist im Zweifel anzunehmen, wenn eine Bestimmung
1. mit wesentlichen Grundgedanken der gesetzlichen Regelung, von der abgewichen wird, nicht zu vereibaren ist oder
2. wesentliche Rechte oder Pflichten, die sich aus der Natur des Vertrags ergeben, so einschränkt, dass die Erreichung des Vertragszwecks gefährdet ist”.
seriamente lesados. O acatamento dessas restrições corresponde ao correcto exercitar, neste contexto, da liberdade contratual. Actuar de acordo com a boa fé, neste contexto, é ter em conta, na redacção das cláusulas, os legítimos interesses da contraparte.32
As exigências da boa fé referem-se aqui, sem mais, ao conteúdo do contrato. Tendo um alcance multifacetado, o princípio, nesta sua específica valência normativa, e sem prejuízo de todas as suas outras projecções funcionais, constituiu-se também, neste âmbito, como fundamento normativo e critério de restrições à liberdade de fixação do conteúdo, traduzindo-se em proibições de afastamento, para lá de certa medida, dos parâmetros de um equilibrada composição de interesses. É a boa fé que impõe que o predisponente exercite o seu poder unilateral de conformação sem sacrificar, para lá do razoável, os interesses do aderente; é a boa fé, de igual modo, que orienta a valoração do conteúdo, para formação de um juízo quanto à observância desse comando normativo e, logo, quanto à eficácia da cláusula.
Em vez de actuar, como nas suas funções mais tradicionais, como padrão de conduta no quadro de uma relação já constituída, modelando integrativa e restritivamente os procedimentos a adoptar pelas partes, a boa fé incide directamente, neste campo, sobre a conformação das estipulações que se propõem determinar o conteúdo contratual. Independentemente da concreta conduta do
32 É muito claro, neste sentido, o considerando n.º 16 da directiva sobre cláusulas abusivas: “[…] a exigência de boa fé pode ser satisfeita pelo profissional, tratando de forma leal e equitativa com a outra parte, cujos legítimos interesses deve ter em conta”.
utilizador, traça limites objectivos que ele tem imperativamente que observar, como condição de eficácia das cláusulas que pretende pôr em vigor.
Daí que o comportamento do utilizador, para além daquilo que foi objectivado na estipulação do termos contratuais, não deva, no âmbito estrito do controlo do conteúdo, influir, em nenhum dos sentidos, no juízo de eficácia das cláusulas. O único comportamento do utilizador que conta é a sua opção por um modo de contratar que traduz o exercício unilateral da liberdade contratual. Mas esse é um dado de facto, um pressuposto do controlo, que está antes e fora dele.
Não que, bem entendido, factores atinentes ao comportamento relacional não relevem, nesta matéria, para efeito de aplicação da boa fé. Estando em causa um relacionamento negocial, todas as vertentes funcionais do princípio, e muito em particular as que tutelam expectativas razoáveis, encontram aqui campo de actuação. Pode, designadamente, haver contrariedade há boa fé, não obstante o conteúdo não apresentar um desquilíbrio relevante, por razões que se prendam com outros factores, atinentes à conduta do predisponente. Mas essas são projecções da boa fé que gozam de vigência geral, encontrando guarida na disciplina comum. O controlo do conteúdo, propriamente dito, está para além delas, representando o acréscimo de tutela outorgado compensatoriamente ao aderente, como marca particularmente distintiva do regime especial dos contratos de adesão.
É patente, nesta construção, que valoração do conteúdo do contrato, à luz dos ditames da boa fé, e identificação e qualificação de um desequilíbrio relevante são uma e a mesma operação. Não estamos perante a
coexistência de dois factores autónomos, de aplicação cumulativa,33 mas perante um binómio incindível, em que cada um dos termos remete para o outro, estando, de certa forma, o juízo sobre um implícito no juízo que sobre o outro se faça. As duas referências interpenetram-se e fundem-se num único parâmetro de valoração34: o desequilíbrio normativamente relevante é aquele que se coloca em contraste com a boa fé.
De modo que não há desequilíbrio que justifique a ineficácia que não seja, ao mesmo tempo, de per si, uma manifestação de contrariedade à boa fé, pela elementar razão de que aquela valoração é guiada pelos
Isto não quer dizer que a referência ao princípio seja completamente inócua e desnecessária, nada acrescentando ao conteúdo prescritivo da norma de controlo. Alguns assim o entenderam.37 E essa avaliação pode compreender-se, à luz da ideia de que a exigência de um conteúdo não significativamente desequilibrado representa uma concretização da boa fé, um subprincípio já permeabilizado pelo particular contexto aplicativo dos contratos de adesão. Em face dessa indicação mais precisa do específico alcance do princípio, neste campo, dispensar-se-ia a sua invocação,
padrões normativos da boa fé.35 Não se
concebe, designadamente, que um conteúdo julgado excessivamente vantajoso para o utilizador da cláusula seja ainda conforme com a boa fé – a mesma boa fé que forneceu o critério daquela apreciação.36
33 Nesse sentido, expressamente, XXXX/STÜBING, ob. cit., 150, acrescentando que “o § 9 quer apenas deixar claro que um prejuízo inadequado do aderente, em condições negociais gerais, viola os ditames da boa fé”.
34 Melhor do que nenhuma outra, a formulação do art. 1437.º, 1.ª parte, do Código Civil do Québec traduz isso mesmo: “est abusive toute clause qui désavantage le consommateur ou l’adhérent d’une manière excessive et déraisonnable, allant ainsi à l’encontre de ce qu’exige la bonne foi; […]”
35 Como diz, de forma paradigmática, XXXX XXXXXX, “o prejuízo desproporcionado representa o ponto de vista específico à luz do qual deve aqui concretizar-se o imperativo geral da ‘boa fé’” – Allgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts, 7.ed. München, 1989, 569.
36 V. XXXXX XXXXXXXX, “The Community Directive on Unfair Terms and National Legal Systems”, European Rev. of Private Law, 1995, 278-279: “The principle of good faith is not a
supplementary requirement that must be added to the criterion of ‘significant imbalance’ as some authors seem to consider. Let us be clear: there is no way that a term which causes a ‘significant imbalance in parties rights and duties arising under the contract to the detriment of the consumer’ can conform with the requirement of ‘good faith’. Indeed, the opposite is true: a term is always regarded as contrary to the requirement of ‘good faith’ when it causes such an imbalance”. Manifestando o temor de que a referência à boa fé possa ser vista como impondo uma “procedural barrier”, XXXXXXX XXXXXXX, “Good Faith in Consumer Contracting”, in BROWNSWORD/HIRD/XXXXXXX XXXXXXX, Good
Faith in Contract, Dartmouth, 1999, 94.
37 Na doutrina alemã, GRABA, in SCHLOSSER/ COESTER-WALTJEN/GRABA, Kommentar zum Gestez zur Regelung der Allgemeinen Geschäftsbedingungen, Bielefeld, 1977, anot. 15 ao § 9 (“o preceito não teria outro conteúdo se as palavras “contra os ditames da boa fé faltassem”), KÖNDGEN, “Grund und Xxxxxxx xxx Xxxxxxxxxxxxxxxxx xx XXX-Xxxxx”, XXX, 0000, 949; na doutrina italiana, PARDOLESI, “Clausole abusive (nei contratti com consumatori): una direttiva abusata?”, Il Foro Italiano, 1994, col. 147, XXXXX XXXXX, “Profili comparatistici delle clausole vessatorie”, Europa e diritto privato, 1998, 99-100; na doutrina portuguesa, OLIVEIRA ASCENSÃO, “Cláusulas contratuais gerais, cláusulas abusivas e boa fé, ROA, 2000, 585-586, e CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., 864, n. 966.
que remete para uma mais indeterminada base de valoração.
Cremos, todavia, que essa referência conserva, apesar de tudo, virtualidades aplicativas próprias. Para além de princípio legitimador da aplicação de cânones normativos restritivos da liberdade contratual do predisponente (critério de intervenção), a boa fé pode funcionar ainda como Sachnorm, como fundamento e critério material de soluções.
De facto, dentro da (unitária) cláusula geral de controlo, cujo núcleo, não pode negar-se, é a causação de um prejuízo desproporcionado ao aderente, como resultado do conteúdo inequitativo da estipulação, a boa fé oferece-se como índice de qualificação e padrão de medida do desequilíbrio relevante. Para a difícil tarefa de, na falta de uma regra de proibição precisa,38 separar, de entre os conteúdos vantajosos para o predisponente, aqueles que não devem valer dos que podem ainda ser admitidos, a boa fé faculta os pontos de vista valorativos, auxiliando na delimitação do âmbito da ineficácia.
E a imprescindibilidade desse contributo ressalta com evidência se tivermos em conta que não está em causa uma gradação puramente quantitativa, digamos assim, dos desequilíbrios contratuais, mas uma apreciação da inadequação do conteúdo, para além de certo limite, aos interesses coenvolvidos.
A materialidade da regulação jurídica, apontada como um dos vectores essenciais da boa fé,39 permite, muito em particular,
38 Isto é, sempre que não estejamos perante uma cláusula absolutamente proibida (arts. 18.º e 21.º do DL n.º 446/85).
39 Por MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no direito civil, Coimbra, 1984, 1252 s.
afastar-nos, na valoração da existência e na qualificação dos desequilíbrios, de uma perspectiva puramente formal, de uma contabilização mecanicista de direitos e deveres que, de cada um dos lados, se dispõem. Se seguíssemos tal perspectiva, estaria, por exemplo, vedado considerar abusivas as cláusulas bilaterais ou recíprocas, isto é, aquelas que, em abstracto, operam a favor e a cargo de ambas as partes, nos mesmos exactos termos, mas que, em termos de facto, só aproveitam a uma, tendo uma incidência prejudicial nos interesses reais da outra.
Pode dizer-se, em conclusão, que a boa fé abriu a porta a um novo campo normativo do direito dos contratos: o controlo directo do conteúdo dos contratos de adesão. Nesta derivação concretizadora, o princípio, longe dos seus cânones aplicativos tradicionais,40 está funcionalmente associado à ideia de equilíbrio e equidade contratual41:
40 Destacando os diferentes alcance e função do
§ 9 da AGB-Gesetz em relação aos §§ 242 e 157 do BGB, XXX XXXXXXX escreve: “Contract clauses are limited according to standards from outside the contract and voided in case of conflict. Both elements are alien to the tradition of good faith” (“Good Faith: Interpretation or Limitation of Contracts? The Power of German Judges in Financial Services Law”, in BROWNSWORD/HIRD/XXXXXXX XXXXXXX, ob.
cit., 285). Relutante, aparentemente, em acolher esta nova dimensão da boa fé, o Autor considerara que a 1.ª secção da AGB-Gesetz , reguladora do controlo do consentimento e dos critérios de interpretação, e onde não se contêm as normas de controlo do conteúdo, poderia ser chamada “the true good faith part” do diploma (ob. cit., 284).
41 “Equidade”, entenda-se, com a mesma denotação que o conceito tem no âmbito do art. 400.º, n.º 1, do Código Civil português. Neste contexto, como bem salienta XXXXXXXX XXXXXXX, “juízos de equidade” equivale a “juízos de razoabilidade” (“A cláusula do razoável”, Obra esparsa, cit., 485- 486, n. 49). Já ESSER referia a “função de equidade”
as cláusulas abusivas são-no porque gravosamente inequitativas, sem mais,
da boa fé, identificando-a, cremos, com a função correctiva aqui em jogo (Schuldrecht, 2.ed. Karlsruhe, 1960, 99). Na doutrina italiana, é frequente a utilização do conceito associado ao da boa fé, para exprimir exigências de equilíbrio e de justiça contratuais, de um “equo contemperamento degli interessi delle parti”, de que fala o art. 1371.º do Codice Civile – cfr., por exemplo, XXXXX XXXXXXX, ob. cit., 16 (“la valutazione secondo ‘buona fede’ há qui il significato non tanto di um giudizio […] sul comportamento della parte che a proposto la clausole in questione […], quanto di un test of reasonableness sul contenuto della clausole, cioè un significato che si approssima al concetto pragmático di equità”), KLESTA-DOSI, “ La transposition de la directive 93/13 relative aux clauses abusives en droit italien”, Rev. européenne de droit de la consommation, 1995, 152, XXXXXXX XXXXXXX, ob. cit., 31, XXXXXXXX XXXXX, “L’equità
del codice civile e l’arbitrato di equità”, Contratto e impresa, 1998, 489, XXXXXXXXX XXXXXXX,
“Arbitrato di equità ed equilíbrio contrattuale”, Riv. trimm. dir. proc. civile, 1999, 837 s., e XXXXXXXXX XXXXXXXX, “Note in tema di buona fede ed equità, Riv. di diritto civile, 2001, 537 s.; com uma visão mais diferenciadora, XXXXXX XXXXXX, “Il controllo giudiziale della liberta contrattuale: l’equità correttiva”, Contratto e impresa, 1999, 939 s., e XXXXXXXXX XXXXXX, L’ordine della legge ed il mercato. La congruità nello scambio contrattuale, Torino, 2003, 223 s. A própria legislação italiana acolhe o conceito de “equidade”, com este sentido: o art. 1.º, n.º 2, da lei de defesa dos consumidores e dos utentes (lei n.192, de 30 de Julho de 1998) reconhece aos consumidores o direito “alla correttezza, trasparenza ed equità nei rapporti contrattuali concernenti beni e servizi”. Também na doutrina brasileira, e reflectindo o disposto no art. 51.º, IV, do Código de Defesa do Consumidor, se salienta que “a noção de procura de equilíbrio e equidade está inserida no princípio da boa fé” – XXXXXXX XXXX XXXXXXX, “Notas sobre o sistema de proibição de cláusulas abusivas no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Entre a tradicional permeabilidade da ordem jurídica e o futuro pós-moderno do direito comparado)”, Rev. trim. de direito civil, 2000, 54; no sentido da identificação do conceito de equidade, neste contexto, com o de equilíbrio contratual, cfr., da mesma Autora, Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais, 4.ed. São Paulo, 2002, 797.
porque significativamente desequilibradoras das posições contratuais.42
Um dado, pois, é seguro: independentemente de outros eventuais factores de ineficácia, a contrariedade à boa fé do conteúdo das cláusulas contenta-se com a valoração dos seus efeitos como excessivamente desequilibrados, à luz de padrões objectivos de razoabilidade e de justa conformação de interesses. As proibições de conteúdo são proibições de fixar, em contratos de adesão, estipulações que se desviem desses padrões, com prejuízo significativo para o aderente.
6 SINOPSE DO DIREITO PORTUGUÊS
Permita-se-nos uma curta referência ao direito português, que, estando, em geral, nesta matéria, muito próximo do alemão, apresenta, neste ponto, alguma singularidade. De facto, a cláusula geral de controlo (art.
15.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro) é um enunciado normativo simples, que se limita a declarar “proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”.43 A este primeiro nível, não encontramos nenhuma concretização prescritiva, que apresente expressamente o desequilíbrio do
42 Este sentido está bem expresso no art. 6:248 do Código Civil Holandês, norma que manda atender à “razoabilidade e equidade” (reasonableness and equity, na tradução inglesa), sendo pacificamente entendido que a fórmula remete para a boa fé.
43 Relembre-se que, dada a introdução do n.º 2 do art. 1.º, pelo DL n.º 249/99, de 7 de julho, não apenas as cláusulas contratuais gerais, mas também as “cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar” fazem parte do âmbito do diploma e, portanto, das normas que fixam proibições.
conteúdo como directa causa de ineficácia das cláusulas.
Sentindo o elevado grau de indeterminação desta norma e as dificuldades aplicativas que ela poderia suscitar, o legislador deu-se ao cuidado de fornecer, no artigo seguinte, directrizes de concretização: para ajuizar da contrariedade à boa fé devem ponderar-se “os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada” e, especialmente, a tutela da confiança (al. a)) e a efectivação do objectivo negocial (al. b)).
Ora, estes dois desenvolvimentos concretizadores utilizam parâmetros valorativos que correspondem ao modus operandi normal da boa fé,44 nada tendo a ver com as operações requeridas pelo controlo do conteúdo, propriamente dito.
O que está aqui em causa é a tutela da confiança do aderente: se o processo de formação ou o teor do contrato singular, ou o tipo contratual escolhido, indiciarem a produção de determinados efeitos contratuais, esses efeitos não podem ser contrariados por cláusulas inseridas por adesão. Mas a tutela da confiança está dentro do núcleo central da operatividade comum da boa fé, fornecendo um ponto de vista valorativo autónomo em relação ao aplicado no controlo do conteúdo propriamente dito.
Mas isto não significa isto que o controlo do conteúdo dos contratos de adesão, de um controlo do conteúdo que a
44 Pelo menos no entendimento comum. Recentemente, na sua dissertação de doutoramento, CARNEIRO DA XXXXX defendeu a tese da autonomização da responsabilidade pela confiança da responsabilidade pela violação de deveres de conduta segundo a boa fé – cfr. Responsabilidade pela confiança, cit., esp. 431 s.
ele atenda, em exclusivo, não tenha lugar no ordenamento português.
De facto, posto que o princípio geral e as suas concretizações não contenham expressamente nenhuma proibição directa de vantagens excessivas para o predisponente, ou, noutra formulação, de conteúdos excessivamente desequilibrados, em detrimento do aderente,45 os elementos histórico, sistemático e teleológico da interpretação abonam, de forma incontroversa, a sua consagração no nosso ordenamento.
Não é este o lugar para uma fundamentação exaustiva desta posição. Basta dizer que, só nesta compreensão se pode explicar que a violação da boa fé, a que se reporta a cláusula geral de controlo (art. 15.º), seja expressamente apontada, no art. 25.º, como fundamento da proibição de utilização futura de cláusulas, por sentença emitida em acção inibitória. Num processo deste tipo, efectiva- se o controlo abstracto, assim chamado porque as cláusulas deixam de ser encaradas como componentes do conteúdo de um determinado contrato, para serem valoradas em si mesmas, enquanto elementos de uma ordem contratual predisposta para uma generalidade de contratos. Sendo assim, só enquanto fonte de limites de conteúdo, desprendidos inteiramente de qualquer factualidade moldada pelo concreto contexto negocial – que, aliás, pode ainda não se ter configurado, na hipótese de a cláusula não estar ainda a ser utilizada no tráfego – a boa fé pode desempenhar esse
45 Para uma crítica dessa omissão, permitimo- nos reenviar para o nosso O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, cit., 568 s.
papel. Está posto de lado que ela intervenha aqui na sua tradicional faceta aplicativa, que implicaria uma mediatização ou contextualização pelos dados singularizadores de uma dada relação.
De resto, as directrizes de concretização do art. 16.º são fornecidas pelo legislador a título indicativo, sem a pretensão de esgotar o alcance aplicativo do princípio.46 De acordo com o corpo da disposição, elas limitam-se a especificar alguns dos “valores fundamentais do direito” aqui atendíveis, E entre esses valores não pode deixar de figurar o da justiça contratual, aquele que a contratação por adesão põe especialmente em cheque, e aquele cuja defesa está na génese da reacção normativa contra práticas negociais abusivas.
A conclusão a tirar é a de que o princípio geral de proibição de cláusulas contrárias à boa fé, fixado no art. 15.º, se desdobra num dúplice e diferenciado critério de valoração, podendo a sua inobservância manifestar-se de duas distintas (ainda que complementares) formas.
Uma delas integra-se perfeitamente num dos círculos funcionais comuns do princípio, traduzindo-se na violação de expectativas geradas pelo processo de relacionamento e pelos efeitos práticos normais do tipo contratual escolhido. A nulidade das cláusulas não se prende com o seu conteúdo intrínseco, mas com a divergência entre ele e o horizonte de representações e de expectativas do aderente quanto às consequências vinculativas do contrato.
46 Por isso, o legislador tem o cuidado de dizer que os valores enunciados nas duas alíneas são aqueles que especialmente devem ser ponderados.
No fundo, a ineficácia das cláusulas significa, nesta vertente, que elas cedem em face de outros elementos negociais ou circum-negociais mais atendíveis e fidedignos enquanto expressão do querer negocial ou enquanto factores de confiança. É a tutela da confiança, não a salvaguarda de um conteúdo contratual não excessivamente desequilibrado que aqui está em jogo. E tanto é assim que um conteúdo objectivamente proporcionado, em si mesmo, não “salva” a eficácia da cláusula, se ela atentar contra expectativas legítimas do aderente.
Mas, dentro da fórmula genérica do art. 15.º, omnicompreensiva de todas as vertentes aplicativas do princípio, cabe também aquela que é mais marcante do regime próprio dos contratos de adesão, ou seja, a consideração da boa fé enquanto fundamento e critério de limites à liberdade de estipulação. Estamos agora a falar da proibição directa de conteúdos contratuais, por razões atinentes apenas ao seu efeito potencialmente lesivo de interesses substanciais do aderente.47
Nesta faceta, actua a função de correcção e de controlo do princípio, ainda que com contornos próprios, tendo em conta a natureza dos contratos de adesão.
Mas o facto de as duas formas de “contrariedade à boa fé”, que o art. 15.º proíbe, darem origem à mesma consequência da nulidade não deve fazer esquecer que estão
47 Para uma aplicação jurisprudencial deste alcance da boa fé, cfr. o acórdão do STJ de 5 de novembro de 1997 (xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/000x.../), relatado por XXXXXXX XXXXXX, onde se afirma: “as cláusulas contratuais indiciadoras de um certo desequilíbrio material entre as vantagens auferidas, graças ao contrato, pelas partes, são contrárias à boa fé”.
em jogo distintos factores de apreciação, em distintos planos de controlo. O que, diga-se para concluir, não deve ficar sem reflexo quanto ao seu âmbito aplicativo.
Na verdade, no que diz respeito ao controlo abstracto, não há qualquer espaço para a tutela de expectativas, à luz das circunstâncias e elementos referidos na al. a) do art. 16.º, uma vez que estes se situam no quadro da relação singular, por natureza inexistente ou fora de consideração no domínio do controlo abstracto. Daí que a remissão genérica do art. 25.º também para a norma geral de controlo e seus parâmetros de concretização (arts. 15.º e 16.º) deva ser interpretada restritivamente, dela excluindo todos os factores atinentes à formação e teor do contrato singular (al. a) do art. 16.º). O controlo abstracto é, sempre, um controlo objectivo do conteúdo das cláusulas, em si mesmas e à luz do tipo contratual em que se inserem.48
Só no controlo concreto, em que a questão da validade é uma questão incidental na apreciação de um litígio atinente à execução de um contrato de adesão, estão presentes as duas dimensões da boa fé operantes neste domínio. À proibição de conteúdos
48 A observação pode ter interesse também no âmbito do direito brasileiro, onde o § 4.º do art. 51.º do Código de Defesa do Consumidor prevê, de igual modo, um controlo abstracto. Prescrevendo-se aí a nulidade para qualquer cláusula que “contrarie o disposto neste Código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbio entre direitos e obrigações das partes”, parece claro que é sobretudo este último parâmetro que tem aqui aplicação. Quaisquer outras pautas valorativas só podem ser consideradas, no âmbito do controlo abstracto, se não tiverem atinência a factores relacionais particularmente caracterizadores de uma dada vinculação contratual.
desequilibrados, em prejuízo do aderente, soma-se agora a proibição de frustração de expectativas legítimas. Mas só neste segundo plano cabe a ponderação de factores comportamentais, das formas de conduta influentes na formação dessas expectativas. Enquanto fundamento da proibição de vantagens excessivas, a boa fé é contrariada, sem mais, pela inobservância de certos limites de conteúdo.
7 AS CLÁUSULAS GERAIS DE CONTROLO DO CONTEÚDO NO DIREITO BRASILEIRO
Contrariamente aos direitos alemão e português, em que a cláusula geral de controlo do conteúdo dos contratos de adesão é de aplicação uniforme a todos os contratos de adesão, quer o aderente seja ou não um consumidor, no direito brasileiro, como todos sabemos, há regimes diferenciados para as relações de consumo, submetidas ao Código de Protecção e Defesa do Consumidor, e para as relações que não têm essa natureza, às quais se aplica o Código Civil.
Ademais, na ordem jurídica brasileira, todos os contratos de consumo, e não apenas os contratos de adesão, estão sujeitos ao controlo do conteúdo.
A cláusula geral de controlo consta do art. 51.º, IV, formulado em termos que, de certo modo, estão nos antípodas dos utilizados pelo legislador português: enquanto que este foi parco em palavras, optando por um enunciado minimalista, que omite o que devia explicitar, o art. 51.º, IV, caracteriza-se por uma certa hipertrofia das pautas de valoração. Pondo de lado a referência â iniquidade e à natureza
abusiva, que, em nosso juízo, são redundantes, indicam-se três critérios: a causação de desvantagem exagerada para o consumidor, a incompatibilidade com a boa fé e a incompatibilidade com a equidade.
Este conteúdo normativo complexo levanta dificuldades de articulação sistemática e de delimitação precisa dos círculos de operatividade de cada um dos pontos de vista valorativos. São de admitir sobreposições, pelo menos parciais, e, mesmo, alguma intermutabilidade funcional de conceitos.
Quanto à articulação da boa fé com os restantes elementos, e em particular com a colocação do consumidor “em desvantagem exagerada”, eles vêm indicados como critérios autónomos, qualquer deles suficiente para determinar a qualificação da cláusula como abusiva.
O grande mérito desta formulação, precisões conceptuais e sistemáticas à parte, é o de deixar perfeitamente claro que um conteúdo exageradamente desvantajoso para o aderente, só por si, é de molde a provocar a nulidade da cláusula. Podem ocorrer ou não outros factores de invalidade ainda inferíveis da boa fé, como, por exemplo, a violação de expectativas legítimas do consumidor, mas esses dados não funcionam como um requisito suplementar, conjuntamente requerido. Nessa medida se pode dizer que a “desvantagem exagerada” tem eficácia invalidante autónoma.
Mas isso não significa que esta pauta valorativa represente uma alternativa de sentido, em relação à boa fé, com natureza distinta desta. Como salienta CLÁUDIA LIMA MARQUES, “a noção de procura de equilíbrio e equidade está inserida no
princípio da boa fé”.49 De resto, no art. 4.º, a boa fé é expressamente associada à ideia de equilíbrio da relação contratual e no próprio art. 51.º, IV, a referência à equidade não pode deixar de ter essa conotação.
Sem dúvida que a ideia regulativa da boa fé não se esgota na contenção de desequilíbrios excessivos dos direitos e deveres contratuais. Daí que, querendo-se abarcar também as outras componentes, se tornasse indispensável uma referência directa à boa fé, como princípio de base e tronco comum de todos os prismas de valoração aqui actuantes. Referência tanto mais compreensível quanto é certo que, à época, a boa fé objectiva não estava positivada no Código Civil em vigor.50
Mas o destaque especial conferido às exigências de equilíbrio e proporcionalidade do conteúdo, como o aspecto mais saliente e específico da actuação do princípio, neste contexto, não significa que elas não se relacionem ainda com a boa fé. Ocasionar, pela conformação contratual, uma “desvantagem exagerada” à contraparte comporta sempre, no contexto aplicativo da norma, uma violação da boa fé. A experiência
49 Cfr. ob. loc. cit.
50 Com uma situação completamente diferente se defrontou o legislador alemão. Implantando-se o diploma específico sobre condições negociais gerais numa ordem jurídica onde amplamente se reconhecia a vigência multifacetada do princípio da boa fé, houve apenas que destacar a causação de um “prejuízo desproporcionado” como forma especial e particular de violação do princípio, neste contexto, sem necessidade de referenciar as outras projecções normativas consolidadamente aceites. Mas ninguém pôs em dúvida que a cláusula geral constante do § 9 da AGB-Gesetz é complementada pela estrutura principiológica que subjaz ao § 242 do BGB.
legislativa europeia, a partir do diploma alemão sobre condições negociais gerais, abona eloquentemente esta perspectiva.
De resto, só mediante a ponderação dos interesses contrapostos do utilizador da cláusula e do aderente se pode ajuizar se a desvantagem é exagerada ou se se contém dentro dos limites admissíveis. E não se vê como essa tarefa possa ser levada a cabo sem lançar mão de pontos de vista valorativos que só a boa fé pode proporcionar. Longe de ser um critério estanque aos influxos normativos da boa fé, a “desvantagem exagerada” só se deixa determinar, no seu alcance preciso, através de mediações orientadas por padrões de medida inferidos do princípio.
Pode, pois, concluir-se que não estamos, no art. 51.º, IV, perante uma enumeração de critérios distintos, contrapostos entre si, mas antes perante um desdobramento analítico de pontos de vista referíveis, em último termo, à boa fé, fonte inspiradora de todos eles.
Quanto ao regime que resulta do Código Civil de 2002, é sabido que este diploma contém regras específicas sobre os contratos de adesão – os arts. 423.º e 424.º – mas não uma cláusula geral de controlo do conteúdo a eles particularmente dedicada.
Todavia – no que constitui uma das suas mais relevantes inovações – positivou o princípio da boa fé, que dá conteúdo a várias cláusulas gerais. De entre elas, a que nos interessa considerar, para este efeito, é a constante do art. 422.º. Xxxx esta norma que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa fé”.
Esta cláusula geral tem um alcance genérico, que abarca todos os contratos e não apenas os
contratos de adesão. Por isso está formulada em termos de máxima indeterminação, limitando-se a acolher o princípio da boa fé, em todas suas direcções referíveis à conclusão e à execução de um contrato.
Mas, como sabemos, os princípios ramificam-se em subprincípios e em máximas decisórias mais particularizados, explicitantes das virtualidades normativas contidas na sua estrutura de base, em razão dos diversificados e contextualizados sectores de regulação. No quadro da prescrição genérica de actuação segundo a boa fé, há espaço para valorações diferenciadas, porque sensíveis às distintas configurações dos grupos de casos a conformar normativamente É, assim, tarefa do intérprete extrair do princípio, por inferência concretizadora, as soluções que traduzam adequadamente, nos vários campos de aplicação, a carga axiológica nele contida. Ora, já vimos que a desprotecção negocial, pelos mecanismos da auto-regulação, dos interesses do aderente justifica um tratamento limitativo da liberdade contratual da outra parte. O legislador brasileiro também o reconheceu, tanto no Código de Defesa do
Consumidor, como no Código Civil.
Por outro lado, também já constatamos que à boa fé se reconhece, entre outros, um papel de suporte e instrumento de tutela dos contraentes em situação contratual objectivamente inibidora da defesa dos interesses próprios. No domínio dos contratos de adesão, é quase universalmente apontada como uma sua ineliminável dimensão o servir de fundamento normativo de todos os limites de conteúdo necessários para paralisar a eficácia de termos contratuais excessivamente desequilibrados.
Sendo estas as coordenadas, metodológicas e valorativas, a atender, tudo justifica que, para esse efeito, se recorra directamente ao princípio normativo ou a uma cláusula geral que lhe dê expressão positivada, onde, como no direito brasileiro quanto aos contratos fora das relações de consumo, não se dispuser de uma cláusula geral de previsão restrita aos contratos de adesão. Foi essa a prática constante da jurisprudência alemã, anteriormente à promulgação de legislação específica.
Inserindo este alcance particular do princípio nos moldes genéricos do 422.º, somos levados a concluir que a obrigação de guardar a boa fé, na conclusão do contrato (entendida aqui, em termos latos, como abrangendo a elaboração dos seus termos) importa também, no âmbito dos contratos de adesão, não aproveitar abusivamente a iniciativa de formulação unilateral do seu conteúdo para obter vantagens exageradas, em lesão significativa dos interesses da contraparte.
A localização do art. 422.º, entre a consagração da liberdade de contratar “em razão e nos limites da função social do contrato” e as duas regras sobre os contratos de adesão, não será, deste ponto de vista, inócua, sugerindo antes uma leitura articulada, explicitante das projecções recíprocas.
Nesta óptica, o disposto no art. 424.º representa uma incidência particular da boa fé no domínio dos contratos de adesão, limitativa da liberdade contratual do predisponente. Não é por acaso, aliás, que normas análogas ao art. 424.º nos aparecem, noutros contextos sistemáticos e noutros ordenamentos, não como regras autónomas, mas como directrizes de concretização da cláusula geral de controlo do conteúdo. Tem,
desde logo, essa natureza, o disposto no art. 51.º, § 1.º, II, do Código de Defesa do Consumidor, que, apresentando um conteúdo próximo do do art. 424.º, expressamente se posiciona como uma orientação exemplificativa do alcance da fórmula “desvantagem exagerada”. E encontramos normas de idêntica natureza nos direitos alemão (§ 307, II, 2, do BGB), português (al. b) do art. 16.º do DL n.º 446/
85) e do Québec (art. 1437.º, 2.ª parte, do Código Civil51), designadamente.
Aceite esta conexão, há que admitir que o art. 424.º não traduz uma tipificação completa e fechada dos limites de conteúdo, mas apenas uma menção especial de uma cláusula de cunho intensamente lesivo. Daí que o alcance do princípio não se esgote nessa regra, até porque, como a moderna metodologia não se cansa de salientar, os princípios normativos nunca se deixam encerrar inteiramente nas malhas dos enunciados normativos que tipificadoramente os acolhem.
Seria, pois, um erro funesto considerar, por uma espécie de inferência a contrario sensu, que, nos contratos que escapam ao Código de Defesa do Consumidor, qualquer conteúdo que não caiba na previsão do art. 424.º deve, nos limites gerais, ser considerado admissível, por não chocar com nenhuma outra norma de proibição. Há que reconhecer, pelo contrário, que a claúsula geral do art.
51 Esta norma reza assim: “[…] est abusive, notamment, la clause si éloignée des obligations essentielles qui découlent des règles gouvernant habituellement le contrat qu’elle dénature celui-ci”. Ela integra a própria cláusula geral de controlo, exemplificando, como expressamente se diz, o seu alcance prescritivo.
422.º tem também esta função, funcionando como “norma de intercepção” de todas as cláusulas cujo conteúdo viola a boa fé, por exageradamente prejudicial aos interesses do aderente.
O reconhecimento desta componente tuteladora da cláusula geral do art. 422.º, numa leitura em perfeita sintonia com o valor constitucional de solidariedade – aqui solidariedade contratual, impositiva da suficiente consideração dos interesses da contraparte –permite ladear a polémica quanto à noção jurídica de consumidor e ao âmbito de incidência subjectiva do Código de Defesa do Consumidor.
Como é sabido, a doutrina brasileira divide-se, a este respeito, entre uma orientação finalista e uma corrente maximalista,52 situando-se, de um lado, os que negam e, do outro, os que afirmam uma “vocação expansionista” das normas daquele diploma.53 Mas, em nosso juízo, a tutela contratual
do aderente não consumidor não está dependente de uma aplicação analógica de princípios e regras de âmbito particularizado contidos no Código de Defesa do Consumidor. Na verdade, sendo estas normas a expressão concretizada, para as relações de consumo que regulam, de ditames gerais da boa fé, princípio básico, colocado no centro do sistema, é por irradiação directa do conteúdo normativo do princípio que
52 Cfr., por todos, XXXXXXX XXXXXXXX, “Código de Defesa do Consumidor, Código Civil e complexidade do ordenamento”, Rev. trim. de direito civil, 2005, vol. 22, III.
53 A favor dessa “vocação expansionista” se pronunciou XXXXXXX XXXXXXXX, “As relações de consumo e a nova teoria contratual”, Temas de direito civil, Rio de Janeiro, 1999, 203.
poderemos extrair soluções para os casos não explicitamente regulados. O trânsito não se faz aqui entre uma previsão específica e uma outra previsão também específica, criada pelo intérprete por consideração da ratio legis da norma aplicada. Faz-se antes por via indutiva, do particular para o geral, para um patamar mais elevado de ordenação, onde se revela o critério fundamentador e agregador do conjunto de soluções dele inferidas (expressamente) ou inferíveis.
Se de analogia se quiser aqui falar, não é, pois, de uma analogia particular, analogia legis, mas verdadeiramente de uma analogia juris, que opera com recurso à valoração geral hoje contida no enunciado normativo do art. 422.º e não a regras dela extraídas.
Dúvidas só se justificam quanto aos exactos pressupostos aplicativos e ao âmbito preciso do regime de tutela do aderente, fora das relações de consumo.
Poderá pensar-se em condicionar a aplicação desse regime a uma caracterizada situação de desnível de poder entre os dois contratantes. O sujeito protegido será então identificado com a pequena empresa, colocada na dependência económica da empresa com quem entra em relação e sujeita, por isso mesmo, ao seu Diktat contratual. Xxxxxx, então, que averiguar, em cada caso, se essa é, ou não, a situação.
Mas poderá optar-se, antes, por uma tutela generalizada de todos os contraentes “forçados” a aderir a cláusulas contratuais pelo outro preformuladas, sem possibilidade de influenciar o seu conteúdo. O elemento da previsão será a situação de adesão, em si mesma, pelo que a tutela é conferida, de plano, a todos os aderentes. O factor atendível é endógeno à relação, prende-se com o próprio
modo de contratar, sem consideração de variáveis atinentes à posição no mercado.
Deixamos a solução desta questão de segundo grau à doutrina e à jurisprudência brasileiras. Diremos apenas que a segunda orientação apresenta óbvias vantagens, do ponto de vista da certeza e da predicabilidade do regime aplicável. É ela a consagrada nos direitos alemão e português, onde todo o aderente, pelo simples facto de o ser, é protegido, ainda que se estabeleçam níveis diferenciados de protecção para o consumidor e o não consumidor.54
8 CONCLUSÃO
Uma sumária visão comparatística permitiu-nos constatar que as cláusulas gerais de controlo do conteúdo obedecem a formulações distintas. Ou conjugam o “desequilíbrio significativo” com a boa fé, como na generalidade dos direitos europeus, ou fazem uma referência seca ao princípio, como no direito português, ou apresentam o desequilíbrio e a boa fé como critérios autónomos, como no Código de Defesa do Consumidor brasileiro.
Mas, na variedade dessas formulações, um ponto é comum: independentemente da eventual ocorrência de outros factores de ineficácia, também eles atinentes à boa fé, basta o dar origem a uma desvantagem exagerada ou a um desequilíbrio significativo
54 Por confronto com o direito alemão, no direito português está mais esbatido esse desnível de tutela, pois ele só se faz sentir a nível das limitações específicas de conteúdo: certas proibições – as constantes dos arts. 21.º e 22.º do DL n.º 446/85 – só actuam quando o aderente é um consumidor.
para que a cláusula seja de qualificar como abusiva, com as consequências inerentes.
Esta conclusão torna claro que o princípio normativo da boa fé assume, nesta função, uma dimensão de critério de validade negocial, e validade a apreciar em razão da admissibilidade do conteúdo, em si mesmo, do ponto de vista do suficiente atendimento de interesses legítimos de uma das partes. Nessa medida, ela é fonte de proibições de conteúdo, em restrição directa à liberdade contratual.
Por isso, numa visão de conjunto, há que assinalar uma certa ambivalência da boa fé, na sua relação com a autonomia privada. De facto, ela assume aqui um papel notoriamente distinto daquele que desempenha em função hermenêutico-integrativa.55 Nesta dimensão, quer como padrão de interpretação, quer, mesmo, como fonte autónoma de deveres, não se pode dizer que o princípio dê corpo a valores contrastantes com a autonomia privada. Assegurando a realização de expectativas negociais legítimas, ainda quando não expressamente contratualizadas, a boa fé é um instrumento de maximização da utilidade contratual. Respeitando as escolhas iniciais feitas pelas partes, em que não interfere, a boa fé concretiza e prescreve as exigências comportamentais requeridas
55 Estas duas funções da boa fé são impressivamente contrastadas por XXXX XXXXXXXX, “Good Faith and Pluralism in the Law of Contract”, in Good Faith in Contract, cit., 41 s. Em função de controlo, ligada a cânones de justiça contratual, chama o Autor à boa fé “normative good faith”; em função integrativa, cujo conteúdo deriva das expectativas razoáveis das partes, é designada por “contextual good faith”.
a fim de que o contrato atinja o próprio escopo.56 É nesta linha que o vetusto Código Comercial brasileiro, de 1850, ao consagrar a boa fé como cânone interpretativo, no art. 131.º, a associa, em dizeres muito significativos, “ao verdadeiro espírito e natureza do contrato (…)”.
Não assim em função de controlo do conteúdo. A boa fé não tem aqui uma eficácia, por assim dizer, “desenvolutiva”, em termos de acrescentar à estrutura do contrato, e de acordo com a sua lógica imanente, o que lhe falta para cumprir a sua finalidade. Pelo contrário, a sua eficácia é invalidante, eliminando dessa estrutura o que está a mais, por contrariar padrões normativos que, neste contexto, são subtraídos à disponibilidade da autonomia privada.
Esta convivência, no interior do mesmo princípio, de pontos de vista em tensão valorativa ilustra bem, do nosso ponto de vista, o grande desafio que modernamente se coloca ao direito dos contratos. A ele compete, em simultâneo, garantir suficientes espaços de liberdade, para realização dos projectos individuais de cada um, contribuir para a eficiência dos processos económicos no mercado e atender às necessidades de tutela das categorias de sujeitos em situação de vulnerabilidade.
Encontrar o justo equilíbrio entre estes três planos é, verdadeiramente, uma “tarefa de Xxxxxxxx”, não sendo fácil apontar uma
via segura de consecução de resultados satisfatórios. Mais fácil é prevenir contra orientações inevitavelmente destinadas a falhar aquele objectivo.
Há, designadamente, que rejeitar, em absoluto, qualquer monismo de apreciação que conduza à selecção de um ponto de vista all-embracing, com pretensão de servir de suporte a um corpo completo de soluções integradas. E o risco aqui, nos nossos dias, é sobretudo o de uma hipereconomização do jurídico, instrumentalizando-o para uma transposição cega das impropriamente chamadas “leis do mercado”.
Contra as ilusões de XXXXX, o mercado não gera uma ordem espontânea, auto- formada, constituindo-se como um cosmos perfeito que não deve ser perturbado por uma regulação heterónoma. O mercado é, ele próprio, um constructum, o resultado de uma determinada normativização dos factores, mecanismos e processos que o estruturam e dinamizam.57 Essa normativização compete, em último termo, ao sistema jurídico, que não pode demitir-se, nos vários níveis e sectores da ordenação, do seu papel conformador e harmonizador, segundo os valores que lhe são próprios, dos interesses conflituantes na esfera do económico e do social.
O direito dos contratos participa nessa tarefa reguladora. E a complexidade das funções que assinalámos ao contrato aconselha o privilegiar de uma estratégia combinatória, de acolhimento de todos os valores relevantes e de busca de critérios de
56 Para uma caracterização da função hermenêutico-integrativa, cfr. XXXXXX XXXXXXX- XXXXX, A boa fé no sitema de direito privado, São Paulo, 1999, 428 s.
57 Para o desenvolvimento desta ideia, cfr., por todos, XXXXXXXX XXXX, L’ordine xxxxxxxxx xxx xxxxxxx, Xxxx/Xxxx, 0000.
concordância prática entre eles, sob inspiração de um assumido pluralismo axiológico, com observância dos ditames constitucionais.
Cremos que o instituto do controlo do conteúdo dos contratos, sob a égide da boa fé, é uma manifestação bem sucedida desse regulativismo combinatório. Ele deixa
uma suficiente margem de liberdade de conformação, evita os custos sociais de uma transferência ineficiente de riscos contratuais e actua princípios de justiça correctiva, obstando à eficácia de estipulações clamorosamente lesivas dos interesses de uma das partes.