DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DO CONTRATO: DEZ ANOS DE UM DIREITO CONSTRUÍDO (ESTUDOS COMPLETOS)1
DA ESTRUTURA À FUNÇÃO DO CONTRATO: DEZ ANOS DE UM DIREITO CONSTRUÍDO (ESTUDOS COMPLETOS)1
Xxxxx Xxxxx† Xxxx Xxxxxx‡
Sumário: 1. Notas Introdutórias. 2. “Da estrutura à função” – da moldura da sociedade ao emolduramento social. 3. O histó- rico da função social: a teoria italiana à dogmática brasileira. 4. A função social no direito brasileiro: da propriedade ao contra- to (?). 5. A codificação civil e a funcionalização do contrato: a lógica do “em razão e nos limites... (art. 421 CC)”. 6. A con- cretização da função social pela atividade jurisprudencial. 7. Análise dos julgados. 8. Conclusões
1. NOTAS INTRODUTÓRIAS
presente estudo a que ora se lança pretende, em suma, traçar breves linhas acerca do complexo e paradoxal tema da função social do contrato, to- mando por base capítulo de artigo já publicado ante-
1 Texto original publicado em XXXXX, Xxxxx; XXXXXX, Xxxx. Da estrutura à fun- ção do contrato: dez anos de um direito construído. XXXXXX, Xxxxx; XXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxxxx Xxxxxxxxx. Temas relevantes do direito civil contemporâneo, p. 273-291. Nesta versão, apresentam-se os estudos completos, com a inserção de vários novos temas, análise de julgados do Superior Tribunal de Justi- ça brasileiro, bem como a revisão bibliográfica originária.
† Advogado Sócio de Popp & Nalin Sociedade de Advogados. Mestre em Direito Privado (UFPR). Doutor em Direito das Relações Sociais (UFPR). Professor Xxxxx- to de Direito Civil da UFPR, graduação e pós-graduação.
‡ Advogado Sócio da Mattos, Osna & Sirena Sociedade de Advogados. Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR). Licenciado em Letras Português/Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.
Ano 2 (2013), nº 12, 13983-14024 / xxxx://xxx.xxx-xxxx.xxx/ ISSN: 2182-7567
riormente pelos ora subscritores. Trata-se, verdadeiramente, como o próprio título sugere, de revisão e aprofundamento de trabalho já editado, a partir do que se pretende dar dois novos passos à pesquisa inicial: para além de verticalizar os escritos anteriormente apresentados, adota-se um propósito também concreto, de estudo de casos em que o princípio da função so- cial do contrato é aplicado como fundamento de decisões judi- ciais.
O tema da função social é eleito por duas características muito marcantes: a complexidade e a paradoxalidade. É tema complexo, na medida em que está imerso em uma gama de conceituações e imbricado em teorizações cujos estudos estão longe de chegarem a uma conclusão definitiva; também se mostra paradoxal, no sentido de que, ao mesmo tempo em que a sua incidência e a sua aplicabilidade nas relações negociais, ainda que não de forma unânime, são amplamente aceitas pela doutrina, não está nem ao largo de apresentar uma definição conclusiva e uma significação bem arranjada quanto à sua ope- ração e mesmo quanto à sua origem.
Dessa forma, o objetivo precípuo do trabalho aqui apre- sentado é, com base no que há de mais vanguardista na doutri- na da teoria geral das relações contratuais, avançar alguns pas- sos no estudo crítico do fenômeno da funcionalização do insti- tuto dos contratos, a partir da vigente codificação civil. Para tanto, dever-se-á, imprescindivelmente, perpassar por uma aná- lise histórica do instituto da função social, superando a funcio- nalização da propriedade até alcançar o contrato e a sua incon- testável socialização.
Um estudo dessa natureza, ainda que limitado à sua pos- sibilidade espaço-temporal, enfrentará diversos temas secundá- rios, que, de uma forma ou de outra, tangenciam o objeto prin- cipal aqui analisado. Isso quer dizer, portanto, que serão anali- sados, ainda que rapidamente, a origem conceitual e conjectu- ral da função social; o princípio da boa-fé e a sua correspon-
dência com a função social do contrato; a previsão constitucio- nal da função social e a funcionalização do, por assim dizer, “sacrossanto” direito de propriedade; a relativização da lógica da relatividade dos efeitos do contrato, entre outras inúmeras questões que, conjugadas, acabam por compor o tema central deste trabalho.
Especificamente, portanto, o presente estudo voltará olhos à origem/justificativa da sua previsão expressa no Código Civil de 2002 e à sua composição como elemento norteador das relações negociais. Para isso, adotar-se-á uma metodologia calcada na disjuntiva sincronia-diacronia, ou seja, analisar-se-á o instituto da função social sob a ótica da sua evolução históri- ca e ideológica até debruçar-se sobre a atual composição desta temática, em seus aspectos mais relevantes.
Delimitando-se o objeto central do estudo em termos de tempo e espaço, a função social será analisada a partir do sécu- lo XX até os dias atuais, transpassando-se pelas particularida- des da realidade jurídica europeia desta época, culminando no contexto civil brasileiro hodierno.
Estruturalmente, o estudo em questão será dividido em dois momentos principais, com a seguinte composição: a pri- meira parte será voltada à análise da funcionalização genérica dos institutos jurídicos, observando-se, particularmente, a evo- lução da função social. Preocupada com a realidade brasileira, essa primeira etapa do estudo procurará examinar a função so- cial dentro do contexto jurídico nacional, desde a sua incidên- cia constitucional no direito de propriedade até a recomposição das relações contratuais. Ainda nessa primeira etapa, analisar- se-á a realidade contemporânea da funcionalização dos contra- tos pela ótica da codificação vigente, atentando-se à pertinência da previsão explícita da função social do contrato pelo Código Civil de 2002 e, também, à relação intrínseca entre tal instituto e a diretriz principiológica da boa-fé.
O segundo bloco de estudos se voltará à percepção da
função social sob a ótica concretizadora. Tendo por principal ferramenta metodológica a análise de julgados, buscar-se-á reconhecer os contornos estruturais (ou a falta deles) dados pela jurisprudência pátria acerca da função social dos contra- tos. Não se deixa de lado o embasamento doutrinário para essa segunda etapa do estudo, o qual se apresentará pelo carro chefe das teorizações de Xxxxxxx XXXXXXXXXXX XXXXX e sua proposta de concretização da norma. Ao lodo deste teórico, a segunda parte deste trabalho ainda contará com as lições de outros grandes doutrinadores, voltados à tentativa de oxigena- ção do direito.
O “voo panorâmico” a que se lança neste espaço toma como premissa fundamental que todos os contratos, sejam eles civis, empresariais e, inclusive, os públicos são dotados de uma função social. Com efeito, pede-se vênia àqueles que negam a existência de uma função social ao contrato, sob qualquer ar- gumento (técnico-legislativo, ideológico, mercadológico etc.). Admite-se, e este trabalho é a prova disso, o debate sobre como a função social do contrato foi construída ao longo dos primei- ros dez anos de vigência do Código Civil pela doutrina e como foi ela recepcionada pela jurisprudência.
Metodologicamente, lança-se mão dessa disjuntiva estru- turo-funcional dos contratos para mais bem entender essa nova roupagem assumida pelo fenômeno contratual. Menos do que analisar a variável material e objetiva das relações contratuais, subsumida em uma perspectiva estrutural-normativa, com ânsia de totalidade e generalidade, dar-se-á atenção, em conjunto, ao aspecto subjetivo e dinâmico do contrato, vislumbrando a efe- tivação da sua função social no âmbito do caso jurídico concre- to, particularmente considerado2.
2 Valem-se, ainda que para fins exclusivamente metodológicos, os ensinamentos de Xxxxx XXXX, sociólogo político alemão, herdeiro da Escola de Frankfurt, que, em que pese ter aplicado tal disjuntiva estruturo-funcional a outro ramo do saber cientí- fico, de alguma forma beneficia e agrega o presente estudo, especialmente sob o âmbito da acuidade da metodologia adotada, do foco de análise, bem como do limite
O que se está a realizar neste trabalho é consagrar o Di- reito em movimento, dialético, plural e democrático. No con- junto histórico e dialético, buscar-se-á compartilhar o signifi- cado da função social do contrato idealizado pelos projetistas do atual Código Civil, respeitando o contexto e a perspectiva história deles, a partir do presente momento, numa fusão de horizontes (Gadamer), para autor e leitor terem a oportunidade de reconstruírem o texto e o contexto do Código Civil de 2002.
2. “DA ESTRUTURA À FUNÇÃO” – DA MOLDURA DA SOCIEDADE AO EMOLDURAMENTO SOCIAL
No início do século XX, vigorava no universo jurídico a doutrina do positivismo, cuja principal característica estava, fundamentalmente, na suficiência e completude do ordenamen- to jurídico posto, desvinculado da concepção de um direito natural e, também, do conceito de moral. Para essa corrente doutrinária, a validade da norma jurídica encontraria supedâneo no próprio sistema legislativo, não havendo que se socorrer de qualquer análise de cunho sociológico da norma que pudesse transcender os limites do ordenamento positivo.
Em outras palavras, para o positivismo “a legitimidade do direito (e do poder) fundava-se exclusivamente no fato de ser estabelecido de acordo com os processos constitucional- mente prescritos. Os seus valores de referência eram desprovi- dos de conteúdo (uma ética, um sistema de valores, uma crença religiosa, um sistema filosófico, uma visão de mundo) e apon- tavam apenas a necessidade de observar uma forma (constitu- cionalmente orgânica e formal)”3. Nessa toada, a estrutura do Direito era suficiente para legitimá-lo sendo o seu fim (o Direi- to sempre teve um fim) uma dada sanção negativa: dado A,
e da possibilidade desta pesquisa.
3 HESPANHA, Xxxxxxx Xxxxxx. Cultura jurídica europeia: síntese de um milênio, p.333.
deve ser B apregoava o maior defensor do positivismo jurídico, Xxxx XXXXXX, no campo da Teoria Geral do Direito. Ainda nessa linha formalista, mais importante de saber para que serve (o Direito) é saber como ele é feito. Em verdade, XXXXXX sempre sustentou que o direito não um fim, mas um meio e que o Direito tem uma estrutura, o que é diferente de afirmar que o Direito é ou não é uma estrutura4.
O mais assombroso da teoria kelseniana é a propagação da ideia de que a estrutura do Direito seria pura induzindo a Teoria Pura do Direito, decantada de influências ideológicas as quais são recorrentes a partir da indagação “para que serve o Direito?”, que é típica de um Direito funcionalizado. Contudo, a concepção da suposta neutralidade não aparta o Direito das várias influências ideológicas que concorrem no mundo políti- co, uma vez que a neutralidade traz em si uma perversa ideolo- gia, a da negação dela própria, com o fim de convencer outras correntes de pensamento sobre a inutilidade ou a inadequação do debate ideológico quando se trata de Direito. A negação da função social do Direito e dos seus institutos civis é um inegá- vel retrocesso ao Direito como (é) estrutura, puro e neutro, o que a nosso ver é inadmissível.
A relação entre o aspecto social e o formalismo jurídico (se é que se poderia cogitar uma relação dessa natureza) estaria contemplada em uma imposição vertical deste para com aque- le. Ou seja, era como se o ordenamento jurídico emoldurasse as condutas sociais, não havendo, à contrapartida, qualquer influ- ência determinante destas na composição daquele, concebido como sistema completo e suficiente em si. Desta forma, vol- tando os olhos para o positivismo jurídico e o seu impacto na formação europeia do Direito Civil, segundo a lógica (positi- vista) do discurso pandectista, “uma norma jurídica não teria vigência por ser moral ou útil, mas porque e apenas porque é
4 XXXXXX, Xxxxxxxx. Verso una teoria funzionalistica del diritto. In.: Dalla strutu- ra alla funzione: nuovi studi di teoria del diritto, p. 66.
uma norma jurídica, i.e., conforme ao direito. (...) A jurisdici- dade parece decorrer de valores internos ao discurso do direito, valores que a vontade política ou a utilidade social não podem subsistir”5.
Ainda nessa linha, mas historicamente posterior, surge a escola da jurisprudência dos conceitos, que, em síntese, redu- zia o direito a categorias racionais. Diferentemente do positi- vismo, portanto, a jurisprudência dos conceitos buscava uma construção jurídica sistemático-racional a partir do direito posi- tivo. Resumidamente, portanto, “para ambos [positivismo e conceitualismo] o direito positivo é um prius, mas enquanto o positivismo explica a lei, o conceitualismo constrói os concei- tos jurídicos pretensamente universais a partir dela”6. O que marca essas correntes doutrinárias, portanto, é a ênfase na completude do ordenamento jurídico, que imporia limitações ao âmbito social, sem dele receber qualquer influência decisiva de composição7.
Como reação a essas concepções positivista e conceitua- lista do Direito, surge a escola da jurisprudência dos interes- ses. Ainda no século XX, essa corrente já representava uma tentativa de oxigenação do ordenamento jurídico, que passou a ser encarado como resultado dos próprios anseios e interesses sociais, na busca pela resolução dos conflitos vigentes nesse mesmo contexto social8. De qualquer sorte, esta escola, mesmo
5 HESPANHA, A. M. Cultura jurídica europeia..., pp. 309-310.
6 XXXXXXX, Xxxxxxx X. Crisis de la razón jurídica, p. 65.
7 Em síntese, a concepção assumida por essa corrente doutrinária levava em conta a noção precípua de que a aplicação das normas jurídicas se deduzia do próprio siste- ma, desconsiderando os valores de ordem externa ao ordenamento jurídico. Desta forma, os juristas dessa época buscavam construir novos conceitos, “trazendo à consciência e à luz do dia proposições jurídicas que, ocultas no espírito do direito nacional, não se tinham ainda exprimido, nem na imediata convicção e na actuação dos elementos do povo, nem nos ditames da própria lei escrita, que patentemente só se vêm a revelar enquanto produto de uma dedução da ciência.” (XXXXXX, Xxxx. Metodologia da Ciência do Direito, p. 22).
8 Xxxx XXXXXX, ao citar Xxxxxxx, assinala que, para essa corrente, os conceitos estanques já não eram em si suficientes para explicar as circunstâncias da vida e, por
vanguardista em relação às anteriores, custava a se libertar to- talmente do aspecto positivista construído, na medida em que não apregoava uma análise autônoma dos interesses sociais, mantendo esta atividade analítica como uma mera etapa do processo hermenêutico legislativo.
Aos poucos, portanto, o que se viu foi uma conscientiza- ção de que o Direito transmutou-se em uma ciência de substra- to eminentemente social. Hodiernamente, as razões de índole conceitual e positivista já não mais dão conta da realidade jurí- dica construída. Aos poucos, passa-se à conclusão de que “as instituições jurídicas não se explicam a partir de si mesmas, só podendo ser compreendidas à luz daquelas idéias que orientam a direção política e cultural da sociedade”9. Em outras palavras, a realidade social, que era apenas emoldurada pelo ordenamen- to jurídico, passa, também, a emoldurá-lo, influenciando so- bremaneira na construção do Direito e, principalmente, no seu âmbito de aplicabilidade.
Gradativamente, a legislação deixa de se resumir ao seu aspecto estrutural, para ganhar ares de funcionalização. A ênfa- se no contexto conceitual e suficiente do ordenamento jurídico dá espaço à realização de institutos funcionalizados, cujo ponto precípuo é deslocado para a órbita dos seus efeitos e desdo- bramentos, valendo-se mais das consequências sociais deles decorrentes do que propriamente de suas definições sintáticas. Ao que se atesta, portanto, o fenômeno da funcionalização não é algo injustificado, surgido à própria sorte de suas diretrizes, mas, pelo contrário, representa uma reação do ordenamento jurídico às circunstâncias sociais que se escancaram face à rea- lidade normativa vigente10.
consequências, do Direito: “a vida não é o conceito; os conceitos é que existem por causa da vida. Não é o que a lógica postula que tem de acontecer; o que a vida, o comércio, o sentimento jurídico postulam é que tem de acontecer...” (XXXXXX, X. Metodologia da Ciência do Direito, p. 58).
9 XXXXX, Xxxxxxx. Novos Temas de Direito Civil, p. 03.
10 Xxxxxx Xxxxxxxxxxx ratifica tal posicionamento, ao mencionar que “la funzionalizza-
Sob outro vértice, em se tratando da origem da função social, não se pode esquecer que a concepção de função (em verdade são inúmeras11) recorre a estudos sociológicos e antro- pológicos, muito antes de qualquer introdução no Direito, des- de o início do século XX. Xxxxxxxx XXXXXX, ademais, ensina que a função se coloca em respeito a algo (“Funzione, rispetto a che cosa?”). Assim, se conclui que a principal função do Direito é a integração social (Talcott PARSON), conclusão a que se chega do ponto de vista dos interesses sociais. Por outro lado, se nos colocamos ao lado da função do Direito na ótica antropológica, podemos concluir que esta se dirige à satisfação de algum interesse individual, como a obtenção dos bens ne- cessários à subsistência. Portanto, teremos uma função em vista do sistema social e outra em vista da antropologia jurídica12.
Especificamente no campo do Direito, o corte teórico in- dispensável, em se tratando de função social, é Xxxxxx XXX- MANN13, que é mais conhecido pela sua perspectiva autopoié- tica do Direito, corrente de estudo para a qual dedicou os seus últimos dias e pesquisas, sem prejuízo de ser o grande renova- dor da teoria sobre os sistemas de Talcott PARSON, na década de 60 do século XX, refundando tais ideias na base da função do Direito, que pode ser sintetizada a partir da seleção de ex- pectativas comportamentais. Não estaria aqui, enfim, a gênese do cooperativismo contratual que reside na boa-fé objetiva e, também, da função social intrínseca do contrato?
zione quindi di questi concetti pur presenti nella legislazione costituisce momento qualificante per l´individuazione della normativa delle obbligazioni che anche se apparentemente neutrale è, in realtà, espressione dell´intero sistema socio- normativo.” Vide: Le Obbligazioni tra vecchi e Nuovi Dogmi, p. 39.
11 Sobre as inúmeras correntes funcionalistas sociológicas vide, por todos, XXXXX- XX, Xxxxxxxx. Funzione del diritto: saggio critico-ricostrutivo, pp. 3-33.
12 XXXXXX, Xxxxxxxx. L´analisi funzionale del diritto: tendenze e problemi. In.: Dalla strutura alla funzione: nuovi studi di teoria del diritto, pp. 111-112.
13 Xxxxxxx está para o funcionalismo do Direito tanto quanto Xxxxxx está para o positivismo estruturalista, podendo a obra de ambos os juristas ser comparadas em termos de grandeza intelectual. O construtivismo também foi uma das tônicas da obra de Xxxxxxx, merecendo destaque em vista da proposta deste trabalho.
Nesse ponto, é importante destacar que, no momento histórico das grandes codificações, em que ainda imperava a concepção positivista do Direito, não se pode assumir uma au- sência do aspecto funcional dos institutos, mas, sim, por conse- quência de uma opção cultural e política de sua época, uma renegação de sua relevância14.
Essa tendência à funcionalização dos institutos, que, no caso do Brasil, ganhou particular destaque na esfera do Direito Privado, causou uma grave crise na base do sistema jurídico, que se alicerçava (e ainda se alicerça) no projeto de grandes codificações.
Ciente de seu próprio conflito, o ordenamento jurídico, agora sob a égide de uma perspectiva funcional, passa a dar maior ênfase aos, assim chamados, microssistemas jurídicos, que parecem suprir de forma mais satisfatória os anseios hodi- ernos da sociedade. No caso específico do Direito Civil, por exemplo, a falência do Código Civil já era apontada por Xxxxx- xx XXXXX em 1983, ao diagnosticar que “já se percebe a revi- ravolta em suas funções, a ponto de dizer um dos mais lúcidos observadores da realidade jurídica, d´hoje que o Código Civil funciona agora como direito residual, a reger unicamente os casos não-regulados nas leis especiais, tendo perdido a sua fun- ção de direto comum, de núcleo da legislação privada e de sede da disciplina das relações entre particulares”15.
Na esteira do direcionamento funcional assumido pelo ordenamento, ainda sob o aspecto do Direito Civil, o fenômeno da repersonalização (e, consequentemente, da despatrimoniali- zação) foi decisivo nessa passagem paradigmática para o que
14 Nesse sentido, assinala Xxxxxxx Xxxxxx XXXXXXXX que “não se pode dizer que esses conceitos e figuras naquele momento não tivessem uma função. A perspectiva funcional, ainda que existente, era deliberadamente desprestigiada em virtude de um específico projeto conceitual de direito privado que era concebido.” In.: LEONAR- DO, Xxxxxxx Xxxxxx. A função social dos contratos: ponderações após o primeiro biênio de vigência do Código Civil. In: XXXXXXX, Xxxxxx. Arte jurídica, pp. 02- 03.
15 XXXXX, Xxxxxxx. Novos Temas de Direito Civil, p. 47.
se convenciona chamar, aqui, de “a era dos microssistemas”,
fazendo-se menção à teoria italiana de Xxxxxxxx IRTI16.
O cidadão, que o ordenamento jurídico tomava por indi- ferenciado, é, hoje, a pessoa concebida na sua acepção concre- ta, carente de necessidades, inseridas em contextos particulares de direitos e deveres (... expectativas comportamentais). E essa nova perspectiva, que não pode ser desconsiderada pelo Direi- to, só se mostra plausível de ser atendida pela lógica do orde- namento funcionalizado: o viés positivista e conceitual, consi- derado em si suficiente, não atende às demandas atuais dos sujeitos de direito, deixa de escancarar as mazelas e desigual- dades reinantes em nossa sociedade, escamoteia o jogo de inte- resses presente, de forma marcada, na trama social cotidiana, sombreia as opções ideológicas manifestamente assumidas pelo legislador. E é nesse cenário, voltando-se, uma vez mais, à rea- lidade brasileira, que se insere, ainda, o fenômeno da constitu- cionalização do Direito Civil.
A partir do advento da Carta Cidadã de 1988, a ordena- ção civilista nacional foi obrigada a abandonar a postura patri- monialista advinda da tradição do século XIX para, enfim, mi- grar para “uma concepção em que se privilegia o desenvolvi- mento humano e a dignidade da pessoa concretamente conside- rada, em suas relações interpessoais, visando à sua emancipa- ção”17.
A concepção do direito a partir da ótica exclusivamente estrutural já não se mostra mais suficiente. É necessário, por- tanto, atender e atentar à funcionalização dos institutos18, ainda mais no âmbito do Direito Civil, sob pena de transformar a
16 Sobre o tema, emblemática é a obra: IRTI. Natalino. La edad de la descodifica- ción, 1999.
17 XXXXXX, Xxxx Xxxxx. O Novo Desenho Jurídico do Contrato – apresentação à obra de XXXXX, Xxxxx. Do contrato – conceito pós-moderno: Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p. 17.
18 Nesse sentido, é fundamental a obra de XXXXXX, Xxxxxxxx. Da estrutura à fun- ção: novos estudos da teoria do direito, que veio a ser traduzida da versão de 1977, anteriormente citada neste texto.
legislação vigente em uma “vitrine de modelos surrados e poí- dos”19.
Vencida esta primeira parte, indispensável ao ponto de chegada almejado neste trabalho, faz-se necessário promover uma análise mais pausada e vertical acerca da funcionalização dos institutos do Direito Privado, principalmente no que diz respeito à função social do contrato no ordenamento brasileiro, o que será mais bem desenvolvido adiante.
3. O HISTÓRICO DA FUNÇÃO SOCIAL: DA TEORIA ITALIANA À EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
A função social tal como concebida hoje no Brasil apre- senta traços da cultura jurídica italiana. Especialmente no que diz respeito à função social da propriedade e, mais tarde, do contrato, a doutrina italiana é vastamente utilizada pelos estu- dos concebidos em nosso país, ainda mais diante da decisiva influência assumida por esta cultura no desenvolvimento do Direito Privado pátrio.
A Constituição da República da Itália de 1948 já previa, em seu artigo 42, que a propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei “no intento de assegurar a sua função social e de torná-la acessível a todos.” E a origem para tal perspecti- va funcional parece estar, se aqui pudermos utilizar tal dicoto- mia, no momento de transição do modelo de justiça retributiva para o modelo de justiça distributiva.
A experiência histórico-político-jurídica italiana serve como luva para a nossa própria, sendo relevante compreendê-la para além do democrático texto constitucional, pois igualmente passamos por uma necessária constitucionalização do Direito Civil, na medida em que o vetusto Projeto de Código Civil, datado de 197520, tornou-se lei federal em 2002, sob a égide da
19 XXXXX, Xxxxxxx. Novos Temas de Direito Civil, p. 39.
20 Mesmo que se pudesse aduzir que o Projeto de Código Civil era dotado de caráter
mais duradoura Constituição republicana brasileira. Isso pois a codificação civil italiana vigente data de 1942 e é dotada de um comando de comportamento positivo do seu titular fundado na observância das obrigações estabelecidas pelo ordenamento. Desse texto, subentendia-se a função que a propriedade deveria realizar, a qual, à época (1942-1948), era de utilidade produti- vista, baseada na assim denominada solidariedade produtivista, por força do regime fascista.
Ainda na Itália, em 1948, sobreveio a vigente Constitui- ção Republicana, operando-se naquele país uma natural consti- tucionalização do Direito Civil: o Código Civil fascista preci- sava ser lido, interpretado e aplicado à luz da Constituição re- publicana. Nesse aspecto, a maior lição que se pode extrair dessa mutação política, civil-constitucional, nas lições de PERLINGIERI e RUSCELLO, é a de que “l´uomo è protteto non per cio che ‘há’ ma por cio che ‘è’; nella gerarchia dei valori, alle situazione patrimoniali si sostituiscono le situazioni esistenziali”21.
Eis a chave de leitura da função social dos institutos jurí- dicos que nos informa a doutrina italiana, apontando para uma nova forma de justiça social.
A concepção de justiça retributiva, hoje ultrapassada, en- contra fundamento na ideia de que "o dever do justo é garantir a cada um o que lhe cabe, ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza”22. Ou seja, nesta lógica impera o princípio da igual- dade formal, em que todos os indivíduos são considerados iguais em direitos e deveres, de acordo com a previsão legal-
ditatorial, tal ponderação cai no vazio, uma vez que extensas reformas do texto legislativo original foram propostas e acolhidas antes da aprovação do Código Civil. Ideologicamente, o Projeto não era igual ao Código Civil, ainda que ele traga as marcas indeléveis do individualismo e do patrimonialismo na sua estrutura, ameni- zadas pela vocação social funcionalista.
21 XXXXXXXXXXX, Xxxxxx. Manuale di diritto civile, p. 175.
22 XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx. Crainqueblle, Putois, Riquet et plusieurs autres recits profitables, p. 92. Apud. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxx. A Função Social do Contrato No Novo Código Civil, p. 94.
mente estabelecida, sem se atentar às reais condições a que estão submetidos os sujeitos concretamente concebidos.
À contrapartida, a justiça distributiva é aquela que não concebe a igualdade formal, mas, xxx, busca igualar material- mente a todos, tratando os desiguais de forma desigual, nos limites da sua desigualdade. Nesse contexto, a função social surge para garantir que o exercício do direito de propriedade (e, consecutivamente, o de contratar) não exclua aqueles que, pela imposição da própria seleção excludente do sistema, permane- cem à margem da proteção concedida pelo ordenamento jurídi- co.
A previsão codificada explícita da função social, portan- to, parece derivar, fundamentalmente, da tendência generaliza- da do Direito Privado de não apenas compatibilizar o princípio da liberdade com o da igualdade, “como também de buscar a expansão da personalidade individual de forma igualitária e o desenvolvimento da comunidade em seu conjunto, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade individual”23. Essa nova leitura, para além de ser consequência exclusiva da relei- tura do ordenamento jurídico vigente, é um desdobramento da recente figura estatal surgida: o Estado do Bem Estar Social.
Até a primeira metade do século XX, vigorou ao redor do mundo a figura pujante de um Estado negativo, ou seja, uma atuação estatal liberal, que se pautava em uma ausência, em uma não-intervenção na esfera privada dos indivíduos. Porém, a partir desse período, as mudanças sociais em todo o globo trouxeram consigo uma nova realidade: um Estado-garantidor, Estado de Bem Estar Social, cuja atuação comissiva se tornava imprescindível à superação das desigualdades sociais, que se agigantavam cada vez mais. E um dos principais marcos dessa nova realidade estatal, no Brasil, encontra-se, sem sombra de dúvidas, no advento da Constituição Federal de 1988; Consti-
23 TARTUCE, Xxxxxx. Função social dos contratos: do Código de Defesa do Con- sumidor ao Código Civil de 2002, p. 33.
tuição esta que “determinou ao Estado que ‘descruzasse os braços’ e atuasse concretamente na realidade social, fomentan- do, provendo, garantindo”24.
Por essa nova composição estatal, aqui especificamente no âmbito do Direito Civil,
o Estado requer um direito privado, não um direito dos particulares. Trata-se de evitar que a autonomia privada im- ponha suas valorações particulares à sociedade; impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis. Particularmente, trata-se de evitar a imposição a um grupo, de valores indivi- duais que lhe são alheios. Aqui faz seu ingresso a ordem pú- blica de coordenação, de direção25.
Muito se disserta sobre os aspectos intrínsecos da função social, mas pouco se debruça sobre o seu real significado con- ceitual para o ordenamento jurídico brasileiro. E é para essa tarefa que nos lançamos neste tópico em específico.
Sabe-se, à exaustão, que o conceito é uma tentativa me- todológica de se individualizar um determinado objeto de aná- lise. Academicamente, não se nega a sua salutar importância, mas, em verdade, é de se reconhecer que todo conceito limita em demasia a realidade em torno do objeto estudado. Sendo assim, se utiliza do conceito apenas para se ter uma referência, ainda que embrionária, do que se está a debater, haja vista que toda tentativa conceitual implica, necessariamente, na redução da complexidade do objeto conceituado, ainda mais quando se está diante de um tema de tamanho enredamento como o é o da função social do contrato.
O conceito de função social pode ser mais bem apreendi- do se separados os seus dois componentes. Para tanto, analisar- se-ão separadamente as noções de função e de social, para, consecutivamente, se tentar chegar a uma conclusão conjugada. Por função compreende-se, em parcas linhas, o papel ou
24 XXXXX, Xxx Xxxxxxxx Xxxxx. Direitos fundamentais sociais – efetividade frente à reserva do possível, p. 17.
25 XXXXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxx. Fundamentos do direito privado, p. 540.
o desempenho que determinado sujeito/instrumento deve assu- mir em determinada circunstância. No caso específico deste estudo, que trata do instituto do contrato, a função aqui anali- sada, portanto, deve ser o papel assumido pela relação contra- tual como mecanismo de circulação de mercadorias e riquezas na sociedade26, que vem a ser o mecanismo clássico de percep- ção do contrato, na sua função econômica (circulatório- atributiva).
Prejudicialmente ou condicionalmente à função circulató- ria atributiva tem-se a ideia de social, que remete, ultima ratio, aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, IV, como um dos fundamentos da República) e da soli- dariedade social (art. 3º, I, como um dos objetivos da Repúbli- ca). Ou seja, a socialidade, como adjetivo da perspectiva funci- onal, impõe ao contrato, agora funcionalizado, v.g., perseguir “a interesses extracontratuais socialmente relevantes, dignos de tutela jurídica, que se relacionam com o contrato ou são por ele atingidos”27.
Desta forma, ao se conjugar ambos os conceitos, no objeto adotado neste estudo, ter-se-ia a função social como o papel a ser desempenhado pelos contratantes de forma a, na vigência da relação contratual, fazer valer o direcionamento constitucional da solidariedade social. Em uma palavra, portan- to, todo contrato deve observar os efeitos refletidos entre as partes e, principalmente, perante terceiros, de modo a não
26 Efetivamente, pensar o contrato como mero instrumento de “troca de mercadorias e riquezas” pertence “ao museu do pensamento”, para utilizar a expressão de Clóvis do COUTO E SILVA (Vide Obrigação Como Processo, p. 36). Isso porque, no diagnóstico apresentado por Xxxxxxx XXXXX, o contrato, que servia apenas como meio de transferência de bens, “não criava riqueza; passou a criá-la” (XXXXX, Xxxxxxx. Novos Temas de Direito Civil, p. 108). Mesmo assim, usar-se-á essa con- cepção antiquada, porém didática, apenas para contextualizar o objetivo último que se quer alcançar com o presente estudo.
27 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas sobre a Função Social do Contrato. PDF. Disponí- vel em: xxxx://xxx.xxxxxxx.xxx.xx/xxx/xxxxxxxxxx00.xxx, p. 05. Acesso em: 20 de abril de 2013.
ofender aos interesses inicialmente alheios à relatividade do vínculo negocial.
Nesse particular, é importante frisar algo que será mais bem aprofundado adiante: a função social acabou por redimen- sionar a própria estrutura do contrato. A funcionalização do vínculo contratual, ainda mais com ao advento do norteamento principiológico da boa-fé, desloca-o do originário lugar ocupa- do no contexto de nossa sociedade, dando ênfase aos valores constitucionais da solidariedade e da dignidade da pessoa hu- mana, que, à acepção clássica do instituto, não vislumbrava tal possibilidade.
De qualquer sorte, este tema será objeto de análise mais adiante, devendo, por ora, permanecer-se apenas com a noção basilar do conceito de função social, que será imprescindível no momento em que se voltarão olhos exclusivamente ao âmbi- to dos contratos. Consecutivamente, o debate adentrará a esfera do Código Civil, para o fim de se analisar, mais detidamente, qual é a pertinência da previsão expressa da função social do contrato na codificação civil28, e o que essa escolha legislativa reflete no contexto do ordenamento jurídico vigente.
4. A FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO BRASILEIRO: DA PROPRIEDADE AO CONTRATO (?)
A primeira previsão expressa da função social no direito brasileiro de que se tem notícia data da Constituição Federal de 1967, em seu artigo 157, que qualificava como princípio da ordem economia e social “a função social da propriedade”29.
Ainda sob a égide de um pensamento oitocentista, a fun-
28 Apenas para se ficar com alguns exemplos, há, no Código Civil de 2002, previsão expressa da “função social do contrato” nos artigos 421 e 2035, sem contar com os dispositivos que, de uma forma ou de outra, fazem referência indireta a tal princípio.
29 As Constituições de 1934, em seu artigo 113, e de 1946, em seu artigo 147, já faziam menção a hipóteses de limitação ao exercício do direito de propriedade, referenciando, respectivamente, ao “interesse social” e ao “bem-estar social”.
ção social, neste particular, “não se configurava em princípio jurídico, mas traduzia-se em postulado metajurídico”30, corres- pondendo, em síntese, ao papel assumido pela propriedade (e, mais tarde, pelo contrato) no uso das relações interprivadas cotidianas.
De qualquer sorte, diante dessa longa história vivida pela função social da propriedade, esta já parece ter assumido uma definição bem específica, formulada pela doutrina e pela pró- pria legislação31. Ao contrário, quando se refere à função social do contrato, não há uma disciplina sistemática ou específica: “cabe à doutrina e à jurisprudência pesquisar sua presença di- fusa dentro do ordenamento jurídico e, sobretudo, dentro dos princípios informativos da ordem econômica traçada pela Constituição”32.
Pois bem. Deixando de lado a conceituação da função social da propriedade, para se ater, fundamentalmente, à funci- onalização do instituto dos contratos, faz-se mister, nesta opor- tunidade, retomar a menção feita no tópico anterior de que a função social alterou a própria estrutura e, consecutivamente, a essência do vínculo contratual, passando-se à noção de um con- trato concebido como vínculo de cooperação e não mais como liame de interesses opostos, com efeitos adstritos à esfera rela- tiva da autonomia privada33. Nesse ponto, surge-nos um novo problema, que enseja a indagação acerca da verdadeira essên- cia do contrato.
30 XXXXXXXX, Xxxxxxx. Notas sobre a Função Social do Contrato, p. 01. Acesso em: 20 de abril de 2013.
31 A função social da propriedade rural está expressamente definida pelo artigo 186, da Constituição Federal de 1988, enquanto que a função social da propriedade urba- na encontra seus limites contornados pelo artigo 182, par. 2º, da CF/88, bem como pelo artigo 39, da Lei 10.257/2001 (Estatuto das Cidades).
32 XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. O Contrato e sua Função Social, p. 93.
33 Nesse sentido, vide XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Brasileiro. Contrato: Do Clássico ao Contemporâneo – A Reconstrução do Conceito. In.: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, p. 09. Disponível em: xxxx://xxxxxx.xxxxxxxxxx.xxx.xx /lex/doutrinas/arquivos/081007.pdf. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012.
Parte da doutrina assinala que a função social não é e “nem pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que seria um valor, um objetivo de grande significação (função social), destruiria o próprio institu- to do contrato”34. Entretanto, apenas para se resumir a esse posicionamento, duas imprecisões merecem ser assinaladas: a primeira, preliminarmente, é a de que, na verdade, a função social é um valor que foi estabilizado na estrutura do Código Civil como princípio da ordem jurídica para que dele se extraia império e censura, mutação esta que traz consequências consi- deráveis ao estudo aqui desenvolvido35; e a segunda, se se con- siderar o instituto do contrato pela sua ótica clássica, o real e efetivo papel da perspectiva funcionalista é, exatamente, o de destruir tal figura36.
A função social representa uma legítima passagem do individualismo ao personalismo e ao solidarismo nas relações jurídicas. Dessa forma, se a perspectiva adotada para a análise do instituto do contrato, hoje, já não é mais a mesma, fatalmen- te o seu significado também não o será: o que o movimento de funcionalização faz, portanto, é redesenhar a figura do contra- to, adequando-a à lógica repersonalizada assumida pela leitura
34 XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. O Contrato e sua Função Social, p. 106.
35 Segundo a teoria constitucional de Xxxxxx XXXXX, a diferença primordial entre princípios e valores estaria no fato de que, enquanto aqueles seriam revestidos de um caráter eminentemente deontológico, os valores assumiriam uma postura de ordem axiológica. Deste modo, quer-se afirmar que os princípios se relacionam à lógica do “dever ser”, enquanto que os valores, àquilo que é “bom”: “o que no modelo dos valores é prima facie o melhor é, no mundo dos princípios, prima facie devido.” (XXXXX, Xxxxxx. Teoria de los Derechos Fundamentales, p. 147).
36 Se se considerar, por exemplo a figura do contrato ainda como o vínculo entre particulares, pautado na manifestação livre de vontade de ambos, voltado à satisfa- ção de interesses de cunho patrimonial, é certo que a função social descaracteriza, totalmente, esse conceito: “está condicionada a manutenção da liberdade enquanto o contrato cumprir a sua função social. No momento em que isto deixa de ocorrer, a liberdade de contratar não será mais mantida, pois não estará cumprindo sua fun- ção.” (XXXXX, Xxxx Xxxxxx Xxxxxxxx. A função social do contrato no novo Código Civil e sua conexão com a solidariedade social. In.: XXXXXX, Xxxx Xxxxxxxx (org.). O Novo Código Civil e a Constituição, p. 135).
constitucional do Direito Civil.
A partir desta perspectiva, chega-se a indagar, inclusive, se ainda se pode conceber uma teoria unitária do contrato dian- te da heterogeneidade de tal instituto jurídico, que abarca, em si, uma gama de interesses também heterogêneos37. Portanto, a depender da concepção que se tem da figura do contrato, a fun- ção social, como qualificadora de seu conteúdo, atua, perfeita- mente, no papel de redefinidora de seus limites, reconstrutora de seus elementos.
Como corolário lógico da vigente normativa constitucio- nal brasileira, mais precisamente do valor da solidariedade, com previsão expressa no artigo 3º, inciso I, a função social do contrato é concebida, por grande parte da doutrina, como prin- cípio decorrente da função social da propriedade, ou seja, con- cebe-se que a função social foi inicialmente conformadora do direito de propriedade38, passando, em seguida, ao âmbito dos contratos. Entretanto, tal condução evolutiva é passível de crí- tica, na medida em que a função social da propriedade e a fun- ção social do contrato, em última análise, não guardam relação lógica entre si.
Afora o fato de que ambas as funções sociais (da propri- edade e do contrato) primam, em derradeira análise, pela efeti- vidade da dignidade da pessoa humana, pelo respeito aos inte- resses da coletividade e pela concretização do objetivo republi- cano da solidariedade social, as características que norteiam
37 Nesse sentido, vide XXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Brasileiro. Reconstrução do Con- ceito de Contrato: do Clássico ao Atual. In.: XXXXXXXX, Xxxxxxx M. F. Novaes; TARTUCE, Xxxxxx (coord.). Direito Contratual – Temas Atuais, pp. 24-26.
38 Na sua acepção originária, a questão do direito de propriedade funcionalizado é vista por Xxxxxxx XXXXXXXX pelo fato de a função social “moldar o estatuto pro- prietário na sua essência”, ou seja, “a despeito da disputa em torno do significado e da extensão da noção de função social, poder-se-ia assinalar, como patamar de rela- tivo consenso, a capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura do domí- nio, inserindo-se em seu ‘profilo interno’ e atuando como critério de valoração do exercício do direito, o qual deverá ser direcionado para um ‘massimo sociale’”. (Temas de Direito Civil, pp. 281-282).
propriedade e contrato são totalmente díspares: os direitos reais (nos quais se inclui o direito de propriedade) são regidos pelo mandamento de numerus clausus, perenes, absolutos, estáticos, com eficácia erga omnes e traduzem, a depender da corrente doutrinária adotada, uma relação direta de subordinação entre o objeto e o sujeito. Por outro lado, os direitos obrigacionais (em cujas fontes está o contrato) são definidos pela ideia de atipici- dade, relatividade, dinamismo e relação de natureza intersubje- tiva.
Os efeitos e o regramento de ambos, portanto, são extre- mamente diversos, pelo que os papeis assumidos por suas res- pectivas funções sociais não podem guardar relação de conse- quência, da propriedade em relação ao contrato. E a diferencia- ção entre a abstração da relação erga omnes do proprietário e a relatividade do vínculo negocial parece ser o argumento mais salutar na disparidade entre a função social da propriedade e a do contrato.
Como se não bastasse, ainda no campo da dissociação entre a função social da propriedade e a do contrato, para ficar em um exemplo apenas, a observância da funcionalização do contrato para aquisição de uma propriedade não garante que a função social desta será observada, da mesma forma que o cumprimento da função social da propriedade não assegura a observância dos ditames sociais de um contrato cujo objeto seja, exatamente, esta propriedade funcionalizada. Desta forma, quer-se demonstrar, aqui, que embora sejam dois institutos que, hoje, não mais são concebidos dissociados de sua perspectiva funcional, a função social do contrato não necessariamente guarda confluência na função social da propriedade.
Voltando-se, agora, exclusivamente à função social do contrato, é preciso estabelecer um paralelo desta com princípio da boa-fé. E para essa tarefa, a doutrina é peremptória em ele- ger um critério de diferenciação, que, à primeira vista, com respeito, não se sustenta: enquanto a função social do contrato
consiste em abordar “a liberdade contratual em seus reflexos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das rela- ções entre as partes que o estipulam (contratantes)”, o princí- pio da boa-fé estaria restrito ao “relacionamento travado entre os próprios sujeitos do negócio jurídico”39.
Ora, considerar essa distinção para desamarrar os princí- pios da boa-fé e da função social do contrato não parece sufici- ente. Isso porque é necessário sinalizar a existência de uma função social intrínseca ao contrato, que gera reflexo interno aos partícipes da relação contratual. Esse desdobramento da função social guarda relação com a “observância de princípios novos ou redescritos (igualdade material, eqüidade e boa-fé objetiva) pelos titulares contratantes, todos decorrentes da grande cláusula constitucional de solidariedade, sem que haja imediato questionamento acerca do princípio da relatividade dos contratos”40 41.
39 XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. O Contrato e sua Função Social, p. 29.
40 XXXXX, Xxxxx. Do contrato: conceito pós-moderno..., pp. 223-224.
41 Contra essa argumentação levantou-se o argumento de que por função se entende- ria o objetivo do contrato a ser alcançado. E, concatenando esta ideia à noção de promoção de igualdade entre as partes, seria assumir que “esse tipo de negócio tem como objetivo fazer com que as partes ‘sejam iguais’”, sendo que, na verdade, “o contrato jamais terá semelhante objetivo porque não se trata de instrumento de assis- tência ou de amparo a hipossuficientes ou desvalidos. O único e essencial objetivo do contrato é o de promover a circulação da riqueza de modo que pressupõe sempre partes diferentes com interesses diversos e opostos.” (XXXXXXXX XX., Xxxxxxxx. O contrato e sua função social, p. 44). Ora, posto o acunhado desenvolvimento intelectual desta crítica, é certo que ela peca em confundir fim com finalidade: “uma leitura filosófica sobre eles conduz a dois planos realmente diversos, ‘(...) entre fim e função de uma determinada estrutura, entende-se o primeiro como destinação a uma tarefa abstratamente fixada e imóvel, a outra como histórico e concreto movi- mento diante da situação sempre renovada e diversa'. Esse último sentido é que frequentemente se atribui ao uso jurídico da função, sendo que ela não se restringe ao rígido e idêntico conceito, mas sim, a uma mutável função na relação dialética.” (XXXXX, Xxxxx. Do contrato: conceito pós-moderno..., p. 225). Desta forma, se, verdadeiramente, não é o fim do contrato igualar os sujeitos contratantes, a sua finalidade é, de forma inequívoca, garantir a expressão da autonomia privada de forma mais paritária possível, norteada, sempre, pelo princípio da boa-fé e, conse- quentemente, da igualdade material entre os sujeitos. Este parece ser, por exemplo, o fundamento para da nulidade, de pleno direito, das cláusulas abusivas, dos contratos
Pois bem. Embora não se possam confundir os princípios da função social e da boa-fé no âmbito contratual, é certo que eles guardam, entre si, uma relação de profundo diálogo: “a solidariedade (valor) e a boa-fé (princípio), o segundo fundado no primeiro, se apresentam como âncora teórica segura para se descrever a função social do contrato”42. E nesse vértice, para além da relação entre o princípio da boa-fé e o da função soci- al, no âmbito do contrato, é relevante destacar a comunicação existente entre a perspectiva funcional e o viés principiológico da autonomia privada, que, na acepção clássica da teoria con- tratual, norteava, indiscutivelmente, a celebração dos contratos entre particulares.
Mesmo sob a perspectiva funcional, a autonomia privada ainda permanece como componente indispensável da relação contratual43. Esse é, inclusive, o entendimento encartado no Enunciado 21 (STJ), da Jornada 23 de Direito Civil, segundo a qual “a função social do contrato, prevista no art. 421 do Novo Código Civil Brasileiro, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse indi- vidual relativo à dignidade da pessoa humana”. Vê-se, aqui, portanto, que a função social não se resume à mitigação da autonomia privada em observância apenas a interesses sociais,
consumeristas, que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51, I, Lei 8.078/90).
42 XXXXX, Xxxxx. A função social do contrato no futuro Código Civil Brasileiro.
Revista de Direito Privado, p. 56.
43 Até mesmo nas, assim denominadas, relações obrigacionais oriundas de compor- tamentos sociais típicos, cuja origem da natureza contratual adviria do vínculo social mantido entre as partes, essa regra parece se manter. Efetivamente, para o fim de abarcar essa nova categoria de relação contratual, “exige-se uma certa ampliação do nosso sistema, mais precisamente das fontes de relações obrigacionais, mas não contradiz os princípios fundamentais da autonomia privada. Trata-se de uma criação nova devida à moderna circulação de bens em massa, mas que permanece, sem problemas, sobre as bases do nosso ordenamento jurídico privado.” (XXXXXX, Xxxx. O Estabelecimento de Relações Obrigacionais por meio de Comportamento Social Típico (1956). In.: Revista de Direito da FGV, p. 61).
mas, também, para atender a interesse particular de terceiro, desde que relativo à promoção da dignidade da pessoa humana. Deste modo, quando se faz menção à função social do contrato, não se pode cingi-la à satisfação dos interesses da coletividade ou da solidariedade social, mas, da mesma forma, como já se vinha pregando neste trabalho, também à proteção, ainda que individual, da dignidade da pessoa humana, na con- dição de fundamento republicano constitucionalmente previs-
to44.
Seja como for, é certo que vislumbrar o contrato, atual- mente, sem considerar a sua perspectiva funcional é impedir que a relação contratual seja albergada pelo ordenamento jurí- dico, uma vez que todos os contratos que se restrinjam a regu- lar interesses sem utilidade social não merecem proteção jurí- dica, merecendo-a apenas os que assumem uma função econô- mico-social reconhecidamente útil.
Enfim, vencida mais esta etapa, é chegado o momento de analisar a compatibilidade entre a função social do contrato e a sistemática codificada do Direito Civil, bem como de ponderar quais são os pressupostos e as consequências de sua previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio.
5. A CODIFICAÇÃO CIVIL E A FUNCIONALIZAÇÃO DO CONTRATO: A LÓGICA DO “EM RAZÃO E NOS LI- MITES... (ART. 421 CC).”
Segundo o coordenador do Projeto do Código Civil Bra- sileiro de 2002, Xxxxxx XXXXX, a previsão expressa da função social do contrato no artigo 421 da codificação de 2002 bus- cou, em suma,
tornar explícito, como princípio condicionador de todo o processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato,
44 Art. 1º, III, da Constituição Federal Brasileira de 1988.
implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade. Trata-se de preceito fundamental, dispensável à adequação das normas particulares à concreção ética da experiência jurí- dica45.
Ou seja, a expressa definição de que “a liberdade de con- tratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” traz em si duas premissas e, também, duas conse- quências.
A primeira das premissas que parece ter sido assumida pelo Código Civil de 2002 está em tentar estabelecer, por meio da função social, um cânone interpretativo, tal qual o princípio da boa-fé, dos limites da liberdade de contratar. Em outras pa- lavras, a hermenêutica contratual deve, necessariamente, passar pelo crivo da perspectiva irrenunciável da socialização funcio- nal do contrato, que “impõe, ao intérprete, a investigação das necessidades do homem contratante, (...) as quais remetem o jurista à condição de observador realista, percebendo-se a in- crível concatenação de valor-princípio-experiência, sendo este um dos traços da justiça contratual”46.
A segunda dessas premissas é a de que o contrato, conce- bido sob a ótica instrumental de meio cambiante de riquezas, nesta acepção clássica, já não é mais condizente à lógica reper- sonalizada e despatrimonializada do direito civil- constitucional. Inegavelmente, “o fenômeno da contratação passa por uma crise que causou a modificação da função do contrato: deixou de ser mero instrumento do poder de autode- terminação privada, para se tornar um instrumento que deve realizar também interesses da coletividade. Numa palavra: o contrato passa a ter função social”47, de certa forma como ele- mento condicionante da sua própria estrutura.
Com relação às consequências, a primeira é clara e con- clusiva: a função social do contrato não se revela se não forem
45 XXXXX, Xxxxxx. O projeto do novo Código Civil brasileiro, p. 71.
46 XXXXX, Xxxxx. Princípios do direito contratual..., p. 106.
47 XXXXX, Xxxxx. Princípios do direito contratual..., p. 109.
observadas a igualdade, a equidade ou a boa-fé. A noção, já referida, de que a boa-fé atua como “âncora teórica” da função social do contrato se confirma aqui mais uma vez. Este princí- pio mantém íntima relação dialógica com aquele, e ambos pres- tam reverência ao norte constitucional-principiológico da soli- dariedade e da dignidade da pessoa humana.
Finalmente, a segunda conclusão que se pode extrair da previsão expressa da função social do contrato no Código Civil de 2002 é a de que, alheio à perspectiva funcional, o contrato desnaturaliza-se totalmente, principalmente no que diz respeito ao seu aspecto de justeza. Em uma palavra: contrato justo só é aquele socialmente funcionalizado.
Ainda na sua acepção clássica, o contrato funcionava como inequívoco instrumento ideológico de manutenção do modo de produção capitalista, não identificando as desigualda- des sociais latentes, submetendo todos ao falso corolário da igualdade formal, para o fim de consolidar a lógica econômica liberal48. Agora, porém, na sua nova concepção funcionalizada, a relação contratual ganha novos ares: corolário de uma igual- dade material, a função social do contrato prega a supremacia do solidarismo e da dignidade da pessoa humana, preocupa-se com os terceiros, inicialmente alheios à relação negocial, em um claro movimento de relativização dos efeitos relativos do contrato.
O contrato funcionalizado reconhece como utópica a concepção de que os efeitos gerados pela relação contratual se restringem à esfera jurídica dos contratantes. Nesta esteira, busca salvaguardar, da forma mais ampla e satisfatória possí- vel, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão expos- tos aos reflexos advindos do vínculo contratual interpessoal. Dessa forma, parece salutar a previsão da função social do con- trato pelo Código Civil de 2002, mesmo que, à primeira vista, soe redundante.
48 Nesse sentido, vide XXXXX, X. Novos Temas..., pp. 34 e 35.
Se a lei não traz palavras em vão, quer dizer que a função social do contrato, no âmbito do Direito Privado, marca um divisor de águas nas relações contratuais contemporâneas: todo contrato que não seja celebrado em razão e nos limites da fun- ção social certamente estará fadado, ao menos virtualmente, ao campo da nulidade, dado o elevado grau de patologia a que está exposta a relação negocial desfuncionalizada. Mas, ainda nesse particular, caberia indagar o que significa celebrar um contrato “em razão e nos limites da função social.”
Ao referir a celebração de contrato em razão da função social, o legislador parece ter optado pela situação de que só se considerar a validade de uma relação contratual, porque estão observados os ditames sociais em que tal vínculo está inserido. A circunstância para a admissibilidade do contrato está no res- peito ao valor da solidariedade apregoado pelo sistema jurídi- co-constitucional.
Complementarmente, ao se restringir a formação da rela- ção contratual aos limites da função social, só se vislumbra a possibilidade de consolidação do contrato que é ditado pela lógica do solidarismo. Uma vez extrapolada esta perspectiva de garantia dos interesses alheios ao contrato, fatalmente este as- sume uma condição patológica, incompatível ao regramento vigente no país.
A lógica do ordenamento civil brasileiro, de tempos para cá, sofreu uma inequívoca guinada de foco e ênfase: deixou-se o viés patrimonial precípuo para assumir uma condição reper- sonalizada, com destaque para a promoção da dignidade da pessoa humana. Efetivamente, tendo em vista a particularidade do objeto aqui analisado, não se pode desconsiderar o aspecto privatista das relações contratuais, mas, da mesma forma, não se podem reduzi-las a tal perspectiva, ainda mais quando se vislumbra, de forma inequívoca, “em relação ao Direito dog- mático tradicional, uma inversão do alvo de preocupações do ordenamento jurídico, fazendo com que o Direito tenha como
fim último a proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento”49.
Por tudo isto, então, a função social do contrato é, de maneira irretocável, um dos maiores avanços já experimenta- dos pela dogmática contratual hodierna, na medida em que coaduna com a clara tendência de constitucionalização do Di- reito Civil, movimento este que busca não a publicização do Direito Privado, mas, antes, uma legítima e salutar humaniza- ção do Direito.
6. A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL PELA ATIVIDADE JURISPRUDENCIAL
Em que pese a sua construção doutrinária datar do século passado, a função social do contrato apenas passou a ser ex- pressamente prevista no ordenamento jurídico brasileiro com o advento do Código Civil de 2002, que a disciplinou em seu artigo 421 (“a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”) e no parágrafo único do artigo 2035 (“nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”). Tais previsões acabaram por nortear a nova con- cepção acerca das relações contratuais hodiernas, inaugurada a partir da reformulação do Direito Civil sob a ótica constitucio- nal50. Todavia, vê-se, de forma proposital, a pontuação lacunar da norma proposta pelo legislador, exatamente para que os con- tornos da função social do contrato passassem a ser construídos concretamente pela análise dos casos jurídicos.
Mais do que interpretar o texto normativo, o problema
49 XXXXXX, Xxxx Xxxxx. O Novo Desenho Jurídico do Contrato – apresentação à obra de XXXXX, Xxxxx. Do Contrato..., p. 18.
50 Sobre o movimento de constitucionalização do Direito Civil, por todos, vide PERLINGIERI, Xxxxxx. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Consti- tucional.
metodológico enfrentado, hoje, pelos assim chamados opera- dores do direito é o de concretizar a norma jurídica, conforme sinaliza Xxxxxxx XXXXXXXXXXX XXXXX ao pontuar que “a norma texto será apenas um elemento – um elemento necessá- rio, mas insuficiente – para a concreta realização jurídica, já que essa realização exigirá, para além daquela norma e em fun- ção agora do caso concreto (do problema jurídico do caso con- creto), que se elabore a normativa ‘concretizada’, já a específi- ca ‘norma da decisão’”51. É esse caso (jurídico) concreto que deverá nortear a composição da interpretação (jurídica) da norma.
Esse novo contexto, consequentemente aplicável à conso- lidação da função social do contrato, traduz uma legítima que- bra de paradigma do raciocínio subsuntivo tradicional para um verdadeiro processo construtivo da norma pela sua realização concreta. Vislumbra-se a conformação de “uma perspectiva capaz de recuperar o sentido próprio do direito, o direito como iurisprudentia, por isso mesmo chamado jurisprudencialismo, cujas coordenadas seriam o caso, o problema, como ponto de partida e os princípios axiológicos-normativos como funda- mento, e o pensamento jurídico como pensamento judicativo- decisório”52.
Pois bem. Ainda que se tenha por pressuposto a necessi- dade de preenchimento da dimensão interpretativa para a com- preensão eficaz da norma jurídica, um segundo trabalho, ainda antes da atuação hermenêutica (ou, no máximo, em concomi- tância a ela) deve ser realizado: a consideração do contexto histórico em que a norma foi proposta53.
51 XXXXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Metodologia jurídica: problemas fundamen- tais, p. 145.
52 XXXXXX, Xxxxxxxxx. O Código Civil brasileiro e o problema metodológico de sua realização. Do paradigma da aplicação ao paradigma judicativo-decisório. In.: Revista de Direito Privado da UEL. Londrina: UEL, v. 1, n. 1. Disponível em pdf: xxxx://xxx0.xxx.xx/xxxxxxxx/xxxxxxxxxxxxxx/., p. 19.
53 Xxxxxxx XXXXXXXXXXX XXXXX destaca a realidade histórico-social, a consci- ência histórico-social e o sistema jurídico-histórico dogmático como os três setores
A função social do contrato inaugurou um novo paradi- gma do direito contratual: ao lado do princípio da boa-fé, pro- pôs uma relativização da incidência da autonomia privada nas relações particulares, para o fim de destacar a própria confor- mação coletiva dos contratos como elemento intrínseco à sua estruturação. Funcionalizar, em um contexto eminentemente constitucional, representa o movimento de oxigenação das ba- ses estruturo-fundamentais do Direito, com elementos externos à sua própria natureza54.
Tais contornos são aferidos pela concretização da quebra do hermetismo jurídico, traduzida na recepção de elementos que transcendem a intocabilidade e a autossuficiência pregada pelo positivismo jurídico. Uma nova ordem jurídica é inaugu- rada: uma ordem social, que afeta, lógica e consequentemente, os contratos, cujos novos contornos são agora delimitados pelo caso jurídico enquanto “prius metodológico”55.
A tentativa de construção da normatividade do texto jurí- dico, a partir do trabalho hermenêutico e do preenchimento do seu sentido pela realização do paradigma judicativo-decisório, é fruto de uma redimensionalização da própria ciência jurídica, antes conjunto de normas e sanções, alheio à lógica socioeco- nômica vigente, agora sistema voltado a “prestar contas com a realidade subjacente (...), possuindo, desse modo, o significado de iniciar a tentativa de recuperação da complexidade, da com- plexa riqueza do universo jurídico”56.
Essa nova roupagem da ciência jurídica reverbera na fun- ção social do contrato, cuja consolidação depende, necessaria- mente da interpretação jurídica, que “só será entendida em ter- mos metodologicamente correctos se for vista como a determi-
da primeira condição constitutiva da norma, que é, exatamente, a consideração do seu contexto histórico específico. In.: Metodologia jurídica..., p. 149 e ss.
54 Nesse sentido, vide NALIN, P. Do Contrato: Conceito Pós- Moderno..., p. 215.
55 A expressão é de Xxxxxxx XXXXXXXXXXX XXXXX. In.: Metodologia jurídica...,
p. 142.
56 XXXXXX, Xxxxx. Mitologias jurídicas da modernidade, p. 73.
nação normativo-pragmaticamente adequada de um critério jurídico do sistema do direito vigente para a solução do caso decidendo”57. A função social só atende ao propósito aqui de- fendido se, verdadeiramente, for analisada a partir de um viés dinâmico e real: só há função social quando esse princípio é efetivado no caso concreto.
A mera previsão expressa do Código Civil da inferência da função social nas relações contratuais, o que não é pouco, é insuficiente para a proposição que aqui se apresenta. É preciso dar um passo além, superar a abstração e a autoridade genérica da lei para dar-lhe cor, dotar-lhe de concretude. E esse é o pa- pel da interpretação jurídica aqui apresentada, pautada na aná- lise dos casos (jurídicos) concretos: faz-se necessário “conce- ber a norma como um procedimento que não se cumpre com a produção, mas que possui um momento subseqüente, o mo- mento da interpretação, como se ele estivesse dentro do proces- so de formação da realidade complexa da norma”58.
Essa é a tendência trazida pelo Novo Código Civil, a par- tir de 2002, ao expressar a inerência da função social à figura do contrato: faz-se necessário promover a concretização dos princípios, a partir da sua aplicação aos institutos jurídicos existentes. Consequentemente, esse movimento de concretude
surge como elemento catalizador de radical mudança, passando do paradigma da aplicação, próprio do normativis- mo-positivista sempre cultivado, para uma outra perspectiva, a do paradigma jurisprudencialista, cujas principais coorde- nadas são o caso, como prius problemático, e os princípios ju- rídicos como prius fundamentante, a caracterizar o pensamen- to jurídico como razão prática e como pensamento judicativo- decisório59.
Conforme se apresentará adiante, a função social tem o seu propósito preenchido pela produção jurisprudencial con- temporânea, que, ao seu modo, experimenta uma evolução sa-
57 XXXXXXXXXXX XXXXX, Xxxxxxx. Metodologia jurídica..., p. 142.
58 XXXXXX, Xxxxx. Mitologias jurídicas…, p. 90.
59 XXXXXX, Xxxxxxxxx. O Código Civil Brasileiro…, p. 23.
lutar de colorir o contrato funcionalizado com aspectos emi- nentemente sociais, em superação do seu viés estritamente econômico. Senão, é o que se tem a seguir.
7. ANÁLISE DOS JULGADOS
A jurisprudência, concebida, aqui, enquanto expressão prática do pensamento jurídico, parece estar reiteradamente atualizando a concepção que se tem do princípio da função social do contrato. Assim, para que mais bem se compreenda essa evolução salutar das decisões judiciais relativas ao tema, analisar-se-ão, especificamente, alguns julgados pinçados do Superior Tribunal de Justiça, apresentados em ordem cronoló- gica crescente.
O primeiro desses julgados é referente ao Recurso Espe- cial n. 783.404/GO, datado de 28 (vinte e oito) de junho de 2007, no qual a Ministra Relatora, Xxxxx XXXXXXXX, pontua que
a função social infligida ao contrato não pode descon- siderar seu papel primário e natural, que é o econômico. Este não pode ser ignorado, a pretexto de cumprir-se uma ativida- de beneficente. Ao contrato incumbe uma função social, mas não de assistência social. Por mais que o indivíduo mereça tal assistência, não será no contrato que se encontrará remédio para tal carência. O instituto é econômico e tem fins econômicos a realizar, que não podem ser postos de lado pela lei e muito menos pelo seu aplicador.60
Ora, pelo que se extrai do inserto referido, a função soci- al neste contexto ainda se resume ao campo interno do contra- to, imersa e adstrita às cláusulas contratuais pactuadas. Não se reconhece, por exemplo, a importância da função social extrín- seca61 do contrato, que transcende os estreitos limites da rela- ção contratual, para vincular os contratantes a partir das “reper-
60 REsp. 783404-GO – Min. Xxxxx Xxxxxxxx – 28/06/07.
61 A expressão é de Xxxxx XXXXX, em seu Do contrato: conceito pós-moderno..., especialmente ponto 8.1 “A função social do contrato: fundamento constitucional”.
cussões no largo campo das relações sociais, pois o contrato em tal desenho passa a interessar a titulares outros que não só aqueles imediatamente envolvidos na relação jurídica de crédi- to”62.
Não bastasse isso, é possível concluir que os contornos dados à função social neste julgado se apresentam a partir de uma manifesta relação de dependência para com outros institu- tos. A imprevisibilidade, a improbidade e a boa-fé objetiva é que acabam moldando a silhueta do princípio da função social, a qual, por esta ótica, não pode ser vislumbrada de forma autô- noma, o que a impede de assumir a devida importância no con- dicionamento do contrato.
Finalmente, mas não menos importante, o trecho da deci- são é marcado por um viés manifestamente mercadológico do contrato, ou seja, reconhece-se como função precípua da rela- ção contratual a geração de efeitos econômicos. Nesse sentido, o julgado arremata com o diagnóstico que “a função social não se apresenta como objetivo do contrato, mas sim como limite da liberdade dos contratantes em promover a circulação de ri- quezas”63.
Essa ideia, tão marcada em um contexto liberal e moder- no, renega a função social a um plano inferior de incidência na relação contratual, desconsiderando o seu papel central no acondicionamento do contrato às diretrizes constitucionais do Direito Civil atual. Consequentemente, faz ressurgir a clássica concepção de um contrato como mero instrumento de circula- ção de riquezas, renegando a imprescindível funcionalização do instituto: parece não ser questão de destacar o aspecto econômico em detrimento do social, exatamente por não se vislumbrar a possibilidade de se desvincular tais idéias – não há o atendimento à função social do contrato se o seu aspecto econômico não for observado; da mesma forma, não pode ha-
62 XXXXX, X. Do contrato: conceito pós-moderno..., p.224.
63 REsp. 783404-GO – Min. Xxxxx Xxxxxxxx – 28/06/07.
ver o econômico se não houver o social.
Pois bem. A partir da decisão analisada acima, outras vie- ram à tona para tratar da função social do contrato sob diferen- tes perspectivas. Uma delas, por exemplo, já reconhece na fun- ção social um mecanismo de construção de soluções e interpre- tação a partir da realidade e do caso concreto:
“O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário, para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida, prestigiando prestações jurisdicio- nais intermediárias, razoáveis, harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico, como a autonomia da vontade.
“Não se deve admitir que a função social do contrato, princípio aberto que é, seja utilizada como pretexto para man- ter duas sociedades empresárias ligadas por vínculo contratual durante um longo e indefinido período. Na hipótese vertente a medida liminar foi deferida aos 18.08.2003, e, por isto, há mais de 5 anos as partes estão obrigadas a estarem contrata- das.64
Mais do que reconhecer que não há conflito entre a fun- ção social e outros princípios como a autonomia da vontade e que, consequentemente, in casu, o princípio da função social não pode ser artifício para resilir o contrato, a referida decisão inaugura “uma perspectiva capaz de recuperar o sentido pró- prio do direito, o direito como iurisprudentia, (...), cujas coor- denadas seriam o caso, o problema, como ponto de partida e os princípios axiológico-normativos como fundamento, e o pen- samento jurídico como pensamento judicativo-decisório”65.
Nesse julgado em específico, já se reconheça a projeção exterior da função social do contrato, não apenas adstrita ao papel de “limita[r] a liberdade contratual e, em especial, a li- berdade de encerrar o negócio jurídico”, mas, também, a de convidar o Poder Judiciário “para que ele construa soluções
64 REsp. 972.436-BA – Min. Xxxxx Xxxxxxxx – 17/03/09.
65 XXXXXX, Xxxxxxxxx. O código civil brasileiro..., p. 19.
xxxxxx, rente à realidade da vida, prestigiando prestações juris- dicionais intermediárias, razoáveis, harmonizadoras e que, sen- do encontradas caso a caso, não cheguem a aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento jurídico”66.
Aos poucos, a função social também ganha força no âm- bito externo do contrato, atuando como inequívoco instrumento mitigador da relatividade dos efeitos contratuais. Com isso, vê- se a conformação do princípio enquanto oxigenador das rela- ções contratuais, tornando-as porosas ao meio social em que estão inseridas67.
Finalmente, atinge-se o ápice do refinamento estrutural da função social do contrato até o momento, reconhecendo-se nela o direcionamento voltado ao respeito e à promoção dos interesses absolutos da pessoa humana, tais como a sua digni- dade, o valor do trabalho e o mínimo existencial. A incidência do princípio da função social demonstra, nesse sentido, uma valorização dos contratos existenciais em detrimento dos con- tratos de lucro68, ocupando parte intrínseca à própria conceitu-
66 REsp. 972.436-BA – Min. Xxxxx Xxxxxxxx – 17/03/09.
67 "(...) 3. A interpretação do contrato de seguro dentro de uma perspectiva social autoriza e recomenda que a indenização prevista para reparar os danos causados pelo segurado a terceiro seja por este diretamente reclamada da seguradora. 4. Não obs- tante o contrato de seguro ter sido celebrado apenas entre o segurado e a seguradora, dele não fazendo parte o recorrido, ele contém uma estipulação em favor de terceiro. E é em favor desse terceiro – na hipótese, o recorrido – que a importância segurada será paga. Daí a possibilidade de ele requerer diretamente da seguradora o referido pagamento”. (REsp. 1245618/RS – Min. Xxxxx Xxxxxxxx – 22/11/2011).
68 A distinção entre contrato existencial e contrato de lucro é de Xxxxxxx Xxxxxxxxx de AZEVEDO, a qual pode ser definida, em superficiais linhas, da seguinte forma: enquanto os contratos existenciais têm como partes as pessoas naturais e/ou pessoas jurídicas sem fins lucrativos, tendo por objeto contratual “um bem considerado essencial para a subsistência da pessoa, com a preservação dos valores inerentes à sua dignidade, nos termos propostos pela Constituição Federal”, os contratos de lucro se formam quando celebrados “entre empresas no exercício de sua atividade econômica. Como a empresa é constituída para o fim de obter benefícios de sua atividade, o negócio que realiza nessa sua atividade para atingir os fins que lhe são próprios tem de ordinário a finalidade de obter lucro” (AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Contratos relacionais, existenciais e de lucro. In.: Revista Trimestral de Direito Civil, pp. 91-110).
ação do contrato, de modo a reconhecer a impossibilidade con- tratual se não atendida a função social.
Como exemplo dessa perspectiva, tem-se o julgado se- gundo o qual
a cláusula contratual que estipula o pagamento de mul- ta caso o contratante empregue um dos ex-funcionários ou re- presentantes da contratada durante a vigência do acordo ou após decorrido 120 (cento e vinte) dais de sua execução não implica em violação ao princípio da função social do contrato, pois não estabelece desequilíbrio social e, tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja diretamente, se- ja indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento pesso- al69.
Nesse mesmo sentido, há julgado que, destacando as normas insertas nos arts. 421 e 422, ambas do Código Civil, destaca a função social enquanto “um dos pilares da teoria con- tratual”. Indo além, trata-se de “princípio determinante e fun- damental que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 1º da CF), deve determinar a ordem econômica e jurídica, permitindo uma visão mais humanista dos contratos que deixou de ser apenas um meio para obtenção de lucro”.70 O princípio do pacta sunt servanda, “sustentáculo do postulado da segu- rança jurídica, pode, caso a caso, em face de diversos fatores, entre os quais a função social do contrato, ser mitigado”71: o social, sob o ponto de vista da decisão em questão, sobrepõe- se, em alguma medida, inclusive, ao norte da previsibilidade e segurança dos contratos.
A função social, ao lado do princípio da boa-fé, rege as relações contratuais desde antes da sua previsão explícita no sistema. Imbricada no ordenamento jurídico pátrio, a função social conforma a própria razão do contrato, que, por sua vez, deixa de ser mero instrumento de obtenção de lucro, para alme- jar voos mais altos, pautado na proteção do ser humano em
69 REsp. 1.127.247-DF – Min. Xxxxxx Xxxxxxx – 04/03/10.
70 AgRg no REsp. 1272995/RS - Min. Xxxxxxxx Xxxxx Xxxx Xxxxx - 07/02/2012.
71 REsp. 1.127.247/DF – Min. Xxxxxx Xxxxxxx – 04/03/10.
substituição ao viés estritamente econômico de tempos idos.
Exatamente este é o entendimento exarado pelo Min. Jo- ão Otávio de XXXXXXX, em decisão colegiada proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, em 24 de março de 2009, para quem: “os princípios da ‘boa-fé objetiva’ e da função social do contrato’, conquanto só tenham sido acolhidos, de forma explí- cita no texto dos artigos 113 e 421, respectivamente, do novel Código Civil, (...) desde há muito encontravam-se ínsitos, de forma implícita, no sistema”72. Dando um passo além, arremata o julgador com a concepção de que, sabendo da projeção da função social para o âmbito externo do contrato e da presença de tal princípio no ordenamento desde antes da sua previsão expressa no codex civil, “a função social do contrato veta seja o interesse público ferido pelo particular”73.
Por tudo o que se pode extrair dos julgados aqui analisa- dos, depreende-se um vacilo ainda marcante nas posições que buscam definir e preencher o conteúdo essencial da função social do contrato. Essas posições carentes de uniformidade, entretanto, já apresentam uma linha coerente e afinada entre si: demonstram uma evolução do instituto contratual eminente- mente econômico para uma figura marcada por um propósito social, especialmente em vistas do direcionamento constitucio- nal dado ao Direito Civil.
8. CONCLUSÕES
Vencidas as digressões propostas pelo presente estudo, faz-se importante tentar colher os frutos que até aqui restaram maduros.
Seja do ponto de vista doutrinário, seja sob o olhar da ju- risprudência, o que se vê, ainda, é um trabalho gradativo de formação e consolidação dos contornos estruturais da função
72 REsp. 1.062.589/RS – Min. Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx – 24/03/2009.
73 REsp. 1.062.589/RS – Min. Xxxx Xxxxxx xx Xxxxxxx – 24/03/2009.
social do contrato. Ainda carente de uma definição bem marca- da e uníssona no ordenamento pátrio, o princípio ainda se apre- senta por vezes em contraste com os demais princípios e insti- tutos regentes da teoria contratual, tais quais a autonomia da vontade, a onerosidade excessiva e a boa-fé.
Em que pese esse desarranjo inicial, a função social do contrato já mostra sinais de franca evolução, pautada em uma virada constitucional de releitura do Direito Civil: o contrato funcionalizado ganha contornos sociais que transcendem os parcos limites econômicos da sua acepção clássica. A essência do contrato, pressupondo a função social como elemento in- trínseco à sua própria conformação, está, agora, na dignidade da pessoa humana, sendo a relação contratual, “sobretudo, (...) um instrumento de desenvolvimento da personalidade huma- na”74.
A maior percepção da função social do contrato está na chave dos valores sociais e existenciais aos quais a nova rela- ção contratual funcionalizada precisa atender. E essa concep- ção de um contrato funcionalizado, tendo a função social como intrínseca à própria definição do instituto contratual, “não se trata de mera filigrana lingüística, haja vista que ao ser função social (...), implicitamente, se reconhece que a finalidade social do instituto faz parte da sua própria estrutura ou significa a razão de ser do mesmo. Ao contrário, concebendo-se um insti- tuto privado com função social (...) remete-se ao exterior da sua estrutura o valor social do instituto”75.
74 XXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxxx. Os princípios contratuais: da formação libe- ral à noção contemporânea. In.: XXXXX, Xxxxxx Xxxxx Xxxxxxxx (org.). Direito civil constitucional: situações patrimoniais, p. 15. Nesta mesma oportunidade, arremata o autor que “a nova teoria contratual, sem embargo, busca trazer um fun- damento subjacente ao escopo de ordem abstrata e patrimonialista [do contrato], que vem ao encontro de uma ‘racionalidade reprodutiva do sujeito’, (...) imposta ao direito pelo princípio da dignidade da pessoa humana”. In.: XXXXX, C. E. P. Os princípios contratuais..., p. 14.
75 XXXXX, Xxxxx. A autonomia privada na legalidade constitucional (introdução).
In.: (coord.). Contrato e sociedade: princípios de direito contratual, p. 34.
Reconhecidamente, são poucos os casos e as decisões ju- diciais que enfrentam, vertical e diretamente, o tema central da função social dos contratos. Inúmeras poderiam ser as justifica- tivas para tal silêncio eloquente, que passariam do efetivo des- conhecimento do tema ao receio de assumir um posicionamen- to conclusivo sobre um assunto ainda hesitante e carente de composição conceitual. Todavia, em que pese a justificação dada aos muitos olhares e diferentes concepções dadas à fun- ção social do contrato, o que não se justifica é, exatamente, essa falta de enfrentamento sério e aprumado acerca desse pon- to, que é central ao estudo dos contratos.
Que a função social revolucionou o estudo dos contratos, não se nega. Agora é hora, contudo, de se buscar entender o que é este fenômeno revolucionário, cujos contornos ainda clamam por uma leitura menos embaçada e mais satisfatória à grandeza do tema.
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