A Responsabilidade do Transportador Aéreo por Danos causados ao Passageiro no âmbito do Contrato de Transporte Aéreo
A Responsabilidade do Transportador Aéreo por Danos causados ao Passageiro no âmbito do Contrato de Transporte Aéreo
Xxx Xxxxxx Xxxxx
Mestrado em Direito e Prática Jurídica – Direito das Empresas 2021
Universidade de Lisboa Faculdade de Direito
A Responsabilidade do Transportador Aéreo por Danos causados ao Passageiro no âmbito do Contrato de Transporte Aéreo
Dissertação de Mestrado elaborada pela Mestranda Xxx Xxxxxx Xxxxx, e submetida à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, como requisito para a obtenção do título de Mestre no Curso de Mestrado Bolonha em Direito e Prática Jurídica, Especialidade de Direito da Empresa, sob a orientação do Professor Doutor Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxx Xxxxxx
LISBOA | 2021
“No começo deste século, nós, os fundadores da Aeronáutica, havíamos sonhado com um futuro pacífico e grandioso para ela. Mas a guerra veio, apoderou-se de nossos trabalhos e, com todos os seus horrores, aterrorizou a humanidade.”
Xxxxxx Xxxxxx
Agradecimentos
Dirijo o meu primeiro agradecimento ao Professor Doutor Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx Xxxxxxxxx Xxxxxx, pelo papel fundamental que desempenhou na orientação da presente dissertação e pela disponibilidade e compreensão demonstradas, por todos os conselhos e esclarecimentos que, ao longo de todo este trajeto, foram fulcrais para o término desta dissertação, e ainda, por ter despoletado o meu interesse pelo Direito Aéreo.
Ao meu avô, a quem o presente estudo é especialmente dedicado, pela inspiração e perseverança que me transmitiu, e por me ter demonstrado que tudo é possível quando acreditamos.
Agradeço à minha irmã por toda a compreensão, apoio e companheirismo que sempre me demonstrou. Espero um dia conseguir retribuir-lhe todo o amparo que me presta.
Exprimo, ainda, a mais profunda gratidão aos meus pais, por serem o meu pilar, pelo encorajamento e égide com que sempre me acompanharam em todo o meu percurso académico, por não permitirem que desista dos meus sonhos, e por me fazerem acreditar que é possível sempre almejar mais, por todo o amor incondicional com que me nutrem e que me demonstram todos os dias.
Resumo
A Responsabilidade do Transportador Aéreo por danos causados ao passageiro
No âmbito do Contrato de Transporte Aéreo
A evolução da responsabilidade do transportador aéreo e o legítimo interesse de defesa dos direitos dos passageiros, levaram a um crescimento estonteante de Convenções, Acordos Internacionais e Regulamentos Comunitários, que visaram equilibrar o interesse das partes contratantes de um contrato de transporte aéreo. Conseguiram estabelecer a ordem, tutelando os direitos do consumidor (passageiro), sem que tal onerasse em demasia as transportadoras aéreas, permitindo o progresso desta indústria.
Com a dissertação aqui apresentada, pretendo analisar a responsabilidade do transportador aéreo perante danos que possa causar aos passageiros, e estudar sobre as suas principais fontes, para que qualquer consumidor possa garantir a defesa dos seus direitos.
Palavras-chave: Responsabilidade; Transportador Aéreo; Contrato de transporte aéreo; Danos; Passageiro;
Abstract
The responsibility of the Air Carrier for damages caused to the passenger Under the Air Transport Contract
The evolution of the liability of the air carrier and the legitimate interest in the protection of passengers' rights have led to a growth of Conventions, International Agreements and Community Regulations aimed at balancing the insterests of the contracting parties to an air transport contract. They were able to establish order, safeguarding the rights of the consumer (passenger), without this overcharging the air carriers, allowing the progress of this new industry.
With this dissertation, I intend to analyze the liability of the air carrier against damages that may be caused to the passengers, and to study its main sources, so that any consumer can guarantee the defense of his rights.
Keywords: Liability; Air Carrier; Air transport contract; Damage; Passenger;
Índice de Abreviaturas e siglas
CE - Comunidade Europeia
CEE - Comunidade Económica Europeia DL - Decreto-Lei
EUA -Estados Unidos da América
IATA -International Air Traffic Association ICAO - International Civil Aviation Organization INAC - Instituto Nacional de Aviação Civil
nº - Número
p. - Página
pp. - Páginas
ss. - Seguintes
UE - União Europeia
VFR - Visual Flight Rules
CV - Convenção de Varsóvia de 1929
CM - Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional de Montreal, de 28 de maio de 1999
DSE - Direito de Saque Especial
Índice
CAPÍTULO II – SISTEMAS DE FONTES 6
2.1- Das Fontes Internacionais: 6
2.1.1– Sistema de Varsóvia 1929 6
2.1.1.1 Protocolo de Haia de 1955 9
2.1.1.2 – Convenção de Guadalajara de 1961 10
2.1.1.3 – Protocolo de Guatemala de 1971 11
2.1.1.4 – Protocolos de Montreal de 1975 12
2.1.2– Convenção de Montreal de 1999 13
2.2.1 – Acordo de Montreal de 1966 16
2.2.2 – Acordo de Malta de 1976 e de 1987 17
2.2.3 – Acordos IATA: IIA (1995) e MIA (1996) 18
2.3 – Fontes Comunitárias – Diretiva e Regulamento 19
2.3.1 – Diretiva CEE nº 90/314 19
2.3.2 – Regulamento CE nº 2027/97 20
2.3.3 – Regulamento CE n º 261/2004 20
2.3.4 – Regulamento CE nº 1107/2006 21
CAPÍTULO III – O CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO 21
3.1 – Noção e elementos do contrato 21
3.2 – Características do Contrato 26
3.3 – Classificação do contrato de transporte aéreo 30
3.3.2 - Espaço Jurisdicional: 32
3.1.3 - Regularidade e Não Regularidade: 34
3.3.4: Quanto ao número de transportadoras envolvidas - Transporte Sucessivo ou Não Sucessivo 36
3.3.5 – Transporte aéreo simples e transporte aéreo combinado 38
CAPÍTULO IV – RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO 38
4.1 – Enquadramento da responsabilidade civil 38
4.2 – Danos causados por morte ou lesão corporal de passageiros 41
4.2.1 – Pressupostos da responsabilidade nas convenções 41
4.2.2 – Regime da Responsabilidade 53
4.2.2.1 – Convenção de Varsóvia 54
4.2.2.2 – Convenção de Montreal de 1999 60
4.2.2.3 – Regime comunitário 63
4.3 –Indemnização e assistência aos passageiros de transporte aéreo 64
4.3.1.1 – Recusa de Embarque/ Overbooking 67
4.3.1.2 – Cancelamento de voo 73
4.3.1.4 – Colocação em classe distinta da contratada 77
4.3.2 – Regimes de Varsóvia e Montreal 78
4.4 – Regime para perda/ atraso e extravio da bagagem 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS 90
BIBLIOGRAFIA 97
CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO
Remontando ao século XV já proferia Leonardo da Vinci1 “Uma vez que tenha experimentado voar, andará pela terra com seus olhos voltados para o céu, pois lá esteve e para lá desejará voltar.”; este era um dos sonhos que o homem mais almejava. Poder voar era algo impensável, porém tornou-se possível no ano de 1783 aquando do voo do primeiro balão de ar quente2.
Após um ano, surgiu, aquela que podemos considerar a primeira lei do Direito Aéreo – que à data nem existia – sendo publicado um decreto da polícia de Paris que proibia a realização de voos de balões sem que houvesse uma autorização prévia especial.
O primeiro voo a bordo de uma aeronave ocorre no início do século XX. Apesar de toda a controvérsia de quem terá voado pela primeira vez, o facto é que, o Homem concretizou um sonho. De forma estonteante a aeronáutica evoluiu, nascendo uma indústria inovadora, que, entre muitos outros feitos, visou aproximar o mundo, criando uma nova era, a era da globalização, destruindo os obstáculos que até então limitavam o Homem, ou seja, fronteiras físicas, acidentes geográficos ou oceanos, e com durações mínimas, isto é, a aeronáutica criou a possibilidade de operar entre lugares com grandes distâncias geográficas, com duração muito inferior à que até então ocorria nos meios de transporte existentes há época3.
Com a ocorrência das duas Grandes Guerras (ano de 1914 e 1939) a aeronáutica foi forçada a desenvolver novos tipos de aeronaves, muito foi o investimento feito para que as aeronaves fossem utilizadas a favor das Guerras, auxiliando em novas estratégias de defesa, assim como, de combate4.
1 Tal como é de conhecimento geral o sonho do homem voar encontrava-se projetado em muitas das ilustrações de Xxxxxxxx Xx Xxxxx.
2 Para mais informação detalhada vide Xxxxxxx, Xxxx Xxxxx, em “Introdução ao Direito Aéreo Internacional (1.ª parte)”, in Revista Administração, n.º 34, vol. I, 1996-4.º. 913-924;
3 A este respeito vide Xxx Xxxxxx, Jesus de – La Responsabilidad En El Transporte Aereo Internacional: de Varsovia (1929) a Montreal (1999) – Dom Quijote, Madrid, 2006, p .32
4 Na primeira guerra mundial os aviões de asa fixa foram utilizados pra reconhecimento de ataques terrestre, foram criados aviões de combate, de forma a destruir os aviões inimigos, e ainda, foram utilizados para bombardeamentos estratégicos; Por sua vez na 2ª grande guerra, a indústria aeronáutica já tinha novos conceitos, foi necessário o seu desenvolvimento e avanço
E foi entre as duas Grandes Guerras que surgiu, aquela que até hoje é tida como a mais importante fonte do Direito Aéreo, a Convenção de Varsóvia de 1929. O facto é que, com tamanho desenvolvimento aeronáutico, não só para a aviação militar, surgiu a atividade aeronáutica, pois ao passo que a aviação militar se ia desenvolvendo, a aviação civil também, não olvidando que foi em 1922 que surgiu a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, que teve como ponto de partida a cidade de Lisboa e como destino a cidade do Rio de Janeiro.
A Convenção de Varsóvia veio tentar equilibrar as relações jurídicas em causa, de forma completamente inovadora, a Convenção visou proteger os direitos dos passageiros responsabilizando as transportadoras aéreas, não descorando da tutela das mesmas, impondo um limite indemnizatório, para que a responsabilidade não se tornasse excessivamente onerosa para as companhias aéreas, o que poderia levar a um desinteresse dos investidores nesta industria, e evidentemente sem investidores, a excessiva proteção do passageiro iria resultar a que esta atividade estivesse em fim de vida5. Tinha de existir um equilíbrio entre a tutela do consumidor e a salvaguarda dos investidores, de forma a que o desenvolvimento aeronáutico aumentasse, assim como, a sua adesão por parte dos consumidores.
Com uma atividade em constante desenvolvimento, torna-se ingrata a função do legislador, que está perante uma realidade mutante e que deve adaptar os seus textos à mesma. A evolução foi de tal forma abrupta que a realidade da Convenção de Varsóvia de 1929 já não era a mesma em 1955 (aquando do primeiro protocolo adicional), o que levou a que constantemente a Convenção estivesse desatualizada, e que fosse necessária a adição de acordos e protocolos, tornando a Convenção numa “manta de retalhos”. E foi com todos estes acordos e protocolos adicionais que nasceu, para mim, um novo ramo de
tecnológico, tornando o meio aéreo numa das principais áreas de combate, e também, uma grande arma de força contra o inimigo.
5 Neste sentido também MORAIS BETTENCOURT, in “Recusa de embarque injustificada no transporte aéreo internacional de passageiros: (des) equilíbrio dos interesses em presença?” in Revista de Direito Comercial, 2017, pp. 481 e 482.
Direito, o Direito Aéreo, ainda pouco desenvolvido, mas com vontade de vingar numa era tecnológica6 7
Assim podemos definir Direito Aéreo como um “conjunto de normas e princípios de direito público e privado, de cariz nacional e internacional, que regulam as instituições e relações jurídicas dimanadas da circulação aérea, ou modificadas por ela, com referência às pessoas, às coisas e à terra”8.
“A atividade de transportes aéreos é fundamental para a economia e para a evolução tecnológica e social, assim como, para a mobilidade célere e cómoda, tornou-se vital na qualidade de vida de toda a população oferecendo a possibilidade de deslocação livre. A par disto tornou-se fonte de emprego criando um mercado próprio e autónomo, sendo este um mercado imperativamente internacional é necessário que haja uma cooperação e colaboração internacional para que se torne um mercado eficaz e legal.”9
O facto de nos dias de hoje o transporte aéreo ser visto como um meio rápido e eficiente para se fazer uma travessia, muitas vezes denominado por “táxi- aéreo”, muito se deve a toda uma evolução normativa que não pode ser desmerecida. Hoje, cada vez mais, os consumidores são tutelados por organizações que visam proteger a parte mais fraca numa relação de compra
6 Quando se afirma aqui que nasceu um novo ramo do Direito, fica evidente a minha posição quanto a autonomia do Direito dos Transportes enquanto disciplina. A par desta posição MORAIS BETTENCOURT, vide – “Recusa de embarque injustificada no transporte aéreo internacional de passageiros: (des) equilíbrio dos interesses em presença?” in Revista de Direito Comercial 2017, p. 480; Diferente é a posição de MENEZES CORDEIRO, que defende que “é excessivo proclamar a autonomização como disciplina” . Vide “Introdução ao Direito dos Transportes”, in Januário da Xxxxx Xxxxx, I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. O contrato de transporte marítimo e de mercadorias. Coimbra, Almedina, 2008, p.9.
7 Apesar de aqui considerar que nasceu um novo ramo de Direito, é de salientar que a doutrina não é unanime quanto à autonomia do Direito Aéreo, não sendo consensual que tenha nascido de facto um novo ramo do Direito.
8 Xxxx Xxxxxxxx, Xxxxxx – Manual del Derecho de la Aviación, Editora Grafos, C.A., Caracas, 1959,
p. 24. XXXXX XXXXXXX, refere que este é “um conjunto de regras jurídicas que disciplinam a atividade aeronáutica”, podendo variar entre o direito público e o direito privado, consoante o litigio em causa; pois o direito público versa sobre quezílias respeitantes à navegação aérea (espaço internacional, infraestruturas aeroportuárias, regras de mercado), enquanto que o direito privado debruça-se sobre questões relacionadas com o contrato de transporte, a responsabilidade civil, no fundo, questões relacionadas com a relação jurídica entre particulares. Para mais desenvolvimentos vide XXXXX XXXXXXX, “Linhas gerais da evolução do Direito Aéreo”, in Estudos de Direito Aéreo, Dário Moura Vicente [coord.], Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 18-20; e ainda, MORAIS BETTENCOURT, op. Cit., pp. 482 e 483.
9Citação retirada ipsis verbis de: “ROTEIRO DO ESPAÇO ÚNICO EUROPEU DOS TRANSPORTES – Rumo a um sistema de transportes competitivo e económico em recursos; in LIVRO BRANCO, CEE; Bruxelas; 28 de março de 2011; p.3
e venda, pese embora muitas das vezes o consumidor seja leigo quanto aos seus direitos. Por esse motivo, coube tecer esta dissertação. O principal objetivo da exposição deste tema é a aderência em massa por parte de consumidores a um serviço que é prestado, mas que, na maioria das vezes, visa somente o alcance económico, desrespeitando todo o sonho que um dia o Homem idilicamente quis concretizar. A cada ano que passa novas rotas surgem, mais passageiros existem, mais prospeção económica é criada. Mas afinal quais são os direitos do passageiro? Até que nível responde civilmente o transportador aéreo? Quais são os seus limites indemnizatórios? Será que a indemnização é suficiente para que as transportadoras aéreas não violem os direitos do passageiro?
Como podemos verificar há toda uma panóplia de questões que importa esclarecer. O Direito Aéreo ainda é um ramo de direito muito recente, mas cada vez mais necessário, o que nos leva a ter a estudar estas questões. Até porque é um ramo de direito desconhecido para muitos juristas, e que, infelizmente, carece de alguma doutrina no nosso ordenamento jurídico.
Assim, cumpre no decorrer de toda esta dissertação desmistificar um pouco quais os mecanismos que estão à disposição do passageiro, que se sinta lesado, a fim de acionar a responsabilidade do transportador aéreo.
O que aqui pretendo abordar é apenas uma particularidade, deveras relevante, do direito aéreo, ou seja, esta dissertação tem por objeto a responsabilidade civil do transportador aéreo perante o passageiro que somente advenha da via contratual, mais concretamente danos quer por lesão corporal, morte ou danos por situações decorrentes de atraso e cancelamento de voos, e ainda, a responsabilidade por perda, extravio ou danos quanto à bagagem.
Evidentemente que, para analisar a responsabilidade civil no âmbito de um contrato de transporte aéreo, é necessário estudar quais as fontes de direito que podemos encontrar no Direito Aéreo, tal será explicado no primeiro capítulo de forma sucinta, pois não é o centro deste estudo.
Pretendo, ainda, no terceiro capítulo contextualizar a noção de contrato de transporte aéreo, assim como os elementos que dele são parte integrante, e
ainda, referir a natureza jurídica deste contrato, elencando também as classificações possíveis do contrato de transporte aéreo.
Por último, mas sendo a peça fulcral de toda a dissertação feita, cabe estudar e analisar todos os pressupostos da responsabilidade civil do transportador, assim como os direitos que são inerentes à qualidade de passageiro.
CAPÍTULO II – SISTEMAS DE FONTES
A rápida evolução tecnológica levou a que num curto hiato temporal fossem surgindo diversos conflitos advenientes de uma evolução para a qual a sociedade jurídica não estava preparada. Surgiu uma imediata necessidade de tutelar bens jurídicos e de adaptar os institutos já existentes para que não houvesse lacunas, penosas para o sistema jurídico. Tal solução demonstrou ser insuficiente, sendo necessário criar um sistema de normas autónomas para o transporte geográfico de pessoas e de bens.
A realidade é que a regulamentação jurídica existente que visa regulamentar o contrato de transporte aéreo ainda se encontra dispersa em diferentes fontes do direito. Assim, viso neste capítulo referenciar as três fontes de direito possíveis que regulam esta temática, sendo elas: a) – Fontes Internacionais, onde irei abordar as duas principais convenções entre Estados existentes até à data, no âmbito da responsabilidade da transportadora aérea;
b) – Autorregulação, numa vertente totalmente privatista, refiro-me aqui a acordos que existem entre as próprias companhias aéreas; e ainda, c) – Fontes Comunitárias, diretivas e regulamentos que abarcam toda a Comunidade Europeia e aqueles que nela circulam.
2.1- Das Fontes Internacionais:
2.1.1– Sistema de Varsóvia 1929
O vulgarmente conhecido “Sistema de Varsóvia” define-se como a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, que foi assinada em 12 de Outubro de 1929 em Varsóvia. Esta unificação surgiu na sequência de duas conferências internacionais, a saber: de Paris em 1925, e a de Varsóvia de 192910. Este foi o primeiro texto normativo que surgiu sobre esta matéria a nível internacional, e surge, essencialmente, por duas razões: i) – a necessidade de
10 Em 1910 Xxxxxxxxx proclama a teoria da liberdade do ar publicando um artigo na Revue Générale de Droit International Public, defendendo os interesses de um novo meio de locomoção, arguindo que o ar é livre e de todos, opondo-se desta forma a direitos dos estados sobre o ar, devendo, na sua teoria, os estados limitarem-se a garantir a segurança das pessoas que circulem aquele espaço aéreo. Chegou a proferir a frase “O ar é livre. Os Estados têm sobre ele em tempo de paz e em tempo de guerra apenas os direitos indispensáveis à sua conservação” dando assim o mote para a necessidade de criação da primeira Convenção. Para melhores esclarecimentos vide Xxxxx Xxxx, Xxxxx Xxxxx – O Regime Jurídico das Linhas Aéreas Internacionais, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 1945 – Ano 5, nº 1 e 2- doutrina p. 106.
criar ordem e uniformizar a caracterização e definição dos direitos e deveres dos sujeitos contratuais da relação jurídica que se encontram num contrato de transporte aéreo internacional; e, ii) -a necessidade de proteger e permitir a consolidação de uma indústria de serviços que estava em expansão, cuja a importância no plano económico-estratégico dos estados e do seu desenvolvimento, era considerada crucial.11 Era evidente a necessidade premente da criação de normas que unificassem uma estrutura jurídica, que tivesse uma força transfronteiriça, e que estivessem aptas a disciplinar o contrato de transporte aéreo12. Existem diversas razões justificativas para esta urgência, desde a heterogeneidade legislativa internacional, que nos conduzia a conflitos de leis que resultavam da aplicação de normas nacionais assimétricas e, já inadequadas, desproporcionais e desatualizadas para uma resposta eficiente sobre o transporte aéreo, o que levava a uma sistemática relatividade e incerteza das normas pelas quais se regiam, levando à criação de inúmeras injustiças. Por outro lado, havia uma grave ausência legislativa especial que visasse delimitar a responsabilidade do transportador e que dessa forma impusesse limites à própria responsabilidade. Não olvidando que era necessário e urgente proteger economicamente a posição ingrata que, por vezes, o transportador poderia ocupar, relembrando, aqui, que as transportadoras poderiam acarretar custos insuportáveis, como quantias indemnizatórias demandadas judicialmente, que levariam à insustentabilidade da sua atividade profissional, e que ainda acrescia a tais situações, a exploração oportunista das companhias seguradoras que vinculavam as operadoras aéreas a contratos de apólices milionários.13
Relativamente à CV no nosso ordenamento jurídico, a mesma entrou em vigor no dia 13 de fevereiro de 1933, aquando da ratificação por Portugal através do Decreto-Lei nº 26706, de 20 de junho de 1936, aderindo a esta pelo depósito
11 XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 48.
12 CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional; Op. Cit.
13 CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional, in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de Direito dos Transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.390.
do instrumento de adesão em 20 de março de 1947, vinculando assim Portugal desde 18 de junho de 1947.14
Quanto à sua estrutura, a CV é constituída por 41 artigos que se encontram sistematizados em cinco capítulos: I – Objeto e definições; II – Título de transporte; III – Responsabilidade do transportador; IV – Disposições relativas aos transportes combinados; e V – Disposições Gerais e Finais;
De forma sumária o objeto que foi estatuído prende-se com a regulação do transporte aéreo internacional de pessoas, bagagens ou mercadorias que seja efetuado por aeronave, seja remunerado ou gratuito15. O segundo capítulo que consta desta convenção é referente ao título de transporte onde se encontram as disposições sobre bilhete de passagem e de bagagens e documentação exigida no transporte de mercadorias.16 O terceiro capítulo é aquele que mais interessa nesta dissertação. Este inclui as normas que regem a responsabilidade do transportador, comportando um total de 16 artigos. A Convenção denomina o regime de responsabilidade do transportador como um regime de imperatividade mínima, que não admite qualquer tipo de derrogação que vise a exoneração do transportador da sua responsabilidade ou de tentativa de imposição de limites inferiores aos que estão fixados na convenção, sendo nula toda e qualquer cláusula que assim disponha, prevendo aí o denominado princípio da redução ou aproveitamento do negócio jurídico.17 18 O capítulo quarto esgota-se num único artigo que visa aplicar a convenção aos sistemas de transporte intermodais
14 A Convenção aplica-se ainda a todos os Estados que a tenham ratificado, ou que a ela tenham aderido e não a tenham denunciado. Tal como prevê o artigo 37º, nº 2 e 3 da Convenção.
15 A Convenção no seu artigo 1º, nº2 define transporte aéreo internacional como: “todo o transporte no qual, de acordo com o que foi estipulado pelas Partes, o ponto de partida e o ponto de destino, quer haja ou não interrupções de transporte ou transbordo, estejam situados quer no território de duas Altas Partes Contratantes, quer apenas no território de uma Alta Parte Contratante, se previu uma escala no território de um ou de outro Estado, mesmo que este Estado não seja uma Alta Parte Contratante. O transporte entre dois pontos dentro do território de uma única Alta Parte Contratante sem uma escala estabelecida no território do outro Estado não será considerado transporte internacional para os efeitos da presente Convenção.” – é de notar que ao transporte aéreo internacional gratuitos se irá aplicar a convenção quando o transporte seja efetuado por empresa de transportes aéreos.
16 Referimo-nos neste âmbito a documentação que é obrigatória como a carta de porte aéreo, guia de transporte, boletim de bagagem – cfr. Art.º 3º a 9º e 11º da Convenção.
17 É de salientar que a Convenção dispõe que nos casos de cláusulas nulas tal nulidade não implica a nulidade do contrato, pois o mesmo continua válido e sujeito às restantes disposições da Convenção – cfr. Arts.º 22º, nº 1 in fine, 23º, e 33º da Convenção.
18 XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 51.
desde que, no transporte contratado haja prestação de serviço de transporte aéreo internacional conforme a convenção define19. Por último, restam as disposições gerais e finais que se encontram no capítulo quinto, que são de uma relevância extrema, pois determinam a inderrogabilidade absoluta das normas consagradas na Convenção, a lei aplicável, as competências em matéria de jurisdição, a que regras que permitem aos estados contratantes exercer os direitos de reserva e de denuncia da convenção, a solicitação da revisão, assim que decorridos dois anos da sua entrada em vigor, as regras de ratificação e de adesão.
2.1.1.1 Protocolo de Haia de 1955
A 28 de setembro de 1955 urge a realização da IV Conferência Internacional de Direito privado, aquando do abrupto desenvolvimento tecnológico, o acentuado crescimento económico, que veio reforçar ainda mais o poder económico dos cidadãos, e consequentemente, aumentar a qualidade de vida de todos, e ainda, o enorme aumento da atividade aeronáutica. Surge então, o protocolo de Haia, impulsionado por um comité e duas organizações internacionais - CITEJA, ICAO e IATA – protocolo esse que visou apenas a modificação da Convenção de Varsóvia 2021. O que contrariamente ao expectável por muitos, não veio revogar a Convenção de Varsóvia, mas sim, modificá-la. Quantos às alterações que foram feitas cumpre enumerar cinco, que foram deveras importantes no que concerne à regulamentação do transportador aéreo. 1 – Simplificação dos documentos de transporte22; 2 – Desconsideração do erro de pilotagem para qualificação como causa de justificação ou exclusão da responsabilidade do transportador no transporte de bagagens e mercadoria; 3 – Aumento para o dobro dos limites indemnizatórios referentes à responsabilidade do
19 Sobre este tema ver: XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx, op. Cit.
20 CITEJA – Comité Internacional Technique D’Experts Juridiques Aériens; ICAO -International Civil Aviation Organization; IATA - International Air Transport Association.
21 Contrariamente ao que muitos pretendiam, uma vez, que foram colocadas propostas para a revogação da Convenção de Varsóvia, a fim de evitar que a mesma se tornasse naquilo que hoje é, uma manta de retalhos.
22 No que concerne a esta alteração foram suprimidas várias alíneas do artigo 3º, 4º e 9º da Convenção de Varsóvia de forma a simplificar a documentação introduzindo algumas presunções.
transportador23; - 4 – A possibilidade de o transportador adotar , no contrato de transportes de carga, clausulas que exonerem a sua responsabilidade ou que possam adotar valores inferiores aos que estão estabelecidos na convenção; 5
– O alargamento dos prazos para apresentação da reclamação, quer seja por danos verificados na bagagem ou na carga, quer seja por atraso na entrega da bagagem ou na carga. Em suma, o protocolo de Haia foi um pequeno ajuste feito à Convenção de Varsóvia na tentativa de se assemelhar mais à realidade existente.
2.1.1.2 – Convenção de Guadalajara de 1961
Esta é uma convenção complementar à Convenção de Varsóvia para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional efetuado por Pessoa Diversa do Transportador Contratual, assinada em 18 de setembro de 1961 com a sua entrada em vigor a 1 de maio de 1964. A alteração que nos importa reter, que resulta desta convenção, é precisamente quanto à responsabilidade do transportador. Em suma, foi caracterizada cada uma das figuras intervenientes, clarificando-as e delimitando as posições do transportador que é contratado e daquele que realiza efetivamente o transporte24, sujeitando primeiramente, o transportador de fato ao regime da convenção de Varsóvia, em especial, quanto aos limites da responsabilidade, e ainda, à extensão da legitimidade processual passiva do transportador contratual e do transportador de facto, assim como se viu estendido o regime da responsabilidade limitada aos agentes do transportador de fato, ou seja, ambos os sujeitos foram submetidos às regras uniformes em matéria de responsabilidade25. É no Art.º III que encontramos a denominada “Responsabilidade Solidária”. Estabelece este artigo
23 O artigo 22º da convenção de Varsóvia é suprimido no seu todo e substituído por diferentes disposições, assim, o limite que era previsto como teto máximo de uma indemnização foi alterado, podendo até mesmo ser diferente caso as partes o queiram.
24 Distinguindo aqui o denominado “transportador contratual” e “transportador efetivo” tão usuais em situações como “wet leasing” e o “code sharing” – ver: XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 56.
25 O Art. II desta Convenção estabelece uma diferença proporcional neste regime, ou seja, enquanto o transportador contratual é responsável durante todo o período do contrato de transporte, o transportador de fato é responsável apenas na medida das suas ações, ou seja, só é responsabilizado pelo transporte por si mesmo efetuado, digamos que a sujeição aos hiatos temporais torna mais proporcional todo o regime a que são sujeitos; ambos são responsáveis pelo período contratual que é tido em cada uma das suas ações.
que o transportador contratual é objetivamente responsável pelas ações ou omissões do transportador efetivo, assim como o inverso, o transportador de fato é também responsável pelos atos e omissões do transportador contratual26.
É de salientar que Portugal não se encontra vinculado a esta convenção, mas tal não invalida que a mesma não seja aplicada em relações comerciais internacionais, ou seja, poderão ocorrer situações em que, mesmo que Portugal não esteja vinculado, tenha de respeitar as suas disposições. Imaginemos uma situação em que uma empresa de transporte aéreo nacional contrate em seu nome, serviços aéreos em dois pontos, que não seja aplicada a convenção de Montreal de 1999, e que, o transporte seja efetivamente realizado por empresa aérea terceira. Ainda que seja aplicada à empresa aérea nacional a convenção de Montreal, o mesmo não se aplica ao transportador de fato, que se encontra abrangido pela convenção de Gadalajara. O que determina qual a convenção a aplicar são essencialmente os dois pontos (origem e destino), se a origem está sob o regime da Convenção de Gadalajara, assim como, o transportador de fato, ainda que não seja esse o regime aplicado ao país do destino, então aplicar-se- á o regime de responsabilidade da Convenção de Guadalajara27.
2.1.1.3 – Protocolo de Guatemala de 1971
Este Protocolo foi assinado em 8 de março de 1971, e veio introduzir mais algumas modificações à Convenção de Varsóvia de 1929, já também alterada pelo Protocolo de Haia de 1955, sendo elas:
1 – Admissibilidade de título coletivo para transporte de pessoas e bagagens;
2 – No que concerne ao título de pessoas e bagagem o título deixa de ter as funções informativa e constitutiva;
26 É necessário esclarecer que, no caso da responsabilidade objetiva do transportador de fato, nenhum ato ou omissão do transportador contratual poderá sujeitar o transportador de fato à responsabilidade que exceda os limites impostos pelo Art. 22 da Convenção de Varsóvia; foi assim criada a sujeição a um sistema de co-responsabilidade dos transportadores aéreos.
27 Será o caso de um vôo que tenha como origem Casablanca, em Marrocos, e que seja operado por transportadora aérea marroquina, ainda que com destino Portugal. – Para melhor explicação: XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 59
3 - Alteração das regras e dos limites indemnizatórios referentes à responsabilidade civil do transportador;
4 – Relativamente ao princípio da exclusividade o mesmo passa a aplicar-se, sem desvios e de forma absoluta, nos casos de responsabilidade em que esteja subjacente um dano resultante de destruição, perda ou avaria de mercadorias, que seja no caso de atraso de entrega das mesmas;
5 – Foi também alterada a competência para conhecer das ações sobre responsabilidade civil por dano resultante em morte, lesão corporal, destruição, perda, avaria ou atraso no transporte de passageiros e bagagens, sendo alargada ao foro que se situa no território de uma Alta parte contratante em que o transportador também tenha estabelecimento, se o passageiro tiver domicilio ou residência permanente no território da mesma Alta parte contratante;
6 - Foi ainda inserida uma norma que tem como objetivo a revisão, e consequentemente a sua atualização, periódica do valor máximo da sanção indemnizatória aplicada ao transportador aéreo em caso de dano resultante em morte ou lesão à integridade física do passageiro, reajustando e readaptando estes limites à realidade vivida à época.
2.1.1.4 – Protocolos de Montreal de 1975
A 25 de setembro de 1975 em Montreal é realizada a Conferência Internacional de Direito Privado, e nesta sequência são aprovados quatro protocolos, vulgo denominados por “Quatro Protocolos Adicionais de Montreal”. Os três primeiros que tiveram um único objetivo – converter a unidade de conta, utilizada até então pela Convenção de Varsóvia – chegando a substituir o sistema de Poincaré pela unidade de direito de saque especial (DSE)28. O quarto protocolo já veio versar outra temática; veio modificar o regime da responsabilidade do transportador no transporte internacional de mercadorias, estabelecendo um regime de
28 DSE (Direito de Saque Especial) corresponde a uma unidade de conta atualizada periodicamente pelo Fundo Monetário Internacional, em que o valor é determinado pela variação média da taxa de câmbio das moedas, que são os quatro maiores exportadores do mundo (euro, iene japonês, libra e dólar americano).
responsabilidade objetiva em casos de destruição, perda ou avaria de mercadorias29.
2.1.2– Convenção de Montreal de 1999
A convenção de Montreal de 1999, surge como uma esperança de finalizar a “manta de retalhos” que era a Convenção de Varsóvia, com o intuito de substituir- se a esta. O sistema de Varsóvia é constituído pela convenção e por demasiados acréscimos, o que a torna complexa, facilmente desatualizada e demasiado fragmentada. Tal sistema tornou-se em algo pouco prático não conseguindo acompanhar o constante desenvolvimento e expansão da aeronáutica, o que levou a uma necessidade premente de criação de instrumentos jurídicos que autorregulassem de forma privada e que pudessem desenvolver as questões jurídicas que começavam a ser suscitadas nesta nova era da aeronáutica30
Esta Convenção tinha como objetivo primordial garantir que todo o desenvolvimento das operações de transporte aéreo internacional resultasse de forma ordenada, mantendo um fluxo de passageiros, bagagens e mercadorias de forma regular, sempre em conformidade com os princípios e objetivos estabelecidos na convenção de Chicago31.
Posto tal incumbência a esta convenção, facto é, que a mesma não foi capaz de revogar o anterior sistema de Varsóvia; todavia, em caso de concurso de normas entre os textos normativos de Varsóvia e Montreal, serão sempre aplicáveis as normas constantes da Convenção de Montreal, tal como prevê o artigo 55º desta Convenção.
Neste novo plano normativo é de salientar uma importante inovação ora criada, foi instituído um regime de responsabilidade por danos causados em caso de morte ou lesão corporal de passageiros, que se divide em dois níveis (two tier
29 É de salientar que Portugal assinou em 1975 todos estes protocolos adicionais, ratificando-os em 1982. Porém considera-se apenas vinculado aos protocolos nº1,2 e 4, uma vez que o terceiro implicaria a aceitação do Protocolo de Guatemala, nunca chegando a entrar em vigor.
30 A revogação da CV pela CM embora frustrada, devido ao facto de nem todos os Estados Partes da primeira serem Partes da segunda, prevalece em caso de concurso, por aplicação do seu artigo 55º. Sobre este assunto vide GRAÇA TRIGO, in “Responsabilidade civil do transportador aéreo”, in Direito e Justiça, vol. XII, tomo 2, 1998., p. 819 e ss.
31 A Convenção de Chicago é datada de 7 de Dezembro de 1944 e versou essencialmente sobre a Aviação Civil Internacional, de forma a assegurar uma homogeneidade de normas referentes ao transporte aéreo internacional.
system)32: O primeiro é direcionado ao regime de responsabilidade objetiva do transportador que é limitada, pelos cômputos estabelecidos no artigo 24º da Convenção de Montreal. O segundo elemento é referente a um regime de responsabilidade ilimitada que tem como fundamento a culpa presumida do transportador cujo valor é superior ao do primeiro regime sempre que o dano resulte em morte ou lesão da integridade física do passageiro, e que advenha de acidente no transporte aéreo de pessoas. Isto é, na prática o que ocorre é que a responsabilidade objetiva tem um teto máximo de 113.100 DSE; a responsabilidade subjetiva baseada na culpa presumida, no que concerne ao montante terá que superar o patamar da responsabilidade objetiva. Devemos ter em conta que a responsabilidade objetiva é aquela que permeia o sistema de responsabilidade, não se constrói o paradigma da teoria do risco integral ou responsabilidade absoluta, competirá, a posteriori, à vítima tão somente comprovar que o dano ocorreu a bordo da aeronave, ou durante as operações de embarque ou desembarque, competindo aos Tribunais a apreciação das referidas operações. Caso o dano efetivo supere o patamar de 113.100 DSE, emerge tão somente presunção de culpa do transportador, que poderá eximir-se do dever de indemnizar, caso comprove que a causa do dano-evento não derivou de negligência ou outra ação ou omissão sua ou dos seus propostos.
É de salientar que foi implementada, de forma expressa, a exclusão de pagamento de indemnizações que tenham como fundamento disposições não constantes na Convenção, isto é, as transportadoras não podem ser condenadas a pagar indemnizações que visem a punição, o exemplo, ou outras que não sejam meramente compensatórias – cfr. Artigo 29º, in fine, da Convenção de Montreal; Foi imposta uma revisão quinquenal quanto aos limites indemnizatórios previstos nos artigos 21º a 23º. Foi ainda, revogado o princípio da exclusividade, que previa que somente a Convenção poderia determinar as pessoas com legitimidade processual em ações por danos resultantes do transporte aéreo de passageiros, bagagens e mercadorias, independentemente do seu fundamento.
32 Sobre este tema e de forma bem mais aprofundada vide XXXXX XXXXX, HUGO – “Direito AÉREO UMA INTRODUÇÃO”; Lisboa, AAFDL editora, 2019, p. 504 e 505.
Foi atribuída a liberdade de o transportador elevar o limite da sua responsabilidade ou até mesmo suprimi-lo33. Não obstante, foi ainda prevista a nulidade de qualquer cláusula que vise exonerar a transportadora da sua responsabilidade, ou que pretenda diminuir os limites já previstos na Convenção. Tal nulidade não implica todo o contrato, que continua válido nas suas cláusulas restantes. Mais, a transportadora viu a sua liberdade contratual ser alargada, passando a poder recusar a celebração de qualquer contrato de transporte, renunciar aos seus meios de defesa que se encontram previstos na convenção, ou estipular quaisquer outras condições, desde que não contrariassem as disposições da própria convenção.
Outra das alterações feitas foi a criação de um mecanismo denominado por “advance payments”, que consiste numa compensação remuneratória adiantada, aplicada em caso de acidente que resulte em morte ou lesão corporal do passageiro, sempre que tal seja imposto pela legislação nacional. Tal mecanismo é útil para que haja uma disponibilidade económica imediata às pessoas que tenham legitimidade processual para pedir a indeminização. Foi também introduzido todo um novo capítulo, que visa a adaptação desta Convenção à evolução do sistema de transporte aéreo, dedicado ao transporte aéreo internacional que é realizado em regime de code share - acordo de cooperação em que uma transportadora faz o transporte de passageiros cujos bilhetes foram emitidos por outra companhia - e de wet lease – contrato celebrado entre duas companhias que tem como objeto a locação de uma aeronave, com seguro e, acompanhada da respetiva tripulação;
A Convenção passou a obrigar as transportadoras nacionais a terem seguro que cubra a sua responsabilidade, nos termos que ela própria prevê34.
Por último, apesar de a convenção não prever a possibilidade de reservas, um Estado contraente poderá, sempre, declarar que a Convenção não se aplica em duas situações: 1 – ao transporte internacional explorado diretamente por esse Estado contraente para fins não comerciais e no âmbito das suas funções
33 Artigo 25º “As transportadoras poderão estipular que o contrato de transporte fique sujeito a limites de responsabilidade superiores aos previstos na presente Convenção ou a nenhum limite de responsabilidade”.
34 A este respeito vide CASTELLO-BRANCO BASTOS, op. Cit., pp. 29-34.
e deveres enquanto Estado soberano; 2 – ao transporte de pessoas, bagagens e mercadorias para as suas autoridades militares em aeronaves registadas ou locadas por esse Estado contraente, em que a capacidade total da aeronave seja reservada por ou em nome de tais autoridades em serviço do estado. Uma vez que neste âmbito desprendemo-nos da vertente privatista.
2.2 - AUTOREGULAÇÃO
Aqui irei referir os principais acordos privados entre companhias aéreas. Não invalidando a força jurídica pela qual se rege o sistema de Varsóvia, facto é que, existem acordos privados entre algumas companhias aéreas, graças à sua liberdade e autonomia contratual, o que consequentemente traz para a ordem jurídica algumas alterações quanto ao sistema de responsabilidade civil que foi imposto pela Convenção de Varsóvia, que importa aqui estudar.
2.2.1 – Acordo de Montreal de 1966
Este acordo assinado em 4 de maio de 1966, tem natureza jus privatista, uma vez que não foi celebrado tendo por base as normas do ICAO 35. Tem como partes contratantes, por um lado, companhias aéreas que operam, seja como origem, destino ou simplesmente escala, em território norte-americano e, por outro lado, o Governo dos Estados Unidos da América. Ou seja, este acordo foi imposto a qualquer companhia que aterrasse ou decolasse do território norte- americano, submetendo toda a sua aplicabilidade a rotas que operassem naquele território. Este acordo surge pela denúncia dos EUA à CV em 1965, que nunca chegou a surtir efeito, mas que veio demonstrar publicamente o desacordo dos EUA face à insustentabilidade que advinha da degradação dos montantes dos limites de responsabilidade do transportador aéreo na CV quanto à reparação do dano de morte ou lesão da integridade física do passageiro no transporte de pessoas36. Ficou demonstrado que era necessária, e urgente, uma
35 Oficialmente este acordo é denominado como Agrement Relating to Liability Limitations of the Warsaw Convention and the Hague Protocol – cft. XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 90.
36 Sobre esta denúncia feita pelos EUA à CV, muito embora não tenha surtido qualquer efeito prático, a verdade é que em 1966 os EUA ameaçaram a sua denuncia à CV, sendo elaborado este acordo entre a Civil Aeronautical Board dos EUA e a IATA, permitindo que as companhias filiadas na IATA deixassem de poder invocar a causa de exoneração de responsabilidade por danos causados ao passageiro em caso de morte ou lesão corporal que se encontrava prevista
revisão imediata de tais limites, sendo essa a condição essencial para que os EUA se mantivessem como parte contratante da Convenção de Varsóvia. Posta tal situação foi necessária uma reunião em Montreal com 51 delegados de Estados para uma conferência com o objetivo de discutir e rever os limites financeiros da responsabilidade civil do transportador aéreo. Como de tal conferência não surtiram grandes efeitos, em consequência disso algumas companhias aéreas IATA, que operavam de forma regular nos EUA, vieram a aceitar obrigar-se de forma direta com o Governo dos EUA, fixando um limite de responsabilidade mais elevado em relação ao transporte aéreo internacional de pessoas.
Em suma, o Acordo de Montreal de 196637 tornou-se o mote das alterações que digam respeito quanto a fundamentos e limites, mediante o que estava preceituado em Varsóvia (1929) e em Haia (1955).
2.2.2 – Acordo de Malta de 1976 e de 1987
O acordo de Malta de 1976 vem precisamente pela criação do acordo de Montreal de 1966, uma vez que 36 países europeus assinaram este acordo de Malta, como forma de reação contra a desigualdade que foi gerada pela aplicação dos diferentes limites indemnizatórios até então consagrados38. Os 36 estados visavam incentivar as companhias aéreas nacionais a garantir o cumprimento de uma quantia39 indemnizatória semelhante à prevista no Protocolo Adicional de Montreal nº3, em caso de morte ou lesão corporal. Como forma de coagir as companhias a aceitarem tais valores, foi determinado que apenas seriam concedidas licenças administrativas para o desenvolvimento da
no artigo 20º da Convenção. Mais, previram a sujeição a um regime de responsabilidade quase objetiva com teto indemnizatório máximo de 75.000 mil dólares americanos, que deveria constar do próprio bilhete.
Este acordo serviu principalmente para evitar uma rutura de laços na aviação civil, onde encontrou força no artigo 22º, nº1, in fine, da CV, levando a que os EUA desistissem da denuncia feita à Convenção de Varsóvia. Sobre este tema vide, Calaim Lourenço, A limitação de responsabilidade do transportador aéreo no transporte de pessoas, in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de Direito dos Transportes, Coimbra, Almedina, 2010, p. 410.
37 Certo é que este acordo vem somente abranger todas as operações efetuadas no território norte-americano, e que tais danos por morte ou lesão corporal, tenham origem em acidente aéreo.
38 Limites esses diferentes, onde por um lado vigorava os do sistema de Varsóvia/Haia, por outro o acordo de Montreal/CAB de 1966.
39 Referimo-nos aqui a uma quantia equivalente a 100 mil DSE que rondará os € 110000.
atividade aeronáutica dentro desses mesmos estados às empresas que aceitassem vincular-se aos novos limites indemnizatórios contratados.
A 1 de Abril de 1987 surge o segundo Acordo de Malta, sob a proteção da Association of European Airlines (AEA). Este acordo vem, essencialmente, referir que as companhias aéreas, face aos outros dois acordos que lhe estão subjacentes, tencionam elevar o limite indemnizatório por responsabilidade por dano morte ou lesão corporal do passageiro resultante de acidente, até ao mesmo limite consagrado nos anteriores acordos.
2.2.3 – Acordos IATA: IIA (1995) e MIA (1996)
Estes dois acordos, que têm como origem a sua natureza privatista, foram criados na própria IATA40, e têm um cariz importante pois é na IATA que encontramos as principais companhias aéreas comerciais.
Relativamente ao IIA que foi celebrado a 31 de outubro de 1995, em Kuala Lumpur, este visou fundamentalmente duas premissas. Primeiramente, vem defender que no que concerne à responsabilidade, por danos de morte ou lesão corporal limitada, que funciona tendo a ela subjacente uma presunção de culpa do transportador, deverá ser substituída por uma responsabilidade ilimitada, em que se reserva à lei do domicilio da vítima a competência para o reconhecimento e atribuição do respetivo direito de compensação. Por outro lado, é reservado o direito de defesa do transportador ao abrigo da cláusula exoneratória prevista no art. 20º da Convenção de Varsóvia.
Por seu turno o MIA – Agreement on Measures to Implement the IATA Intercarrier Agremeent – refere-se logicamente a um acordo em que as companhias aéreas que o assinam, se comprometeram a adotar as medidas do acordo IIA com condição de inclusão das mesmas nos seus contratos de transporte.
Desta forma, mediante os Acordos IATA, as companhias aéreas conseguiram afastar o regime constante da Convenção de Varsóvia quanto ao tipo de responsabilidade ora descrito. Mais, os acordos IATA são de adesão voluntária pelas companhias signatárias o que fará que tais acordos passem a incorporar
40 IATA – Associação que abrange o sector da aviação comercial e que abarca a grande maioria das transportadoras aéreas a nível mundial.
as condições gerais de transporte das mesmas. Conseguiram ainda, ao subscreverem os acordos, desvincular-se do Acordo de Montreal de 1966, devendo somente notificar o Department of transportation do Governo dos EUA, para que saibam quais as companhias desvinculadas do Acordo de Montreal.
2.3 – Fontes Comunitárias – Diretiva e Regulamento
2.3.1 – Diretiva CEE nº 90/314
Com toda a evolução tecnológica e acompanhando toda a crescente área de turismo foi necessário a criação de regulamentação comunitária, para um mundo que se tem tornado mais próximo e globalizado. Com os anos não só as agências de viagem foram forçadas a inovar, assim como os turistas tornaram-se mais exigentes, não se bastando mais com simples viagens com um único destino e feito por um único meio de transporte. Assim foram então criadas as denominadas viagens combinadas/organizadas.
Este tipo de viagem criou uma certa dificuldade na doutrina e jurisprudência, pois cresceu de forma tão abrupta que a legislação não conseguiu acompanhar, não conseguindo determinar a qualificação jurídica a atribuir aos contratos celebrados pelas agências. Por esta razão nasceu a Diretiva do Conselho Europeu 90/314/CEE.
Esta diretiva visava essencialmente a harmonização das legislações dos estados membros quando o objeto contratual era viagens, férias, circuitos organizados, vendidos no território da comunidade, de forma a remover possíveis entraves à livre prestação de serviços e evitar distorções de concorrência entre operadores estabelecidos em diferentes estados membros. Assim asseguravam uma política comum e garantiam a segurança dos consumidores equitativamente na aquisição de viagens organizadas.
Desta feita, foi possível criar regras quanto a esta atividade de operadores turísticos dentro da comunidade europeia, protegendo muito mais eficazmente o consumidor. Esta diretiva foi transposta por Decreto-Lei nº 198/93 que hoje se encontra revogado pelo Decreto-Lei nº 61/2011 que deu origem ao novo regime que hoje se encontra em vigor.
2.3.2 – Regulamento CE nº 2027/97
Este regulamento tem por objeto a regulamentação tanto da responsabilidade civil no transporte aéreo por danos causados a passageiros que advenham de acidente ou atraso, como por, danos provenientes de avaria, perda ou destruição da bagagem. A sua aplicação estende-se ao transporte aéreo de um Estado- Membro, independentemente do estatuto pessoal do transportador41.
2.3.3 – Regulamento CE n º 261/2004
Este regulamento veio revogar o Regulamento CEE nº 295/91 do Conselho, de 4 de fevereiro, que regulamentava matéria sobre overbooking42 43. Inseriu na ordem jurídica novas regras quanto a esta recusa legítima de embarque, ampliou o leque do seu objeto abrangendo também situações de cancelamento ou atraso significativo de voos, assim como, a possibilidade de inserir o passageiro em assentos de classe inferior contratadas – Downgranding. Esta regulamentação tornou-se essencial e necessária de forma urgente, devido à prática recorrente das companhias aéreas deste tipo de fenómenos, o que levou a uma desconsideração grave dos direitos dos passageiros.
Este Regulamento foi criado com o objetivo de garantir a proteção da parte contratante mais frágil no âmbito do contrato de transporte: os passageiros; e ainda, no pressuposto de que o “atraso considerável nos voos” poderá causar sérios transtornos e inconvenientes aos passageiros. Visa essencialmente atribuir um núcleo essencial de direitos mínimos dos passageiros em casos como atrasos ou cancelamento de voos 44.
41 Esta extensão só é possível pela entrada em vigor do Regulamento CE nº 889/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho em 13 de maio de 2002, pois antes desta data a aplicação era restrita apenas às transportadoras comunitárias. Hoje, após tantas alterações e revogações este regulamento se encontra em vigor pelo Decreto-Lei nº 199/2012, de 24 de Agosto.
42 O Regulamento CEE nº 295/91 foi substituído por se verificar que a tutela que era feita aos passageiros era de nível “básico”, uma vez que, o número de passageiros que sofriam recusa de embarque só aumentava, sendo clara a necessidade de reforçar a tutela. Para maior aprofundamento da questão vide MORAIS BETTENCOURT, Xxxxxx, op., cit., p. 487.
43 Fenómeno denominado por overbooking que é referente à recusa de embarque por voos sobrereservados. XXXXXX XXXXXXXXXXX explica o fenómeno “(…) na medida em que nem todas as pessoas que reservam bilhetes acabam por realizar o voo, as transportadoras, para tornar a sua atividade mais rentável e evitar que os voos não estejam totalmente preenchidos, aceitam reservas que excedam a capacidade da aeronave” – Cfr. XXXXXX XXXXXXXXXXX, Xxxxxx op. Cit. P. 486.
44 No decorrer da análise do Regulamento podemos encontrar no seu artigo 6º que, quando ocorram atrasos de determinada duração na hora de partida de um voo em relação ao horário
Devido a esta preocupação em garantir uma proteção jurídica aos passageiros, houve desde logo uma rápida resposta por parte da IATA e da ELFAA – European Law Fares Airline Association – onde foram produzidas críticas a este regulamento, nomeadamente quanto ao montante estabelecido como sanções às companhias aéreas em caso de atraso ou cancelamento de voos, relativamente ao facto de não serem garantidos quaisquer tipos de mecanismo de defesa sempre que o facto seja imputável a circunstâncias fora do controlo do transportador45.
2.3.4 – Regulamento CE nº 1107/2006
De forma a garantir a igualdade e a não discriminação de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida, idade, ou outro fator que os possa diferenciar, vem este regulamento assegurar que estas minorias tenham oportunidade de acesso ao transporte aéreo equivalente à dos outros passageiros. Para tal, este regulamento objetiva que tanto as companhias aéreas como os aeroportos criem medidas que se adaptem às necessidades especiais deste grupo de passageiros, para que permita ao passageiro usufruir de todos os serviços aéreos comerciais de passageiros, que operem num aeroporto situado num Estado-Membro da UE.
CAPÍTULO III – O CONTRATO DE TRANSPORTE AÉREO
3.1 – Noção e elementos do contrato
Importa desde logo desmistificar o que é o contrato de transporte, para que possamos contextualizar toda esta temática. O contrato de transporte é nada mais do que um acordo composto por duas partes intervenientes, em que num dos lados temos a transportadora, e que, é convencionado o transporte de
programado, a transportadora aérea é obrigada a prestar aos passageiros assistência, traduzida, conforme as diversas situações, em refeições e bebidas, alojamento se necessário, chamadas telefónicas, reembolso e viagem de regresso ao ponto de partida (Cfr arts 8º 1 a) e 9º 1 e 2) combinados com o artigo 6º).
45 Devido às divergências criadas pelo regulamento, vários foram os casos levados ao TJCE; a título de exemplo temos o caso England vs Wales proposto pelo High Court Of Justice e Queen’s Bench Division, em que foram colocadas em análise os artigos 5º, 6º, 7º do Regulamento, acabando o Tribunal por concluir pela conformidade das normas com o regime da Convenção de Montreal. – Cfr. Acórdão visualizado em xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/PT/ALL/?uri=CELEX%3A61999CJ0192 ( visualizado a 14-01-2019).
pessoas ou coisas, por meio aéreo, de um ponto geográfico para outro, realizado por uma aeronave, de forma onerosa ou gratuita46. Embora se possa discutir internacionalmente a tipificação deste contrato, uma vez que a lei portuguesa não qualifica de forma expressa o contrato, podemos afirmar que este é um contrato de prestação de serviços47.
Todavia, o objeto do contrato de transporte aéreo não corresponde a um típico contrato de prestação de serviços, então por essa razão não se pode concluir por uma plenitude contratual-prestacional, mas sim por uma qualificação mista deste contrato.48
Desmembrando o contrato de transporte aéreo e analisando cada elemento de forma individual, podemos perceber que a conceção do objeto do contrato não é unânime, para XXXXX XXXXXXX o objeto do contrato é centrado exclusivamente na prestação de um serviço específico que claramente está relacionado com a deslocação geográfica, quer de pessoas quer de coisas, por via aérea. Mais, o autor refere “o objeto deste contrato é uma prestação de serviço de condução que compreende duas características: (a) a capacidade para mover ou deslocar geograficamente pessoas ou objetos; e (b) a especificidade do meio usado nessa
46 A doutrina diverge quanto ao conceito de contrato de transporte aéreo, para XXXXX XXXXXXX este é definido como “ o acordo em que convergem duas vontades opostas mas harmonizáveis celebrado entre aquele que pretende fazer conduzir a sua pessoa ou de terceiro, ou coisa certa, de um lugar para o outro utilizando a via aérea e aquele que, de forma onerosa ou gratuita, aceita encarregar-se dessa condução.” – Cfr. XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 21.
Por outro lado, XXXXX XXXXXXX, Xxxx em Derecho Aeronáutico, 2ª edição, Bosch, Barcelona, 1993, p.413, define o mesmo contrato atribuindo um conceito diferente “Aquel mediante el cual, una persona denominada transportista conviene com otra que llamaremos usuário, en el translado de un lugar a outro en una aeronave y por vía aérea de una determinada persona o cosa arreglo a las condiciones estipuladas entre ambas as partes.”
XXX XXXXXX, Jesus de em La Responsabilidade en el transporte aéreo internacional, Madrid, 2006, p.285, vem acrescentar a conceito aeroporto nesta definição “El contrato de transporte aéreo de personas puede definirse genericamente como aquel contrato mediante el cual un operador aéreo erigido en transportista se obliga a transladar a una persona (el pasajero) y su equipaje, mediante una aeronave y a través del medio aéreo, desde un aeropuerto considerado como lugar de partido a outro aeropuerto erigido como lugar de destino.”
Facto é que a doutrina não é unânime na definição integral do contrato, mas é unânime quanto aos elementos que o preenchem.
47 No mesmo sentido MORAIS BETTENCOURT, Cfr. op. Cit., p. 492.
48 Passando a explicar, este contrato vai além da simples prestação de serviços pois à prestação contratada podemos associar ainda, o transporte de bagagem, que de forma autónoma irá concorrer com a prestação principal. Neste sentido, poderemos encontrar no mesmo contrato um contrato de prestação de serviço, como o transporte do passageiro, e um contrato de depósito no que concerne à bagagem.
condução ou deslocação.”49 Por outro lado, há autores que afirmam que o objeto não tem a exclusividade centrada na prestação de serviço, o contrato vai muito além da deslocação de pessoas ou coisas, ele abrange no seu núcleo essencial de vários outros objetos, como por exemplo, a locação de uma poltrona a um passageiro na aeronave; a prestação de serviços de segurança ao passageiro que implica a disponibilização, por parte da transportadora, de instrumentos de segurança para casos de emergência; a prestação informativa que é dada de forma prévia à descolagem, no decorrer do voo, e até mesmo, na aterragem em caso de emergência. O objeto do contrato de transporte, na minha perspetiva, deverá ser unicamente centrado na prestação de um serviço específico, todavia estão inerentes a ele, deveres para que haja boa execução do contrato. Parece- me, salvo melhor opinião, razoável centrar todo o objeto numa obrigação principal que é a deslocação, uma vez que, o principal objetivo do contrato é a deslocação, e o que releva, principalmente, é a obrigação de resultado e não de meio; se retirarmos, por exemplo, os instrumentos de segurança na qual a transportadora é obrigada a disponibilizar, estaremos a fragilizar todo o objeto do contrato pois retiraremos o valor que algumas prestações auxiliares têm, porém se o transportador cumprir a sua obrigação de resultado, então não poderá ser responsabilizado pelo atraso na execução do contrato, todavia poderá sempre ser responsabilizado pelo incumprimento dos seus deveres acessórios ao contrato50 51.
Quanto aos sujeitos constantes do contrato de transporte aéreo temos desde já o transportador, que é aquele que se obriga a deslocar pessoas ou coisas de um ponto geográfico para outro, e do outro lado, no caso de transporte de pessoas, é por norma aquele que irá beneficiar do serviço, ou seja, o passageiro. Poderá ocorrer que o beneficiário não seja a parte contratante, em que estaremos
49 Crf. NEVES ALMEDIA, Xxxxxx Xxxxxxx - Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 21.
50 Cfr. XXXXXXX XXXXXXXX, António – Tratado de Direito Civil Português, Direito das Obrigações, Vol. IV, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 528 e ss. – é feita uma distinção relevante quanto a ónus e encargos, que nos permite estudar esta temática.
51 Para melhor análise, XXXXX, Xxxx Xxxxx – “Em tema de Direitos dos passageiros no contrato de transporte aéreo”, in Estudos de Direito Aéreo, Dário Xxxxx Xxxxxxx (coord.), Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 299.
perante um contrato celebrado a favor de terceiro. Já no caso de o transporte ser de mercadoria, teremos a contraparte denominada por expedidor.52
Quanto à natureza jurídica deste tipo de contrato podemos referir que a sua natureza irá sempre depender do contrato em causa, pois o mesmo poderá não ser constituído somente de prestação de serviços, como também de depósito, mandato, transporte. O que nos leva a remeter esta situação para uma contextualização do caso concreto.
Apesar da centralidade do contrato de transporte, de passageiros ou de mercadorias, estar assente na obrigação de deslocação, resultando na chegada ao local de destino, existem obrigações que a ela estão inerentes e que não podemos descurar. Aliada há obrigação de resultado vem o dever de proteção/custódia, isto é, de nada serve a deslocação de pessoa ou mercadoria, se a mesma não for cumprida de forma zelosa, não podemos concluir um contrato de transporte de mercadoria na sua plenitude se a mercadoria chegar ao destino, mas se encontre defeituosa. Assim, ao transportador cabe o dever de execução do contrato de forma a que, quer o passageiro quer a mercadoria, cheguem ao destino sem qualquer dano. Recai sobre o transportador este dever de custódia, enquanto está sob sua tutela o bem a transportar, e um dever de vigilância quanto ao passageiro a transportar53.
Descortinando os elementos todos do contrato, resta-nos o elemento fulcral para a distinção deste contrato de prestação de serviços para os demais. Refiro-me ao elemento que genericamente é denominado por “via aérea”, que pelo seu diferencial e importância, constitui a definição do contrato de transporte aéreo.
Para melhor definir este conceito devemos começar por delimitá-lo no espaço, ou seja, averiguar quais os limites mínimos e máximos sob os quais possa uma aeronave sobrevoar para que possamos aplicar o conceito “via aérea”. Quanto a estes limites devemos analisar o Regulamento de Execução EU nº 923/201254,
52 Cfr. XXXXXXXX XX XXXXXXX, Xxxxxx – Contratos II, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2011,
p.164 e ss.
53 De forma sucinta e de fácil perceção sobre este tema vide XXXXX XXXXX, XXXX – “Direito AÉREO UMA INTRODUÇÃO”; Lisboa, AAFDL editora, 2019, p. 419.
54 REGULAMENTO DE EXECUÇÃO UE Nº 923/2012, que estabelece as regras do ar comuns e as disposições operacionais no respeitante aos serviços e procedimentos de navegação aérea e que altera o Regulamento de Execução (CE) nº1035/2011, e os Regulamentos (CE) nº 1265/2007, (CE) nº 1794/2006, (CE) nº 730/2006, (CE) nº 1033/2006 e (UE) nº 255/2010.
que vem estabelecer que: “Exceto se necessário para a descolagem ou a aterragem, ou salvo autorização da autoridade competente, as aeronaves não devem efetuar voos sobre zonas densamente povoadas de cidades, vilas ou aglomerações ou concentrações de pessoas ao ar livre, salvo a alturas que, em caso de emergência, permitam efetuar uma aterragem sem riscos indevidos para as pessoas e bens no solo. As alturas mínimas para os voos VFR55 são as especificadas na secção SERA.5005, alínea f) - Exceto se necessário para descolagem ou aterragem, ou com a autorização da autoridade competente, não devem ser realizados voos VFR: 1) Sobre áreas densamente povoadas de cidades, vilas ou aglomerações ou concentrações de pessoas ao ar livre a uma altura inferior a 300 metros acima do obstáculo mais elevado localizado num raio de 600 metros da aeronave; 2) Noutros locais não especificados na subalínea i), a uma altura inferior a 150 metros acima do solo ou da água ou a 150 metros acima do obstáculo mais elevado localizado num raio de 150 metros da aeronave;” Em suma, após a leitura feita o que poderemos concluir é que não há uma fixação mínima para que as aeronaves possam sobrevoar a terra ou água, o que irá, de certa forma, delimitar é o próprio caso concreto. Dita a regra de que não pode descer abaixo de 150 metros de altitude, porém, mediante o caso concreto poderá existir uma exceção por questões de necessidade súbita.
Por outro lado, quanto ao limite máximo a discordância já é maior, sendo possível encontrar algumas teses com o intuito de tentar definir o limite aéreo máximo de forma a tentar ultrapassar esta questão. Apesar deste ser um pressuposto para a atribuição de um regime diferente de responsabilidade consoante estarmos diante de um caso ou outro, este limite poderá dizer-se que não é consensual na doutrina, por esse motivo não irei analisar as várias teses para que não extravasemos o tema que aqui se pretende analisar56. O que importa reter é que
55 VFR – Visual Flight Rules (Regras de Voo Visual).
56 A este propósito cabe distinguir o conceito de direito aéreo e de direito espacial. Sendo certo que há uma linha que consegue delimitar no caso em concreto em qual jurisdição nos encontramos. Para delimitar foi criada a linha de Kármann, aceite pela FAI estabelecendo assim este limite padrão, ou seja, segundo os cálculos do engenheiro Xxxxxxx o limite é de 100 Km acima do nível do mar, que é usado para delimitar a atmosfera terrestre e o espaço exterior. Assim, qualquer atividade aérea que seja feita abaixo de 100 Km da superfície da Terra é considerada atividade aeronáutica; e toda aquela que é realizada a 100 Km acima da superfície terrestre é atividade astronáutica. De salientar que a questão maior que se coloca entre o direito aéreo e o direito espacial é principalmente a ausência de um limite físico e visível – vide Xxxxx Xxxxx, Hugo – Direito Aéreo uma Introdução, AAFDL editora, Lisboa, 2019, p. 134 e 135;
qualquer limite máximo pode ser discutido e que cada autor irá defender a sua teoria sem qualquer certeza de que essa é a correta enquanto não for fixado um limite57.
Outro conceito que não podemos olvidar neste tema é precisamente o conceito de aeronave: tão relevante quanto definir a via aérea é definir o instrumento no qual a deslocação será feita. Assim, analisemos o Regulamento de Navegação58. No seu art. 1º definiu aeronave como “qualquer aparelho que possa estar ou navegar no ar, considerando-se como tal os balões cativos ou livres, papagaios, dirigíveis, aviões e hidroaviões.” 59
Mais, a lei vai mais longe e consegue distinguir ainda as aeronaves do Estado (as que sobrevoam em serviço militar, aduaneiro ou policial) daquelas que estão destinadas a uso público ou privado. A própria Convenção de Chicago estipulou no seu art. 3º que o seu regime apenas se aplica às aeronaves civis e não às aeronaves estaduais, estabelecendo assim que as que estejam a serviço do Estado. Não poderão sobrevoar território de outro Estado sem que este autorize e outorgue acordo especial para o efeito, devendo a aeronave acarretar as condições estipuladas entre ambos os Estados.
3.2 – Características do Contrato
A natureza jurídica do contrato de transporte aéreo é o pressuposto fulcral para conseguirmos configurar o tipo de responsabilidade que irá ser aplicado a cada caso em concreto.
Iniciarei esta abordagem já estabelecendo que este é um contrato consensual, isto é, não está sujeito a uma forma especial. Assim, este tipo de contrato basta-
57 O desenvolvimento destas teorias quanto ao limite máximo, estão devidamente explicadas, em XXXXXXXXX-XXXXXXXXX, I. H. KOPAL V. – An Introduction to Space Law, 3ª edição, Wolters Kluwer, Holanda, 2008, p. 17.
58 O Regulamento de Navegação foi aprovado pelo Decreto 20.062, de 13 de julho de 1931.
59 Na Convenção de Chicago foi necessário definir este conceito. Assim ficou estanque neste Convenção que aeronave é aquilo por que se entende como: “Any machine that can derive support in the atmosphere from reactions of the air other than the reactions of the air against the earth’s surface” – Cfr. Convenção Chicago, anexo 7, capítulo 1º. Definição esta que foi acolhida por Portugal anos mais tarde pelo Decreto-Lei nº 186/2007, de 10 de Maio, que visa regular a construção, certificação e exploração dos aeródromos, que foi alterado pelo Decreto-lei nº 55/2010, de 31 de Maio. Assim entende-se por aeronave “qualquer máquina que consiga uma sustentação na atmosfera devido às reações do ar, que não as do ar sobre superfície terrestre.”
se pela sua constituição, sem que haja uma forma escrita que a ele esteja subjacente a sua constituição.
Todavia no que concerne a contratos de transporte aéreo internacional, que estejam sujeitos ao Sistema de Varsóvia, há quem defenda que o título de transporte, por si só, dá forma e constitui o contrato de transporte.60No que reporta a esta opinião, expresso um total desacordo, pois a natureza deste contrato é precisamente consensual, isto é, a sua constituição basta-se pela simples vontade das partes, não havendo aqui nenhum sentido de se exigir que a existência do contrato só seja válida aquando da emissão de um título de transporte, uma vez que a sua natureza é bem explícita e determinada como consensual.61
Em 2008 ocorreu aquilo a que titulamos de “revolução” quanto aos títulos de transporte, aquando do impulso da IATA para que todas as companhias aéreas passassem a emitir a autorização e a validar a mesma por via eletrónica, extinguindo-se aquilo que conhecíamos como bilhete aéreo em papel. Assim sendo, a IATA acaba por pôr término a esta questão, uma vez que, o título de transporte consagrado no nº 2 do art. 3º, da Convenção de Montreal passa a ser aplicado no nº3 do mesmo artigo, pois extinguiu-se a emissão do título de transporte por papel passando a ser meramente eletrónico.62
60 Cfr. XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.22.
61 Certo é que com a evolução tecnológica o título de transporte tem se tornado pouco semelhante a qualquer tipo de título constitutivo, cada vez mais o título de transporte nada mais é que o reconhecimento expresso da vontade das partes contratantes, vontade essa que já se basta por si só. Ao afirmar que só é possível haver constituição do contrato de transporte aéreo aquando da emissão do título de transporte estaremos a excluir todas as reservas de voo (situação em que ainda não se encontra emitido o titulo mas que já se demonstrou a vontade de contratar de ambas as partes), significaria que toda e qualquer reserva não acarretaria as responsabilidades inerentes ao contrato de transporte aéreo.
62 O título de Transporte acaba por se dissipar do mundo material, não obstante a isso o mesmo é emitido virtualmente, guardado na base de dados das próprias companhias aéreas, e estão sempre acessíveis ao passageiro, quer nos balcões de atendimento das companhias, quer em call centers das mesmas. Assim passamos a acompanhar a tecnologia, em que, ao invés do passageiro ter um título em formato de papel, terá uma confirmação via email que irá conter o número de reserva de voo. - Cfr. xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xx- pt/suporte/reservas?topicName=Reservar%20voo&faq=8eedb385-7c3e-4094-bd9a- 24e903836b6c (consultado em 10-02.2019) que define o bilhete eletrónico como “- é um bilhete cujos cupões de voo não são impressos em papel, sendo substituídos por cupões virtuais. São guardados na base de dados da companhia e poderá aceder em qualquer balcão ou Contact Center TAP.
Adquirir um E-Ticket não implica qualquer alteração nos procedimentos de reserva ou
Assim, pelos motivos aqui explanados poderei afirmar que o bilhete não pode ser considerado por si só um título constitutivo do contrato de transporte aéreo de passageiros.
Postura diferente tenho em relação ao contrato de transporte aéreo de mercadorias, uma vez que, tanto o Sistema de Varsóvia como a Convenção de Montreal, estabeleceram que é requisito, além das declarações expressas de vontade de ambas as partes aquando da assinatura da carta de porte, o ato de entrega do objeto a transportar, não sendo este ato considerado um exercício do contrato, mas sim um requisito constitutivo para a existência do contrato.
Outra característica que importa esclarecer é o não requisito de onerosidade do contrato, assim, mesmo que o transportador o faça a título gratuito implicará sempre que esteja no âmbito de um contrato de transporte aéreo, ainda que civil. Isto é, é auferida a possibilidade de num contrato de transporte aéreo civil, ser feito a título gratuito; porém o mesmo já não ocorre em contratos de transporte aéreo com natureza comercial. Tal afirmação advém da interpretação teleológica do artigo 366º do Código Comercial Português, que nos diz que “O contrato de transporte por terra, canais ou rios considerar-se-á mercantil quando os condutores tiverem constituído empresa ou companhia regular e permanente.” Assim, podemos deduzir que, a ratio legis do legislador neste artigo era que à época em que legislava, todos os meios de transporte existentes (que tivessem capacidade de transportar pessoas ou mercadorias) estivessem aqui abarcados63. Desta feita, podemos concluir pela natureza comercial/ mercantil do contrato de transporte aéreo sempre que haja constituição, por parte dos transportadores, de empresa ou companhia regular. Todavia, caso não estejamos perante o preenchimento deste conceito, podemos afirmar estar
pagamento, não havendo também desperdício de tempo e papel ou perdas de bilhetes. Após conclusão da reserva receberá via e-mail o comprovativo da mesma e da emissão do E-Ticket.”
63 Esta ideia é defendida por XXXXX XXXXXXX, em XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 22 e 23; e também por XXXXXXX XXXXXXXX, em “Introdução ao Direito dos Transportes”, in Xxxxxxxx xx Xxxxx Xxxxx, I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo. O contrato de transporte marítimo de mercadorias, Coimbra, Almedina, 2008, pp. 9-11.
diante de um contrato de transporte aéreo civil, em que a natureza onerosa já não é elemento essencial para a constituição do contrato64.
Quanto à duração do contrato aqui em causa, esta não é aceite de forma unânime na doutrina. O facto é que poderemos classificar as obrigações em geral, em instantâneas, contínuas e periódicas, consoante impliquem atos isolados, condutas duradouras e ininterruptas ou atos diferenciados e sucessivos. Tal auxiliar-nos-á na classificação do contrato mediante a sua duração, que se perpetua no tempo mediante as obrigações que são inerentes ao contrato. Assim: há quem entenda que se trata de uma prestação de execução instantânea, levando apenas em conta que há uma prestação duradoura com duração efémera. Deve-se salientar que esta duração compreende o momento a partir do qual o passageiro embarca para a aeronave até ao momento que o mesmo desembarca e volta a entrar no espaço do aeroporto, deixando a tutela da transportadora nesse mesmo momento65. Por outro lado, MENEZES CORDEIRO66, afirma que qualquer prestação que seja aparentemente instantânea irá traduzir-se numa série de atos realizados pelo devedor, não devendo ser atendido o número de atos, mas sim, o(s) momento(s) em que é realizado o interesse do devedor. Perante esta tese, no contrato de transporte aéreo deverá ser analisado o momento em que é concretizado o interesse do devedor para a classificação da natureza da prestação, que irá determinar se esta é uma prestação instantânea.
Resta-nos apenas referir aqui que este é um contrato nominado, típico e especial pois encontra-se previsto em lei especial, que se apresenta pela forma de contrato de adesão sempre que o transportador tenha outorgado um contrato padrão onde constem clausulas gerais, em que a negociação das mesmas não seja possível.
64 Cfr. Artigo 1154º do Código Civil Português ““Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.”
65 Para defesa desta tese vide XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, pg.24.
66 XXXXXXX XXXXXXXX, Xxxxxxx – Tratado de Direito Civil Português, tomo II, Almedina, Coimbra, 2010, pg. 559.
3.3 – Classificação do contrato de transporte aéreo
Relativamente às diferentes classificações possíveis do contrato de transporte aéreo, não poderei abordar todas as que existem. Desta forma, irei evidenciar algumas, que julgo serem as mais importantes pois, consoante a classificação que lhe for atribuída, poderemos ter efeitos diferentes. Aqui iremos essencialmente abordar cinco, quanto ao objeto do contrato, quanto ao espaço aéreo jurisdicional, quanto à regularidade dos voos, quanto às transportadoras envolvidas no mesmo contrato de transporte, e por último, quanto ao número de meios de transporte envolvidos.
Neste âmbito poderemos subdividir este critério em três subalíneas: a) – pessoas; b) – bagagem; c) – mercadorias; Sendo que aqui importam as duas primeiras, irei analisar somente o objeto quanto ao passageiro e quanto à bagagem, assim sendo passo à análise do primeiro:
a) – Pessoas:
Este tipo de transporte difere desde logo dos outros dois por presumir a existência de uma pessoa física com vida, que tutela direitos e deveres. Aqui cabe esclarecer duas situações, numa primeira abordagem devemos definir o conceito de pessoa física com vida que acarreta direitos e deveres, para tal, devemos paralelamente analisar o artigo 66º do Código Civil que aufere personalidade jurídica ao nascituro somente após o seu nascimento completo e com vida67. A relevância deste artigo é elevada, uma vez que, ao interpretar paralelamente o artigo, poderemos excluir do transporte de pessoas quer os nascituros, quer os cadáveres, pois ambos não são considerados pessoas vivas dotadas de personalidade jurídica68. Podemos então remeter o transporte de cadáver para o regime de mercadorias, deixando de ser transporte de pessoa e
67 Artigo 66º, nº 1 e 2 do Código Civil Português: “A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida. / Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.
68 Cfr. Artigo 68º, nº1 do Código Civil Português que determina o termo da personalidade jurídica da pessoa com o momento da sua morte, cessando assim a personalidade jurídica da pessoa.
adquirindo um reconhecimento do estatuto legal extra commercium69, remetendo os seus efeitos para o transporte de mercadorias.
A segunda questão que aqui é suscitada prende-se com o transporte de animais, onde deveremos enquadrar os animais? A Convenção de Varsóvia é aplicada a pessoas, bagagens e mercadorias. Importa definir desde já que o termo “mercadorias” reporta-se a objetos inanimados, o que nos leva a excluir os animais. Apesar de haver uma lacuna na convenção, no que respeita ao esquecimento do transporte aéreo de animais, os tribunais têm aplicado a convenção para transporte de animais vivos70, até porque existem companhias aéreas que permitem que animais domésticos viajem juntamento com o passageiro71.
Em suma, é certo que o contrato de transporte aéreo de pessoas tem natureza pessoal, excluindo algumas categorias:
1 – Tripulação ou qualquer outra pessoa vinculada por um contrato de trabalho e que viaje em exercício de funções.
2 – Pessoas sem título de transporte, que tenham autorização do transportador para viajar;
3 – Clandestinos, ou seja, pessoas que estejam a bordo sem consentimento do transportador, ou com a sua proibição;
b) Bagagem:
As bagagens não têm contratos autónomos por norma, porém caso existam irão beneficiar de um regime contratual diferente com responsabilidade própria. Certo é que o transporte de bagagem está automaticamente associado ao contrato de transporte de pessoas, ele não existe sem que esteja a ele subjacente um contrato de transporte de pessoas, onde podemos aferir que não gozam de
69 XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.26
70 Cfr. United International Stables Ltd VS Pacific Western Airlines (Supreme Court of British Columbia); Dalton VS Delta Airlines 570 (5th circuit 1978). – Consulta feita em 24-04-2019 no site xxxxx://xxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxxx-x-xxxxx-xxxxxxxx-xxx;
71 Como é o caso da companhia aérea Aireuropa, que permite animais domésticos de pequeno porte a viajar na cabine e não no porão. – Consulta feita em 24-04-2019 no site xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xxx/xx/xxxx/xxxxxxxxxxx;
autonomia contratual. Então podemos afirmar que derivado da sua falta de autonomia estamos perante um contrato misto? Uma união de contratos? É perigoso afirmar que estamos perante um contrato misto pois um dos contratos (passageiros) existe sem o contrato de bagagem, porém o de bagagem não existe sem o de passageiros, o que não nos pode remeter para um contrato misto em que confluímos dois contratos autónomos num só contrato, tornando-o misto. Existe a autonomia de um (passageiro) mas não existe a autonomia de transporte de bagagem, sendo este ultimo subsidiário ao primeiro.
Tal como refere XXXXXX XXXXXXX “o contrato de transporte de bagagens é aquele mediante o qual uma empresa de transporte aéreo ou um simples transportador se obriga a transladar de um lugar a outro, por via aérea a bagagem de um passageiro como consequência de um contrato de passagem anterior ou simultâneo, sendo os objetos registados quanto os que leva consigo à mão.72”Ambas as Convenções não se dedicaram a definir o termo “bagagem”, porém cabe referir aqui a diferença que existe neste termo. Quando nos referimos a bagagem temos de distinguir a registada da não registada, isto é, a bagagem não registada é aquela que fica sob a guarda do passageiro, pois é a que o acompanha na cabine da aeronave, o que nos remete a atribuir ao próprio passageiro a responsabilidade pela tutela da mesma; por outro lado, referimo- nos a bagagem registada àquela que é despachada aquando do check in e que desde esse momento até ao levantamento das malas, fica na exclusiva responsabilidade da transportadora aérea. Atribuindo assim diferentes responsabilidades a diferentes bagagens.
Importa aqui desde já subdividir o espaço jurisdicional em: Transporte Aéreo Doméstico (dentro do mesmo país) e Transporte Aéreo Internacional (envolvendo um país de origem com destino noutro país).
Essencialmente o que define o transporte aéreo doméstico é que este tenha como território de partida e de chegada o mesmo Estado/ País. Porém e quando tal ocorre, mas sobrevoando espaço aéreo internacional ou de outro Estado? É
72 XXXXXX XXXXXXX, Xxxx . Curso de Derecho Aeronáutico, Bosch, Casa Editorial, S.A., Barcelona, 1993, p. 341.
importante compreender que para que um voo seja considerado doméstico ele tem obrigatoriamente que ter o ponto de partida e de chegada no mesmo Estado soberano mesmo que para tal necessite sobrevoar espaço internacional73, o que faz com que deixe de ser considerado transporte aéreo doméstico é a paragem, ainda que por escala, num Estado terceiro74.
Outra questão que me parece interessante esclarecer são as denominadas paragens de emergência. Ora se no decorrer de um transporte aéreo doméstico for necessário desviar a aeronave, independentemente do motivo, acabando por aterrar num Estado terceiro isso torna o transporte internacional, uma vez que desrespeita os critérios supra mencionados? O entendimento das Convenções é de que, para os critérios de diferenciação do espaço jurisdicional, devem ser tidos em consideração apenas os elementos volitivos do contrato, ou seja, o que dita a regra é exclusivamente o contrato75.
Quanto ao transporte aéreo internacional é de mais simples explicação, certo é que em 1944 aquando da Convenção de Chicago foi definido o conceito de “serviço aéreo internacional” como “um serviço aéreo que sobrevoa o território de mais de um estado76”; ocorre que esta definição dada pelo Direito Aéreo Público, peca por, contrastar com a definição dada pelo Direito Aéreo Privado. As Convenções acolhem o mesmo texto no tocante a transporte aéreo internacional, que no artigo 1º, nº 2 de ambas as Convenções nos diz que “todo o transporte em que, de acordo com o estipulado pelas partes, o ponto de partida e o ponto de destino, existindo ou não interrupção do transporte ou transbordo, estão situados quer no território de duas Altas Partes Contratantes, quer no território submetido à soberania, suserania, mandato ou autoridade de outra Potência mesmo não Contratante.” Mais, acrescenta o nº3 que também é
73 É de salientar que mesmo que estejamos no âmbito de um contrato de transporte aéreo doméstico, em que o ponto de partida e o ponto de chegada são efetuados no mesmo Estado soberano, e que seja necessário sobrevoar espaço aéreo internacional, tal acarreta ao transportador a obrigação de obedecer a um conjunto de normas de direito internacional público que são aplicadas ao transporte aéreo internacional, não altera a classificação jurisdicional, mas impõe normas respeitantes ao direito internacional, como é o caso da autorização de sobrevoo daquele espaço que não é do país de origem.
74 Cfr. A contrario sensu, nº 2 do artigo 1º, da Convenção de Varsóvia, assim como, a contrario sensu, o nº 2 do art. 1º da Convenção de Montreal.
75 Em defesa desta teoria vide XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.30
76 Cfr. Art. 96º, alínea b) da Convenção de Chicago de 1944 sobre Aviação Civil Internacional;
considerado internacional o transporte aéreo que opere dentro do território do mesmo Estado, se o mesmo estiver englobado numa operação de voos sucessivos, em que pelo menos um deles preenche o conceito de transporte aéreo internacional.
Mais uma vez o que se pode retirar daqui é que para determinar qual o tipo de transporte aéreo (doméstico ou internacional) o que importará atender é ao elemento volitivo do contrato, ou seja, a vontade acordada pelas partes no contrato. É de salientar que, o que se pode entender por vontade das partes não é a classificação que por elas foi atribuída, mas sim o trajeto que pretendiam e que convencionaram77.
3.1.3 - Regularidade e Não Regularidade:
No que concerne à regularidade do transporte, devemos ter em consideração que esta classificação não é ténue na doutrina e jurisprudência, e por esse mesmo motivo devemos atender a algumas tentativas que o legislador fez em tentar clarificar o conceito de serviço xxxxxxx00. Assim podemos analisar o artigo 2º do DL nº 234/89, de 25 de Julho, quanto ao regime de licenciamento da atividade de transporte aéreo regular no interior do continente, definindo o conceito como “séries de voos comerciais abertos ao público e operados para transporte de passageiros, carga e ou correio entre dois ou mais pontos, com uma frequência regular conforme com um horário aprovado e devidamente publicitado”; todavia no artigo 2º do DL nº 138/99, de 23 de Abril, que visa regular as obrigações de serviço público e as ajudas regulares entre o continente e as Regiões Autónomas da Madeira e Açores, bem como em ligações de fraca densidade, aderiu-se a outro conceito de serviço regular “uma série de voos que reúna todas as características seguintes: Ser realizada por meio de aeronaves
77 A título de exemplo poderemos afirmar que um voo em que o trajeto que foi convencionado pelas partes, tenha como ponto de partida o aeroporto de Lisboa e que o seu destino seja o aeroporto do Porto, em que tenham estipulado uma escala no aeroporto de Madrid, o voo considerar-se-á internacional, pois o trajeto pelas partes convencionado teve uma escala num Estado terceiro que já estava prevista.
78 MORAIS BETTENCOURT define transporte regular como “aquele que é caracterizado pela existência de uma continuidade, sujeito a um conjunto de operações regulares, realizadas no respeito de um horário que é previamente tornado publico.” E transporte não regular “o transporte não regular opera normalmente com base num contrato de fretamento, sendo o acesso ao serviço de transporte condicionado por vias reservadas, acessíveis apenas a certas categorias sociais.” Acabando por de forma simples, desintrincar a distinção desta modalidade. Cfr. XXXXXX XXXXXXXXXXX, Xxxxxx, op. Cit., pp. 487 e 488.
destinadas ao transporte de passageiros, carga e ou correio mediante pagamento, de forma que em cada voo existam lugares disponíveis para aquisição individual pelo público (diretamente na transportadora aérea ou através dos agentes autorizados); Ser explorada de modo a assegurar o tráfego entre os mesmos dois ou mais aeroportos: Quer de acordo com um horário publicado; Quer mediante voos que, pela sua regularidade ou frequência, constituam, de forma patente, uma série sistemática;”. Na doutrina XXXXX XXXXXXX defende outra definição “o serviço de transporte por via aérea disponibilizado ao público mediante contrapartida, que, além de oferecer continuidade, está sujeito a um conjunto ou a uma série sistemática de frequências ou operações regulares, segundo horário previamente tornado público79”. Ao analisar as propostas do legislador português podemos retirar que, em ambas, o legislador estabelece cinco critérios comuns: 1- a pluralidade de frequências, de forma a garantir que o serviço é feito pela transportadora de forma reiterada; 2 – a continuidade e periodicidade, que visa aliar à prática reiterada, o prolongamento no tempo, afirmando uma periodicidade que não deverá ser abalada pela flutuação do mercado80; 3- oferta pública, o serviço oferecido pela transportadora tem obrigatoriamente que ser acessível ao público; 4- natureza onerosa, mais uma vez vimos referenciar o sinalagma, tão característico deste contrato, como já anteriormente tivemos oportunidade de mostrar aquando da análise da sua natureza. Facto é que é necessário que ao serviço prestado seja atribuída uma contrapartida; 5 – sujeição a uma tabela pública de horários pré-estabelecidos, aqui mais uma vez detetamos o convite ao público em geral, pois a transportadora é obrigada a disponibilizar uma tabela com os horários dos transportes, ficando vinculada ao cumprimento do mesmo.
Por seu turno, cabe agora explicar em que de facto consiste o conceito de transporte aéreo não regular. Será de fácil entendimento que este conceito é precisamente o oposto de tudo o que supra foi dito, assim todos os critérios até aqui mencionados são prescindidos. Por termos como base contratual o
79 In XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato De Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 32.
80 Assim não se irá reger pela lei da oferta e da procura, é um serviço tão regular que mesmo que diminua a procura do serviço, tal não irá abrandar ou até mesmo ser descontinuado, pois, se assim fosse, poderíamos estar perante um transporte irregular/incerto.
fretamento, não podem neste serviço, oferecer quaisquer garantias de continuidade, assim como, este serviço não é, nem pode ser oferecido ao público em geral, mas sim a um nicho determinado, estando sempre dependente do volume do tráfego a transportar para que possa operar. Para melhor entendimento, o legislador definiu no artigo 1º do DL nº 19/82 de 28 de janeiro que “transporte aéreo não regular quaisquer voos ou séries de voos, operados sem sujeição a normas sobre regularidade, continuidade ou frequência, destinados a satisfazer necessidades específicas de transporte de passageiros e respetiva bagagem, de carga ou correio, mediante remuneração ou em execução de um contrato de fretamento, por conta de uma ou mais pessoas, um ou outro respeitantes a toda a capacidade da aeronave.”
Neste âmbito, e devido à grande aderência que tem ocorrido na última década, é importante distinguir duas figuras: charter regular e charter irregular81. Quanto ao primeiro, é onde encontramos uma série de voos que, embora não tenham continuidade, são programados numa série sucessiva de serviços, que por norma tentam dar a resposta às épocas sazonais, onde a procura é muito maior. Esta figura distingue-se do transporte aéreo regular, principalmente pela falta de continuidade, e ainda, pela autonomia das operações programadas entre si. Por outro lado, o charter irregular, tem como principal característica a facilidade com que é utilizado, pois por vezes é um mero táxi aéreo outras é de serventia ao serviço de emergência, e por outras, é utilizado como um serviço complementar do transporte aéreo regular82.
3.3.4: Quanto ao número de transportadoras envolvidas - Transporte Sucessivo ou Não Sucessivo:
Iniciamos esta última classificação pela noção de transporte sucessivo, a este tipo de transporte está inerente uma multiplicidade de transportadores, ou seja, neste âmbito existe um transporte, efetuado por via aérea, do qual são participantes vários transportadores, que estão conscientes desse facto mediante a via contratual, independentemente do número de contratos. Trata-se
81 A este respeito vide XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato De Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p. 32 a 37.
82 Na realidade os operadores turísticos têm contribuído para o aumento do tráfego aéreo dos transportes aéreos não regulares, através da venda de viagens organizadas (pacotes de viagens por vários países).
aqui de uma operação que é global e indivisível, que é constituída por uma série sucessiva de transportes e que é efetuada por pelo menos dois transportadores. Não obstante de que o transporte é fracionado, devendo corresponder a cada transportador fases diferentes do percurso do passageiro, e com a referência de que todos os transportadores estão cientes de que as frações a que se vincularam, aquando do contrato, integram uma operação global, de um serviço que não pode ser dividido.
Relativamente ao transporte aéreo não sucessivo, o mesmo é constituído por uma única operação que é feita por um só transportador, que opera de forma isolada. Afasta-se a hipótese de transporte sucessivo pela falta de disposições contratuais, entre transportadores, em que estipulem que o conjunto dos serviços prestados sejam uma única unidade, ou seja, mesmo que tal possa ocorrer imprevisivelmente, a posteriori, o que importa reter é que não era essa a vontade dos transportadores, não constando das disposições contratuais.
Importa ainda esclarecer que, mesmo sendo o transporte sucessivo não perde a classificação de transporte internacional por algum dos contratos terem o ponto de partida e de destino no mesmo Estado contratante, sem que existam escalas em Estado terceiro, pois tal como aqui já foi dito, o transporte sucessivo opera como uma única unidade, ou seja, num todo; basta que no transporte sucessivo, pelo menos um dos contratos seja internacional, para que afete todos os outros que a ele estejam ligados.
Por último, cabe analisar a responsabilidade do transportador no transporte aéreo sucessivo, a quem deverá o passageiro imputar a responsabilidade por algum dano causado? Quem de facto responde pela segurança do transporte aéreo? A resposta é consensual, cada transportador é responsável pela segurança das pessoas e dos seus bens, da fração do percurso que opera. No caso de pedido indemnizatório, o passageiro, os seus representantes ou qualquer outra pessoa que tenha direito à indemnização do lesado, deverão imputar tal pedido ao transportador que operou naquela fração do trajeto, salvo se o primeiro transportador tiver expressamente estipulado que assumiria a
responsabilidade por toda a trajetória da viagem83. Porém, este regime não se estende à responsabilidade do transportador aéreo quanto à bagagem e mercadoria. Quanto a esta responsabilidade no âmbito do contrato de transporte aéreo sucessivo, o passageiro/ expedidor têm o direito de ação contra o primeiro transportador, assim como, o passageiro/ destinatário com direito à entrega, contra o último, e um e outro poderão atuar contra o transportador que efetuou o transporte no decurso do qual se produziram a destruição, perda, avaria ou atraso de que resultaram os danos ressarcíeis para o passageiro, expedidor ou destinatário84.
3.3.5 – Transporte aéreo simples e transporte aéreo combinado:
Esta é talvez a distinção mais fácil no horizonte das classificações, e muito utilizada nos dias de hoje devido à vasta oferta, das agências de turismo, de pacotes combinados. O transporte aéreo simples é aquele pelo qual é utilizado um único meio de transporte; por sua vez, o transporte combinado aglomera um ou mais meios de transportes (aéreo, marítimo ou terrestre), que operam em conjunto85.
CAPÍTULO IV – RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR AÉREO
4.1 – Enquadramento da responsabilidade civil:
Antes de prosseguir com a responsabilidade civil do transportador aéreo, cabe determinar qual a natureza jurídica dessa mesma responsabilidade perante as duas maiores bases legais que regulamentam todo o transporte aéreo.
Ora, se por um lado está evidente a responsabilidade civil contratual, uma vez que, o elemento constitutivo da relação das partes, é o contrato de transporte aéreo, e é de nosso conhecimento que só há responsabilidade contratual
83 XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.38.
84 Cfr. Artigo 30º da Convenção de Varsóvia e artigo 36º da Convenção de Montreal.
85 Cfr. Artigo 31º da Convenção de Varsóvia e artigo 38º da Convenção de Montreal – que nos diz que, em caso de transporte aéreo combinado, ao transporte aéreo aplicam-se os regimes próprios, sem prejuízo das partes inserirem no título de transporte aéreo condições relativas a outros meios de transporte que possam ser utilizados na operação. Para maior estudo vide CASTELLO-BRANCO BASTOS, Direito dos Transportes, Coimbra, Almedina, 2004, p.75.
quando, à relação existente está subjacente um contrato que poderá ser incumprido; incerta aqui será a responsabilidade extracontratual86.
Para tal passemos a analisar o que regula a Convenção de Varsóvia: “O transportador é responsável pelo prejuízo superveniente em caso de morte, ferimento ou qualquer outra lesão corporal sofrida por um viajante quando o acidente que causou prejuízo se produziu a bordo da aeronave ou no decurso de quaisquer operações de embarque ou desembarque87.” O que de facto visa a norma proteger? Quais os bens jurídicos que aqui estão em causa e que merecem a tutela normativa? Para XXXXX XXXXXXX, a norma visa proteger os bens jurídicos vida e integridade física do passageiro inserindo no contrato de transporte uma obrigação de segurança por parte da transportadora. Este autor vai mais longe, afirma que os bens jurídicos aqui em causa de pessoas singulares constituem direitos indisponíveis que são anteriores ao próprio contrato de transporte, atribuindo a tutela dos mesmos à própria lei.
Assim sendo, a tutela destes bens que deriva da obrigação de segurança por parte do transportador, não faz parte do núcleo essencial do contrato de transporte, uma vez que, estes bens jurídicos advêm de relações jurídicas de outra natureza. Tal só nos pode levar à conclusão de que a omissão de atos que visem garantir a segurança, ou até mesmo, as ações que tenham como intuito abalar a segurança do passageiro, devem ser remetidas para o instituto da responsabilidade extracontratual, pois extravasam a essência do contrato de transporte.
Não obstante da análise supra mencionada, facto é que seria impraticável que, perante tantos ordenamentos jurídicos diferentes que aqui estão envolvidos, conseguíssemos encontrar um regime que lhes fosse a todos comum; por essa razão, a CV teve necessidade de criar um regime próprio e autónomo que desse resposta à regulação do tipo de responsabilidade e dos pressupostos para sua
86 A responsabilidade civil contratual resulta do não cumprimento, lato sensu, dos deveres relativos próprios das obrigações contratuais, incluindo os deveres acessórios de conduta, ainda que impostos por lei, no seio da complexa relação obrigacional. Por sua vez, a responsabilidade civil extracontratual assenta na violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência, correspondentes aos direitos absolutos. A este respeito vide · XXXX X. XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em geral, Volume I, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, p. 523 e ss.
87 Transcrição do artigo 17º da Convenção de Varsóvia.
aplicação. Passando à análise da exclusividade da Convenção que foi imposta, na qual encontramos todo o regime de responsabilidade do transportador aéreo que define os termos em que se aplica, os pressupostos da responsabilidade e também os limites. Em suma, analisarei um regime totalmente inovador e próprio, diferente daquele que conhecemos no nosso ordenamento jurídico. Assim diz-nos o artigo 24º da Convenção “no transporte de passageiros e de bagagens, qualquer ação de responsabilidade, qualquer que seja o seu fundamento, quer se fundamente na presente convenção, quer num contrato ou ato ilícito ou em qualquer outra causa, não pode ser exercida senão nas condições e com os limites de responsabilidade previstos na presente Convenção.”
Assim fica clara a imposição deste regime, pela Convenção, que deverá ser aplicado acima de qualquer outro instrumento, e poderá ser aplicado de forma subsidiária quando a própria Convenção se abstenha de regular determinada matéria, podendo assim perante uma possível lacuna, recorrer a outras fontes, inclusivamente à legislação nacional. Todavia, cabe a esta imposição apenas uma exceção, este regime de exclusividade não é aplicado quando houver normas mais favoráveis ao passageiro, ou seja, poderão as partes convencionar normas que atribuam maior proteção ao passageiro, por exemplo, podem as partes acordar que o limite indemnizatório seja maior do que aquele que se encontra estipulado na Convenção, ou até mesmo, eliminar o limite.
Não olvido aqui a CM que em grande parte prevê um regime idêntico, uma vez que a ideia a defender é a mesma. Nesta Convenção não importa, mais uma vez, o fundamento/ a origem do facto de que derivou a responsabilidade; há uma clara desconsideração e neutralidade quanto a este assunto. Porém o direito de ação está restringido às condições explanadas na Convenção e aos limites indemnizatórios constantes do artigo 30º88, sem prejuízo da aplicação, também aqui, de regime convencional mais favorável ao passageiro.
88 O artigo 30º da Convenção de Montreal prevê limites indemnizatórios diferentes da Convenção de Varsóvia, aplicando-se outros limites, que a posteriori iremos analisar.
4.2 – Danos causados por morte ou lesão corporal de passageiros
Antes de dar continuidade ao estudo da responsabilidade civil do transportador, cabe explicar qual a fundamentação legal que existe, atualmente, para aplicação do regime de responsabilidade. Volvendo um pouco ao capítulo II deste estudo (fontes), relembramos que à responsabilidade civil do transportador estão subjacentes três importantes fontes. Devemos esclarecer que, quer a Convenção de Varsóvia, quer a Convenção de Montreal, impõem regimes imperativos mínimos, isto é, os direitos que são conferidos ao passageiro por estes regimes, não podem em hipótese alguma ser restringidos ou abolidos. Porém, tal não invalida que possam as partes convencionar limites superiores ou até derrogar qualquer tipo de limite, em suma, nunca poderá prejudicar o passageiro, mas poderá sempre favorecê-lo.
Quanto à terceira fonte que é o Regulamento CE nº 2027/ 9789, este aplica um regime comunitário que é igual ao da Convenção de Montreal, uma vez que, o Regulamento CE nº 2027/97 nos remete para as normas aplicáveis à Convenção de Montreal90. Assim, podemos afirmar que qualquer clausula que se entenda restritiva dos direitos atribuídos ao passageiro nestes regimes, considerar-se-á nula – cfr. Artigos 23º, 32º e 33º da Convenção de Varsóvia e artigos 26º, 27º e 49º da Convenção de Montreal.
4.2.1 – Pressupostos da responsabilidade nas convenções
Vamos abordar este tema iniciando pela análise dos seus pressupostos e, de seguida passaremos à explicação dos regimes. Quanto aos pressupostos, podemos afirmar a existência de pelo menos cinco, a saber:
1 – Contrato de transporte aéreo internacional em aeronave; 2 - Ocorrência de um acidente;
3 – A bordo de uma aeronave ou durante o momento de embarque/ desembarque;
4 – Dano: morte ou lesão corporal;
89 Regulamento alterado pelo Regulamento CE nº 889/ 2002.
90 Vide artigo3º, nº 1 do Regulamento CE nº 2027/ 97.
5 – Nexo Causal;
Ora vejamos, ambas as Convenções são uniformes e determinam no seu artigo 17º que:
“O transportador é responsável pelo prejuízo superveniente em caso de morte, ferimento ou qualquer outra lesão corporal sofrida por um viajante quando o acidente que causou o prejuízo se produziu a bordo da aeronave ou no decurso de quaisquer operações de embarque ou desembarque91.”
De forma a cimentar esta matéria, e tendo presente já a igualdade de pressupostos às duas Convenções, resta-nos saber se o regime comunitário é idêntico. O Regulamento CE nº 2027/97 diz-nos que nesta matéria há remissão para a Convenção de Montreal92. O que torna todos os pressupostos supra citados, de forma unanime, para as três fontes. Assim sendo, passemos analisar cada um deles de forma mais detalhada.
4.2.1.1 – Existência de Contrato de transporte aéreo internacional em aeronave
Já ab intio do terceiro capítulo foi definido o que é o contrato de transporte aéreo internacional, cabendo aqui não repetir tais noções mas sim, relembrar: “O contrato de transporte é nada mais do que um acordo composto por duas partes intervenientes, em que num dos lados temos a transportadora, e que, é convencionado o transporte de pessoas ou coisas, por meio aéreo, de um ponto geográfico para outro, realizado por uma aeronave, de forma onerosa ou gratuita93”.
Apenas cabe referir aqui que a existência de um contrato de transporte aéreo, tem que ser necessariamente internacional para que se possa aplicar as Convenções quer de Varsóvia como de Montreal; ou se for uma transportadora aérea titular de uma licença de exploração válida emitida para um Estado- Membro nos termos do Regulamento CEE nº 2407/ 9294, em que se aplique o
91 Texto retirado do artigo 17º da Convenção de Varsóvia.
92 “A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula-se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.” – Cfr. Artigo 3º do Regulamento CE 2027/ 97 alterado pelo Regulamento nº 889/ 2002.
93 Definição dada no capítulo terceiro; remetendo toda a sua análise para o capítulo 3.1;
94 Cfr. Alínea b), do artigo 2º do Regulamento CE nº 2027/ 97.
regime comunitário, independentemente do voo ser internacional ou doméstico. Ficam desde logo excluídos, deste regime, todos os voos domésticos em que não operem transportadoras comunitárias.
4.2.1.2 – Ocorrência de um acidente
Há desde logo aqui uma grande falha no texto das Convenções, pois nenhuma delas nos define concretamente o que se entende por “acidente”, sendo necessário procurar essa definição em outras Convenções ou até mesmo na doutrina, o que por si só já torna a situação um pouco subjetiva. Desta feita, procuramos a definição e encontramos numa primeira abordagem aquilo a que podemos denominar como uma ideia. Na Convenção de Chicago datada a 7 de dezembro de 1944, no seu anexo 13, diz-nos que acidente é uma ocorrência associada à operação feita pela aeronave95, porém tal ideia parece-me pouco concreta, devendo aglomerar a ela situações que podem não estar ligadas às operações de voo, mas que não deixam de ser sinistros, como é o caso das catástrofes naturais, advenientes de más condições climatéricas, erro humano na pilotagem ou até da própria tripulação, ou erros mecânicos levando a um mau funcionamento da aeronave.
Sobre este tema é indispensável a remissão para o caso Air France v. Saks onde devido à falta de definição do conceito “acidente” previsto no artigo 17º da Convenção de Varsóvia, se tornou um caso precedente para esta discussão. Abordando um pouco o caso, remontamos para o ano de 1980, ainda antes da Convenção de Montreal de 1999, quando Xxxxxxx Xxxx embarcou num voo com origem de Paris e destino a Los Angeles, operado pela companhia aérea Air France. Durante o processo de descido da aeronave para efetuar a aterragem, a passageira sentiu fortes dores e pressão num dos ouvidos, embora nada tenha dito à tripulação nem no momento de desembarque. Após cinco dias de ter desembarcado Saks, após consulta médica, descobre que perdeu a audição total do ouvido esquerdo. Xxxx interpôs ação contra a companhia aérea alegando negligência no processo de descida da aeronave. Por seu turno, a companhia aérea defendeu-se arguindo que o sistema funcionou de forma
95 Texto original: “an occurance associated with the operation of the aircraft”.
normal e que não estava preenchida a responsabilidade pois não havia sequer acidente pelo artigo 17º.
A ação foi considerada improcedente pela Justiça Federal da Califórnia, pelo que, Xxxx recorreu em segunda instância, que veio inverter a decisão tomada, alegando que a ratio da CV era impor às companhias aéreas a responsabilidade civil absoluta em relação aos riscos que são inerentes ao transporte aéreo, considerando a alteração normal da pressão da cabine da aeronave um acidente.
Posto isto, coube decisão do Tribunal, revertendo novamente a decisão da segunda instância, concluiu que o dano (perda de audição) não foi causado por um acidente, mas sim por uma reação interna da passageira a um procedimento que é normal e inerente à atividade de transporte aéreo, não preenchendo aqui o evento inesperado e incomum que é externo ao passageiro, não podendo assim aplicar-se o artigo 17º da CV96.
No caso o Tribunal afirmou que mesmo uma condição que é inerente ao passageiro, como era o caso, pode ser considerado acidente, porém o dano tem que ser causado pela navegação aérea e tem que existir um nexo causal entre o dano e a navegação, vemos aqui a defesa da definição de acidente no sentido lato.
Para exemplificar o sentido estrito é interessante analisar o caso Xxxxxxx Xxxxxxxx, Appellant, v. Japan Airlines Co., em que também é levantada a questão da indefinição de acidente na CV97. Em 1982 Xxxxxxxx era passageiro de um voo operado pela Japan Airlines que partia de Nova Iorque com destino a Toquio, fazendo escala em Anchorage (Alasca), em que durante a mesma, Xxxxxxxx sofreu um ataque de uma hérnia hiatal, problema do qual já padecia e era acompanhado há cerca de seis anos, porém não informou a companhia aérea que sofria deste problema. Xxxxxxxx já teria sido internado anteriormente e já teriam recomendado que fosse submetido a uma cirurgia. Porém este ataque
96 Consulta do acórdão Air France v. Saks via online em [xxxxx://xxxx.xx.xx/xxxxxxxx/xxx/000000000.xxx] no dia 10-12-20.
que sofreu poderia ser aliviado, bastava que se deitasse e fizesse uma massagem na zona do estomago, no entanto e após a sua esposa pedir algumas vezes, a tripulação disse que não tinha assentos livres para que o senhor se deitasse, mais tarde, foi provado que existiam assentos livres na 1ªa classe. O passageiro alega que, sema oportunidade de empregar "autoajuda", a sua condição piorou e chegou a ser hospitalizado ao chegar a Tóquio. Posteriormente, ele contraiu pneumonia e, a conselho de um médico japonês, voltou imediatamente aos Estados Unidos, onde foi submetido a uma cirurgia para corrigir a sua condição de hérnia. Xxxxxxxx defendeu que pelo artigo 17º da CV a culpa era presumida e que não teria sido necessária a cirurgia imediata e a pneumonia que acabou por ter, se não houvesse negligência da companhia mediante a sua tripulação.
Apesar das suas alegações o Tribunal disse não estar preenchido o conceito de acidente previsto no art. 17º da CV, que o mesmo era aplicado apenas a lesões causadas aproximadamente por algum "acidente" a bordo do avião, e com base nos fatos provados não houve "acidente”. Mais, considerou que a ausência de um 'acidente' exclui a responsabilidade, tanto compensatória quanto punitiva. Xxxxxxxx argumenta que, embora XXX não tenha causado sua lesão de hérnia hiatal, o alegado agravamento da lesão por atos e omissões da JAL constituiu um acontecimento incomum ou inesperado.
O facto é que na ausência de prova de fatores externos anormais, o agravamento de uma lesão pré-existente durante o decurso de um voo de rotina e normal não deve ser considerado um "acidente" na aceção do Artigo 17. Parece extensiva a pretensão de um passageiro que sabia que devia ter sido operado há um ano e que estaria em risco iminente deste tipo de ataques, não descurando da má vontade da tripulação e da falta de auxílio que poderia ter prestado.
Apesar da dificuldade na definição, certo é que já nos é possível, pelo menos, delimitar o conceito. Para já é certo que o acidente deriva de uma circunstância externa ao passageiro, o que nos obriga a excluir situações inerentes e pré- existentes do passageiro, isto é, se um passageiro que tem uma doença cardíaca sofre um ataque fatal após uma descolagem vulgar, não pode esse dano ser imputado à transportadora e evidentemente não se poderá responsabilizar a
transportadora pois o pressuposto acidente, que está previsto no artigo 17º das Convenções, não se encontra preenchido98.
Assim, podemos concluir que o acidente deve derivar de um risco próprio do transporte aéreo, excluindo da responsabilidade do transportador aéreo danos resultantes de mau comportamento do passageiro, situações pelo próprio provocadas, ou até mesmo quezílias provocadas por outros passageiros em momentos de tutela do transportador. Apesar das situações não serem lineares, deverá ser analisado caso a caso, pois pode o transportador através da sua omissão, ter ajudado ao desenvolvimento do acidente, acabando por auxiliar o dano. Por exemplo, a clássica situação da permissão de embarque de um passageiro claramente embriagado, que se mostre violento, e que venha a causar distúrbios e lesões a outros passageiros, no caso não será motivo para responsabilizar a transportadora, que permitiu que aquele passageiro embarcasse, estando cientes que poderia causar graves problemas? Não haverá aqui uma omissão do dever de segurança que a transportadora é obrigada? Não deveria a transportadora recusar o embarque do passageiro pelo seu dever de zelo? Parece-me que há aqui culpa da transportadora e que deverá gerar responsabilidade da mesma, no caso de esse passageiro causar lesões a outrem.
4.2.1.3 – A bordo de uma aeronave ou durante embarque/ desembarque
Encontramos no artigo 17º da Convenção de Montreal a imposição de que o acidente tem que ocorrer a bordo de aeronave ou no decurso de quaisquer operações de embarque ou desembarque, delimitando no tempo e no espaço a responsabilidade do transportador.
Quanto ao primeiro requisito “a bordo da aeronave” não nos parece difícil determinar, pois é um conceito bastante concreto. Todavia a mesma facilidade já não é possível no que concerne ao momento de embarque ou desembarque, pois afinal o que é considerado o embarque/ desembarque? A partir de que
98 Exemplo dado por XXXXX XXXXXXX que nos diz que o facto-causal deve ser externo ao passageiro – Cfr. XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.470.
momento passa a transportadora a ter responsabilidade pelo passageiro? Com o intuito de dar uma resposta precisa, eis algumas teorias99:
a) A que considera que a operação de embarque tem o seu começo no momento em que o passageiro inicia a viagem em direção ao aeroporto, se o mesmo for a bordo do autocarro do transportador aéreo que o irá levar ao seu destino.
b) A que julga que o momento de embarque é o momento em que o passageiro entra no aeroporto de origem, e o desembarque é no momento que abandona o aeroporto de destino final.
c) A que entende que o momento de embarque é o momento em que o passageiro entra na pista para entrar na aeronave, abandonando o aeroporto, e que o desembarque inicia quando o passageiro abandona a aeronave e pisa a pista.
d) Por último, a que defende que o embarque se inicia quando o passageiro desce em direção à pista.
Ao analisar todas estas teorias conseguimos entender que nenhuma consegue ser idêntica, havendo uma grave imprecisão quanto ao momento em que se inicia o embarque e desembarque, o que por si só, é demasiado subjetivo, pois senão houver uma determinação espácio-temporal, dificilmente se conseguirá apurar a responsabilidade civil do transportador aéreo. Acresce que, nenhuma me parece ser ideal, uma vez que, existem sempre situações em todas elas que ficam excluídas da responsabilidade do transportador e que me parece, salvo melhor opinião, que deveriam ser de sua exclusiva responsabilidade.
A incerteza destas teorias pode levar-nos a grandes injustiças, mediante o fosso de desequilíbrio que há entre elas, na atribuição da responsabilidade ao transportador.
Quanto às duas primeiras teorias parece haver um abuso na atribuição de responsabilidade ao transportador aéreo, pois o transportador irá responder por
99 Cfr. CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.445.
ocorrências externas ao seu controlo, não podemos criar a obrigação de segurança da transportadora aérea em áreas que não são do seu controlo, pois defender que o momento de embarque deve ter inicio aquando da entrada do passageiro no aeroporto, parece, salvo melhor opinião, demasiado excessiva, pois o transportador não controla o aeroporto, para tal poderemos atribuir responsabilidade à empresa gestora do aeroporto pela via extracontratual, uma vez que parece razoável que a segurança do aeroporto seja imputada a quem tem o dever de zelar por ele. Há nestas teorias uma oneração demasiado elevada para o transportador, e salvo melhor opinião, não creio que seja essa a ratio das Convenções.
No que diz respeito às duas últimas teorias, também elas desoneram em excesso a transportadora aérea, pois limitar o momento de embarque ao abandono do aeroporto também não é plausível, pois vejamos o caso: os passageiros encontram-se no aeroporto na sala de espera aguardando a entrada para as mangas que irão dar acesso à aeronave, já estamos evidentemente num momento de embarque, porém os passageiros ainda se encontram em espaço do aeroporto, quem irá responder por uma lesão de um passageiro que ali se encontra? Importa aqui explicar o caso Evangelinos v. Trans World Airlines, Xxxxxxxxx Xxxxxxxxxxx e seus filhos, Xxxxxxxxxxx, Xxxx, Xxxxxx e Xxxx Xxxxx (Requerentes) compraram reservas de transporte aéreo de ida e volta da Trans World Airlines, Inc. (TWA) de Pittsburgh, Pensilvânia, passando pela cidade de Nova York para Atenas, Grécia e retorno. Enquanto os Requerentes aguardavam o embarque do vôo TWA 881 de retorno já no aeroporto em Atenas, na área de embarque, ocorreu um ataque terrorista quando dois homens armados atiraram granadas, seguidos de tiros disparados aleatoriamente contra a multidão que ali se encontrava. Em seguida, os terroristas assumiram uma posição atrás de um bar no Transit Lounge e mantiveram trinta e duas pessoas como reféns. Após quase duas horas de negociação com autoridades locais, os terroristas renderam-se e foram presos. O acidente naquela tarde incluiu quarenta passageiros da TWA feridos; dois passageiros da TWA morreram imediatamente e um terceiro vários dias depois; um passageiro de outra companhia aérea morreu imediatamente; quatro funcionários da TWA ficaram feridos; e um número indeterminado de passageiros e funcionários de outras
companhias aéreas ficaram feridos. Os Requerentes desta causa foram gravemente feridos por estilhaços ou balas. Os requerentes responsabilizam a transportadora aérea alegando que no momento do atentado já se encontravam sob o dever de proteção da transportadora, uma vez que, apesar de não estarem na aeronave, estavam já em processo de embarque. O tribunal enumerou as fases de um processo de embarque “Uma consideração do significado claro das palavras 'no curso de qualquer uma das operações de embarque' produz uma única conclusão. Esses passageiros não poderiam embarcar na aeronave a menos que: 1 - apresentou seus ingressos à TWA no balcão de verificação no nível superior; 2 - obtido cartões de embarque da TWA; 3 - cheques de bagagem obtidos pela TWA; 4- obteve um número de assento atribuído pela TWA; 5 - passou pelo controle de passaporte e moeda imposto pelo governo grego; 6 - submetidos à revista grega à procura de explosivos e armas pela polícia grega; 7 - apresentou a sua bagagem de mão a inspeção semelhante pela polícia grega; 8 - atravessou o Portão 4 até o autocarro do Olympic; 9 - embarcou no autocarro; 10 - andou de autocarro por uma distância de 100 metros; e 11 - saiu do autocarro e entrou na aeronave. Simplesmente não há outra maneira de
`embarcar ', exceto por estes onze passos. Nenhuma das perseguições acima mencionadas estava sendo conduzida para a conveniência pessoal dos passageiros, nem qualquer uma delas constituía brincadeira e desvio. Quando foram feridos, haviam completado cinco das onze etapas, cada uma delas absolutamente essencial. Sem essas etapas, o passageiro não poderia 'embarcar' na aeronave100. Facto é que mesmo ainda nas instalações de um aeroporto a responsabilidade é da transportadora a partir do momento do embarque e até à última etapa do desembarque, questão diferente será esta da delimitação dos conceitos.
Xxxxxx Xxxxxxxx defende a aplicação de um critério funcional, deverá haver responsabilidade do transportador desde que haja “sujeição e conformação do passageiro às instruções por ela emanada”101; ou seja, sempre que a liberdade do passageiro esteja já condicionada pela transportadora. Xxxxx Xxxxx vai além
100 Citação retirada integralmente do site xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx- courts/FSupp/396/95/1873247/; consultado em 20-12-2020
101 CALAIM LOURENÇO, A limitação da responsabilidade do transportador aéreo internacional no transporte de pessoas; p. 451
e afirmando que “o passageiro tiver possibilidade de entrar em contacto com outros utentes do aeroporto, estará afastada a responsabilidade do transportador…O período temporal de responsabilidade do transportador tem inicio a partir do momento em que o passageiro está no ‘campo de influencia do transportador, ou, na expressão de Busti, que os comportamentos do passageiro sejam destinados ao acesso à aeronave”102
Ou vejamos ainda, casos de especial cuidado/ acompanhamento de criança ou idoso, em que a transportadora tem a seu cargo o acompanhamento de um idoso até à aeronave. Haverá extensão do dever de segurança? Parece-me evidente que sim, uma vez que o contrato de transporte aéreo abrangia uma cláusula de acompanhamento do idoso, logo a falta de cuidado, de uma assistente de bordo aquando do acompanhamento do idoso até à aeronave, deverá ser imputada à transportadora. Por exemplo, um idoso que vai embarcar e tem a seu lado uma assistente de bordo, destinada a zelar pelo idoso para que o mesmo chegue em segurança à aeronave, e por distração ou falta de cuidado, olvida-se da pessoa a seu cargo, deixando que o idoso caia de umas escadas, provocando lesões corporais graves, deverão essas lesões ser imputadas à transportadora, uma vez que nos encontramos em momento de embarque e já existe um especial cuidado contratado? Julgo que a resposta é clara apesar de não termos encontrado situações análogas defendidas na doutrina, ou até na jurisprudência, detetamos uma falta de regulamentação grave no que concerne à questão do acompanhamento uma vez que a Resolução nº 280, de 11 de julho de 2013, da ANAC, nada nos diz quanto à responsabilidade do transportador aéreo nestas situações103.
Creio que não podemos exonerar a transportadora aérea de forma tão leviana, assim como, não podemos sobrecarregar a sua responsabilidade a fatores que lhe são externos. O que aqui ocorre é que não há consenso na doutrina e as Convenções não conseguem determinar um critério amplo para apuramento do espaço temporal que dá início e termo à responsabilidade, pois tal como já conseguimos perceber, esta delimitação é complexa e extremamente subjetiva.
102 XXXXX XXXXX, XXXX, Direito aéreo uma introdução; Lisboa, AAFDL editora; 2019; p. 510 e 511;
103 Cfr. Regulamento CE n º 1107/ 2006 de 05 de julho de 2006 e Resolução n º 280 de 11 de julho de 2013. Consultado via internet através do site: xxxxx://xxx-xxx.xxxxxx.xx/xxxxx- content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32006R1107&from=PT – a 29-05-2019
A solução passaria por delimitar ambos os momentos de forma mais geral, pois a realidade aeronáutica está em constante desenvolvimento, e o que é certo hoje, poderá não o ser amanhã.
Para CALAIM LOURENÇO104, o critério determinante deveria ter como referência o período temporal a sob o qual o passageiro está sujeito ao controlo efetivo de vigilância e consequente responsabilidade do transportador, independentemente do local onde se encontra. Em suma, o que se deverá daqui reter é que independentemente do local em que ocorreu o acidente, o que importa é atender ao caso concreto, pois as circunstâncias podem sempre ser diferentes e nunca equiparáveis. Assim, devemos ter em atenção o contrato de transporte aéreo que foi celebrado e as suas especiais condições, que nos irão remeter para as operações sob as quais o passageiro está tutelado pela transportadora aérea.
4.2.1.4 – Danos: morte e a lesão corporal
Quanto aos danos, cabe evidenciar que o artigo 17º da Convenção de Montreal determina especificamente quais os danos que são imputáveis a este tipo de responsabilidade. Neste pressuposto abordaremos apenas dois tipos de dano: O dano decorrente do acidente que resulta em morte ou lesão corporal.
Nesta temática não parece suscitar grandes problemas a determinação do dano, pois os danos em causa são de fácil definição. A questão que aqui se coloca é quanto à permissão ou não do ressarcimento de danos morais.
Aquando da Convenção de Montreal de 1999, este foi um dos temas debatidos, ao qual se acordou em duas posições:
1) Defendia a autonomia dos danos morais.
2) Apelava à ressarcibilidade sempre que o dano moral fosse consequência do dano físico.
Chegados ao fim da Convenção, e sem conseguir acordar com uma das posições, só foi possível adotar o texto proposto pelo Comité Jurídico da ICAO,
104 Cfr. CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.447
com recomendação de que a interpretação da norma estava adstrita aos tribunais de cada Estado-Membro interpretando cada qual com o seu direito interno, atribuindo assim, subjetividade à norma.
Para CALAIM LOURENÇO, a ressarcibilidade dos danos morais deverá, necessariamente, passar pela articulação do regime convencional com o direito interno da jurisdição em causa, pois os regimes convencionais, não são de forma alguma, autossuficientes105.
A questão colocada mais uma vez prende-se com o espírito da lei do artigo 17º da Convenção, que prevê o ressarcimento dos danos por morte ou lesão corporal, nada referindo quanto aos danos morais. Poderá atender-se aqui ao facto de “lesion corporelle” termo originalmente escrito em francês, pertencer, para a doutrina e jurisprudência francesa, à classificação de danos pessoais, e assim sendo, incluir aqui a ressarcibilidade de danos morais106. Há de facto uma exclusiva alusão aos danos corporais, porém para a doutrina maioritária portuguesa, devem incluir-se aqui todos os danos, e para algumas opiniões, deverá até mesmo incluir-se prejuízos económicos e danos indiretos107108.
Podemos dividir a aceção dos danos morais em três grupos:
1 – Danos morais gerados por consequência de lesões físicas109.
105 Cfr. CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.453
106 Vários foram os Tribunais que vieram apoiar esta inclusão, sendo alguns deles dos Estados Unidos da América, da Arábia Saudita, Síria, Egipto. – XXXXX, Xxxxxxx – Responsabilidade Civil no Direito Aéreo e Dano Moral, in XXXXXXX XXXXXXX, Xxxxx (coord.) – Estudos de Direito Aéreo, Almedina, Coimbra, 2007, p. 78.
107 Por exemplo, um passageiro que sofra um dano corporal poderá sofrer de ataques de pânico/ stress, que poderá provocar um AVC, um colapso cerebral. E estes danos advenientes de outro dano, denominamos como dano indireto, que a meu ver também ele deveria ser ressarcido.
108 Esta tese que defende a inclusão dos danos morais vai mais além e chega a argumentar que o artigo 24º, nº 2 da CV deixa ao direito interno a competência de determinar quais os direitos subjetivos reclamáveis. Cfr. XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.515
109 Xxxx Xxxxxxx v. Trans World Airlines, Inc. (United States District Court for the District of New Mexico, 1973), consultado no site: xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx- courts/FSupp/368/1152/1802493/ , em 22-05-2019.
Rosman v. Trans World Airlines, Inc. (New York Court of Appeals, 1974); - onde o tribunal norte- americano condena a transportadora no ressarcimento dos danos não patrimoniais (angústia que os passageiros sofreram devido às lesões corporais); consultado no site: xxxxx://xxxxxxxx.xxx/xxxx/xxxxxx-x-xxxxx-xxxxx-xxxxxxxx, em 22-05-2019.
2 – Lesões físicas que são consequência de danos morais110.
4 – Danos morais sem qualquer dano físico, ou seja, estados psicóticos criados apenas por culpa do transportador, e que não tenham desenvolvido nenhuma outra lesão. São exemplos deste tipo de dano a angústia, ansiedade, medo que possa originar em futuros traumas, ou seja, qualquer estado que coloque o passageiro numa alteração substancial do seu sistema nervoso.
Certo é que o artigo 17º da CV deixa à interpretação a possibilidade do ressarcimento por danos morais, pois como não refere expressamente, acabamos por ter de interpretar o espirito da lei e a real intenção do legislador da tutela dos direitos subjetivos ou não.
4.2.1.5 – Nexo causal
Por último, resta apenas aferir que entre o evento/ acidente ocorrido e o dano que o passageiro sofreu, tem que haver um nexo de causalidade.
Perante os danos que já aqui foram evidenciados, e que, faz sentido serem elencados, pois interpreto que foi esse o espírito da lei aquando da elaboração do artigo 17º de ambas as Convenções, devemos sempre ter em consideração que tais danos só poderão ser imputados ao transportador, se obviamente, preencherem o pressuposto acidente. Tem de se conseguir provar que aquele acidente foi causa adequada para verificação do dano sofrido.
4.2.2 – Regime da Responsabilidade
No que concerne ao estudo do regime da responsabilidade civil do transportador aéreo, é importante fazer uma pequena contextualização e explicação de como este regime está consagrado nas diferentes convenções.
110 Para XXXXX XXXXXXX, esta é uma situação em que o dano de foro psicológico se torna relevante pelas suas repercussões que vão além do intelecto, chegando a atingir a integridade física da pessoa, o bem jurídico que o artigo 17º visa proteger! Claro que não olvidando sempre do nexo de causalidade que tem que existir entre um dano e outro. Neste sentido, vide Xxxxxxx
v. Bristow Helicopters Ltd. E King v. Bristow Helicopters, Ltd. – caso em que o tribunal condenou a transportadora a ressarcir o passageiro pela lesão física que só existiu por consequência do dano psicológico que foi causado à passageira (a passageira desenvolveu uma úlcera nervosa no aparelho digestivo, por conta do estado de ansiedade e angustia que lhe foi causado). Caso consultado no site: xxxxx://xxxxxxxxxxxx.xxxxxxxxxx.xx/xx/xx000000/xxxxxxxx/xx000000/xxxx-0.xxx em 22-05-2019
O regime da responsabilidade, ao contrário dos seus pressupostos, não é igual na Convenção de Varsóvia de 1929 e seus demais protocolos, ao regime consagrado na Convenção de Montreal de 1999. O que nos leva, desde logo, à obrigatoriedade de divisão do estudo do regime previsto nas Convenções. Assim, os Estados que tenham ratificado a Convenção de Montreal regem-se pelas normas dela constantes, os outros Estados que se tenham vinculado à Convenção de Varsóvia e seus demais protocolos, continuam a reger-se pelo regime previsto no Sistema de Varsóvia.
Assim sendo, dividimos este estudo em três regimes diferentes:
1) Convenção de Varsóvia
2) Convenção de Montreal
3) Regime comunitário
4.2.2.1 – Convenção de Varsóvia
No sistema de Varsóvia estamos perante um regime de responsabilidade subjetiva111, que assume a presunção de culpa do transportador aéreo. O seu artigo 20º vem precisamente dar ênfase a esta presunção, afirmando que o transportador só será exonerado da sua responsabilidade se conseguir provar que tomou todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhe era impossível tomá-las112. Ora, a presunção de culpa pela qual o regime se rege, deriva do facto de o transportador ter na sua esfera jurídica o ónus probatório, para exoneração da sua responsabilidade, de que tomou todas as medidas
111 GRAÇA TRIGO defende que “a faculdade do transportador se isentar de responsabilidade se revelou meramente teórica, uma vez que lhe é praticamente impossível provar a ausência de culpa. Deste modo a responsabilidade civil do transportador por morte ou lesão corporal resultantes de acidente aproxima-se da natureza de responsabilidade objetiva” vide GRAÇA TRIGO, Maria – “Responsabilidade civil do transportador aéreo”, in Direito e Justiça, Vol. XII, tomo 2, 1998. Neste sentido também XXXXXX XXXXXX que refere que o meio de defesa aqui expresso demonstrou ser pouco útil, uma vez que, as medidas necessárias são de muito difícil prova, e, levando em conta que os limites de responsabilidade eram baixos e os custos processuais demasiado altos, compensava mais à transportadora a não contestação, abstendo- se do seu direito à defesa, funcionando o regime mais como responsabilidade objetiva (J. XXXXXX, XXXXXX, “The Warsaw Convention: Historical Background and International Efforts to Modernize the Liability Regime of Air Carriers”, in Uniform Law Review, 1997, p. 322.
112 Sobre este tema vide CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.456.
necessárias e possíveis para evitar o dano113. Refere o artigo 21º que poderá a transportadora ser total ou parcialmente exonerada caso consiga demonstrar que quem causou o dano ou contribuiu para o desenvolvimento dele, foi o próprio lesado.
Em suma, aglomerando ao artigo 20º o artigo 17º da Convenção, podemos concluir que, bastando o lesado provar que teve um dano em consequência de um acidente, demonstrando assim o nexo de causalidade, haverá presunção de culpa do transportador e imediatamente a responsabilização do transportador pelo dano causado ao passageiro.
Quanto aos limites indemnizatórios este é um regime quantitativamente limitado114, aplicando-se o limite de 125.000 francos por passageiro – Cfr. Nº 1, Artigo 22º CV – não obstante, poderão as partes acordar um valor superior. Importa ainda referir que, este limite supra estabelecido não se aplica a casos em que o dano sofrido tenha sido provocado por dolo ou culpa equiparada do transportador115 ou dos seus agentes e funcionários, desde que se prove que estavam no seu exercício de funções116, o que poderá levar a indemnizações que extravasem o montante de 125 mil francos. Porém aqui, a prova, perante a jurisprudência portuguesa, cabe ao lesado, em respeito com a nossa legislação, que prevê que o ónus da prova é de quem invoca factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado117.
Uma vez aplicada a regra base do regime de responsabilidade, e determinados os limites indemnizatórios, cabe analisar as causas de exclusão, exoneração e atenuação da responsabilidade. Apenas em três casos poderá o transportador não reparar os danos, sendo eles:
113 Xxx presunção recai também para todos os seus funcionários e agentes – Cfr. Nº 1, artigo 20º, da Convenção de Varsóvia 1929.
114 Expressão utilizada por CALAIM LOURENÇO em CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.457.
115 É aqui exemplo o caso em que a transportadora, ainda que através dos seus agentes ou funcionários, permita a entrada de um passageiro na aeronave sem que o mesmo entregue o seu bilhete. A transportadora pela omissão está a permitir a entrada de alguém que irá viajar clandestinamente, assumindo o auxílio num ato ilícito, não podendo depois invocar, para efeitos de exoneração da sua responsabilidade, a exclusão de culpa.
116 Cfr. Artigo 25º da Convenção de Varsóvia.
117 Cfr. Nº 2 do artigo 342º do Código Civil Português. – “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.”
a) Quando o transportador prove que, tanto ele como os seus agentes ou funcionários, tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo ou que lhes era impossível tomá-las.
b) Xxxx se consiga demonstrar que foi o próprio lesado quem causou o dano, ou que tenha contribuído para o desenvolvimento do dano.
c) Se o lesado não intentar a ação de responsabilidade no prazo de dois anos, que contam a partir da data de chegada ao destino ou o dia em que a aeronave deveria ter chegado – Cfr. Nº 1 do Artigo 29º da CV.
Relativamente à primeira causa de exclusão, prevista no artigo 20º da CV, podemos dividi-la em duas partes, sendo que uma é consequência da outra. Numa primeira abordagem a primeira condição é a prova das ditas “medidas necessárias”. Eis um preceito de difícil determinação, consequentemente de difícil prova, porquanto será difícil precisar, que medidas mediante o caso concreto, seria expectável que o transportador tomasse. Por outro lado, na hipótese de o transportador não ter tomado as medidas necessárias, a questão que se coloca é: Seria possível e exigível, perante a situação concreta, que o transportador tomasse aquelas medidas? Segundo CALAIM XXXXXXXX a questão que importa aqui evidenciar é se esta situação visa casos de força maior e se a prova da ocorrência irá permitir exonerar o transportador de qualquer responsabilidade. A doutrina não é unânime nesta questão, e propõe duas interpretações, uma mais restrita, em que o transportador só poderá exonerar- se se conseguir estabelecer a causa a que deu origem ao dano e provar que tomou todas as medidas necessárias e adequadas ao caso concreto. Esta interpretação, salvo melhor opinião, só tem apenas um problema: ela obriga a que o transportador consiga estabelecer a causa do acidente, e casos não faltam de aeronaves que tenham desaparecido, onde nunca se conseguiu descobrir a origem do acidente, logo, todos os acidentes que possam ocorrer sem que se consiga definir a causa, automaticamente serão culpa do transportador, pois está vedado o direito do transportador exonerar a sua culpa mesmo que tenha tomado as medidas necessárias possíveis. Tal só nos pode remeter para a aceitação da interpretação ampla do artigo 20º, que apenas exige ao transportador que o mesmo se assegure, de forma prévia, do cumprimento de todas as normas
regulamentares a fim de garantir a segurança quer da aeronave, quer dos seus passageiros118.
Relativamente à segunda causa de exclusão, a questão que se coloca é: Quem tem de provar a culpabilidade do lesado? Basta a simples prova ou deverá também o transportador aqui provar que de tudo fez para evitar o dano? Mais uma vez, cabe ao transportador a prova de que o lesado teve total ou parcialmente culpa, ainda que contributiva, para o dano que sofreu. Conjugando os artigos 20º e 21º concluí que poderá sustentar-se a tese de que, bastando o transportador provar que o dano se deu por culpa contributiva do passageiro, esteja assim exonerado da responsabilidade. Porém, não podemos permitir que seja essa a tese válida, uma vez que estamos perante um regime de responsabilidade subjetiva, em que a culpa é presumida, assim a exoneração, total ou parcial, deverá exigir sempre que haja um bom comportamento do transportador, pois poderá, de facto, o passageiro ter culpa, mas se o transportador não tiver tomado todas as diligências devidas, poderá de alguma forma ter auxiliado a que o dano se produzisse, devendo ser responsabilizado por tal, na medida da sua culpa.
Quanto à última causa, denominada “extinção do direito de ação”, refere-nos o artigo 29º da CV que “a ação de responsabilidade deverá ser intentada sob pena de prescrição, no prazo de dois anos a contar da chegada ao destino ou do dia em que a aeronave deveria ter chegado ou da interrupção do transporte”. É estabelecido aqui um prazo, que, estando findo culmina na figura da prescrição119. Porém o texto consagrado no artigo 29º da CV é cabaz de incerteza quanto à figura estabelecida, dando azo a que possam nela se integrar
118 Acrescenta CALAIM LOURENÇO que “O transportador terá de se certificar do estado de navegabilidade da aeronave, da competência técnica da tripulação que o opera e das condições meteorológicas que se verificarão no decurso do transporte.” - em CALAIM LOURENÇO, Nuno
– A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes I, Almedina, Coimbra, 2010, p.459.
119 A natureza jurídica deste prazo não é consensual na doutrina e na jurisprudência, pois se por um lado temos quem defenda a figura da prescrição, com todos os seus efeitos advenientes – interrupção ou suspensão- por outro lado, temos quem defenda a figura da caducidade. Facto é que a jurisprudência tem sido bastante assertiva na figura da caducidade, de forma a dar segurança à relação contratual do transporte aéreo, e assim, dissipando a interrupção ou suspensão do prazo. Para mais pormenores sobre este tema vide CALAIM XXXXXXXX, Nuno
– A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes I, Almedina, Coimbra, 2010, pp.466 e 467.
duas figuras, por um lado a prescrição e por outro a caducidade. Facto que poderá auxiliar esta questão é que, nas três línguas oficiais (Francês, Espanhol e Inglês) em que a CV foi redigida, nenhuma faz referência a prazos prescritos, mas sim a prazos para intentar a ação, ou seja, são utilizadas expressões que remetem diretamente para a figura da caducidade.120
A jurisprudência portuguesa tem optado pela interpretação do artigo 29º da CV, a favor da caducidade, afirmando que a ratio legis desta norma é, precisamente, garantir a segurança jurídica e não sancionar a negligência do titular do direito, o que remete para a figura jurídica da caducidade121.
4.2.2.1.1 - Responsabilidades ilimitada do transportador
Não poderia analisar o regime da responsabilidade do transportador aéreo, sem referir os casos em que o transportador não se pode munir de medidas que visem excluir ou limitar a sua responsabilidade, sendo estes casos apenas dois:
a) Quando haja dolo ou culpa equiparável do transportador ou dos seus propostos; artigo 25º CV122;
b) Quando o transportador aceita um passageiro sem que lhe tenha emitido e entregue o bilhete de passagem – artigo 25º CV.
O que conseguimos apurar na análise supra realizada é que a CV prevê um limite indemnizatório. Porém existem exceções à regra, e a primeira está prevista nos nº 1 e 2 do artigo 25º, que refere que o dano que resulte de dolo ou culpa equivalente, do transportador ou dos seus propostos, não pode permitir ao transportador que o mesmo se faça valer de disposições que excluam ou limitam a sua responsabilidade. Apesar do conceito de “dolo” causar algumas
120 Pela versão francesa temos a expressão “déchéance”, na versão espanhola “bajo pena de caducidade” e por último, na versão inglesa “shall be extinguished”.
121 A este respeito vide Xxxxxxx do TRL, processo nº 00123112, de 07 de fevereiro de 2002, relator Xxxxx Xxxxxxx – em xxxx://xxx.xxxx.xx/xxxx.xxx/00000xx000000000000000xx00000xxx/000xx000000x00x000000xx00 037965c?OpenDocument (consultado a 04-05-2019)
122 Um dos casos mais esclarecedores desta exceção é o caso do voo Germanwings, que ocorreu a 24 de março de 2015, em que, por erro humano e violação intencional de procedimentos, por parte de um co-piloto da companhia aérea Germanwings, houve 150 mortes. Um voo operado pela companhia aérea germanwings que tinha como ponto de partida Barcelona, em Espanha e ponto de chegada Düsseldorf, na Alemanha, onde se encontravam a bordo 144 passageiros e 6 tripulantes, despenhou-se nos alpes franceses, tal acidente só se deveu porque o co-piloto, que já tinha alertado a companhia que sofria de um quadro de depressão grave, trancou-se sozinho na cabine e fez o avião despenhar-se, causando 150 mortes.
discordâncias quanto à sua definição, pois tem diferentes conceções nacionais, facto é que o mesmo acabou por ser aceite em todos os estados123. Todavia, no entendimento dos tribunais norte-americanos, havia a possibilidade de, mediante um conceito tão abrangente, legitimar a superação dos tetos indemnizatórios previsto no artigo 22º da CV sempre que, mediante o caso concreto, esses limites se tornassem insuficientes para ressarcir as vítimas. Tal interpretação determinou a revisão de 1955, uma vez que já se tornara uma interpretação considerada abusiva.
Em 1955 aquando da revisão, nasce o protocolo de Haia, que visa reformular, entre outros preceitos, o artigo 25º. Cabe explanar e reavivar, o que trouxe o protocolo de Haia de 1955 à CV:
1- Foi excluída a exoneração prevista no nº 2 do artigo 20º, relativamente ao transporte de bagagens e mercadorias:
2- Os limites que até então eram previstos em 125 mil francos, foram aumentados para 250 mil francos, em caso de morte ou lesão corporal;
3- A responsabilidade do transportador aéreo é estendida aos seus agentes, desde que se encontrem em exercício de funções, e aplicar-se-á o mesmo regime caso tenham agido com dolo;
4- A equiparação dos conceitos de “dolo” e “culpa” constante do artigo 25º deixa de existir;
Em suma, cabe referir a quem se aplica a Convenção de Varsóvia alterada pelo protocolo de Haia de 1955. Esta alteração só se irá aplicar in casu de o transporte seja efetuado entre dois Estados signatários do Protocolo. Assim, quando um dos Estados for parte apenas da Convenção de Varsóvia e o outro Estado tiver
123 O termo dolo acabou por ser consagrado como o equivalente a wilful misconduct do direito anglo-saxónico. Este termo é bem mais abrangente do que aquilo que entendemos por “dolo”, pois compreende não só o dolo direto, como ainda, a negligência grosseira consciente. Enquanto que para nós o dolo direto é definido como “intenção de praticar um acto ilícito com o fito directo e imediato de causar dano” – vide CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.471 – o conceito de wilful misconduct engloba não só os atos que sejam praticados com intenção de causar dano – dolo direto – como a desconsideração consciente das potenciais consequências que dessa atuação poderão existir – preenchendo, aqui, também o conceito, que por nós também é muito conhecido, de negligência grosseira consciente.
ratificado o Protocolo de Haia, aplicar-se-ão as normas constantes da Convenção de Varsóvia na sua versão original. É de salientar que, o Protocolo de Haia irá vincular sempre que o transporte se efetue entre dois Estados locais situados no mesmo território de um mesmo Estado que seja parte do Protocolo, e sempre que se tenha convencionado uma escala em território de Estado terceiro.
4.2.2.2 – Convenção de Montreal de 1999
Após análise extensiva da Convenção de Varsóvia e do Protocolo de Haia de 1955, cabe agora analisar o regime de responsabilidade do transportador aéreo instituído na Convenção de Montreal. Para auxiliar a explicação deste regime temos de iniciar a sua análise determinando quais as bases que o fundamentam. A este respeito podemos afirmar que, tanto o Protocolo de Guatemala de 1971, como o Regulamento CE nº 2027/97 foram os pilares deste regime. A responsabilidade do transportador aéreo em danos pessoais, no âmbito indemnizatório, assenta em duas dimensões distintas. Ao contrário do que a Convenção de Varsóvia prevê, aqui vigora, primordialmente, uma responsabilidade de cariz objetivo, e limitado. Ou seja, o transportador responde independentemente de culpa até ao montante de 100.000 DSE124, e só se poderá exonerar quando o dano se deva, total ou parcialmente, a culpa ou dolo do passageiro. Subsidiário a este regime de responsabilidade “quasi”125 objetiva, temos o regime de responsabilidade subjetiva, que só vigora quando os danos sofridos pelo passageiro, sejam superiores ao montante supra referido, gozando neste caso de responsabilidade subjetiva com presunção de culpa do transportador. Tal presunção é relativa, uma vez que admite prova em contrário, o que possibilitará ao transportador a sua exoneração total ou parcial, desde que consiga provar que:
124 O valor de 100.000 mil foi atualizado pela ICAO para 113.100 DSE, cfr. Art. 24º ; O que irá corresponder aproximadamente a 139.113 euros – consulta online para apuramento da taxa de câmbio em
xxxxx://xxx.xxxxxxxxx.xx/Xxxxxx/XXXxxx/Xxxxx.xxxx?XxxXXx000000&XxxXXx0000000&XXx0000, no dia 07/05/2019.
125 Qualificação dada por XXXXXX XXXXXXXX em CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.481.
a) Houve dolo ou culpa, exclusiva ou contributiva, do passageiro – Cfr. Art. 20º;
b) Haja dolo ou culpa exclusiva de terceiro – Cfr. Art. 21º, nº 2 - al. b);
c) Prove que teve uma conduta diligente, demonstrando, nos termos do art. 21º, nº 2 – al. a), que “tais danos não foram causados por negligência ou outro ato doloso ou omissão sua ou dos seus trabalhadores e agentes;
Tal como podemos verificar, a Convenção de Montreal de 1999 não altera de forma substancial o regime da Convenção de Varsóvia, que, em certos preceitos, é ipsis verbis a CV. Por esse mesmo motivo, e por já ter sido essa a metodologia adotada para análise da CV, focar-me-ei em analisar os preceitos que diferem nos dois regimes. Assim, falemos então de causas de exclusão, exoneração e atenuação da responsabilidade do transportador.
Quanto às causas de exclusão, exoneração e atenuação de responsabilidade, devemos dividir em dois níveis, o primeiro que é respeitante à responsabilidade objetiva e o segundo à responsabilidade subjetiva.
1º nível: é aplicado em situações que o dano seja igual ou inferior a 113.100 DSE. Aqui, o transportador só poderá gozar de isenção de responsabilidade, caso consiga fazer prova de que houve negligência, ou outro ato/ omissão que implique dolo ou culpa, da pessoa que sofreu o dano, ou da pessoa de quem emanam os direitos do lesado, que causou ou ajudou a causar o dano. Uma importante distinção das duas Convenções é que na Convenção de Montreal, no seu artigo 20º, é reconhecida uma “cláusula liberatória geral126” que não visa exclusivamente os danos que resultem em morte ou lesão corporal, acabando por englobar todos os tipos de danos que se possam verificar no transporte de passageiros, bagagens e mercadorias. Assim o dita o preceito no seu final “a todas as disposições em matéria de responsabilidade da presente Convenção, incluindo o nº 1 do art. 21º.”
126 Expressão utilizada por CALAIM LOURENÇO, em CALAIM LOURENÇO, Nuno – A limitação da Responsabilidade do Transportador Aéreo Internacional in COSTA GOMES, M. Januário – Temas de direito dos transportes, Almedina, Coimbra, 2010, p.482.
2º nível: Aplica-se quando o dano sofrido pelo passageiro for superior a 113.100 DSE. Neste caso, a prova na CV para exonerar o transportador, devem ser feita, não para exoneração, mas sim, para limitação da responsabilidade quando o dano exceda o valor de 113.100 DSE. Assim, até este valor, o transportador irá responder independentemente de culpa, assim o dita a responsabilidade “quasi” objetiva consagrada na Convenção de Montreal. Todavia, com o intuito de evitar uma responsabilidade ilimitada, deve o transportador fazer prova, quando seja caso disso, de que os danos não foram causados por negligência, dolo ou omissão sua ou dos seus agentes.
O que importa aqui perceber é, essencialmente, qual a diferença entre os regimes das duas Convenções. Ora, no regime da Convenção de Varsóvia o que reina é o regime de responsabilidade subjetiva com base na presunção de culpa do transportador, por outro lado, no regime da Convenção de Montreal estamos perante um regime de responsabilidade objetiva.
No primeiro regime estudado, o transportador exonera-se da sua responsabilidade se conseguir provar que tomou todas as medidas necessárias para evitar a verificação dos danos ou que lhe era impossível tomar tais medidas, ele e os seus agentes e funcionários, uma vez que a responsabilidades é estendida aos seus propostos. Se tal prova não for feita, a consequência prevista neste regime é de que o transportador seja responsabilizado dentro dos limites convencionados. Assim, compete ao passageiro, ou seu demandante, a prova de que o transportador ou os seus propostos agiram com dolo ou culpa para que a indemnização possa ser superior aos limites convencionados.
Por outro lado, no segundo regime, a prova de que nem o transportador, nem os seus propostos, agiram ou deixaram de praticar atos que deviam ter sido praticados, a titulo de negligencia ou dolo, ou inclusivamente que tais danos foram praticados por terceiros, terá apenas como objetivo evitar que a responsabilidade do transportador ultrapasse o limite de 113.100 DSE, pois, caso contrário, responderá objetivamente até este montante, incumbindo-se de provar que o passageiro ou terceiro contribuíram ou causaram o dano, por ação ou omissão, dolosa ou negligente, para que se consiga exonerar parcial ou totalmente.
Este regime está regulado no Regulamento CE nº 2027/97, que tem como requisito de aplicabilidade material que a transportadora aérea, que venha a ser potencialmente responsabilizada, seja comunitária. Para tal, preceitua a alínea
b) do artigo 2º do referido regulamento, que uma transportadora é considerada comunitária se a mesma for titular de uma licença de exploração válida emitida por um Estado-Membro nos termos do Regulamento CE nº 2407/92, sendo assim, para efeitos de aplicação deste regulamento, irrelevante se o voo é internacional ou doméstico.
Quanto ao que de facto nos importa aqui analisar, o seu regime de responsabilidade do transportador aéreo, por danos a passageiros e bagagem, na sua versão original foi alterado, a fim de uniformizar o regime de responsabilidade do transportador aéreo, que já se encontra demasiado fragmentado, aderindo ao texto da Convenção de Montreal de 1999. Assim pode ler-se no seu nº 1 do artigo 3º do Regulamento CE nº 2407/92: “A responsabilidade das transportadoras aéreas comunitárias relativamente aos passageiros e à sua bagagem regula-se por todas as disposições da Convenção de Montreal aplicáveis a essa responsabilidade.”
Acresce a isto que o artigo 50º da Convenção de Montreal exige que o transportador aéreo esteja garantido de um seguro válido, estando de acordo com o Regulamento CE nº 2407/92, de forma a salvaguardar a garantia de que os lesados irão ser ressarcidos, de acordo com as indemnizações que lhes sejam adequadas aos critérios previstos no mesmo Regulamento.
O regime aplicável é o mesmo da Convenção de Montreal, com algumas alterações, pois, em caso de dano, o transportador terá 15 dias, após determinar a identidade da pessoa que tenha direito à indemnização, para adiantar uma quantia, como que um pagamento adiantado (advance payment), que vise permitir cobrir as necessidades económicas imediatas, e que não ultrapasse os 15000 DSE (o equivalente a €18.450,00) em caso de morte.
Assim, devemos aqui aferir algumas das especificidades deste adiantamento de quantias:
1 – Tal pagamento não se traduz numa assunção de culpa do transportador aéreo;
2 – No caso de vir a ser apurada a responsabilidade do transportador aéreo, a quantia já adiantada será deduzida ao montante total da indemnização do lesado;
3 – A quantia que seja oferecida, a título de adiantamento, apenas terá de ser restituída na medida em que o transportador aéreo prove que a conduta, negligente ou dolosa, do passageiro lesado contribuiu para a verificação do dano; ou caso prove que a pessoa a quem foi pago o adiantamento não tinha legitimidade para exigir tal indemnização.
Mais, acresce aqui um dever de informação por parte do transportador que está previsto no regulamento. Assim deverá o transportador oferecer aos passageiros todas as normas reguladoras da responsabilidade em caso de morte ou lesão dos passageiros, e ainda, nos casos de destruição, perda ou atraso da entrega da bagagem, bem como do prazo que os mesmos dispõem para exercer os seus direitos contra o transportador.
4.3 – Indemnização e assistência aos passageiros de transporte aéreo
Convém traçar, desde já, o esquema pelo qual irei guiar esta abordagem de possíveis casos de indemnização e assistência ao passageiro, além dos casos supra mencionados (de lesão corporal e morte). Assim sendo passemos a analisar os seguintes casos, iniciando pelos regulamentos comunitários, e de seguida pela perspetiva de ambas as Convenções.
• Recusa de embarque – overbooking127
• Cancelamento de voo ou atraso considerável.
• Colocação em classe diferente da contratada.
Importa aqui dar enfâse a uma questão que me parece fundamental. Até agora temos visto o sujeito passageiro como um mero sujeito da relação contratual,
127 Denominação dada para os casos em que as companhias aéreas vendem mais bilhetes do que lugares que têm para um determinado voo. Definição que irei estudar de seguida aquando do estudo do regime indemnizatório em caso de recusa de embarque.
mas temos que fazer um exercício mais aprofundado sobre quem é este sujeito, devemos analisar a situação tendo como o passageiro um consumidor na relação jurídica, esta distinção é feita para proteção do próprio passageiro, para que haja um cuidado acrescido, reforçando os direitos do passageiro enquanto consumidor. Nesta orientação encontramos Xxxx Xxxxx Xxxxx, que destrinça de forma clara os elementos desta noção de consumidor, repartindo em i) elemento subjetivo (o sujeito enquanto pessoa jurídica); ii) elemento objetivo (bens/ serviços que pelo consumidor são adquiridos); iii) elemento teleológico (finalidade do bem/ serviço adquirido)128; iv) elemento relacional (o cocontratante que deve ser uma empresa ou entidade patronal). Define consumidor como “numa noção de consumidor em que este corresponde à pessoa singular que atua com fins estranhos ao âmbito da sua atividade empresarial, comercial ou profissional”129.
A recusa de embarque e o cancelamento ou atraso considerável do voo são factos muito praticados pelas companhias aéreas. Cada vez mais há uma grave desproteção das garantias que são asseguradas aos passageiros. O transporte aéreo tem sido visto como um simples táxi aéreo, havendo adesão em massa a este meio de transporte. O que aqui ocorre é uma clara ambição económica das companhias que visam, em primeiro lugar, reservar todos os assentos possíveis do avião, sem sequer se preocuparem com as necessidades adequadas dos passageiros, uma vez que primordial é a ocupação continua das aeronaves, desvalorizando os prejuízos que isso possa causar ao passageiro que toma conhecimento, a escassos minutos do seu voo, que afinal não irá embarcar.
Devido a esta necessidade premente de tutela dos direitos do consumidor, enquanto passageiro, foi criado o Regulamento CE nº 261/2004130, que
128 Quanto a este elemento teleológico que o mais que nos diz é que tem que ser um bem/ serviço adquirido por uso não profissional, o nosso ordenamento jurídico pela Lei 25/96, no seu artigo 2º, faz força para a não inclusão na noção de consumidor de pessoas, físicas ou jurídicas, que atuam no âmbito de atividade económica. Porém o mesmo entendimento já não é seguido pela União Europeia, uma vez que a mesma não classifica o passageiro como consumidor, pois não exige o elemento teleológico aqui exposto. – Cfr. Xxxxx, Xxxx Xxxxx, op. Cit. P. 546.
129 Cfr. Xxxx Xxxxx Xxxxx, op. Cit. P. 546.
130 Tal Regulamento só entrou em vigor em 17 de fevereiro de 2005. Este Regulamento revogou o Regulamento CEE nº 295/ 91, que com a constante evolução e adesão ao meio aéreo, tornou- se ineficaz para garantir as necessidades do passageiro.
estabelece regras quanto à indemnização que pode ser auferida pelos passageiros dos transportes aéreos nos casos de recusa de embarque e de cancelamento ou atraso considerável de voo. É de salientar que o próprio Regulamento não abarca a tese de que o passageiro é um consumidor, podendo assim ser aplicado de forma universal, porém o mesmo rege-se por medidas de proteção de consumidor, que está plasmado nos Considerandos 1, 4, 14, 35131.
O que este novo Regulamento visava elevar a proteção da tutela dos direitos do passageiro, que já existia no anterior Regulamento, embora fosse precária, mediante o reforço dos direitos dos passageiros, e ainda, garantindo que as transportadoras aéreas operavam de forma homogénea, ainda que num mercado liberal. Vejamos quais as principais preocupações do legislador e o que de facto alterou:
1 – As transportadoras aéreas passaram a estar vinculadas a um dever de informação132, assim, as transportadoras que recusem, cancelem ou atrasem, de forma considerável, um voo, devem distribuir impressos informativos com as regras de indemnização e de assistência que constam do Regulamento; mais, devem também utilizar os meios adequados no caso de invisuais ou deficientes visuais.
2 – Passou a existir a possibilidade de ser reclamada uma indemnização suplementar nos casos em que o passageiro se veja obrigado a ceder o seu lugar133.
3 – Reconheceu-se o direito de regresso das transportadoras aéreas contra terceiros, assim como, de operadoras turísticas e terceiros contra transportadoras aéreas no âmbito dos contratos de transporte celebrados. Reconhecido no artigo 13º do Regulamento em causa.
131 Xxxxx, Xxxx Xxxxx, op. Cit. P. 549, aborda este assunto de forma simples e mais pormenorizada.
132 “A transportadora aérea operadora que recusar o embarque ou cancelar um voo deve distribuir a cada passageiro afectado um impresso com as regras de indemnização e de assistência consonantes com o presente regulamento. Deve igualmente distribuir um impresso equivalente a cada passageiro afectado por um atraso de, pelo menos, duas horas. Os elementos de contacto com o organismo nacional designado a que se refere o artigo 16.o também devem ser facultados ao passageiro em impresso. / No caso das invisuais e deficientes visuais, o presente artigo deve aplicar-se utilizando os meios alternativos adequados.” Transcrição integral do nº 2 e 3 do artigo 14º do Regulamento CE nº 261/ 2004.
133 Cfr. Artigo 12º do Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro de 2004.
5 – Foi exigido que cada Estado-Membro designasse um organismo responsável pela execução do regulamento, sendo esse organismo competente para receber queixas sobre possíveis infrações às normas impostas.
6 - A aplicação do regulamento é exclusiva a passageiros que fossem transportados em aeronaves de asa fixa. Mais, ficaram excluídos do âmbito deste regulamento os passageiros de viagens gratuitas ou com tarifa reduzida que não estivessem disponíveis ao público.
7 - Por último, todos os direitos dos passageiros que estejam consagrados no regulamento são garantidos, pois o artigo 15º proíbe expressamente a criação de uma qualquer clausula que vise excluir ou limitar esses direitos.
Uma vez analisadas as principais características deste regulamento, e uma vez que já nos encontramos neste âmbito, estudemos agora os regimes de recusa de embarque, cancelamento ou atraso de voo. É importante antecipar que existe uma panóplia de direitos que são atribuídos ao passageiro, desde uma compensação pecuniária, o reembolso do custo do bilhete ou embarque num outro voo alternativo, e ainda, o direito de assistência. Todavia só o passageiro a quem seja recusado o embarque terá direito total de todos os direitos elencados.
4.3.1.1 – Recusa de Embarque/ Overbooking
O desaparecimento das fronteiras europeias, a criação do mercado único europeu, a livre circulação aérea no espaço comunitário europeu, aliados à evolução tecnológica que a indústria aeronáutica sofreu nos últimos anos, levaram a um aumento de adesão a este meio de transporte. Os consumidores passaram a viajar de forma livre, célere e prática entre os Estados-membros, o que levou a uma adesão massificada de passageiros e a um aumento do tráfego aéreo.
O que é facto é que o aumento da procura surgiu de forma abrupta, não dando oportunidade a que as companhias conseguissem acompanhar essa procura incessante por parte dos consumidores, o que nos remete para a problemática que ocorre nos dias de hoje. As companhias perderam a qualidade dos serviços prestados, acabando por muitas vezes, prejudicar o próprio passageiro, violando direitos que lhes são auferidos, e incumprindo normas a que o contrato de
transporte está adstrito. Os casos mais berrantes e notórios foram, precisamente, no desrespeito dos direitos dos passageiros em situações de recusa de embarque, cancelamentos de voos ou atrasos de longa duração134
Assim, o que começou por ocorrer é que o meio de transporte mais procurado e acessível para os passageiros, tornou-se no meio mais desgastante e o menos viável, pois não garantia que o passageiro conseguisse chegar ao seu destino à hora a que se tinha proposto, e pior, sem qualquer aviso prévio.
De forma a colmatar as graves falhas das transportadoras aéreas, e numa tentativa, dalguma forma, conseguir compensar o passageiro pelos prejuízos que lhe foram causados com o incumprimento da transportadora, nasceu o Regulamento CEE nº 295/ 91, do Conselho, de 4 de fevereiro, que visou estabelecer regras comuns referentes a um sistema de compensação por recusa de embarque de passageiros nos transportes aéreos regulares. O âmbito de aplicação destas regras era para passageiros a quem o embarque tivesse sido recusado num voo regular, por motivos de sobrerreserva.
A esta situação damos o nome de overbooking135, que ocorre quando um passageiro que tenha um bilhete válido e com reserva confirmada, se veja
134 Advertindo, desde já que, nem toda a recusa de embarque é automaticamente considerada injustificada. A transportadora só responde por recusas de embarque injustificadas, isto é, a transportadora pode recusar o embarque de um passageiro se tiver algum fundamento, como por exemplo, pode recusar embarque por questões de segurança, saúde ou falta de documentação, e até mesmo em alguns casos, atraso na comparência do momento do check- in.
135 De forma sucinta, pois este não é o fator central desta tese, cabe explicar um pouco melhor este fenómeno, uma vez que cada vez mais somos deparados com situações deste género. A definição remonta-nos para o impulso que foi dado pela liberalização do transporte aéreo na Europa, pela globalização e pela desregulamentação americana, todas estas circunstâncias levaram a que existisse mais oferta deste meio de transporte e, consequentemente, à diminuição dos preços dos bilhetes. O que muitas vezes sucedia é que, apesar de a transportadora ter todos os lugares de um determinado voo reservados, o facto é que alguns desses lugares iam vazios, pois os passageiros não compareciam ao momento de embarque, quer por motivos a si alheios (caso de perda de ligações por atraso de voo anterior) ou até mesmo por sua livre vontade. Tal situação equivalia para a transportadora um prejuízo inaceitável, pois a aeronave seguia o seu percurso com lugares vazios, chegando mesmo a realizar operações com 40% de ocupação, tendo vendido 100% dos lugares da aeronave. De forma a evitar que tal ocorresse, as transportadoras aéreas acabaram por adotar uma prática de aceitação de reservas de lugares num número superior aos lugares que de facto existiam, ou seja, aceitam reservas na totalidade da capacidade da aeronave e ainda, aceitam reservas além da capacidade da aeronave, mediante uma estimativa do número de não comparência ao embarque. Todavia, esta solução que as transportadoras criaram voltou-se contra os próprios passageiros, pois o que ocorre é que, muitas vezes, os passageiros com bilhete válido e reserva aceite, que se apresentam no momento de embarque, são num numero superior à capacidade do avião, acabando por os excedentários ser impedidos de embarcar e constituindo então o fenómeno de overbooking. Ou
impedido de embarcar na aeronave, porque a transportadora reservou para esse mesmo voo um número de lugares superior à capacidade física que a aeronave suporta, ou por sobrereserva, que é quando por algum motivo (voo cancelado, perda de ligações motivadas por atraso de voo anterior), o passageiro se vê proibido de embarcar136.
Mas quais são os direitos dos passageiros? O Regulamento CE nº 295/ 91 estabeleceu que em caso de recusa de embarque por sobrerreserva, o passageiro tinha o direito de optar por:
a) – Reembolso sem qualquer penalização do preço do bilhete correspondente à parte da viagem que não foi efetuada.
b) Reencaminhamento no mais curto prazo para o destino final.
c) Reencaminhamento numa data posterior que seja da conveniência do passageiro.
Além destas opções, o passageiro tinha, ainda, direito de exigir à transportadora aérea que incumpriu de alguma forma o contrato a que se vinculou, imediatamente após a recusa de embarque, uma compensação mínima, que podia variar em função da distância que ainda restava para o destino final137.
Tais compensações seriam reduzidas para metade se a transportadora conseguisse reencaminhar os passageiros até ao seu destino final, noutro voo cuja hora de chegada não ultrapassasse duas horas, da hora de chegada inicialmente contratada, no caso de ligações até 3500 quilómetros, e quatro horas em casos de mais de 3500 quilómetros.
seja, as companhias aéreas criaram uma solução para amenizar o seu prejuízo, que não era efetivo, para obter mais lucro, pois o facto é que independentemente de a pessoa ter comparecido ou não, esse passageiro comprou a reserva daquele lugar, todavia pela ambição lucrativa das transportadoras, deparamo-nos com o fenómeno do overbooking que só traz inconvenientes graves ao passageiro.
136 Para mais esclarecimentos vide XXXXXXXXX, Xxxxxxxx – A Proteção Jurídica do Passageiro aéreo in AZEVEDO JUNIOR, António, et al. -Textos de Direito Aéreo, Dislivro, Lisboa, 2003, p. 68 e ss. E também, MORAIS, Xxxxxx xx Xxxxxxxxxxx – “Recusa de embarque injustificada no transporte aéreo internacional de passageiros: (des) equilíbrio dos interesses em presença?” in Revista de Direito Comercial, 2017, p.497., que denomina este fenómeno por “incumprimento em cadeia”, e acaba por concluir e justificar que, a recusa de embarque não se restringe apenas a overbooking, poderá ocorrer “circunstâncias extraordinárias” que levem a esta recusa.
137 Essas compensações poderiam ser pagas em numerário ou em títulos de viagem, ficando à consideração do passageiro qual a modalidade que deveria ser utilizada para a compensação. – Cfr. Nº 6 do artigo 4º, do Regulamento CEE nº 295/ 91, de 4 de fevereiro de 1991.
Além destas compensações, que visavam de alguma forma compensar o passageiro pelos possíveis danos que a recusa de embarque no voo viesse a causar, eram ainda garantidos outros direitos, de forma a minimizar o desconforto causado e tentando evitar que o atraso causasse ainda mais prejuízos ao passageiro, para além do que já tinha causado. Assim era garantido ao passageiro:
1 – O custo de uma chamada telefónica para o local de destino;
2 – Refeições e bebidas em proporção razoável ao tempo de espera;
3 – Alojamento num hotel no caso de bloqueamento dos passageiros por mais de 24 horas;
Não obstante todos estes direitos dos passageiros, cabe aqui relembrar que as transportadoras eram obrigadas a distribuir um impresso a todos os lesados onde constassem todas as diretrizes do regime de compensação nos casos de embarque recusado.
A 11 de fevereiro de 2004 entrou em vigor o Regulamento CE nº 261/ 2004, que veio revogar o Regulamento CEE nº 295/ 91 de 4 de fevereiro de 1991, alterando assim o regime estabelecido para os casos de recusa de embarque, e abarcando no mesmo regulamento o regime para os casos de atraso considerável ou cancelamento de voo.
O facto é que o Regulamento CE nº 295/ 91, estabelecendo uma proteção do passageiro um tanto limitada, tendo algum défice quanto à tutela do passageiro, pois, apesar desta proteção, o facto é que o número de casos de recusa de embarque contra a vontade do passageiro só aumentava, levando a deduzir que as transportadoras aéreas não estariam a ser devidamente sancionadas, pois continuava a “compensar” às companhias correr o risco de recusa de embarque visto que o seu lucro, ainda que com pagamentos de compensações, seria grande. Assim, este novo Regulamento vem tentar trazer algum equilíbrio à relação contratual, garantindo ainda mais direitos àquela que é tida como a parte mais fraca da relação transportadora - passageiro.
Assim, passarei a analisar algumas diferenças quer no âmbito de aplicação, quer nos pressupostos para a aplicação do regime:
1 – O âmbito de aplicação foi alargado, passando a estar contemplados, além dos passageiros de voos com ponto de partida de um aeroporto situado em território de um Estado-Membro, os passageiros de voos operados por companhias aéreas comunitárias a partir de países terceiros com destino ao aeroporto situado no território um Estado-Membro, salvo se os passageiros já tivessem recebido algum beneficio/ indemnização, e lhes tenha sido prestada assistência nesse mesmo país terceiro. Mais, a aplicação estende-se aos voos não regulares, abarcando aqui os dois tipos de voos. Advertindo que aqui encontramos também os passageiros que tenham sido transferidos de um voo para o qual tinham reserva validada, para outro voo.
2 – Quanto aos pressupostos, é necessário que o passageiro tenha uma reserva confirmada para aquele voo determinado, que se apresente para embarque com a antecedência devida, que caso não seja proposto pela transportadora aérea, deverá ser uma antecedência de 45 minutos – cfr. al. a), artigo 2º do Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro de 2004.
Em suma, o que cabe aqui referir primeiramente é que, aquando de uma situação de recusa de embarque do passageiro por parte da transportadora, e preenchendo o passageiro todos os pressupostos, cabe à transportadora solicitar aos passageiros que se voluntariem a fim de cederem as suas reservas sob condição de haver compensações a serem feitas. Numa hipótese idílica em que os passageiros sejam voluntários quanto à cedência da sua reserva, possibilitando dessa forma que os restantes passageiros, que também tenham reserva confirmada, embarquem, não podemos afirmar que exista recusa de embarque, pois o passageiro, de forma voluntária, está a aceitar aquela condição. Porém, se os passageiros voluntários foram em número insuficiente, mediante os lugares existentes na aeronave, terá a transportadora que recusar o embarque de uns em detrimento de outros, podendo aqui existir uma recusa de embarque factual por parte da transportadora.
Após a recusa de embarque a um passageiro, nas condições supra mencionadas, a transportadora aérea deverá imediatamente compensá-lo138, assim o dita o artigo 7º do Regulamento. Ora, nesse mesmo artigo, encontramos a delimitação
do quantum desta compensação que as transportadoras devem atribuir aos seus passageiros. Está dividido de forma gradual. Conforme a distância a que o passageiro se encontra do seu destino final139, deverá a transportadora compensar de forma imediata nos valores que a seguir se elencam:
a) 250 euros para todos os voos até 1500 quilómetros140;
b) 400 euros para os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros, e para todos os voos entre 1500 e 3500 quilómetros;
c) 600 euros para os voos que não se encontrem abrangidos nas alíneas anteriores;
E, além disso, deverá reembolsar ou reencaminhar o passageiro para outro voo141. No caso de reencaminhamento do passageiro, poderá a transportadora reduzir as compensações142 supramencionadas, em metade, sempre que a diferença entre a hora contratada e hora em que de facto o passageiro chegou ao seu destino, não ultrapasse:
a) – Em duas horas para todos os voos com distância até 1500 quilómetros;
b) – Em três horas para todos os voos intracomunitários com mais de 1500 quilómetros e para todos os outros voos entre 1500 e 3500 quilómetros;
c) – Em quatro horas para todos os voos que não estejam abrangidos nas alíneas anteriores;
Não olvidando de toda a assistência ao passageiro que a transportadora está adstrita143. Esta última garantia de tutela dos direitos do passageiro foi a menos alterada aquando da comparação das diferenças dos dois regulamentos, apenas sofrendo um acréscimo de encargo para o transportador no que concerne a uma
139 Cumpre relembrar que, em casos de reencaminhamento do passageiro, pela transportadora, para o seu destino final deve relevar somente o último destino a que o passageiro chegará com atraso em relação à hora de chegada que foi contratada, por motivo de recusa de embarque.
140 A título de curiosidade podemos ter nesta primeira categoria uma viagem que tenha como ponto de partida o aeroporto do Porto e como destino o aeroporto de Frankfurt, sem escalas.
141 Cfr. artigo 8º do Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro de 2004.
142 De salientar que o pagamento de tais compensações deve ser acordado com o passageiro, podendo o mesmo receber por dinheiro, transferência bancaria, cheque, ou até, por vales de oferta, sendo certo que a transportadora não pode impor a forma de pagamento que mais lhe aprouver.
assistência especial, ou seja, o transportador aéreo passou a estar obrigado a prestar uma especial atenção/cuidado às necessidades de pessoas com mobilidade reduzida e seus acompanhantes, e ainda, a necessidade de crianças quando não acompanhadas por adultos144. A reter, caso haja recusa de embarque, o passageiro tem direito a receber uma compensação pecuniária, a ser reembolsado do seu bilhete e a receber assistência da companhia aérea.
Não obstante todas as garantias a que a transportadora está obrigada a assegurar, a transportadora está sempre livre de recusar o embarque do passageiro que não se encontre munido de toda a documentação que é necessária, ou por motivos de segurança ou de saúde.
Esta é uma matéria nova para o Regulamento CE nº 261/ 2004, pois o anterior Regulamento não a contemplava a matéria. Porém, com o abuso do uso recorrente deste mecanismo, por parte das transportadoras, e com os avultados prejuízos que o cancelamento de um voo pode acarretar para o passageiro, a Comissão Europeia viu-se obrigada a antever e tentar prevenir um problema maior, acabando por regulamentar este tipo de situações.
Assim sendo, e não havendo qualquer base comparativa, o Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro de 2004 foi o condutor da regulamentação desta matéria, passando a estabelecer regras que visassem a proteção do passageiro, mediante formas de compensação, mas que não prejudicassem as transportadoras aéreas de forma demasiado onerosa, pois nem sempre a transportadora terá culpa no cancelamento de voo, não podendo responsabilizar a transportadora por situações que lhe são alheias, como é o caso de situações em que são cancelados voos por alterações climáticas que não permitem garantir a segurança do voo. Denominamos este tipo de situações como causas de força maior.
Nesta lógica sequencial, estabelece o nº3 do artigo 4º, que deverá a transportadora ser desonerada de qualquer obrigação de indemnizar nos termos
144 Para mais detalhe vide Xxxxxxxx Xxxxxxxx, Xxxxxx – “Regimen Juridico del Transporte Aéreo”, S.L.Civitas Ediciones, Pamplona, 2005, 1ª edição, p .310.
do artigo 7º, se a mesma provar que o cancelamento do voo teve como origem circunstâncias extraordinárias que não poderiam ser evitadas, ainda que a transportadora tomasse todas as medidas possíveis para que tal não ocorresse. Mas a exoneração do dever de indemnizar não se restringe só aos factos alheios à transportadora. Diz-nos a alínea c) do nº 1, do artigo 5º, que a transportadora está desobrigada ao pagamento de indemnizações quando:
a) Xxxx informado aos passageiros o cancelamento do voo com pelo menos duas semanas de antecedência antes da hora acordada; ou
b) Os passageiros tiverem sido informados do cancelamento entre duas semanas e sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até duas horas antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até quatro horas depois da hora programada de chegada, ou
c) Os passageiros tiverem sido informados do cancelamento menos de sete dias antes da hora programada de partida e se lhes tiver sido oferecido reencaminhamento que lhes permitisse partir até uma hora antes da hora programada de partida e chegar ao destino final até duas horas depois da hora programada de chegada.
Em suma, a transportadora passou a estar adstrita a um dever compensatório aos passageiros nos casos de cancelamento de voo. Tal ocorre nos mesmo termos que a indemnização por recusa de embarque, ou seja, os passageiros têm, também neste âmbito, direito a uma compensação/ indemnização, ao reembolso ou reencaminhamento, e ainda, direito a assistência145. Xxxxx se a transportadora provar que tal cancelamento só se deveu a circunstâncias que lhe são externas e que não poderiam ter sido evitadas pelas medidas razoáveis que a transportadora pudesse atender; mais, além disso, fica excluído o dever de indemnizar o passageiro, caso a transportadora cumpra com qualquer uma das três situações supra mencionadas.
145 Funciona aqui uma remissão para os artigos 7º, 8º e 9º do regulamento, que deverão ser interpretados de forma contextualizada à circunstância em causa.
A matéria de atraso de voos não se encontrava regulada até 2004, uma vez que aquando da construção do Regulamento CEE nº 295/ 91, esta não era uma problemática evidente. Porém com a evolução da indústria aeronáutica e com a adesão em massa dos consumidores a este meio de transporte, aumentou o tráfego aéreo, o que levou a alguns atrasos por parte das transportadoras. Em consonância com o regime supra identificado para situações de recusa de embarque e cancelamentos de voos, foi criado o regime de responsabilidade das transportadoras aéreas para situações de atraso considerável do voo. Todavia, este regime não é tão oneroso para as transportadoras, pois no entendimento da Comissão, ao contrário do que ocorria nas situações anteriores, em grande parte da ocorrência de atrasos de voos, a culpa não é reportada à transportadora, mas sim a potenciais problemas de congestionamento do tráfego aéreo, ou até da falta de capacidade de alguns aeroportos que não estão preparados para a dimensão da atual circulação aérea.
Sem prejuízo desta maior proteção às transportadoras, o facto é que existem garantias mínimas que devem ser oferecidas ao passageiro/consumidor. Por essa razão, o Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro, assegura a obrigação de assistência básica aos passageiros, em casos de atrasos consideráveis/ de longa duração, do voo.
Refere o artigo 6º, do dito Regulamento que:
“Quando tiver motivos razoáveis para prever que em relação à sua hora programada de partida um voo se vai atrasar:
a) Duas horas ou mais, no caso de quaisquer voos até 1 500 quilómetros; ou
b) Três horas ou mais, no caso de quaisquer voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros e no de quaisquer outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros; ou
c) Quatro horas ou mais, no caso de quaisquer voos não abrangidos pelas alíneas
a) ou b);
a transportadora aérea operadora deve oferecer aos passageiros:
i) a assistência especificada na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do artigo 9º, e
ii) quando a hora de partida razoavelmente prevista for, pelo menos, o dia após a hora de partida previamente anunciada, a assistência especificada nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 9º, e
iii) quando o atraso for de, pelo menos, quatro horas, a assistência especificada na alínea a) do nº 1 do artigo 8º146.
O artigo 6º tem que ser analisado de forma conjugada com o artigo 9º do mesmo Regulamento, e assim sendo, gera responsabilidade da transportadora aérea quando estão preenchidos os pressupostos supra mencionados, devendo a transportadora garantir ao passageiro refeições e bebidas em “proporção razoável”147 ao tempo de espera, assim como, duas chamadas telefónicas, mensagens via fax ou por via eletrónica. Mais, quando o atraso for consideravelmente grande, e por esse mesmo motivo, a partida do voo seja feita no dia posterior ao dia que estava estipulado, deve a transportadora providenciar alojamento em hotel, durante o tempo necessário, e ainda se for caso disso, transporte para o local de alojamento e de volta para o aeroporto. A ratio legis desta disposição é que, o passageiro não tenha qualquer encargo adicional pelo atraso, de forma a evitar que o prejuízo que o passageiro sofra seja ainda maior.
Independentemente dos quilómetros que o voo esteja destinado a fazer, sempre que o atraso de voo seja de quatro horas ou superior, deve a transportadora aérea prover refeições e bebidas aos passageiros, evidentemente que sempre de forma proporcional e razoável ao tempo de espera que esteja destinado.
Deverá ser sempre salvaguardado o dever de cuidado especial, consagrado no artigo 9º, que nos diz no seu nº 3 que deve a transportadora aérea ter um especial cuidado na assistência a passageiros com mobilidade reduzida, assim como, a crianças que não estão acompanhadas por adultos. Este tipo de situação remete- nos para o cumprimento do Regulamento CE nº 1107/ 2006, de 05 de julho de 2006, onde pode ler-se no seu preâmbulo: “O mercado único dos serviços aéreos
146 Transcrição ipsis verbis do nº 1 do artigo 6º do Regulamento CE nº 261/ 2004, de 11 de fevereiro de 2004.
147 Denominação dada pelo legislador na alínea a) no nº1 do artigo 9º do Regulamento CE nº 261/ 2004 de 11 de fevereiro de 2004.
deverá beneficiar todos os cidadãos. Consequentemente, as pessoas com deficiência e as pessoas com mobilidade reduzida por deficiência, idade ou qualquer outro fator deverão ter oportunidades de acesso ao transporte aéreo comparáveis às dos outros cidadãos. As pessoas com deficiência e as pessoas com mobilidade reduzida gozam dos mesmos direitos, de que usufruem todos os demais cidadãos, à liberdade de circulação, à liberdade de opção e à não discriminação. Tal é aplicável tanto no transporte aéreo como noutros domínios da vida.” Assim, é também um dever de qualquer transportadora aérea garantir a igualdade de acesso a este meio de transporte, logicamente tendo um dever especial de cuidado nas situações supra mencionadas quando transporte passageiros que cumpram as condições da mesma.
4.3.1.4 – Colocação em classe distinta da contratada
Esta é uma situação-consequência, isto é, situações em que a transportadora coloca o passageiro em classe superior ou inferior à contratada, advém dos casos de overbooking, pois o que ocorre para que não haja recusa de embarque a um numero vasto de passageiros, é que a transportadora aérea solicita passageiros voluntários (que não se importem de ceder o seu lugar a outros passageiros com a mesma reserva), para a troca de lugares, podendo colocar o passageiro voluntário em classe superior ou inferior à contratada.
O Regulamento também conseguiu dar resposta a este tipo de situações, estabelecendo que, no caso de o passageiro ser colocado em classe superior à contratada, tal colocação não poderá ter qualquer custo adicional, pois o passageiro está de forma voluntária a ceder o seu lugar, não sendo justo que lhe seja imputado qualquer custo por um erro que lhe é alheio.
Por outro lado, no caso de um passageiro voluntário que seja colocado em classe inferior em relação à que estava contratada, tal colocação terá encargos para a transportadora, assim prevê o artigo 10º que:
“Se colocar um passageiro numa classe inferior àquela para a qual que o bilhete foi adquirido, a transportadora aérea operadora reembolsa no prazo de sete dias, de acordo com as modalidades previstas no nº 3 do artigo 7 º:
a) 30 % do preço do bilhete para todos os voos até 1 500 quilómetros; ou
b) 50 % do preço do bilhete para todos os voos intracomunitários com mais de 1 500 quilómetros, com exceção dos voos entre o território europeu dos Estados- Membros e os departamentos ultramarinos franceses, e para todos os outros voos entre 1 500 e 3 500 quilómetros; ou
c) 75 % do preço do bilhete para todos os voos não abrangidos nas alíneas a) ou b), incluindo os voos entre o território europeu dos Estados-Membros e os departamentos ultramarinos franceses.”
Esta parece uma solução óbvia, mas que se não estivesse prevista levaria a abusos por parte das transportadoras aéreas, violando gravemente os direitos do consumidor, que na sua boa-fé adquire um determinado lugar em classe superior e que acabaria por ser colocado numa classe inferior sem qualquer reembolso, ou ainda, ter que pagar um acréscimo para conseguir viajar num voo em que já tinha uma reserva válida, pelo único motivo de recolocação de lugar e mudança de classe, situação essa criada muitas vezes pela própria companhia. Assim, ficam salvaguardados direitos mínimos do consumidor, que muitas vezes, por ignorância, acabam por ser violados pelas transportadoras aéreas.
4.3.2 – Regimes de Varsóvia e Montreal
Em ambos os regimes estão verificados o princípio de exclusividade de matéria, ou seja, a contrario, a matéria que por estas convenções não seja regulada, salvo melhor opinião, deverá ser regulada pela lei nacional reportando à jurisdição que seja competente para o ato.
É importante desde já referir que o Tribunal de Justiça pronunciou-se sobre a compatibilidade das normas do Regulamento e daquelas já previstas na Convenção de Montreal, alegando que não resulta da Convenção que esta possa “obstar à intervenção do legislador comunitário para fixar, no âmbito das competências atribuídas à Comunidade em matéria de transportes e de proteção dos consumidores”148. Xxxx Xxxxx explica que “Esta decisão do Tribunal de Justiça assenta, conforme referem Xxxxxxx e Giemulla, no facto de o Tribunal
148 Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2006 – Caso C-344/04; visualizado em 10-01-21 pelo site:
xxxx://xxxxx.xxxxxx.xx/xxxxx/xxxxXxx.xxx;xxxxxxxxxxx0000X0X00X00X00XXXX0X0XX0X000XXX?xxxxx&xx cid=57285&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=23357113
considerar serem idênticos para todos os passageiros os danos sofridos no aeroporto de partida, legitimando o artigo 6º do Regulamento a peticionar uma indemnização, sendo certo que estes danos são igualmente abrangidos pelo artigo 19º da CM. Deste modo, na eventualidade de o Regulamento não cobrir todos os danos do passageiro, será possível recorrer à CM de modo que o remanescente do dano seja indemnizado149.” Podemos afirmar que funciona de forma subsidiária para que o dano seja completamente ressarcido ao passageiro.
Esta introdução foi feita pois desde logo evidenciamos uma questão: Quem regula o incumprimento do contrato de transporte aéreo? Ora vejamos, a recusa de embarque, assim como o cancelamento de voo sem que sejam apresentadas alternativas que visem satisfazer o interesse do passageiro, são em ambos os casos, claramente uma forma de incumprimento do contrato. Por sua vez, quando sejam apresentadas alternativas, ainda que levem a alguns atrasos, há um cumprimento do contrato, um cumprimento com um atraso, porém a transportadora cumpre o acordado, transportando o passageiro de um ponto de origem ao ponto de chegada. Estamos perante dois casos distintos, por um lado o incumprimento contratual, e por outro, o atraso do cumprimento do contrato. Sabemos que ambas as convenções, no seu artigo 19º, regulam o regime de atraso na execução do contrato, o que exclui qualquer aplicação de lei nacional. Relativamente ao incumprimento do contrato, parece razoável afirmar que na falha de regulação das Convenções se aplique a lei nacional sem qualquer sujeição a limites de responsabilidade do transportador que se encontrem estabelecidos nas Convenções150.
Quanto ao atraso, cabe desde já definir qual o critério que é relevante para o apuramento do atraso factual. Por vezes pode ocorrer que um determinado voo saia do aeroporto de origem com um atraso significativo (2 horas por exemplo), mas que consiga chegar ao aeroporto de destino à hora a que se propôs, não causando qualquer dano ao passageiro. Será lógico imputar responsabilidade ao transportador, quando não houve sequer um dano? Parece-me clara a
149 Xxxxx, Xxxx Xxxxx, op. Cit. P. 560;
150 A este respeito vide XXXXX XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxx – Do Contrato de Transporte Aéreo e da Responsabilidade Civil do Transportador Aéreo, Almedina, Coimbra, 2010, p.533.
resposta, para efeitos de responsabilidade do transportador aéreo em regime de atraso de voo, deve apenas relevar o atraso que se verifique à chegada do aeroporto de destino, independentemente se o voo saiu do aeroporto de origem à hora que estava planeada, assim releva apenas se o passageiro se sentiu lesado e se o seu interesse foi de alguma forma afetado, levando à sua insatisfação151. A este respeito podemos encontrar no artigo 19º, de ambas as Convenções, que o atraso só por si não se basta, esse mesmo atraso tem que provocar um dano/ prejuízo ao passageiro, para que possamos constituir o direito ao passageiro de ser indemnizado152.
Posto isto, a questão que se coloca é qual a delimitação deste atraso? Isto é, o que é considerado um atraso considerável de voo? O artigo 19º não refere um mínimo para que se possa definir o “atraso”. Desta feita, resta recorrer a técnica mãe, verificar a ratio legis do artigo, tentar definir qual o bem jurídico do passageiro que o legislador procurava tutelar. Parece simples, o legislador visou tutelar o passageiro, para que, qualquer atraso, independentemente da sua duração, que acarretasse prejuízos ao passageiro deveria ser indemnizado. Porém a questão coloca-se: Um passageiro que por um atraso de 20 minutos perca a sua ligação noutro aeroporto, sofre um dano por 20 minutos de atraso e pela lógica supra mencionada, terá direito a ser ressarcido; por outro lado, um passageiro que tenha um atraso de uma hora, mas que desse mesmo atraso não resulte nenhum dano para o mesmo, não deverá ter direito a qualquer indemnização?
Parece que este não poderá ser o critério utlizado, não é coerente nem proporcional, levando a graves desequilíbrios na esfera jurídica dos consumidores. Deve apelar-se a critérios que sejam objetivos, e não a condições subjetivas das circunstâncias do caso concreto.
151 Tal afirmação se deve pela visão de que, o contrato de transporte é de natureza prestacional, apesar de o serviço não ser o principal, e sim a obrigação de resultado. Assim o entende MENEZES CORDEIRO (op. Cit. p. 35), MORAIS BETTENCOURT (op. Cit.. p. 492), e, XXXXXXX XXXXXXX, Xxxxxxxx – Denegación de embarque en el transporte aéreo de pasajeros, Madrid, Parcial, 2013, p. 32.
152 Xxxx XXXXX XXXXXXX, op. Cit., p. 521.
Mas qual o limite compensatório? Como podemos balizar o quantum de compensação a atribuir ao passageiro pelos danos que sofreu? Neste âmbito as Convenções já não se regem pelo mesmo limite.
Comecemos pela Convenção de Varsóvia que no n º 1 do seu artigo 22º determina o limite em 250 mil francos, porém não refere expressamente que é para casos de responsabilidade pelo atraso, desta forma, é necessário interpretar o artigo 22º em consonância com o artigo 19º (que nos diz que o transportador é responsável pelo atraso no transporte aéreo de viajantes).
Após a verificação do quantum compensatório, cabe aqui num último ponto referir quais as causas de exoneração da responsabilidade do transportador aéreo, estando elas previstas nos artigos 20º e 21º da Convenção:
a) O transportador aéreo ficará exonerado quando se prove que os seus propostos tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo, ou que lhes era impossível tomá-las;
b) Também será exonerado o transportador aéreo que prove que o lesado agiu com culpa causando o dano, ou que teve participação contributiva para a constituição do dano, ficando ao critério do tribunal a exoneração ou atenuação da responsabilidade;
Além das causas de exoneração supra mencionadas, devemos referir que poderá o limite indemnizatório ser ultrapassado, se o lesado provar que o transportador, ou seus propostos, agiram (por ação ou omissão), e com intenção de provocar um dano (existência de dolo), ou apenas com a consciência de que a sua conduta resultaria num dano (dolo consciente).
Por outro lado, cumpre analisar o regime previsto pela Convenção de Montreal, que se encontra estabelecido no seu artigo 22º, que ao contrário da Convenção de Varsóvia, é regulado de forma objetiva, definindo que o limite máximo do valor indemnizatório é de 4150 DSE153.
Este regime define três regras essenciais:
153 Em 2014 foi feita revisão pela ICAO elevando o montante que era de 4150 DSE – que consta do nº 1 do artigo 22º - para 4694.
1 – O transportador exonerar-se-á da sua responsabilidade se provar que, foram tomadas todas as medidas razoáveis e necessárias que estavam ao seu alcance para evitar o dano, ou que lhe era impossível tomá-las.
2 – Será ainda exonerado nos casos que o lesado ou demandante, por ato ou omissão, tenham causado ou contribuído, ainda que de forma dolosa ou negligente, para verificação do dano.
3 – O limite indemnizatório supra referido não é estanque, ou seja, poderá aquele limite ser ultrapassado em casos que o lesado prove que o transportador ou seus propostos, agiram com intuito de provocar dano ou ainda que somente com consciência de que a sua ação ou omissão, levaria à provocação de um dano gerando responsabilidade do transportador no âmbito da responsabilidade do transportador aéreo por danos derivados do atraso na execução do transporte aéreo.
Há que esclarecer a questão de um suposto “concurso aparente”154 entre o Regulamento e a Convenção de Montreal. O artigo 12º do Regulamento determina uma compatibilidade com uma indemnização suplementar. É certo que o Regulamento impõe direitos mínimos, enquanto que a CM baseia-se na reparação do dano. O que é facto é que o próprio artigo 12º do Regulamento não faz referência ao dano indemnizável, se há enquadramento aqui para os danos não patrimoniais. Assim, o Tribunal de Justiça no Acórdão do Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 2011155, defendeu que a indemnização suplementar que consta do artigo 12º do Regulamento deve ser interpretada como uma indemnização do dano, incluindo danos morais, que resultem do incumprimento do contrato de transporte aéreo, não devendo ser utilizado este conceito para pagamento de reembolso de despesas que os passageiros tiveram com o incumprimento dos deveres de assistência da companhia aérea, pois é precisamente para isso que serve o estipulado no Regulamento, para que haja uma garantia de assistência. Assim, conseguimos nesta linha defender a ressarcibilidade de danos patrimoniais e de danos não patrimoniais,
154 Denominação dada por Xxxx Xxxxx Xxxxx, em Xxxxx, Xxxx Xxxxx, op. Cit. P. 561.
155 Caso C-83/10, consultado em: xxxx://xxxxx.xxxxxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx.xxx?xxxxx&xxxxxx000000&xxxxXxxxxx0&xxxxxx g=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=23359539
enquadrando nos limites do Regulamento. Conseguimos ainda afirmar que há uma diferença quanto a estes regimes, o Regulamento visa atribuir garantias de assistência sem caracter de ressarcimento, não existindo uma sobreposição entre Regulamento e CM, pois têm finalidades distintas. Em posição oposta temos o caso C-83/10 que se afigura na defesa da autonomia da compensação prevista no Regulamento156.
Assim, tal como refere Xxxx Xxxxx Xxxxx “…temos por assente que as compensações previstas no Regulamento não configuram uma vera indemnização, antes correspondendo a montantes, de caracter fixo, que apenas podem ser afastados em casos excecionais…Ademais, estas compensações podem ser reclamadas independentemente de culpa do transportador, pois o Regulamento baseia-se em circunstâncias objetivas para atribuir o direito à compensação pecuniária e, como tal, não estamos de uma vera reparação do dano emergente do atraso. Havendo dano, este deverá ser arbitrado pelo direito uniforme, máxime pela CM.157” Devemos reforçar a ideia de que neste entendimento o Regulamento e a CM têm finalidades diferentes, sendo que o primeiro visa proteger o consumidor com garantias que têm que ser cumpridas independentemente de dano, e a CM tem natureza ressarcitória para que possa colmatar os danos consequentes do incumprimento do contrato de transportes aéreo, não devendo aqui existir qualquer concurso de aplicação entre estes dois. O regulamento é sempre aplicado quanto às garantias, a CM pode ou não ser aplicada dependendo da ocorrência de um dano.
Apesar de já terem sido identificados os vários tipos de dano que podem ser ressarcidos pelas transportadoras, mediante prova da sua responsabilidade, devemos analisar dois tipos de dano que resultam do cancelamento ou atraso na execução do transporte, apesar de serem incertos. Referimos aqui os danos emergentes e os lucros cessantes.
156 Caso disponível em xxxx://xxxxx.xxxxxx.xx/xxxxx/xxxxxxxx/xxxxxxxx.xxx?xxxxx&xxxxxx000000&xxxxXxxxxx0&xxxxxx g=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=23359539
157 Xxxxx, Xxxx Xxxxx, op. Cit. P. 563.
Estas duas figuras distinguem-se na medida em que, o dano emergente resulta da frustração de uma vantagem já existente, enquanto, o lucro cessante resulta da não concretização de uma vantagem, que poderia ocorrer158. O facto é que danos emergentes e lucros cessantes são de ocorrência frequente, pois se o passageiro escolheu determinado voo, a determinada hora é porque, muitas vezes, a essa escolha está subjacente uma causa. Ou seja, infelizmente, é natural que um atraso, um cancelamento ou uma recusa de embarque, tragam para o passageiro, prejuízos, meramente especulatórios, isto é, o passageiro deixa de ter a oportunidade de gozar de determinada vantagem que poderia usufruir caso o transporte tivesse sido operado nas condições normais. Quanto aos danos emergentes basta que o passageiro prove que de facto ocorreram vantagens que iria usufruir caso o voo tivesse chegado à hora prevista, diferentemente ocorre com os lucros cessantes, visto que os mesmos não passam de especulações159.
A questão que aqui se coloca é a falta de base legal para atribuição de indemnização por lucros cessantes. Ambas as convenções não referem expressamente a obrigatoriedade de ressarcimento por lucros cessantes, em contrapartida, também não impossibilitam o ressarcimento. Sabendo da existência do princípio da exclusividade que aqui existe, será esta uma exceção ao princípio? Poderá o passageiro responsabilizar a transportadora por este tipo de danos? O artigo 26º da Convenção de Montreal diz que as cláusulas que
158 Isto é, a diferença que podemos estabelecer entre danos emergentes e lucros cessantes respeita aquilo a que denominamos por «danos reais». É uma distinção quanto a danos existentes, e não quanto ao valor do dano em si. Se o dano consiste no desaparecimento de um bem que, ao tempo do desaparecimento, já integrava a esfera jurídica do lesado, trata-se de um dano emergente. Se, ao tempo do desaparecimento, o bem ainda não integrava essa esfera jurídica trata-se, então, de um lucro cessante. Ou seja, não falamos aqui de danos presentes e danos futuros, porque na categoria dos lucros cessantes aquele bem poderá nunca entrar na esfera jurídica do lesado, ele existe como mera especulação. Cfr. XXXXXXX XXXXXX, Das Obrigações em Geral, Volume II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, pp. 109 a 112.
159 De forma a exemplificar melhor estas situações tomemos como exemplo o passageiro que, por motivo de atraso, cancelamento ou recusa de embarque por culpa da transportadora, não consegue chegar ao destino na hora que estava estipulada aquando da compra do bilhete, e por essa mesma razão, falta a uma reunião de negócios, consequentemente perde o negócio que seria muito vantajoso; não há garantias nenhumas de que, mesmo que o passageiro chegasse ao destino à hora que estava determinada, o mesmo conseguisse concluir o negócio de forma favorável para si, mas a falha da transportadora, levou a que o passageiro perdesse a oportunidade de fechar o negócio – mera especulação. Por outro lado, vejamos um exemplo em que possamos enquadrar os danos emergentes: Um artista que não chega ao seu destino à hora estipulada originalmente, devido a um atraso por culpa da transportadora, e que por esse motivo não chega a tempo de fazer o seu espetáculo, ora a vantagem já existe na esfera jurídica do passageiro, e foi frustrada pelo atraso na execução do transporte por culpa da transportadora.
visem exonerar a responsabilidade do transportador serão nulas, não invalidando o contrato, assim sendo, a contrario sensu, todas as cláusulas que não exonerem o transportador poderão ser válidas, cabendo aqui a explicação para a integração de danos advenientes de lucros cessantes, respeitando sempre o principio da exclusividade, ou seja, como as convenções não preveem apelamos às leis nacionais da jurisdição competente ao caso concreto, e estando conforme ao ordenamento jurídico nacional, não vejo aqui uma razão lógica para que não se possam aglomerar ao ressarcimento do passageiro, os lucros cessantes, desde que o passageiro ou seu demandante prove que existe o nexo de causalidade entre o dano sofrido e o facto que lhe deu origem por culpa da transportadora160.
4.4 – Regime para perda/ atraso e extravio da bagagem
Mais uma vez teremos de analisar o regime de forma autónoma, isto é, analisando de imediato a Convenção de Varsóvia, e de seguida, a Convenção de Montreal.
Iniciemos esta análise estabelecendo que, as causas que estão subjacentes à responsabilidade do transportador são:
a) – Evento danoso
b) – Atraso na entrega de bagagem registada.
Relativamente ao primeiro caso, diz-nos o nº 1 do artigo 18º da CV que: “O transportador é responsável pelo dano proveniente da destruição, perda ou avaria de bagagens registadas quando o evento que causou o prejuízo se produziu durante o transporte aéreo.” Vejamos primeiro os pressupostos da responsabilidade:
1 – Ocorrência de um evento danoso que tenha como consequência a destruição, perda ou avaria da bagagem registada161.
160 A este respeito vide XXXXX XXXXXXX, op. Cit., p. 575.
161 Relembrando que bagagem registada é aquela que é despachada no momento do check-in, ficando a sua tutela a cargo da transportadora aérea, pois o passageiro deixa de ter acesso à bagagem.
2 – O evento danoso ocorra no decorrer do transporte aéreo162. 3 – Nexo de causalidade entre o evento – facto e o dano.
Após estes dois pressupostos preenchidos é seguro dizer que há responsabilidade da transportadora aérea? E os casos em que o transporte da bagagem é feito por transporte terrestre ou marítimo para que possa ser entregue ou carregado? Esse transporte embora terrestre é responsabilidade da transportadora aérea? O nº 5 do artigo 18º dá-nos a resposta pois esta, embora seja originada em outro tipo de transporte, ainda se encontra no âmbito temporal do decurso do transporte, são fases sobre as quais o passageiro não tem sequer acesso à sua bagagem ficando a mesma a cargo do transportador aéreo, gozando aqui de uma presunção ilidível de que o evento danoso ocorreu no decurso do transporte.
Importa aqui também referir que o recebimento da bagagem registada, sem que haja protesto cria uma presunção (ilidível), de que a bagagem foi entregue nas devidas condições, tal presunção inverte o ónus da prova, passando a ser o passageiro ou seu representante, quem tem o ónus probatório de que há um dano e que esse mesmo dano ocorreu durante a execução do transporte163.
Apesar de me referir aqui, de forma quase que exclusiva, às bagagens registadas, devo esclarecer que, no que se refere a bagagem não registada, ou seja, bagagem de cabine que fica à guarda do passageiro, a transportadora não está totalmente isenta de responsabilidade, apenas não recai sobre esta a presunção de culpa quanto a danos que possam vir a ocorrer164. Apenas poderá
162 O nº 4 do artigo 18º visa delimitar o espaço temporal sob a qual a tutela da bagagem está a cargo da transportadora, assim podemos afirmar que a bagagem registada está sob tutela do transportador aéreo em todo o período de tempo que a bagagem se encontre sob a sua guarda, quer seja num aeródromo, quer a bordo da aeronave, ou em qualquer outro lugar caso a aeronave aterre fora de um aeródromo, incluindo aqui as viagens que tenham escala em que o passageiro tenha de mudar de aeronave. – “O transporte aéreo, para os efeitos das alíneas anteriores, compreende o período durante o qual as bagagens ou mercadorias se encontram à guarda do transportador, quer num aeródromo, quer a bordo de uma aeronave, quer em qualquer outro lugar, em caso de aterragem fora de um aeródromo.”
163 Cfr. nº 3 do artigo 18º e n º 1 do artigo 26º da CV. Nesse sentido, deverá o lesado apresentar uma reclamação no prazo máximo de 7 dias em caso de avaria, perda ou deterioração da bagagem registada; ou em 21 dias no caso de o dano ter sido provocado devido ao atraso na entrega da bagagem registada, tal prazo deve contar-se a partir do dia em que a bagagem chega à posse do passageiro.
164 Todavia, alguns tribunais norte-americanos têm entendido que o facto de o passageiro confiar ao transportador a bagagem não registada, por exemplo quando a hospedeira de bordo arruma a bagagem na cabine por cima do assento, constitui uma presunção de culpa sobre o
recair responsabilidade à transportadora aérea, caso tenham ocorrido danos a bordo ou durante os momentos de embarque ou desembarque, e que a culpa seja imputada à transportadora.
Por outro lado, temos o atraso na entrega da bagagem registada, que ocorre sempre que a entrega da bagagem ou mercadoria venha a ocorrer em momento posterior ao que estava previsto caso a execução do contrato de transporte aéreo ocorresse conforme o previsto inicialmente pelas partes.
Verificados os pressupostos de responsabilidade, cabe analisar as possíveis situações que visam exonerar a responsabilidade do transportador aéreo, assim diz-nos o artigo 20º da CV que, o transportador será exonerado da sua responsabilidade se:
a) Xxxxx prova que os seus propostos tomaram as medidas necessárias para evitar o prejuízo, ou lhes era impossível tomá-las.
Todavia, tal como nos regimes anteriormente estudados, também aqui o transportador poderá, mediante prova, excluir ou atenuar a sua responsabilidade, bastando para tal que o lesado tenha agido de forma dolosa contribuindo ou causando, o dano que se veio a verificar.
Relativamente ao atraso da entrega de bagagem, o transportador é igualmente responsável caso desse atraso resulte um prejuízo para o passageiro. Tal responsabilidade só será excluída se o transportador aéreo provar que os seus
transportador aéreo. – Cfr. o caso Hexter v. Air France, em que sumariamente, os Hexter confiaram a uma hospedeira de bordo uma bolsa que continha joias, essa mesma bolsa foi arrumada numa cabine longe dos seus proprietários. No fim da viagem foi lhes devolvida, ao chegar ao hotel deram conta de que faltava uma joia. O tribunal entendeu que a aceitação da companhia ao arrumar a bolsa deslocando-a de lugar, é uma aceitação de bagagem a seu cargo, sendo removida a bagagem da tutela do passageiro. Tal entendimento parece um pouco excessivo, uma vez que a bagagem nunca deixou de estar acessível ao passageiro, apenas por forma a facilitar o arrumo das bagagens de cabine, a hospedeira de bordo arrumou a mesma. Não parece justo que a tutela da bagagem seja transferida para o transportador, constituindo desde logo uma presunção de que se algo acontecer será sua culpa, até porque a bagagem nunca fica inacessível ao passageiro, como poderemos afirmar uma presunção de culpa do transportador sendo que o passageiro tem acesso à bagagem? Deverá ser o passageiro quem tem que provar que o dano foi provocado pelo transportador, in casu seu proposto, por dolo ou negligência, provando ainda o nexo causal entre o dano e o facto que lhe deu origem. Caso consultado no site xxxxx://xxx.xxxxxx.xxx/xxxxx/xxxxxxx/xxxxxxxx-xxxxxx/XXxxx/000/000/0000000/, em 22-05-2019.
propostos tomaram todas as medidas necessárias para evitar o prejuízo, ou que lhes era impossível tomar tais medidas.
No que concerne à delimitação dos valores indemnizatórios a que o transportador aéreo poderá estar adstrito em caso de destruição, perda, avaria ou atraso na entrega de bagagem, temos que dividir estes limites, em bagagem registada ou não registada, assim:
1 – No caso de bagagem registada o limite indemnizatório é de 250 francos por quilograma; salvo se o passageiro tiver declarado previamente o valor da bagagem, devendo aí ser paga uma taxa adicional, extravasando o limite previsto.
2 – Quanto à bagagem não registada, ou seja, de cabine, o limite é de 5000 francos, independentemente do peso da mala.
Sendo que importa referir que estes limites podem sempre ser ultrapassados se o passageiro provar que o evento que levou ao dano foi causado por culpa ou dolo do transportador ou seus propostos165.
Após a análise do regime de responsabilidade do transportador aéreo em caso de perda, atraso e extravio de bagagem, perante a Convenção de Varsóvia, cabe analisar o mesmo regime perante a Convenção de Montreal.
Para a Convenção de Montreal a responsabilidade do transportador aéreo baseia-se na culpa presumida do mesmo com limite indemnizatório máximo de 1131 DSE por passageiro, ficando exonerado, total ou parcialmente, de tal responsabilidade se provar que o passageiro ou terceiro, por ato ou omissão, de forma dolosa ou negligente, causou ou contribuiu para a verificação do dano.
Refere o n º 5 do artigo 22º da CM que, na eventualidade de o passageiro entender que a responsabilidade do transportador aéreo é superior a 1131 DSE, deverá fazer prova de que os danos foram causados pelo próprio transportador, ou seus propostos em exercício de funções, com a intenção de causar dano ou de forma, ainda que inconsciente (negligencia), porém consciente de que o dano
165 Cfr. art. 22º e 25º da Convenção de Varsóvia.