RESUMO
Contratos, preços e possibilidades: arrendamentos e mercantilização da terra na fronteira sul do Brasil, segunda metade do século XIX*
Guinter Tlaija Leipnitz
Universidade Federal do Pampa
Bagé, RS, Brasil xxxxxxxxx@xxxxx.xxx.xx
RESUMO
O presente artigo aborda os contratos de xxxxxxxxxxxx xx xxxxx xxxxxxxx xx xxxxxxxxx xxx xx Xxxxxx (Xxxxxxxx rio-grandense) na segunda metade do século XIX, relacionando-os ao processo de mercan- tilização da terra que começava a se intensificar no meio rural brasileiro. Discute-se como a evolução da duração e do preço dos contratos ao longo do tempo, bem como sua compreensão enquanto em- preendimento agrário expressam as matizes desse processo. Conclui-se que essa prática de contratação agrária respondia a lógicas variadas, desde alternativas circunscritas ao domínio da pecuária extensiva tradicional até móveis econômicos de caráter mais modernizante.
Palavras-chave: arrendamento; mercantilização da terra; mercado de terras; contratação agrária; his- tória agrária.
ABSTRACT
This paper examines lease contracts established in Brazil’s Southern frontier (Campanha rio-grandense) in the second half of the nineteenth century by linking them to the process of land commoditization that started to intensify by then in the Brazilian rural environment. It discusses how the evolution of duration and price of contracts in the long term, as well as the perception of such contracts as agrarian enterprises, express the nuances of such process. The article concludes that this practice of agrarian leases responded to different logics, from options confined to the domain of traditional extensive cattle farming to more modernizing economic motivations.
Keywords: land leases; commoditization of land; land market; agrarian contracts; agrarian history.
* Este artigo apresenta de forma sintetizada algumas das discussões constantes no primeiro capítulo da dissertação intitulada Entre contratos, direitos e conflitos. Arrendamentos e relações de propriedade na transformação da Campanha rio-grandense: Uruguaiana (1847-1910), defendida em 2010 junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS) e elaborada com auxílio de bolsa financiada pelo CNPq.
Artigo recebido em 23 de janeiro de 2012 e aceito em 8 de maio de 2012.
Introdução
Neste artigo, pretende-se contribuir com os estudos relativos às transformações ocorridas no meio rural brasileiro na segunda metade do século XIX, por meio da análise dos arrendamentos de terra na fronteira sul do país (município de Uruguaiana, localizado na província — mais tarde estado — do Rio Grande do Sul), relacionando-os ao processo de mercantilização da terra que começava a se intensificar nesse contexto.
De fato, esse período abrange momentos e processos históricos importantes para a transformação de elementos estruturais da sociedade brasileira de então: o trabalho escravo e a terra. O “elemento servil” — expressão utilizada em documentos produzidos pelas autoridades e periódicos da época — sofreu um revés significativo com a promulgação da Lei Xxxxxxx xx Xxxxxxx em 1850, que extinguia o tráfico negreiro. O fim da escravidão (instituição com cerca de quatrocentos anos de duração no Brasil) passaria a ser uma realidade tangível entre os homens e mulheres oitocentistas, embora houvesse setores resistentes à concretização de tal quadro, retardando o máximo que podiam a abolição definitiva do cativeiro. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se um marco legal importante no que tangia à apropriação do território, a partir da Lei no 601 de 1850, mais conhecida como “Lei de Terras”: por um lado, definia-
-se a compra como único meio legal para a aquisição de terras; por outro, abria-se a possibilidade de legalização de parcelas do território apropriadas pelo expediente da posse, desde que respeitados alguns critérios específicos.
A abordagem clássica de Xxxx xx Xxxxx Xxxxxxx explica esse contexto histórico — e, especificamen- te, a promulgação da Lei de Terras — a partir da noção do “cativeiro da terra”, ou seja, a emergência de meios de impedimento do acesso às terras (que seriam “abundantes” até então no país) por parte dos trabalhadores, para que esses fossem impelidos a trabalhar nas terras dos grandes proprietários, substi- tuindo, assim, a mão de obra escrava1. Contudo, embora concorde-se com esse autor sobre a importân- cia das relações entre terra e trabalho nesse contexto, o fim da escravidão e o estabelecimento da Lei de Terras não resumem por si só a dinâmica da estrutura fundiária brasileira da segunda metade do século XIX2. Em muitas regiões do Império, se intensificava uma pressão sobre terras consideradas “devolutas” e de ocupantes sem a propriedade jurídica de suas frações. Isso se dava mesmo em territórios como a fronteira com Argentina e Uruguai, na chamada “Campanha” rio-grandense3, cuja ocupação efetiva era recente, remontando aos primórdios do século XIX4. Xxx, a principal atividade econômica era a pecuária extensiva5. Pesquisas demonstraram que, a partir de meados do século XIX, há uma mudança significa- tiva no regime fundiário na Campanha: a terra sofre uma altíssima valorização como bem patrimonial, ao mesmo tempo que decresce significativamente o número de possuidores de terra não proprietários,
1 XXXXXXX, Xxxx xx Xxxxx. O cativeiro da terra. São Paulo: Hucitec, 1996.
2 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Nas fronteiras do poder. Conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Niterói: Eduff, 2008.
3 A expressão “Campanha” é aqui utilizada como sinônimo da fronteira oeste do atual estado do Rio Grande do Sul. XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. Terra, trabalho e propriedade. A estrutura agrária da Campanha rio-grandense nas décadas finais do período imperial (1870-1890). Tese (Doutorado em História) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. p. 41. Para um histórico conceitual do termo, ver ibidem, p. 40-41, e XXXX, Xxxxxxx. Campanha gaúcha. A Brazilian ranching system, 1850-1920. Stanford: Stanford University Press, 1998. p. 18.
4 XXXXXX, Xxxxx. Apropriação da terra no Rio Grande de São Pedro e a formação do espaço platino. Dissertação (Mestrado em História) — Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Xxxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx, Xxxxx Xxxxxx, 0000. 5 A criação de gado estava destinada à produção de novilhos para as charqueadas localizadas em Pelotas, cujo charque — seu principal produto — era negociado com o resto do país através do porto de Rio Grande. XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Confins meridionais: famílias de elite e sociedade agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). Tese (Doutorado em História Social) — Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. p. 128; XXXX, S., Campanha gaúcha, op. cit. p. 65-68.
que antes representavam quase metade dos produtores rurais inventariados6. Em outras palavras, se conforma um quadro de uma importante limitação ao livre acesso à terra na região.
Figura 1
Mapa da divisão econômico-geográfica do Rio Grande do Sul em 1920
Fonte: adaptado de LOVE, Xxxxxx. Rio Grande do Sul and Brazilian regionalism, 1882-1930. Stanford: Stanford University Press, 1971 apud XXXX, Xxxxxxx. Campanha gaúcha. A Brazilian ranching system, 1850-1920. Stanford: Stanford University Press, 1998. p. 14.
O aumento da incidência de arrendamentos de terra no município de Uruguaiana — os contra- tos registrados em cartórios aumentam em seis vezes da década de 1870 para a de 1880 — atesta que essa modalidade de contratação agrária se configurou como alternativa de acesso à terra para parte dos produtores na Campanha7. No entanto, quais as características desses arrendamentos? Seriam eles
6 XXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxx. O domínio da terra: conflitos e estrutura agrária na Campanha rio-grandense oitocentista. Dissertação (Mestrado em História) — Programa de Pós-Graduação em História, Xxxxxxxxxxxx Xxxxxxx xx Xxx Xxxxxx xx Xxx, Xxxxx Xxxxxx, 0000. p. 24-27; XXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx. Confins meridionais, op. cit. p. 94-96.
7 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. Inserção dos arrendamentos rurais na transformação da Campanha rio-grandense: Uruguaiana 1847-1910. In: ENCONTRO DO GT HISTÓRIA AGRÁRIA XXXXX-XX, XX, 0000, Xxxxx Xxxxxx; XXXXXX, Xxxxxxxx
alternativas produtivas ainda confinadas pelos modos tradicionais da pecuária extensiva praticada na Campanha ou novas formas de relação com a terra, orientados por um incipiente uso mercantilizado desse bem? Essas questões serão problematizadas a partir da análise dos prazos de duração e preços de 693 contratos de arrendamento firmados em Uruguaiana entre 1847 e 19108, bem como da exploração do arrendamento como empreendimento agrário.
Prazos de duração dos contratos
A grande maioria dos registros designava, além da data da escritura, a data de início do contrato. Em apenas 37,9% das 856 escrituras com ambas as informações, o contrato começava a contar desde o momento de sua assinatura, e, em 156, os acordos passavam a viger depois de sua escrituração. Isso significa que dos contratos em que é possível conhecer o início, em cerca de 45% dos mesmos esse se dava antes da decisão de reconhecê-lo publicamente. Esses casos estão presentes em todo o período analisado evidenciando que, embora a intermediação do Estado nas relações entre os indivíduos apre- sentasse uma clara evolução, ela ainda era uma etapa secundária no estabelecimento dessas relações. Na grande maioria dessas situações o intervalo entre o início do contrato e sua oficialização não passava de dez dias, talvez um ou dois meses. Mas podia ser de mais de seis meses, embora isso se tornasse cada vez menos comum à medida que o século XX se aproximava.
Os prazos de duração9 dos arrendamentos de terra estão distribuídos no gráfico abaixo.
Gráfico 1
Escrituras de arrendamento de terra (geral): prazos de duração (1847-1910)
Fonte: Apers. 693 escrituras de arrendamento. Uruguaiana. 1o Tab. T/N 1-31, 1847-1910; 2o Tab.. T/N 1-4, 1870-78, e T/N 1-24, 1879-1908; 2o Distr., T/N
1-12, 1867-95, e T/N 1-3, 1895-1907; 3o Distr., T/N 1-3, 1895-1909; 4o Distr.,
T/N 1-5, 1896-1910; 5o Distr., T/N 1, 1901-02.
B. (Org.). Anais do II Encontro do GT História Agrária Xxxxx-XX. Xxxxx Xxxxxx, 0000 (Xxxxx eletrônicos).
8 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (a partir de agora, Apers). Uruguaiana. 1o Tab. (a partir de agora, Tab.). Livro de Transmissões e Notas (a partir de agora, T/N) 1-31, 1847-1910; 2o Tab. T/N 1-4, 1870-1878, e T/N 1-24, 1879- 1908; 2o Distrito (a partir de agora, Distr.), T/N 1-12, 1867-1895, e T/N 1-3, 1895-1907; 3o Distr., T/N 1-3, 1895-1909;
4o Distr., T/N 1-5, 1896-1910; 5o Distr., T/N 1, 1901-1902.
9 Aqui, adotaram-se os mesmos critérios utilizados por Xxxxxxx em seu estudo sobre os contratos rurais na campanha bonaerense da primeira metade do século XIX. O autor divide os períodos de duração dos contratos em “curtos” (um a três
Há uma clara recorrência dos contratos de média duração, com quase dois terços do total. Ob- servando-se as seis décadas, essa predominância se mantém, sempre com o percentual majoritário do período. Os contratos de curta duração somam um quarto do todo, oscilando ao longo dos 63 anos entre 14,3% e 33,3%. Já os contratos classificados como de longa e de muito longa duração somados contribuem com cerca de 10% do total agregado.
É muito importante ter ciência das limitações dessas fontes. Segundo ressalta Palacio,
[...] os períodos pelos quais se firmavam os contratos são reveladores sobretudo das práticas dos possuidores de terra com os arrendamentos e não necessariamente do tempo que efetivamente permaneciam os arrendatários na terra. Assim, por exemplo, muitos proprietários faziam contratos anuais que se renovavam todos os anos com um novo registro, o que na prática fazia com que o chacareiro [arrendatário] permanecesse pelo prazo legal ou ainda por mais tempo10.
De fato, não há garantia definitiva a respeito disso, principalmente na ausência de regulamentações legais mais bem definidas sobre os arrendamentos. Mas podem-se relativizar as preocupações desse autor ponderando que contratos celebrados ante os tabeliães, isto é, mediados pelo Estado, estavam em condições jurídicas menos precárias, pelo menos na comparação com contratos particulares ou verbais. No mínimo, é válido refletir acerca dessas evidências empíricas como tendências e possibilidades.
Apesar das recorrências, as durações dos contratos apresentavam uma grande diversidade. Encon- tram-se acordos de curtíssima duração, menores que um ano, até nove casos de dez anos, e em quatro oportunidades o prazo não foi determinado11. Embora sua maior incidência tenha se dado em 1901-10 (pouco menos do que um terço), contratos de curto prazo foram firmados desde a primeira década ana- lisada, e eram mais comuns do que os de longa duração. Isso coloca em questão o pressuposto de uma necessária redução do prazo dos arrendamentos à medida que um uso mais dinâmico da propriedade fundiária passava a se instaurar.
Isso igualmente revela-se na constatação da majoritária presença dos contratos de média duração, mesmo na última década analisada, o que evidencia um poder de negociação significativo dos arrenda- tários, pelo menos nesse quesito. Para Xxxxxxx, isso indica que “embora os proprietários pudessem ter a intenção de preservar seus direitos e ingressos através de contratos de curta duração que lhes permitiam reformulá-los ou dissolver as sociedades, só parecem ter alcançado esse objetivo de modo limitado”12.
anos), “médios” (quatro a seis anos), “longos” (sete a nove anos) e “muito longos” (dez ou mais anos). XXXXXXX, Xxxx. Los contratos rurales y la transformación de la campaña de Buenos Aires durante la expansión ganadera (1820-1840). In: XXXXXXX, Xxxx; XXXXXXXXXX, Xxxx Xxxxxx (Ed.). En busca de un tiempo perdido: la economía de Buenos Aires en el país de la abundancia: 1750-1865. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2004. p. 203.
10 “(...) los períodos por los que se firmaban los contratos son reveladores sobre todo de las prácticas de los terratenientes con los arrendamientos y no necesariamente del tiempo que efectivamente permanecían los arrendatarios en la tierra. Así, por ejemplo, muchos propietarios hacían contratos anuales que se renovaban todos los años con un nuevo registro, lo que en la práctica derivaba en que el chacarero permanecía en la tierra por el plazo legal o aún por más tiempo.” XXXXXXX, Xxxx Xxxxxx. La estancia mixta y el arrendamiento agrícola: Algunas hipótesis sobre su evolución histórica en la región pampeana, 1880-1945. Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. Xxxxxx Xxxxxxxxx”, Buenos Aires, n. 25,
p. 75, jan./jul. 2002. Disponível em: <xxx.xxxxxx.xxx.xx/xxxxxx.xxx?xxxxxxxxxx_xxxxxxx&xxxxX000000000000000000000 &lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 out. 2007. Tradução livre de Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx.
11 Há um desses contratos em que se explicitava que o acordo duraria “até que se proceda a medição e demarcação do mesmo campo”, e “depois de feita a medição e demarcação do campo os contratantes farão novo contrato e se faltar algum tempo para completar o ano certo do arrendamento não será levado em conta”. Apers. Uruguaiana. 1o Tab.. TN 21, 1892- 1895, f. 34v-35.
12 “(...) aunque los propietarios pudieran tener la intención de preservar sus derechos y ingresos a través de contratos de corta duración que les permitieran reformularlos o disolver las sociedades, sólo parecen haber alcanzado ese objetivo de modo limitado.” XXXXXXX, X., Los contratos rurales, op. cit. p. 203. Tradução livre de Xxxxxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. O autor
Se isso for levado em conta, então os arrendatários uruguaianenses, em sua maioria, gozavam de uma estabilidade no mínimo “razoável” para seus empreendimentos pecuários, pois dispunham de tempo suficiente para colher os frutos de sua atividade econômica. Segundo Xxxxxx e Nahum, no Uruguai, en- quanto as explorações agrícolas geravam rendimentos anuais, os retornos nos arrendamentos pecuários eram bem mais lentos — demorando uma cria de quatro a seis anos para se converter em novilho apto a ser comercializado13. Essa estabilidade, de certa forma, estava mais associada a uma modalidade tra- dicional de criação, reproduzindo a pecuária extensiva, de riscos mínimos, pouco sujeita a imperativos de uma dinâmica modernizadora.
Tal situação diferia os arrendatários brasileiros de seus pares uruguaios. No território da República Oriental, em 1900, os arrendatários compunham 37% de todos os “hacendados” que ali viviam14. Os contratos, geralmente curtos (de um a dois anos), e as poucas garantias de indenização por benfeitorias desestimulavam investimentos em cercas, aguadas e mesmo em casas de moradia. Esse capital de me- lhorias era, por outro lado, investido na mestiçagem do gado, sendo os animais de propriedade desses arrendatários15. Assim, embora compartilhassem de elementos da pecuária tradicional, como a explo- ração de grandes extensões de terra, os arrendatários não eram identificados como latifundiários, e sim como uma “classe média rural”, que deveria ser dinâmica, não por escolha, mas por necessidade16. Ape- sar disso, tanto a proporção quanto o caráter dos arrendamentos não eram os mesmos em todo o terri- tório. Os campos ocupados pela pecuária tradicional eram os que apresentavam as menores proporções de arrendatários e, além disso, reproduziam a faceta não capitalista também nos arrendamentos: esse era o quadro das regiões fronteiriças com o Brasil, onde os arrendatários correspondiam justamente a gran- des proprietários rio-grandenses que ocupavam estâncias no Uruguai, e não a médios empreendedores rurais17. Todavia, isso apenas reforça essa diferença, pois muitos dos arrendatários dessas regiões eram de Uruguaiana, o que enfatiza ainda mais o caráter tradicional dos arrendamentos do lado brasileiro.
Em estudos referentes a regiões argentinas, os autores relativizam os casos de contratos curtos, que eram na prática muitas vezes renovados, provendo de uma maior estabilidade os arrendatários, embora nominalmente seus contratos fossem de poucos anos18. De fato, em 24 casos dos arrendamentos estava prevista explicitamente a possibilidade de renovação, e, entre eles, dez eram contratos de curta dura- ção, atestando que esse tipo de prática, além de não ser incomum em Uruguaiana, estava diretamente associado aos prazos menores. Porém, igualmente raros foram os acordos prorrogados através de nova escritura — apenas 21: desses, três correspondiam a contratos curtos e seis a acordos de longa dura- ção —, lembrando que contratos de tempo mais prolongado perfaziam pouco menos de 10% do total de arrendamentos de terra. A maioria das prorrogações apresentava prazo igual ao dos seus contratos originais. Como na Argentina, os arrendamentos poderiam de fato ser estendidos, mesmo sem uma nova escritura. Entretanto, o possível não implica necessariamente o provável, e firmar um contrato de curta duração era certamente uma escolha surgida de interesses concretos, ao menos por parte dos ar-
verificou para os contratos rurais na campanha de Buenos Aires, entre 1820 e 1840, 50% de casos de média duração, 30% de curta duração e os restantes 20% para os contratos de longa e muito longa duração.
13 XXXXXX, Xxxx Xxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx. Historia rural del Uruguay moderno. Tomo VI. La civilizacion ganadera bajo Battle (1905-1914). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1977. p. 22-23.
14 Ibidem. Historia rural del Uruguay moderno. Tomo III. Recuperación y dependencia (1895-1904). Montevidéu: Ediciones de la Banda Oriental, 1973. p. 138.
15 Ibidem.
16 Ibidem, p. 139.
17 Ibidem.
18 XXXXXXX, Xxxxxx. Arrendamientos y formas de acceso a producción. In: XXXXXXXX, Xxxx; XXXXXXX, Xxxxxx (Compil.). Huellas xx xx xxxxxx. Xxxxxx, xxxxxxxxxxxx x xxxxxxxxxx xx xx xxxxx bonaerense. Tandil: XXXX, 0000. p. 257; XXXXXX, Xxxxxxx; XXXXXXXXXXXXX, Xxxxx. Historia del capitalismo agrario pampeano. Tomo I: La expansión ganadera hasta 1895. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2005. p. 415.
rendadores, estando em jogo para os mesmos a possibilidade de reaver ou não suas propriedades em um espaço pequeno de tempo. Desse modo, teoricamente, a diminuição da incerteza para os arrendadores
— encurtar o período de arrendamento — era o inverso do que desejavam os arrendatários — fortale- cer a estabilidade do contrato mediante um período de média a longa duração.
Preços e modalidades de pagamento
O mundo dos arrendamentos celebrados publicamente em Uruguaiana era monetarizado: 98% dos contratos exigiam o pagamento de renda em moeda, com quantias preestabelecidas19. Essas, em sua imensa maioria, deveriam ser pagas em réis; somente em 27 casos outra moeda foi solicitada, o peso oriental, vigente no Uruguai.
São 514 os contratos que permitem a obtenção do preço médio20 do arrendamento anual do hectare, compondo 73,4% dos 673 com propriedades localizadas em solo uruguaianense. São cinco entre 1847 e 1860, dois na década de 1860, doze no período de 1871-80, 98 no decênio 1881-90, 154 na década de 1890 e 243 nos primeiros dez anos do século XX.
Gráfico 2
Variação mediana21 do preço anual do hectare arrendado (1847-1910)
Fonte: 514 escrituras de arrendamento. Apers. Uruguaiana. 1o Tab.. T/N 1-31, 1847-1910; 2o Tab. T/N 1-4, 1870-78, e T/N 1-24, 1879-1908; 2o Distr., T/N 1-12, 1867-95, e T/N 1-3, 1895-1907; 3o Distr., T/N 1-3,
1895-1909; 4o Distr., T/N 1-5, 1896-1910; 5o Distr., T/N 1, 1901-02.
19 A exemplo da extensão de terras, essa é outra característica que difere em relação aos contratos analisados por Xxxxxxx, que em sua maioria não estabeleciam esses montantes. XXXXXXX, X., Los contratos rurales, op. cit. p. 203.
20 Além de contratos sem declaração de extensão, não puderam ser incluídos nesta análise a maioria dos casos de pagamento em pesos (poucos eram os que traziam uma correspondência em réis) e aqueles cujo pagamento em trabalho ou espécie não indicava uma equivalência em moeda. Para a realização de todas as análises envolvendo os preços dos arrendamentos, os valores foram convertidos de réis para libras, de acordo com a média anual do câmbio réis-libras, e depois reconvertidos para a moeda brasileira, deflacionando-os com base em 1848, ano do primeiro contrato que trazia, ao mesmo tempo, a extensão e o montante a ser pago. Assim, deste ponto em diante, todos os valores expressos estão deflacionados, exceto quando se explicitar o contrário. Os índices do câmbio médio anual réis-libras foram extraídos da tabela “Curso do câmbio na praça do Rio de Janeiro — 1822/1839”, presente no Anuário Estatístico do Brasil, ano V, 1939/1940, IBGE, Apêndice (Quadros Retrospectivos). p. 1353-1354.
21 Em virtude de alguns índices muito desviantes da maioria dos preços coletados, optou-se pela exibição da variação das medianas do preço anual do hectare arrendado, de maior precisão em relação às médias.
O preço anual mediano do hectare arrendado em Uruguaiana alcançou altos índices de valorização no decorrer desses mais de sessenta anos, especialmente da década de 1891-1900 para a de 1901-10, de 254%, quando o preço subiu para 1$044 réis.22
Esses índices devem, todavia, ser interpretados levando-se em conta as oscilações respectivas a cada década. As duas primeiras apresentam variações pequenas em seus preços: entre 1847 e 1860, o hectare arrendado variou de menos de um real (menor preço verificado em todo o recorte temporal) até menos de 80 réis, e na década seguinte, que conta com apenas dois registros, pagou-se 62 réis em um deles e 73 no outro. É a partir da década de 1870, contudo, que a gama dos preços se estende, mesmo porque o número de registros aumenta. Nesse decênio, por exemplo, caso fossem excluídos os dois maiores preços — 1$251 e 6$359 réis —, a oscilação se daria entre 130 e 450 réis o hectare. No período seguin- te, cujo preço mínimo foi de 68 réis, em 1886, e o máximo de 34.386 réis, no mesmo ano, a grande maioria dos registros apresentou preços na faixa de 100 a 1$000 réis. O mesmo ocorreu entre 1891 e 1900, embora com índices menores; o preço máximo de 123$556 réis por hectare — o mais alto de toda amostragem —, pago em 1891, contrasta com o mínimo, de 36 réis, acertado em 1896. No último período analisado, a proporção atinge um maior equilíbrio, com os preços entre 100 e 1$000 réis por hectare perfazendo metade dos casos; pagou-se pelo hectare arrendado anualmente o mínimo de 122 réis, em 1902, e o máximo de 21$911, no ano de 1905.
A partir do gráfico seguinte, as medianas e seus respectivos movimentos expressos no gráfico 2 po- dem ser mais bem problematizados, pois vê-se como os contratos estavam distribuídos entre as faixas de preço.
Gráfico 3
Escrituras de arrendamento de terra: distribuição percentual por faixas de preço anuais (1847-1910)
Fonte: 514 escrituras de arrendamento. Apers. Uruguaiana. 1o Tab. T/N 1-31, 1847-1910; 2o Tab. T/N 1-4, 1870-78, e T/N 1-24, 1879-1908; 2o Distr., T/N 1-12, 1867-95, e T/N 1-3, 1895-1907; 3o Distr., T/N
1-3, 1895-1909; 4o Distr., T/N 1-5, 1896-1910; 5o Distr., T/N 1, 1901-02.
22 O início da década de 1890 é marcado por crises financeiras no Brasil e na Argentina, provocando intensa depreciação cambial na economia desses países. Ainda que possa ser visto como consequência das respectivas políticas econômicas nacionais — “Encilhamento” brasileiro e “crise Baring” argentina —, e mesmo observada a mútua influência entre elas (o default argentino influiu na desconfiança dos capitais estrangeiros em relação ao Brasil), o contexto de crise deve ser
O preço do arrendamento anual do hectare em Uruguaiana, que não passava de 100 réis no se- gundo terço do século XIX, variou deste valor a 1$000 réis nas três décadas seguintes, e no primeiro decênio do século posterior sofreu uma alta em sua oscilação, entre 501 e 5$000 réis/ha na maior parte dos contratos escriturados. Ou seja, o núcleo que concentrou a variação do preço do arrendamento aumentou gradativamente nessas seis décadas: de menos de 100 réis entre 1847 e 1870, passando para a faixa de 100 a 1$000 réis nos anos de 1871 até 1900, chegando ao intervalo de 501-5$000 réis entre 1901 e 1910.
Como se vê, há um relativo padrão nos preços e em sua variação, que tendeu a acompanhar o cresci- mento do valor de venda da terra verificado no mesmo período na Campanha, a exemplo do município de Alegrete. A formação do preço do arrendamento anual da terra em Uruguaiana refletia esse aspecto: a terra, como bem de produção, alcançava um alto nível de importância. Porém, isso não esgota por si só a gama de fatores que incidia sobre o montante dessas rendas.
Em seu estudo sobre os arrendamentos realizados na província de Buenos Aires na primeira metade do século XX, Xxxxxx Xxxxxxx observa que a extensão arrendada influía no preço a ser pago: quanto maior a extensão, menor o preço23, ou seja, haveria uma razão inversamente proporcional entre a quan- tidade de hectares e o preço por unidade.
No caso presentemente estudado, a análise dos dados sugere que havia uma tendência de os ar- rendatários das menores frações arcarem com um custo maior na razão réis/hectare. Com exceção do período 1901-10, as extensões mais reduzidas custavam os preços mais altos, ainda que esses diferissem em termos absolutos de um caso para o outro. No entanto, excetuando-se a década de 1870, essa razão inversamente proporcional, se é que existia, agia de modo mais irregular ao inverterem-se os polos: os maiores arrendatários (em termos de extensão arrendada) não pagavam necessariamente as rendas mais baixas de cada período respectivo. É provável que nesses casos outros fatores incidissem com peso sufi- ciente para anular essa tendência.
Observando-se a década de 1901 a 1910, os índices desafiam com maior força a lógica da razão inversamente proporcional. Esse período coincide com a conjuntura de consolidação da República no Brasil, e especificamente no Rio Grande do Sul. Em termos de infraestrutura, há uma melhora conside- rável relativa aos transportes, a partir da inauguração do trecho de ferrovia que ligava Porto Alegre e a zona colonial a Uruguaiana, em meados da primeira década do século XX. No âmbito político, ocorre uma diminuição considerável no que concerne à emergência de conflitos armados, que eram corriquei- ros no território rio-grandense — e, especificamente, na região da Campanha — durante todo o século XIX24. Assim, à medida que o tempo avançava, elementos novos passavam a agir sobre a formação do preço do arrendamento de terra.
A que se deve essa relação de “frações menores = preço do hectare mais elevado”? Entre uma das possíveis explicações, há a de que as unidades produtivas menores estivessem ligadas a explorações agrí- colas, que demandavam prazos menores para o retorno dos ingressos, fazendo com que os proprietários
compreendido à luz da dinâmica mais ampla do capitalismo no século XIX, fortemente marcado pela exportação de capitais do centro para a periferia do sistema, e do crescente endividamento externo por parte dos países periféricos. XXXXXXXX, Xxxxxx Xxxx. A crise Baring e a crise do Encilhamento nos quadros da economia-mundo capitalista. Economia e Sociedade, Campinas, v. 19, n. 1 (38), p. 135-171, abr. 2010. Disponível em: <xxx.xxxxxx.xx/xxx/xxxx/x00x0/x00x00x0.xxx>. Acesso
em: 4 maio 2012.
23 XXXXXXX, X. Arrendamientos y formas de acceso a producción, op. cit. p. 257.
24 Para uma abordagem que relaciona o desenvolvimento capitalista do Rio Grande do Sul com o crescimento econômico e o contexto político do governo republicano, ver XXXXXXXX XX., Xxxxxxx. A transição capitalista no Rio Grande do Sul, 1889-1930: uma nova interpretação. Economia e Sociedade, Campinas, v. 13, n. 1 (22), p. 175-207, jan./jun. 2004. Disponível em: <xxx.xxx.xxxxxxx.xx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxxxx/xxxxxxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx-x-xxxxxxxxx/X00-X0-X00/ Herrlein.pdf>. Acesso em: 4 maio 2012.
pudessem elevar a renda a ser paga como um meio de compensação. Outra possibilidade é a de que houvesse uma espécie de consenso entre os contratantes sobre o limite do mínimo a ser cobrado em arrendamentos de extensões reduzidas, no qual a atuação de fatores não necessariamente econômicos tivesse um peso importante.
Tome-se a questão da existência das benfeitorias incidindo sobre o preço do arrendamento da ter- ra. Em 52,9% dos contratos, as propriedades são descritas sem benfeitorias, e nem são caracterizadas como um estabelecimento (fazenda, estância, chácara). No universo dos 514 contratos analisados neste momento — aqueles que descrevem extensão e preço —, a proporção se mantém próxima, em 57,4%. Em outras palavras, em mais da metade dos casos, somente a terra, de fato, era alvo de arrendamento.
Porém, qual era a proporção do valor dessas benfeitorias sobre a renda total das terras, isto é, sobre o preço de seu arrendamento? Essa é uma questão difícil de ser respondida, uma vez que na maioria das oportunidades, mesmo quando a extensão foi declarada, os valores da terra e de suas benfeitorias não estavam discriminados dentro do pagamento. Constituem essas raríssimas situações apenas oito casos, nos quais a proporção do preço pago pelo conjunto estabelecimento/benfeitorias oscilou de 4,3 a 40%, com maior incidência na faixa que vai de 10 a 20%25. Apesar da escassez de escrituras que trazem estas informações, é provável que haja outras em que não se descrevia estabelecimentos e benfeitorias, ainda que pudessem existir nas terras arrendadas. Todavia, o número é insuficiente para avaliar o real peso dessas edificações na formação dos preços a serem pagos; em todo o caso, uma separação absoluta entre o solo e aquilo que nele está edificado é irreal, pois da terra só se tira proveito quando ela é transformada pela ação humana em unidade de exploração.
A ideia de valor agregado à terra pela ação humana direta era compartilhada pelos próprios contra- tantes. A partir da década de 1890, mas de forma mais regular na seguinte, alguns contratos de arren- damento de terra especificavam a renda a ser paga com base no preço de medidas de superfície agrária. São 53 registros, quase todos estabelecendo preço por quadra de sesmaria (87,1 hectares), e alguns poucos por quadra quadrada (1,7 hectar) ou por légua de sesmaria (4.356 hectares). Dentro dessa gama de contratos, em grande parte o alvo do arrendamento eram frações de campo. Entretanto, não são poucos os casos em que, além das dimensões da superfície, eram descritas unidades produtivas como fazendas, estâncias, invernadas ou simplesmente estabelecimentos, e mesmo benfeitorias como casas, mangueiras e aramados, não obstante o pagamento fosse estabelecido “por quadras” ou “por léguas”, sem o tipo de separação de valores expressos nos exemplos do parágrafo anterior. Isso não implica re- futar a ideia de que a terra estava progressivamente adquirindo aspectos de mercadoria, como outras características do final do século XIX, já explicitadas, permitem assim pensar. Apenas é mais um ele- mento que torna complexo esse processo, bem como a própria relação de uso dos produtores para com a terra.
Ainda que a análise dos dados demonstre que não havia um vínculo direto entre o prazo de duração dos contratos e o montante que devia ser pago, as formas de pagamento e os prazos das prestações, por sua vez, exerciam alguma influência no estabelecimento do preço do arrendamento da terra. A presta- ção anual era a mais comum, correspondendo a 73% do total dos acordos. Nas duas primeiras décadas desta análise de preços, apenas em dois contratos ela não apareceu. O gráfico 4 expressa a distribuição dos contratos de acordo com os tipos de prestação em relação às faixas de preço por hectare, para as quatro décadas seguintes.
25 Apers. Uruguaiana. 2o Tab. TN 1, 1870-73, f. 11v-14; TN 4, f. 224v-225; 1o Tab. TN 27, 1904-06, f. 91v-92,
respectivamente.
Gráfico 4
Escrituras de arrendamento de terra: distribuição percentual da relação entre formas de pagamento e faixas de preço (1871-1910)
Fonte: 507 escrituras de arrendamento. Apers. Uruguaiana. 1o Tab. T/N 1-31, 1847-1910; 2o Tab. T/N 1-4, 1870-78, e T/N 1-24, 1879-1908; 2o Distr., T/N 1-12, 1867-95, e T/N 1-3, 1895-1907; 3o
Distr., T/N 1-3, 1895-1909; 4o Distr., T/N 1-5, 1896-1910; 5o Distr., T/N 1, 1901-02.
Embora o pagamento anual seja predominante em todos os períodos particulares, seu percentual foi diminuindo à medida que avançavam os anos, revelando que a diversificação das formas de paga- mento aumentava gradativamente. Não obstante, essas outras formas continuavam sendo muito menos frequentes do que a forma anual.
Em geral, grande parte dos contratos de semestralidade e mensalidade correspondia a valores mais elevados do que a maioria daqueles de anuidade. A renda mensal — exigida em 7% do total de arrenda- mentos de terra —, principalmente, apresenta algum tipo de ligação com as taxas mais elevadas sobre o hectare. Isso pode ser explicado, em primeiro lugar, com o fato de as mensalidades estarem associadas aos arrendamentos das frações menores de terra: em cerca da metade dos casos na qual ela foi exigida, a extensão arrendada era inferior a cem hectares, e o mesmo índice foi encontrado em relação ao total de arrendamentos de chácaras. Essas unidades produtivas, em geral, situavam-se nos subúrbios do espaço urbano de Uruguaiana, ou seja, sua localização era privilegiada em relação aos demais estabelecimentos rurais. Além disso, conforme já foi explicitado, as frações mais reduzidas geralmente eram oneradas com as maiores cifras na relação réis/hectare. A respeito dessa relação extensões pequenas/pagamento em mensalidades, quando da incidência de rendas mais elevadas, o primeiro polo exercia uma influência mais significativa, na medida em que os preços mais altos em arrendamentos pagos mensalmente eram os que necessariamente compreendiam frações reduzidas: todos os mensais acima de cem hectares não previam preços tão altos.
Porém, em situações com arrendamentos de dimensões idênticas, pagar anualmente ou pagar men- salmente poderia implicar diferentes preços a serem desembolsados pelo hectare26. No final de janeiro de 1908, Xxxxxx Xxxxxx estabelecia com Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, proprietário das seis quadras de
26 Tivemos o cuidado de escolher registros nos quais as extensões fossem idênticas, arrendadas no mesmo ano e sem descrição de estabelecimento ou benfeitorias.
sesmaria (522,7 hectares) — situadas na margem do arroio Itapitocaí — que arrendava, o pagamento mensal equivalente a 3$066 réis/hectares anuais, durante cinco anos. Cerca de seis meses depois, Xxxxx Xxx xx Xxxxxxx firmava um contrato com Xxxx Xxxx xx Xxxxxxxx pelo arrendamento de seis quadras de sesmaria da arrendadora por quatro anos, e pagaria anualmente 975 réis/hectares, valor 70% menor do que o exigido do arrendatário do primeiro caso, mesmo este tendo que desembolsar no ato da escri- turação do contrato uma quantia correspondente a um ano e meio de arrendamento27.
Outra forma de prestação, tão frequente quanto a mensal, era a semestral (presente em 6% dos con- tratos). Ainda que essa forma não estivesse associada às faixas de extensão menores, alguns exemplos ilustram que a razão réis/hectare era maior na comparação com os arrendamentos pagos anualmente. Em julho de 1901, no arrendamento de 1.089 hectares por Xxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx, de propriedade de Xxxxxx Xxxxxx xx Xxxxxxxx, o arrendatário pagaria semestralmente 523 réis/hectares (1$046 réis/ hectares por ano), durante o prazo de cinco anos. Menos de meio ano depois, o mesmo proprietário ar- rendava outro campo de iguais dimensões, cercado de arame como sua outra propriedade, agora a Xxxx Xxxxxxxxxx Xxxx’anna, pelo prazo de quatro anos, mas com o preço de 627 réis/hectares, 40% menor do que o referente ao outro contrato28.
Outros casos poderiam ser citados. Contudo, há contraexemplos, nos quais, em extensões idênticas, a maior renda seria aquela paga anual e não mensalmente. É bastante provável que uma série de outras variá- veis atuasse sobre eles, como localização — proximidade com estradas, rios, arroios e sangas. No primeiro caso, o arrendatário que deveria pagar maior renda tomava em arrendamento um campo banhado por um arroio, fator que o valorizava. Ainda assim, não é de todo equivocado afirmar que os prazos de prestação menores do que a anual agiam como um condicionante tendencial na elevação dos preços.
Pagar no início ou no fim dos respectivos prazos (ano, mês, semestre) era outro aspecto que poderia incidir sobre os preços. O mais frequente era o pagamento no final de cada período: de nove em cada dez casos. As ocasiões de exigência de pagamento no início dos prazos de prestação tiveram maior ocor- rência entre as semestralidades, compondo um terço do seu total.
Dentro da gama de contratos pagos em prestação (anual, mensal ou semestral), não era incomum a exigência de um adiantamento combinado com a quitação da prestação: aproximadamente um quarto dos registros, cuja maioria certificava que o arrendatário de fato havia desembolsado no ato da escritura a quantia determinada. Em geral, eram contratos de média duração (quatro a seis anos). A maior parte dos desembolsos de “entrada” não ultrapassava 25% do preço a ser pago por todo o prazo de arrenda- mento. A rigor, se é que essa condição fazia variar o preço a ser pago na comparação com um contrato de mesmas características, isso não fica evidente a partir dos dados. Essa cláusula de exigência de adian- tamento aparenta ter uma relação mais importante com a possibilidade de venda do campo arrendado (dos 31 com essa informação, 25% referem-se a contratos com pagamento no ato ou em adiantamento). As categorias designadas no gráfico 4 como “formas diversas” e “pagamento completo” envolvem modos de pagamento muito diferentes entre si, por isso é difícil estabelecer algum padrão em relação
aos seus preços.
A forma de pagamento em “espécie” ou “trabalho” — expressão usada aqui no sentido de edificação de alguma benfeitoria — constitui apenas nove casos no total de contratos de arrendamento de terra, sendo quatro do universo de 514 casos com preço analisado. Apenas três correspondem ao pagamento em espécie, entre os quais um tinha uma equivalência em moeda: um contrato de 1902, no qual o arrendatário de 261,4 hectares, por dois anos, pagaria com 125 ovelhas que possuía, arrendando-as ao proprietário do campo, por cerca de 60$000 réis anuais29. Em relação aos pagos com trabalho, o
27 Apers. Uruguaiana. 2o Tab. (2o notário). TN 24, 1907-09, f. 62v-63; 4o Xxxxx. XX 0, 0000-00, f. 80v-81v, respectivamente.
28 Apers. Uruguaiana. 2o Tab. (2o notário). TN 20, 1901-03, f. 12-12v; f. 57v-58v, respectivamente.
29 Apers. Uruguaiana. 4o Distr. TN 4, 1901-03, f. 22-22v.
primeiro, de 1874, com nove anos de duração, exigia a entrega das benfeitorias que nos mais de 1.089 hectares de campo o arrendatário viesse a realizar (embora não especificasse o tipo), previamente ava- liadas em 3:100$000 réis30. Os contratos com equivalência monetária, de 1885 e 1908, determinavam o tipo de benfeitoria que abateria os respectivos preços: cercas de arame31.
Embora fossem escassos registros como esses, cujo pagamento não se dava mediante desembolso financeiro, uma parte do universo total dos contratos “monetarizados” apresentava cláusulas com as quais se exigia dos arrendatários a construção de alguma benfeitoria — na maioria das vezes, o levan- tamento de cercas, a exemplo das situações relatadas, mas também outras, como aguadas, açudes ou construções destinadas ao trato com os animais ou às lavouras —, o que provavelmente somava-se às diversas condicionantes dos seus respectivos valores, algo muito difícil de quantificar. Nessas situações, o preço se caracterizava em um misto de pagamento monetário com trabalho.
Os arrendamentos de terra garantiam aos arrendadores o ingresso de montantes monetários fixos. Naquele contexto, dispor de moedas parecia ser algo muito importante, pois a escassez de metálicos era uma situação corriqueira entre os produtores32. Desse modo, as rendas cobradas em moeda implicavam uma entrada permanente de dinheiro para os arrendadores.
O arrendamento como empreendimento agrário
Financeiramente, qual o significado de se pagar renda para aceder à terra, comparando-se com outros custos com os quais os produtores tinham de arcar? Isso é algo muito difícil de ser estipulado, mas essa pergunta pode começar a ser respondida com o auxílio de informações extraídas das próprias escrituras e de outras fontes.
Em dez contratos de arrendamento de terra existia a cláusula de obrigatoriedade de venda da pro- priedade ao final do prazo de duração. Esses registros permitem comparar o preço de arrendamento anual com o valor venal da terra. Em 1847, o preço de um ano de arrendamento correspondeu a 6,7% do preço de venda; na década de 1880 (três registros), ficou em torno de 2,5%; entre 1891 e 1900 (três registros), variou de 3 a 12%; e na primeira década do século XX (três registros), oscilou de 6,3 a 30% (1905). Embora sejam casos escassos para uma generalização, são ilustrativos da grande distância que separava o acesso à terra via arrendamento da possibilidade de aquisição da propriedade.
Isso pode ser confirmado a partir de outros dados. Quando faleceu em 1884, Xxxx xx Xxxxxx Canto legou a seus herdeiros seis áreas de campo distintas, cujo hectare foi avaliado entre 7$610 e 9$513 réis33, valores cerca de trinta vezes maiores do que os 307 réis anuais pagos em média pela terra arrendada na década de 1880. No inventário de Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx, produzido em 1892, avaliou-se entre 1$475 e 4$426 réis o preço do hectare de suas três propriedades rurais34. Dois anos mais tarde, as três léguas
30 Apers. Uruguaiana. 2o Tab. TN 2, 1873-75, f. 55v-56v.
31 Apers. Uruguaiana. 2o Tab. (2o notário). TN 7, 1884-86, f. 78-79; 4o Distr. TN 7, f. 54v-56, respectivamente. Há ainda um contrato de 1893, no qual se expressava claramente em seu texto que no preço já ficavam abatidos os consertos que os arrendatários deveriam fazer nas cercas. Apers. Uruguaiana. 2o Tab. (2o notário). TN 14, 1892-94, f. 34v-37.
32 Por exemplo, em 1879, as autoridades municipais reclamavam ao presidente da província, por meio de um telegrama, da “falta de trocos” que tanto prejudicava o comércio do município e, em especial, a “classe pobre”. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (a partir de agora, AHRS). Uruguaiana. Correspondência da Câmara Municipal (a partir de agora, CCM), m. 341.
33 Apers. Inventário de Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx. Uruguaiana. 1o Cartório de Órfãos e Ausentes (a partir de agora, OA), m. 17, no 328, 1884.
34 Apers. Inventário de Xxxx xx Xxxxxx Xxxxx. Uruguaiana. 1o Cartório de Cível e Crime (a partir de agora, CC), m. 2, no 78, 1892.
de sesmaria possuídas por Xxxx Xxxx xx Xxxxxxxx foram avaliadas em 3$173 réis o hectare35. Na compa- ração com a renda média cobrada por hectare entre 1891 e 1900 — 295 réis —, essa corresponderia de 6 a 20% do preço de compra dessas terras. Já na primeira década do século XX, em 1904, o inventário provocado pela morte de Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx compreendia, entre outros bens, suas trinta quadras de sesmaria avaliada em 11$239 réis o hectare, um pouco menos do que os 13$998 réis avaliado para o campo deixado por Xxxx Xxxxxx Xxxxx em 190736. Ambos os valores ainda são mais de treze vezes maiores do que a renda média anual de 1$044 réis para o mesmo período.
A distância significativa entre o preço de compra da terra e o preço de seu arrendamento foi verificada por Xxxxxx e Nahum em relação ao Uruguai na virada do século XIX para o XX. Entre 1895 e 1905, o preço da terra uruguaia voltou a crescer, depois da queda causada pela crise do início da década de 1890. Entretanto, segundo os dados dos autores, é notável que o preço dos arrendamentos cresceu em menor proporção do que o da compra e venda. Isso reforça a atuação de fatores extraeconômicos na formação do preço da terra, tendo nos arrendamentos valores mais compatíveis com o fator produtividade em si37.
Outro tipo de comparação pode ser realizado, bastante próximo da realidade dos produtores de Uruguaiana. Trata-se do preço de venda do gado, pois sua criação era a principal atividade econômica não apenas do município, mas de toda a região da Campanha38.
Entre as décadas de 1850 e 1860, as autoridades municipais calculavam que os criadores em Uru- guaiana poderiam exportar anualmente 40 mil novilhos no valor de 20$000 réis cada um39, quantia que equivalia precisamente a 20$082 réis de 1848. O preço anual do hectare arrendado pago entre os mesmos anos, tomando-se os índices do gráfico 2, girava em torno de 26 réis por hectare, o que representava menos de 1% da quantia arrecadada com a venda de apenas um novilho; ou seja, os arren- datários desse período tinham no arrendamento um modo extremamente barato de empreendimento pecuário, ao menos no que concernia ao custo do acesso à terra.
Podemos imaginar uma situação mais concreta para ilustrar isso. Supomos um arrendatário de uma propriedade entre cem e quinhentos hectares, a extensão mais frequentemente arrendada ao longo das seis décadas, criando de cinquenta a 250 cabeças de gado (considerando um índice de lotação vigente na época de dois hectares para cada animal) na década de 186040. Calculando-se a partir de dados for- necidos pelas autoridades municipais, no mesmo relatório anteriormente citado, os criadores uruguaia- nenses poderiam repor cerca de 25% do seu rebanho e exportar 12,5%41. Logo, o arrendatário poderia comercializar entre cinco e 25 reses anualmente, arrecadando de 100$410 a 502$050 réis (com base na
35 Apers. Inventário de Xxxx Xxxx xx Xxxxxxxx. Uruguaiana. 1o OA, m. 21, no 416, 1894.
36 Apers. Inventário de Xxxxxxxxx Xxxxx xx Xxxxxxx. Uruguaiana. 1o OA, m. 24, no 474, 1904; Inventário de Xxxx Xxxxxx Xxxxx. Uruguaiana. Xxxxxxxxxx, x. 0, xx 00, 0000, xxxxxxxxxxxxxxx.
00 XXXXXX, X.; XXXXX, X. Historia rural del Uruguay moderno, op. cit. tomo III, p. 134-137.
38 No relatório enviado em 1854 ao presidente da província, segundo a Câmara Municipal, “Sendo a principal indústria [do município] o gado vacum”, o principal mercado para sua produção pecuária era “a praça de Pelotas para onde são conduzidos [os novilhos] por terra”. AHRS. Uruguaiana. CCM, m. 337. De fato, os criadores de gado da Campanha em geral obtinham grande parte de seus ganhos por meio da venda de novilhos para as charqueadas situadas perto do porto de Rio Grande. XXXXXXXXX, X. Confins meridionais, op. cit. p. 128; XXXX, X. Campanha gaúcha, op. cit. p. 65-68.
39 AHRS. Estatística geográfica natural e civil da riqueza de Uruguaiana. Uruguaiana. CCM, m. 338.
40 As discussões acerca das extensões arrendadas e dos índices de lotação dos campos estão em LEIPNITZ, Guinter Tlaija. Hierarquia fundiária entre os arrendatários de terra em Uruguaiana (1847-1910). In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADOS AMERICANOS: O BICENTENÁRIO DAS INDEPENDȋNCIAS (1810-2010), V, 2010, Passo Fundo.
Anais do V Simpósio Internacional Estados Americanos. Passo Fundo, 2010.
41 AHRS. Estatística geográfica natural e civil da riqueza de Uruguaiana. Uruguaiana. CCM, m. 338. Este índice é próximo à faixa de 20 a 25% apontada pela historiografia do Rio Grande do Sul para os séculos XVIII e XIX, além dos 9 a 10% referentes à possibilidade de venda dos animais sem que pusessem em risco seus rebanhos. XXXXXX, Xxxxx. O império português no sul da América: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.
p. 143-144; XXXXXXXXX, X. Confins meridionais, op. cit. p. 152-153; XXXX, X. Campanha gaúcha, op. cit. p. 54.
estimativa do valor do novilho feita pelos membros da Câmara Municipal). Portanto, o pagamento de uma renda anual entre 6$800 e 34$000 réis (dados do gráfico 2) corresponderia a aproximadamente 14% daquilo que era arrecadado pelo arrendatário em um ano, apenas com a venda dos novilhos.
Essa comparação tem um caráter hipotético, carecendo de maiores dados, como outros custos en- volvidos na produção, o capital investido na mão de obra, no gado e em benfeitorias. De fato, como bem salienta Fradkin, os contratos de arrendamento, enquanto fontes históricas, permitem “pensar melhor as vinculações entre capital e terra que as relações entre trabalho e terra (...)”42. Todavia, ela ser- ve para se estimar o quanto esses arrendamentos representavam economicamente para os contratantes. Esses indícios sinalizam que os arrendamentos realmente poderiam se constituir em empreendimentos rentáveis para os arrendatários. Os arrendamentos, para além de formas de acesso à terra, poderiam abrir caminhos mais dinâmicos aos produtores, embora dentro dos limites da pecuária tradicionalmen- te desenvolvida na região.
Ainda que faltem maiores informações, os rendimentos possibilitados pelos arrendamentos de terra provavelmente variaram na medida em que a passagem do século XIX para o XX se aproximava. Como se viu, o preço médio da renda anual cresceu ao longo desse período, atingindo seu índice mais alto entre 1901 e 1910. Isso pode ter implicado uma redução nos ganhos dos arrendatários, pois a terra se valorizava muito mais do que os outros bens de produção, mesmo sendo essa valorização muito mais intensa em relação ao valor venal da terra, como ocorria no Uruguai. Ainda assim, o crescimento de sua incidência, principalmente na primeira década do século XX, permite considerá-lo como um empreen- dimento que poderia ser economicamente interessante para muitos produtores de Uruguaiana.
Certamente que os arrendamentos não podem ser explicados apenas como uma empresa agrária. A grande variedade de preços pagos pelo hectare arrendado anualmente indica que o montante da renda respondia a diferentes fatores, como o preço da terra e a dinâmica comportamental de produtores no mercado, e mesmo a elementos de caráter extraeconômico43.
Contudo, a sujeição a uma variedade de fatores não se resumia apenas à determinação das quantias que seriam pagas. O contrato como um todo se estipulava a partir de uma série de relações anteriores ao próprio arrendamento, nas quais elementos como controle e autonomia eram fundamentais. A tensão entre esses aspectos era o que ditava, em grande medida, a dinâmica dos arrendamentos e de outras formas de acesso à produção em outras regiões do Brasil, como na província do Rio de Janeiro, no sé- culo XIX. Em São Gonçalo, região de fronteira agrícola fechada, segundo Xxxxxx Xxxxx, a dificuldade desse acesso por parte de pequenos lavradores foi mediana, uma vez que por meio dos arrendamentos, vigentes desde o início do século, conseguiam desfrutar de uma autonomia relativa até pelo menos 1850, o que beneficiava ao mesmo tempo os proprietários com o melhoramento de seus campos através da edificação de benfeitorias44. A autonomia era possibilitada pelo fato de o tributo extraído em forma de arrendamento não comprometer os empreendimentos, uma vez que esses lavradores arrendatários possuíam escravos, fontes de renda capitalizada o suficiente para não compeli-los à aquisição de terras45. Assim, o arrendamento era buscado pelo arrendatário não necessariamente por altos retornos econô-
42 “(...) permite pensar mejor las vinculaciones entre capital y tierra que las relaciones entre trabajo y tierra (...).” XXXXXXX, X., Los contratos rurales..., op. cit. p. 198.
43 XXXXXXX, X. Arrendamientos y formas de acceso a producción, op. cit. p. 260-261.
44 XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx. Pelas “Bandas d’Além”: fronteira fechada e arrendatários escravistas em uma região policultora (1808-1888). Dissertação (Mestrado em História Social) — Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1989. p. 65 apud BARREIROS, Xxxxxx xx Xxxxx. Sistemas agrários na Velha Província: o processo de transição para o trabalho livre sob o signo da Modernização Conservadora (1850-1888). Topoi: Revista de História, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 30, jul./dez. 2008. Disponível em: <xxx.xxxxxxxxxxxx.xxx/xxxxxxx_ anteriores/topoi17/topoi_17_-_artigo3_-_sistemas_agr%C3%A1rios_na.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2010.
45 Ibidem.
micos, mas por seus baixos riscos: “(...) na região em questão alugar terras consistia em uma atividade rentável, ainda que não em termos de magnitude, mas em termos de segurança de aplicação”46.
Já em outra parte da província fluminense, na freguesia de Campo Grande, a situação dos arrenda- tários era diferente, marcada principalmente pelo elemento de diferenciação de status social, de acordo com o enfoque dado por Xxxxxxx Xxxxxxx. Estudando as formas de transmissão e herança entre as famílias daquela região, durante os séculos XVIII e XIX, a autora demonstra que os indivíduos estavam submetidos a uma hierarquia de direitos de uso dos bens deixados pelos falecidos, isto é, a um sistema no qual a regra era a desigualdade, refletindo as normas sociais próprias de sociedades de Antigo Re- gime47. Desse modo, o acúmulo e a qualidade dos direitos que o herdeiro teria sobre, por exemplo, as terras legadas pelo falecido, dependiam da expectativa da família e do futuro que a mesma projetava para o herdeiro dentro da hierarquia social. Esse aspecto reproduzia então a desigualdade do entorno so- cial para dentro da própria rede intraparental. Em tal cenário, mesmo quando mais ricos que sitiantes e “situados” (produtores sem propriedade jurídica da terra), os arrendatários integrariam o último degrau na escala dos direitos de uso e propriedade que abrangia os homens livres, correspondendo justamente a indivíduos que não estavam integrados nessa rede e que, por isso, pagavam uma renda “simbólica” em troca do uso da terra:
(...) os arrendatários, pobres ou não, parecem ter sido os “lanterninhas”, os últimos na escala dos direitos de uso, aqueles que não poderiam se valer de melhores relações com os senhores de terras nem com parentes pobres, compadres ou afilhados e que, portanto, deveriam marcar ritualmente seu direito mais fraco aos recursos de que necessitavam, por meio de pagamento anual. O baixo valor da renda anual devida, e o fato de a pagarem muitas vezes aos próprios sitiantes, reforça a irrelevância do valor monetário em si, tanto como motor de acumulação do senhorio quanto para a aferição da pujança econômica dos arrendatários, diante dos sitiantes. Os valores baixos, mas ciosamente controlados e disputados, remetem ao seu caráter ritual, na afirmação diante de todos da desigualdade de direitos. Nossa hipótese é que o arrendamento era só para quem não era “de casa”48.
Em vista disso, a autora conclui que o arrendamento, naquela sociedade, tinha funções majoritaria- mente “não econômicas”, de demarcação da diferença do status social entre os proprietários arrendado- res e os arrendatários, mesmo que estes pudessem também ser proprietários de outras terras.
[O arrendamento] deve ser lido segundo uma lente tradicional não econômica, ou moral, que hierarquizava os direitos de uso conforme o pertencimento a redes de parentela locais, marcava a posição desprivilegiada de muitos, e de certa forma, explicitava critérios excludentes dessa moral. Apenas nesse sentido pode ser explicada a diferença entre o sitiante ou o situado e o arrendatário, e não em termos de maior ou menor riqueza material de uns e outros49.
46 Ibidem.
47 XXXXXXX, Xxxxxxx xx Xxxxx. Engenhocas da moral: uma leitura sobre a dinâmica agrária tradicional (Freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, século XIX). Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.
48 Ibidem, p. 317.
49 Ibidem, p. 323.
Concorda-se com Xxxxxxx sobre a necessidade de se perceber o arrendamento como uma relação cujas normas e valores sociais caracterizavam como desigual, inclusive em casos de equiparação ou mes- mo sobrepujança material do arrendatário na comparação com o arrendador. De fato, um arrendatário em melhor situação financeira poderia ser desprezado por um pequeno proprietário, pois a forma como os contemporâneos concebiam a riqueza não se reduzia a questões de fortuna. Contudo, tanto para o caso estudado pela autora quanto para o presente, os fatores econômicos não podem ser facilmente des- prezados. Ao enfocar somente pela “lente tradicional não econômica”, Xxxxxxx parece enfatizar apenas as expectativas dos arrendadores, uma vez que as rendas que recebiam eram mínimas. E quanto aos arrendatários? Pagar quantias reduzidas para aceder à produção não se configurava como uma opção economicamente interessante? Os baixos custos implicados pelos arrendamentos, como foi verificado a respeito de Uruguaiana, mas também em regiões tão distantes entre si quanto a República Oriental do Uruguai e a província do Rio de Janeiro, pareciam empreendimentos cujos frutos não seriam de se desprezar, ao menos se comparados aos custos implicados pela aquisição de terras através da compra.
Conclusão
Em Uruguaiana, arrendadores e arrendatários de terra, de modo geral, estabeleciam contratos agrá- rios que não fugiam das práticas da pecuária tradicionalmente desenvolvida naqueles pagos. Aspectos como o tamanho das unidades arrendadas50, a predominância dos prazos de média duração e as presta- ções pagas anualmente indicam que os arrendatários encontravam nos arrendamentos vias alternativas de acesso à criação de gado, mas que reproduziam os procedimentos dos produtores proprietários.
Isso se deve também ao fato de que alguns arrendatários eram eles mesmos proprietários de outros campos. Desse modo, indivíduos proprietários-arrendatários não eram figuras incomuns entre os pro- dutores rurais do município. Nessas situações, o arrendamento possibilitava uma maneira de estender os expedientes da pecuária tradicional, tanto em campos contíguos aos de propriedade do produtor quanto em terrenos situados em áreas mais afastadas.
Todavia, os arrendamentos também eram, em outros casos, o principal — ou mesmo único — modo de aceder à terra para produtores em um contexto de gradativo fechamento do acesso direto a esse bem. Para eles, firmar um contrato desse tipo poderia refletir, mais do que uma opção, algo que se impunha diante de si como a única forma de manter uma autonomia produtiva em relação aos pro- prietários de terra.
Apesar desses elementos principais, os contratos apresentavam uma diversidade de situações em seu conjunto: arrendamentos agrícolas, grandes, médios e pequenos arrendatários, prazos curtos e muito longos, pagamentos em semestres, meses, ou outras frações de tempo. Contudo, muitas dessas caracte- rísticas variaram ao longo da segunda metade do século XIX, refletindo as transformações pelas quais o bem produtivo “terra” passava naquele período. Assim, os arrendamentos de curto prazo se tornavam mais recorrentes, bem como extensões mais reduzidas começaram a predominar entre as unidades ar- rendadas, e o preço do hectare sofreu uma alta valorização até a primeira década do século XX.
De certo modo, tais aspectos que emergiam entre os contratos parecem implicar uma maior dinami- zação da exploração da terra: talvez seja possível, a partir daí, começar a falar em características capitalistas dos arrendamentos; entretanto, esses aspectos eram apenas incipientes entre esses contratos agrários.
Para resumir, é importante ressaltar que os arrendamentos só podem ser compreendidos se não fo- rem reduzidos completamente em suas implicações, sejam elas a rentabilidade, a resposta ao fechamen- to da fronteira agrária ou a demarcação e reprodução de relações sociais cuja norma era a desigualdade.
00 XXXXXXXX, X., Xxxxxxxxxx fundiária, op. cit.