O requisito da notória especialização na contratação por inexigibilidade de licitação de serviços singulares
O requisito da notória especialização na contratação por inexigibilidade de licitação de serviços singulares
Por Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx Xxxxxx*
Resumo
A Constituição Federal, ao instituir o princípio do Dever Geral de Licitar (art. 37, XXI), a todos os órgãos e entidades do Poder Público ou que recebam controle deste, ainda que de forma indireta, ressalvou à Lei ordinária de caráter geral a previsibilidade de hipóteses em que tal princípio poderia ser afastado. Assim, a Lei 8.666/1993, em seus arts. 24 e 25 apontam, respectivamente, os casos de dispensa e de inexigibilidade de licitação. No caso deste último, há a previsão de afastamento do dever geral de licitar nos casos em que o objeto da contratação for de natureza singular, desde que a pessoa do contratado seja considerada um notório especialista. A caracterização da notória especialização constitui um dos mais difíceis desafios do aplicador da norma, o qual, com este trabalho, se pretende lançar algumas luzes.
Palavras-chave: Licitação. Inexigibilidade. Singularidade. Notória Especialização.
Abstract
The Federal Constitution, by instituting the principle of General Obligation to Bid (article 37, XXI), to all organs and entities of the Public Power or that they receive control of it, although indirectly, excepted to the ordinary law of a general nature predictability of hypotheses where such a principle could be removed. Thus, Law 8.666 / 1993, in its arts. 24 and 25 indicate, respectively, the cases of waiver and unenforceability of bidding. In the case of the latter, it is anticipated that the general obligation to bid should be waived in cases where the object of the contract is of a unique nature, provided that the person of the contractor is considered a notorious specialist. The characterization of the notorious specialization is one of the most difficult challenges of the applicator of the norm, which, with this work, is intended to shed some light.
Keywords: Bidding. Inexigibility. Singularity. Notary Expertise.
1. Introdução. 2. Traços marcantes da inexigibilidade de licitação fundada no art. 25, II. 3.Notória especialização: requisito material ou uma necessidade? 4. O reconhecimento da notória especialização. 5. A discricionariedade do ato de escolha do executor. 6. Quando o notório saber é do profissional e quando é da empresa? 7. A criteriosa escolha do executor. 8 – Conclusões.
1. Introduction. 2. Significant features of the unenforceability of bidding based on art. 25, II. 3.Notory specialization: material requirement or a need? 4. Recognition of notorious specialization. 5. The discretion of the executor's act of choice. 6. When the notorious knowledge is of the professional and when is the company? 7. The judicious choice of the executor. 8 - Conclusions.
1
1 - Introdução
É sempre acalorada a discussão sobre como os órgãos e entidades da Administração Pública
devem proceder para contratar serviços técnicos especializados incompossíveis de comparação objetiva, conciliando as normas legais para contratação de serviços (Lei 8.666/1993) e as peculiaridades inerentes a essa especial de prestação de serviço. As dificuldades são inúmeras e diversos são os fatores que contribuem para aumentar a insegurança no momento da celebração de tais contratos.
O primeiro ponto diz respeito obrigação de se realizar licitação. Como o dever de licitar é imperativo (CF, art. 37, XXI) e fazê-lo pelo critério de menor preço é a regra geral, o problema surge a partir da imensa dificuldade (na verdade, impossibilidade) de se estabelecer critérios de aferição idôneos que apontem com segurança a proposta efetivamente mais adequada, elevando a níveis insuportáveis o risco de insucesso da contratação. Em tempos hodiernos, em que muito se fala em governança e gerenciamento de riscos das contratações1, impõe-se especial atenção a tais contratos, posto que, não raro, quase não possuem margem de correção de desvios no decorrer da execução, dificultando sobremaneira a recuperação de prejuízos causados por falhas na conduta do executor. A escolha deste, surge como ponto nodal na garantia de obtenção de um resultado efetivamente adequado aos interesses da Administração contratante.
Deve-se apontar como um dificultador importante a fragilidade –em termos gerais – da
instrução dos respectivos processos, que, o mais das vezes, deixam de observar os requisitos mínimos exigidos pela legislação de regência.
2 - Traços marcantes da inexigibilidade de licitação fundada no art. 25, II da L. 8.666/1993.
Na inexigibilidade de licitação, é a impossibilidade de submeter a oportunidade de negócio à competição que afasta o Dever Geral de Licitar, insculpido no art. 37, XXI da Carta Política de 1988. Essa impossibilidade invarialmente decorre do objeto, seja porque único, como nos casos de produto exclusivo, seja porque, mesmo não sendo exclusivo, se mostra inconciliável com a ideia de comparação objetiva de propostas. E é essa última em que justamente se amolda a hipótese ora em estudo. Veja-se a redação do dispositivo normativo:
Art. 25 – É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial: I - omissis
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III - omissis
§ 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.
1Vide Instrução Normativa Conjunta no. 001/2016/CGU/MP; Instrução Normativa no. 05/2017/MPDG, art. 20; Lei 13.303/2016, arts. 1º, § 7º, IX; 6º,
§1º, VI; 42, X c/c §1º, I, d.
2
Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
I - estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos; II - pareceres, perícias e avaliações em geral;
III - assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias; (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994)
IV - fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços; V - patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
VI - treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
VII - restauração de obras de arte e bens de valor histórico. VIII - (Vetado). (Incluído pela Lei nº 8.883, de 1994)
Como se vê, o art. 25, II da Lei Geral de Licitações reconhece que determinados serviços, os “técnicos especializados”, quando “singulares”, são incomparáveis entre si. O elemento central dessa hipótese de afastamento da licitação, a despeito da presença de vários executores aptos, é a inviabilidade de estabelecer-se comparação objetiva ente as várias possíveis propostas, conforme lição do festejado mestre, Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx0,in verbis:
“são licitáveis unicamente (...) bens homogêneos, intercambiáveis, equivalentes. Não se licitam coisas desiguais. Cumpre que sejam confrontáveis as características do que se pretende e que quaisquer dos objetos em certame possam atender ao que a Administração almeja”.
Assim, para configuração da inviabilidade de competição, não bastará que a contratação se concentre em um dos serviços apontados em um dos incisos do art. 13 da Lei 8.666/1993. Será essencial determinar que o objeto do contrato também possa ser considerado singular.3.
A norma acima transcrita oferece nas entrelinhas um roteiro prático e ordenado para o correto enquadramento da hipótese no caso concreto. Note que o inciso II, ao relacionar os requisitos que devem compor a instrução do processo são, na ordem: a) o serviço ser técnico e estar enumerado no art. 13; b) ter natureza singular; e,
c) o executor ser um profissional ou empresa de notória especialização. Aliás, há muito o Tribunal de Contas da União firmou o entendimento segundo o qual a contratação calcada no dispositivo em tela só é regular se houver a demonstração da presença desses três requisitos:
“ENUNCIADO: A contratação direta por inexigibilidade de licitação, com base no art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993, comporta a presença simultânea de três requisitos: constar no rol de serviços técnicos especializados mencionados no art. 13 da Lei 8.666/1993, possuir o serviço natureza singular e ter o contratado notória especialização. O ato praticado com a
2Curso de Direito Administrativo.17a, ed., São Paulo: Malheiros, 2004, p. 497.
3 Nesse sentido: TCU, Súmula 252; XXXXXX XXXXX, Xxxxxx, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª. ed. Dialética. São Paulo, 2010, p. 367; XXXXX, Xxxxx Xxxxxxx xxxxxxxx de, Op. Cit., p.508; DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, Direito Administrativo. 5ª. ed., Atlas. São Paulo, 1995, p. 273; XXXXXXXX XXXXX, Xxxx xxx Xxxxxx. Manual de direito administrativo, 11ª ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2004, p. 226; XXXXXX XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Op. Cit. p. 605; XXXXX, Xxxxxx, Op. Cit.
3
ausência de qualquer um dos três requisitos importa na irregularidade da contratação.”
(TCU, Xxxxxxx 479/2012-Plenário Rel. Min. Xxxxxxxx Xxxxxxxx)
Nada obstante, uma das falhas mais frequentes encontradas pelo controle Externo e Interno nas auditorias e tomadas de contas é a inversão desses valores, em que a área técnica ou a própria autoridade superior justifica a contratação a partir da escolha do executor. Tece longas laudas de justificativa para “elogiar” o escolhido, sem debruçar uma linha sequer sobre a razão pela qual se entendeu, no caso concreto, ser aquele um serviço de natureza singular.
Note que a norma legal supratranscrita oferece uma ordem com claro sentido lógico: não basta que o executor escolhido seja um notório especialista; antes, deve o serviço ter características que o torne singular. Um notório especialista pode, perfeitamente, executar um serviço compossível de comparação objetiva, que qualquer outro profissional faria. Logo, é a singularidade que provoca a impossibilidade de comparação objetiva, daí porque ela tem que ser apontada antes. Como se verá mais adiante, a presença do notório especialista na execução de um serviço singular é uma necessidade, não um mero requisito formal. Por isso que, a despeito de haver opiniões em sentido contrário4, é equivocadoo entendimento segundo o qual a singularidade pode decorrer da notória especialização de seu executor.
Para essa corrente doutrinária, a notória especialização envolveria uma singularidade
subjetiva. Todavia, se imaginarmos que a inviabilidade pode decorrer da pessoa do contratado, teríamos que admitir a absurda ideia de que um mesmo objeto seria, a um só tempo, singular e não singular, conforme a pessoa que o executar. Ora, o serviço é ou não é singular. Um projeto arquitetônico para casas populares, desprovido de qualquer complexidade ou vanguardismo técnico, não pode ser classificado como singular apenas porque sua contratação recaiu em um escritório mundialmente reconhecido, pois o projeto, em si, continuariacomparável objetivamente.Jacoby5, de forma bastante arguta, salienta que o processo de contratação de obras e serviços inicia-se, necessariamente, pela definição do objeto, o que envolve a elaboração do projeto básico e/ou executivo, e não pela escolha do executor. Acrescenta que “quando os órgãos de controle iniciam a análise pelas características do objeto, percebe-se quão supérfluas foram as características que tornaram tão singular o objeto, a ponto de inviabilizar a competição.”
3 - Notória especialização: requisito formal ou uma necessidade?
Em primeiro plano, bom que se diga que ao elencar como requisito intrínseco da inexigibilidade de licitação fundada no art. 25, II, que a execução seja realizada por profissional ou empresa notória especialização, a norma intencionou, de fato, atribuir a execução do objeto a alguém que fosse especial no campo de sua especialidade relacionado com o objeto do contrato. Vimos, antes, que todo serviço é técnico e é especializado. Assim, ao determinar que os serviços tidos por singulares fossem executados por um notório especialista, reconheceu que o
4 Reconheço que parte da doutrina entende que a singularidade pode estar vinculada à notória especialização. Nesse sentido: MEIRELLES, Xxxx Xxxxx, Direito Administrativo Brasileiro. 19ª.ed. Malheiros. São Paulo, 1994, p. 258; XXXXX, Toshio, A natureza singular na contratação por notória especialização, RJML de Licitações e Contratos, n.26, p. 13/15
5 XXXXXX XXXXXXXXX, Xxxxx Xxxxxxx, Contratação Direta sem Licitação. 9ª ed. Fórum. Belo Horizonte, 2011, p.604.
4
serviço singular não admite ser executado por qualquer profissional (ou empresa), mas por alguém especial. E faz todo o sentido com o conceito de singularidade que estabelecemos no capítulo 4.1 supra.
Ora, se o resultado da execução é imprevisível e a comparação entre os vários executores e os respectivos conteúdos de suas propostas somente se dá a partir de critérios subjetivos, fica nítido que a execução deva ser entregue a quem possui algum atributo capaz de atrair a segurança necessária para a execução.
Se ficarmos no exemplo dos serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoas (art. 13, VI, da L. 8.666/1993), em que o principal condutor do aprendizado seja o docente, imagine que a execução ficasse a cargo de qualquer profissional (ainda que habilitado), não se considerando características subjetivas a ele inerentes, tais como capacidade didática, forma de condução de grupos etc.; nesse caso, a probabilidade de o resultado não ser satisfatório seria enorme. Trata-se de caracteres relacionados ao grau de confiança que o gestor deposita na pessoa do indicado, que é incompossível de medição objetiva. Nesse sentido:
“ENUNCIADO: A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos. (TCU, Xxxxxxx no. 2.762/2011-Plenário, Rel. Min. Xxxxxx Xxxxxxxxx)
Assim, desponta com clareza que a presença do notório especialista não é um mero requisito formal, mas uma verdadeira necessidade a ser atendida com probidade pelo Gestor, uma vez que a contratação envolve objeto de resultado não previsível.
4 – O reconhecimento da notória especialização
Ao contrário do conceito de singularidade, a norma regente da espécie se ocupou de delinear o conceito de notória especialização. E o fez de forma bastante pragmática, muito embora, nos corredores e mesas de trabalho de gestores e assessorias jurídicas ainda se acaloram intensos debates. A redação do dispositivo, à primeira vista, traz uma falsa ideia de que notório especialista deva ser amplamente conhecido, famoso mesmo. Não é bem assim. Xxxxx uma leitura um pouco mais atenta para se alcançar o ponto nodal do texto da lei, o que solucionará eventuais impasses. Senão vejamos:
Art. 25 - Omissis
(...)
§ 1º - Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. (grifo acrescentado)
Do texto acima transcrito não é possível encontrar nada que chegue perto da ideia de fama ou algo do gênero. Notório especialista é o profissional (ou empresa) que nutre entre seus pares, ou seja, “...no campo
5
de sua especialidade...” a partir do histórico de suas realizações, quer dizer “...decorrente de desempenho anterior...ou de outros requisitos relacionados com suas atividades...” elevado grau de respeitabilidade e confiança, de forma que se “...permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”
O parágrafo sub examine indica a referênciaa partir de quais peculiaridades ou requisitos serão considerados idôneos para aferir se um profissional é ou não notório especialista, a saber: “...desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica...”. Mais ainda. A expressão “...ou de outros...” dá bem o tom de rol exemplificativo desses requisitos. O legislador admite, portanto, que outros conceitos e requisitos, não ditados no texto expresso da lei, podem servir de base à conclusão de que o profissional escolhido é o mais adequado à satisfação do contrato. Nota-se também, que a enumeração dos requisitos é alternativa. Significa que não é obrigatório que estejam todos contemplados na justificativa da escolha, bastando apenas o apontamento de um deles para balizar a escolha. É bom que se diga que essa análise deve estar relacionada com as finalidades do objeto. Para Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx0 a notória especialização “dependerá do tipo e das peculiaridades do serviço técnico-científico, assim como da profissão exercitada.”Um exemplo bem ilustrará a aplicação prática deste conceito.
Se uma determinada Secretaria Estadual de Segurança Pública, viesse a organizar evento sobre criminalidade e segurança pública, e pretendesse contratar um policial civil para proferir uma palestra direcionada aos policiais civis, militares e corpo de bombeiros sobre o tema “Ética na abordagem policial”, sob o argumento de que se trataria de um profissional altamente respeitado no meio policial, em nada importaria se o escolhido possui formação acadêmica de nível médio, sem nenhum livro ou artigo publicado e sem histórico na atividade docente ou como conferencista. Xxxxxx, o que teria motivado a escolha do profissional seria outros atributos efetivamente relevantes para o alcance dos resultados esperados, que seria o fato de se tratar de profissional muito conhecido e respeitado no meio policial pela sua lisura, ética e retidão no exercício das suas atividades. Xxxx atributos certamente renderiam resultados adequados justamente porque suas palavras seriam melhor assimiladas pelo público alvo a que se destinava a palestra.
Ora, nesse caso, como não reconhecer notória especialização? Como dito antes, para os objetivos da palestra, pouco ou nenhuma importância há se o profissional possui nível superior; se já publicou artigos e livros. A palestra era operacional e o palestrante escolhido reunia as condições que permitiam inferir que ele, no caso concreto, era indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação dos interesses da Administração. Claro, se a palestra tivesse tema mais complexo, por exemplo, sobre Processo Penal, dirigida a Magistrados, Promotores e Procuradores de Justiça, faltar-lhe-ia requisitos importantes justamente por não se tratar de “seu campo de especialidade”. Mas para esse mesmo público alvo, caso o tema da palestra fosse algo relacionado à atividade operacional do policial, para esse fim, mais uma vez poderia ser considerado notório especialista.
5 – A discricionariedade do ato de escolha do executor
Não há discrepância na doutrina, tampouco na jurisprudência, quanto ao entendimento, bastante espancado neste trabalho, de que a singularidade não significa exclusividade. Se assim o fosse, tratar-se-ia de inviabilidade fática de licitação, tal qual o é a aquisição de produto exclusivo, e a contratação fundar-se-ia na cabeça do
6Op. Cit., p.371.
6
artigo 25 da norma geral de licitações. Logo, para a execução do serviço certamente haverá algumas alternativas dentre as quais uma deverá ser selecionada pela autoridade competente.
Xxxx xxx Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx0 aponta que a norma não é capaz de ditar com rigor todas as condutas que um agente administrativo deve assumir para exercer as funções que lhe são cometidas. Ante essa impossibilidade, para variadas situações a “própria lei oferece a possibilidade de valoração da conduta”. São os casos em que o agente, para expedir o ato, avaliará, com seu sentir íntimo a conveniência e a oportunidade dos atos que vai praticar porquanto na qualidade de administrador dos interesses coletivos. É exatamente o que ocorre no presente caso.
Ao conceituar “notória especialização”, o dispositivo legal encerra com a expressão “que permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato”. Não restam dúvidas de que essa escolha dependerá de uma análise subjetiva da autoridade competente para celebrar o contrato. Nem poderia ser diferente, pois se a escolha pudesse ser calcada em elementos objetivos a licitação não seria inviável. Ela é impossível justamente porque há impossibilidade de comparação objetiva entre as propostas.
Consequentemente, uma vez que a escolha se dará por meio de uma avaliação subjetiva, ou seja, juízo de valor pessoal de quem detém a competência para realizar a escolha, partir da soma de informações sobre a pessoa do executor (experiências, publicações, desempenho anterior etc), em comparação com esses dados dos demais possíveis executores, nítido está que a escolha é essencialmente discricionária. Será a autoridade competente que, respeitando o leque de princípios a que se submete a atividade administrativa, notadamente, legalidade, impessoalidade, indisponibilidade do interesse público e razoabilidade, e ainda, sopesando as opções à sua disposição, com fulcro em seu juízo de conveniência, indicará aquele que lhe parecer ser o “indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.” Mais uma vez nos socorreremos de excerto do já citado Xxxxxxx 439/98-Plenário, TCU, que traz citação de brilhante lição de Xxxx Xxxxxxx Xxxx:
“Sobre a prerrogativa da Administração de avaliar a notória especialização do candidato, invocamos novamente os ensinamentos de Xxxx Xxxxxxx Xxxx, na mesma obra já citada: '...Impõem-se à Administração - isto é, ao agente público destinatário dessa atribuição - o dever de inferir qual o profissional ou empresa cujo trabalho é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado àquele objeto. Note-se que embora o texto normativo use o tempo verbal presente ('é, essencial e indiscutivelmente, o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato'), aqui há prognóstico, que não se funda senão no requisito da confiança. Há intensa margem de discricionariedade aqui, ainda que o agente público, no cumprimento daquele dever de inferir, deva considerar atributos de notória especialização do contratado ou contratada.' (Xxxx Xxxxxxx Xxxx, in Licitação e Contrato Administrativo - Estudos sobre a Interpretação da Lei, Malheiros, 1995, pág. 77) (grifamos)
Em relação a essa afirmação, no mesmo precedente, encontramos as palavras de Xxxxxx, in
verbis:
7Manual de Direito Administrativo. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 36
7
“Portanto, cabe ao administrador avaliar se determinado profissional é ou não notório especialista no objeto singular demandado pela entidade, baseando-se, para tal julgamento, no desempenho anterior do candidato e nas demais características previstas no § 1º do art. 25 da Lei de Licitações. Quem, senão o administrador, poderá dizer se determinado instrutor é 'essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato', (...) Apenas ele, mediante motivação em que relacione as razões da escolha, poderá identificar no professor ou na empresa contratada os requisitos essenciais impostos pelas particularidades do treinamento pretendido. ('in' Contratação Direta sem Licitação, Brasília Jurídica, 1ª ed., 1995, pág. 306) (grifo acrescentado)
esclarece que:
É idêntica a posição de Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx0, que, com a habitual precisão,
“É natural, pois, que, em situações deste gênero, a eleição do eventual contratado — a ser obrigatoriamente escolhido entre os sujeitos de reconhecida competência na matéria — recaia em profissional ou empresa cujos desempenhos despertem no contratante a convicção de que, para o caso, serão presumivelmente mais indicados do que os de outros, despertando-lhe a confiança de que produzirá a atividade mais adequada para o caso. Há, pois, nisto, também um componente inelimitável por parte de quem contrata.”
Não pode, pois, ser subtraído do próprio alvitre da autoridade, e só a ela competirá, a decisão sobre qual notório especialista deva recair a contratação. O que não se admitirá é que a escolha não seja calcada em argumentos que não se direcionem à conclusão de que o escolhido possui notória especialização, nem tampouco que os atributos indicados sejam flagrantemente desarrazoados; que a escolha seja pautada por um capricho ou uma preferência meramente pessoal. Entre vários profissionais ou empresas, a autoridade poderá, sim, optar pelo que se mostrar, em seu sentir, mais adequado, mesmo que seja autor da proposta mais elevada. Em resumo, a notória especialização é caso de eleição do gestor, com base na confiança que este deposita no indicado, confiança essa que decorre da identificação de algum atributo que lhe permite intuir (inferir) que o resultado da execução será adequado aos fins pretendidos.
6 – Quando o notório saber é do profissional e quando é da empresa
Outro questionamento de ordem prática que comumente é suscitado é o problema de se identificar se é a empresa ou o profissional o detentor da notória especialização. Em princípio, pode parecer um obstáculo de simples solução. É que o art. 25, II da Lei cita ambos a partir do emprego da conjunção alternativa ou (...com profissionais ou empresas...). De fato, a norma admite que possa ser considerado notório especialista tanto a pessoa física — o profissional — como a pessoa jurídica. Quanto ao profissional, não há qualquer dificuldade de reconhecimento.
8Op. Cit., p. 507.
8
Cumpre destacar que a empresa (pessoa jurídica), para ser considerada notória especialista, deve haver indicação de atributos correlacionados com a atividade empresária. Do rol exemplificativo de atributos sugeridos no § 1º do art. 25 da L. 8.666/1993, extrai-se de forma direta: desempenho anterior, organização, aparelhamento, equipe técnica. Se o gestor indicou para execução do serviço singular uma sociedade empresária, significa que os atributos que o conduziram à percepção de que ela era a mais adequada à plena satisfação do objeto devem se referir à estrutura empresarial.
Não que os demais atributos arrolados no dispositivo citado, ou outros, como ele mesmo sugere, não possam ser considerados. Mas, x.x.xx o atributo for estudos ou publicações,só poderá ser considerada notória especialista quando a própria empresa for responsável por produção técnica ou científica.
No ramo de treinamento e consultoria, por exemplo, hátrês tipos de empresas: a) as de organização de eventos; b) as de consultoria, ensino e pesquisa; e, c) as constituídas pelos profissionais notórios especialistas.
As empresas organizadoras de eventos, não possuem produção técnica ou científica. Se ocupam exclusivamente em captar no mercado, profissionais renomados para que se apresentem nos eventos por ela organizado. Em geral, os conteúdos dos cursos ou das palestras são de autoria destes profissionais, e não das empresas. Elas atuam na divulgação do evento, na captação de inscrições, na reprodução do material didático. Também se responsabilizam por toda a logística para a realização do evento, tanto no que concerne ao espaço, sonorização, equipe de apoio, como para os palestrantes ou conferencistas, providenciando passagens, reservas de hotéis, traslados, alimentação e, claro, seus honorários.
Em um primeiro momento pode-se pensar que atividades acima descritas são perfeitamente licitáveis, e não justificaria o afastamento do Dever Geral de Licitar. Todavia, o que deve ser considerado é a capacidade técnica da empresa em organizar um evento com nível técnico de excelência. Nessa ordem de ideias, uma empresa que organiza e executa um seminário com os nomes mais renomados do segmento, é, sem dúvida, notória especialista, na medida em que possui capacidade de atrair e reter profissionais de renome do mercado. Assim, poder-se-ia indicar, tranquilamente, como atributos de notória especialização o desempenho anterior e equipe técnica.
No segundo grupo, vêm as instituições ou empresas cujo objetivo social é voltado ao ensino e pesquisa, seja ela vinculada ao poder público ou de natureza privada, com ou sem fins lucrativos, a escolha certamente se dará em função dos atributos de publicações, estudos, experiências, ou seja, da produção técnica ou científica que leva a assinatura da instituição, ou seja, aquilo que confere notoriedade para a instituição, tais como, cursos cuja autoria é da empresa, anuários, periódicos, relatórios, pesquisas, além daqueles requisitos exemplificados no §1º do art. 25, II, ou seja, “...organização, aparelhamento, equipe técnica...”.
Finalmente, no terceiro grupo, temos as empresas que são formadas exclusivamente pelos profissionais. Estas empresas não dispõem de grandes estruturas empresariais (não raro, nenhuma estrutura), porquanto são formadas exclusivamente por um ou um pequeno grupo de profissionais. Tais profissionais constituem empresas para viabilizar a contratação, considerando que, como pessoa física remunerado por meio de Recibo de Pagamento a Autônomo-RPA é mais dispendioso para o contratante, pois além dos honorários, o contratante deve recolher 20% da remuneração ao INSS, o que eleva a despesa total. Assim, as organizações evitam contratar por essa forma, a saída encontrada é a abertura de PJs.
9
Neste específico caso, os atributos da notória especialização podem recair no próprio profissional, pois, em verdade, a pessoa jurídica apenas dá suporte formal à contratação, mas a contratação se deu em razão dos atributos pessoais daquele profissional.
7 – A criteriosa escolha do executor
Reconhecendo que a eleição do profissional é uma decisão essencialmente discricionária, mas que, ao mesmo tempo, deve fundar-se em argumentos razoáveis, relevantes e verídicos, ao comparar-se os profissionais, ver-se-á que mais de um reúne excelentes condições de execução do objeto. Após a análise dos requisitos que o §1º, do art. 25 enumera (não se nega que são exemplificativos, ao mesmo passo que constituem eficiente bússola a orientar a análise) a indicação poderá ser direcionada por razões, que, talvez, isoladamente, não seriam suficientes para tanto. Sejamos práticos.
Digamos que um hospital público pretenda contratar um professor para ministrar curso de elaboração de termo de referência destinado aos servidores das áreas técnicas responsáveis pela especificação de insumos e equipamentos médico-hospitalares. Em pesquisa, verificou-se que há vários ótimos profissionais no mercado, com formação acadêmica, publicações importantes e vasta experiência docente no tema e com ótimas avaliações, estando três deles disponíveis para o projeto. Em qual deles poderia recair a escolha? Qualquer um. Assim, a autoridade competente terá que traçar algum parâmetro que justifique sua decisão. Dentre os três profissionais disponíveis um demonstrou ter ministrado anteriormente o treinamento em tela em hospitais públicos. Seria justificável a sua escolha exatamente por esse aspecto. A autoridade competente poderia inclinar-se licitamente na direção deste, sob a justificativa de que “dentre os profissionais disponíveis, este seria o mais adequado por ter vivenciado a experiência de ministrar cursos em órgãos da Saúde Pública, o que permite inferir que sua expertise docente conta com o conhecimento das peculiaridades inerentes aos produtos e equipamentos que habitualmente são adquiridos nessas unidades administrativas.
8 – Conclusões
Já tivemos oportunidade de reconhecer9 que as contratações fundadas nas exceções ao dever
de licitar (dispensa e inexigibilidade de licitação) geram grande desconfiança quando submetidos ao controle de legalidade, tanto prévio (art. 38, VI, da L. 8.666/1993), quanto a posteriori (CF, art. 70), porquanto costumam apresentar elevados índices de irregularidades e falhas processuais, o que acaba acarretando maior rigor na investigação por parte desses órgãos. Tal rigor, via de consequência, provoca certo melindre, um verdadeiro “temor geral” nos setores responsáveis em instruir os processos de dispensa e inexigibilidade de licitação, bem como nas mesas de trabalho das assessorias jurídicas e do controle interno, que, não raro, acabam sendo também mais rigorosos do que o necessário, vendo embaraço onde ele não existe.
Ocorre com frequência de os processos de inexigibilidade de licitação chegarem em uma Assessoria Jurídica, com a indicação do notório especialista e o parecer é no sentido de retornar o processo à instrução para que sejam juntados mais documentos comprobatórios da notória especialização do executor indicado, ou, até
9 XXXXXX, Xxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxx. Contratação de serviços de treinamento e aperfeiçoamento de pessoal na Administração Pública: uma breve análise da Decisão 439/98, Plenário do TCU. Revista do TCU, no. 129, Jan/Abr/2014, p.73
10
mesmo,discordar da indicação. Ora, se o ato é de natureza irremediavelmente discricionário, ultrapassa a competência institucional do órgão consultivo jurídico, no exercício do seu mister, concordar ou não com a indicação do executor, devendo apenas limitar-se a verificar se o gestor motivou o ato, ou seja, se, ao indicar o executor, apontou as razões de fato que o fizeram inclinar na direção de seu nome a decisão administrativa.
Destarte, com base no que aqui foi exposto, podemos sintetizar que a notória especialização, como requisito de eficácia e legalidade na contratação de serviços singulares, apresenta os seguintes caracteres:
a) a notória especialização não exige fama ou formação acadêmica específica, pois não há qualquer apontamento nesse sentido e, portanto, não pode receber interpretação mais restritiva;
b) os atributos elencados no art. 25, § 1º da Le. 8.666/1993 são exemplificativos, quer dizer, o motivo que fará o gestor decidir a favor deste ou daquele profissional ou empresa pode não estar descrito expressamente no dispositivo;
c) não é necessário que a motivação indique mais de um atributo, bastando o apontamento de uma razão, desde que razoável;
d) A escolha é ato puramente discricionário, não cabendo avaliação de valor por parte das Assessorias Jurídicas, que devem limitar a sua análise de regularidade quanto à verificação da existência de motivação;
e) A empresa será considerada notória especialista em razão dos atributos relacionados à atividade e estrutura empresarial, notadamente, organização, aparelhamento e equipe técnica (corpo docente);
Com essas linhas, espera-se que os profissionais da Administração Pública e das entidades do sistema ‘S’ que instruem no dia a dia processos de contratação de serviços singulares, possam melhor desenvolver as suas atribuições, com maior clareza e segurança na indicação de profissionais ou empresas notórias especialistas
*Xxxx Xxxxxxx Xxxxxx é especialista em Direito Administrativo e professor da Escola Nacional de Serviços Urbanos- ENSUR e professor convidado da Fundação Xxxxxxx Xxxxxx e da PUC-Rio. Autor das obras: Curso Prático de Licitações- Os Segredos da Lei no. 8.666/93, Lumen Juris, 2011;Licitação Pública – Compra e Venda Governamental Para Leigos, Alta Books, 2016; A Atividade de Planejamento e Análise de Mercado nas Contratações Governamentais, JML, 2018. Ministra regularmente, em âmbito nacional, cursos sobre Elaboração de Termos de Referência/Projetos Básico; Gestão e Fiscalização de Contratos e Gestão de Riscos nas Contratações Públicas.
11