ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E O DEVER DE LICITAR PARA SUA ESCOLHA
ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E O DEVER DE LICITAR PARA SUA ESCOLHA
SOCIAL ORGANIZATIONS AND THE DUTY TO BID TO SELECT THEM
Xxxxxxxx Xxxxxx Xxxxxx
Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Promotor de Justiça do Estado de São Paulo
RESUMO
Organizações sociais em colaboração com o estado para fomento de atividades caracterizadas como serviços sociais não exclusivos. Contrato de gestão como instrumento da parceria: natureza de convênio, segundo posicionamento nas- cente no Supremo Tribunal Federal. Dever de licitar para escolha da organiza- ção social como imposição dos princípios constitucionais reitores da adminis- tração pública, especialmente os da legalidade, impessoalidade e moralidade. Licitação entendida em sentido amplo como procedimento formal de escolha, impessoal e isonômico. Inviabilidade da dispensa pura de licitar em havendo competição. Aplicação parcial da Lei Federal n. 8.666/93, de abrangência na- cional, no que couber. Inviabilidade de transferência integral de serviços públi- cos para a organização social via contrato de gestão.
PALAVRAS-CHAVE
Organizações sociais. Contrato de gestão. Licitação.
ABSTRACT
Social organizations engaged to the state to enhance non-exclusive services. Management contract as the instrument of the partnership: nature of convention, according to a new born statement at the Brazilian Supreme Court. The duty to bid in order to choose the social organization as an imposition of the principles of the Constitution, applied to public administration (legality, impersonality and morality). Understanding bidding as a formal, impersonal and isonomic proceeding of selection. Impossibility to dismiss bidding in the presence of competition. Federal Law n. 8.666/93 applied when suitable. Impossibility to transfer all public service to the Social Organization through management contract.
KEYWORDS
Social organizations. Management contract. Bid.
SUMÁRIO
1. A matriz constitucional do dever de licitar. 2. Organizações Sociais. 3. Su- premacia do interesse público e princípios constitucionais da administração pú- blica. 4. A solução preconizada pelos ministros Xxxxx Xxxxxx e Xxxx Xxx na Adin
n. 1923/DF. 5. Criação fraudulenta de OS para encampar serviço público. 6. Conclusões. Referências.
1. A MATRIZ CONSTITUCIONAL DO DEVER DE LICITAR
A licitação é procedimento formal de seleção de pessoa para contratar com o poder público. Tem previsão constitucional (artigo 37, inciso XXI). Sua obrigatorieda- de decorre do princípio da impessoalidade, cuja raiz está no princípio da isonomia. Impõe-se ampla concorrência em igualdade de condições, sem privilégios de qual-
quer ordem. Escolhe-se a pessoa através da sua proposta, a mais vantajosa de todas, assim qualificada por meio de critérios objetivos previamente estipulados em edital.
O campo subjetivo de incidência da obrigatoriedade constitucional de licitar é desenhado pelo caput do artigo 37: administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
A Lei n. 8.666/93, de abrangência nacional, ao regulamentar o disposto no artigo 37, inciso XXI, detalha mais esse campo subjetivo (sem, obviamente, alterá-lo), para impor prévia licitação às contratações feitas pelos órgãos da Administração di- reta, os fundos especiais, as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indireta- mente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 1º, parágrafo único).
2. ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OS)
A Lei Federal n. 9.637, de 15.05.1998, introduziu novidade no ordenamento jurídico federal1 ao qualificar pessoas jurídicas privadas sem fins lucrativos, com objetivos sociais específicos, como organizações sociais (OS). Elas firmam contrato de gestão com as pessoas públicas.
No âmbito dessa parceria exógena (poder público – particular)2, o contrato de gestão persegue um mesmo fim: fomentar certa atividade. Pode alcançá-lo por caminhos diferentes: a) fomentar, com recursos públicos, atividade já desenvolvida pelo ente particular; b) transferir ao particular serviço até então desenvolvido pelo poder público, incentivando a atividade.
No primeiro caso, o ente público identifica uma atividade exercida pelo par- ticular como de interesse público. Qualificada como organização social, tal associa- ção/fundação firma contrato de gestão através do qual passa a receber recursos para intensificar, ampliar e levar avante sua missão. No segundo caso, uma associação/ fundação encampa serviço antes prestado pelo estado.
Instrumento de colaboração entre o ente público e o particular visando ao fo- mento de certas atividades, o contrato de gestão disciplina obrigações recíprocas. O poder público transfere dinheiro, bens e até servidores públicos, impondo metas de ação e fiscalizando periodicamente seu cumprimento. O ente privado fica respon- sável por gerir os recursos recebidos, empregando-os da melhor forma na satisfação do serviço não exclusivo3 que caracteriza seu objeto social.
1. Outros entes federativos podem dispor, por lei própria, sobre as organizações sociais atuantes no seu âmbito.
2. Em contraposição à parceria endógena, firmada entre órgãos da própria administração, também por contrato de gestão, na forma do artigo 37, §8º, da Constituição da República, visando à ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira de órgãos da administração direita e indireta.
3. Segundo Xxxxxx Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, “os serviços não-exclusivos correspondem ao grupo de atividades que o Estado exerce simultaneamente com outras organizações públicas não estatais e privadas, dada a relevância dessas atividades, via de regra relacionadas a direitos humanos fundamentais, como os de educação e saúde. São exemplos deste setor as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus” (Terceiro setor, p. 99).
Diante da natureza aparentemente contratual do contrato de gestão, é legíti- mo perguntar se tal contratação deve ser precedida de licitação. É o que se investiga no presente trabalho.
3. SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Os princípios da supremacia do interesse público e da impessoalidade ilumi- nam o caminho rumo às respostas.
Ao estado incumbe ofertar serviços que possam ser fruídos pela coletividade, ainda que não os preste através de recursos exclusivamente próprios.
Toda atividade que exerça diretamente em prol da coletividade – seja ser- viço público, seja atividade econômica, privativa ou não – se revestirá de interesse público primário, entendido como a dimensão coletiva dos direitos individuais das pessoas, relativamente estável num determinado tempo e em certo território.4
A supremacia do interesse público justifica e demanda a existência do regime jurídico de direito público. Este é caracterizado pelo binômio prerrogativas/sujeições. Zelando pelo interesse geral, o poder público goza de instrumentos especiais para vei- cular e impor a vontade estatal. São prerrogativas não encontradas na esfera privada e que se justificam na finalidade de alcançar o bem comum. Por outro lado, a esfera de liberdade dos indivíduos, desenhada pelo plexo de direitos constitucionais fundamen- tais, é garantida pelas sujeições impostas à administração, capitaneadas pela legalida- de estrita (só fazer o que a lei material expressamente manda). O maior ou menor peso que se atribua aos elementos do binômio define a relação do estado com a sociedade civil: mais ou menos interventor, policialesco, garantidor, liberal.
Tanto as prerrogativas quanto as sujeições são indeclináveis em sua titulari- dade. Tal se dá porque o interesse público não o é, e aquelas estão a serviço deste. Do contrário, o estado poderia facilmente demitir-se da sua finalidade institucional, equiparando-se ao particular, pondo em risco a própria coesão social subjacente a qualquer grupamento humano estável voltado a certos fins.
É equivocado enxergar a superioridade do interesse público como primazia absoluta do estado em suas posições, em choque ou dissonância permanente com o interesse particular. Pelo contrário, a atividade estatal tem como fim último a ga- rantia e a satisfação dos interesses individuais. A autoridade estatal só se justifica se e quando imprescindível para tutelar a liberdade individual.
Por tal motivo é que Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx afirma que “o princípio da supremacia do interesse público convive com os direitos fundamentais do ho-
4. Para Xxxxx Xxxxxxx Xxxxxxxx xx Xxxxx, “os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais – ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses.” (Grandes temas de direito administrativo, p. 187).
mem e não os coloca em risco. Ele encontra fundamento em inúmeros dispositi- vos da Constituição e tem que ser aplicado em consonância com outros princípios consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, em especial com observância do princípio da legalidade”.5
A convergência para a consecução dos interesses sociais primários não po- deria contrapor estado e indivíduo. Aquele existe para servir aos interesses constitu- cionais legítimos deste. Evidentemente que o poder público não deve dar guarida a todo e qualquer interesse particular imediato. A coexistência dos direitos depende da limitação do seu gozo. O poder de polícia conferido à administração pública como prerrogativa realiza essa tarefa.
Os princípios constitucionais expressos que regem a administração públi- ca – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência6 - não são afastados ou mitigados quando o poder público age por meios próprios ou por de- legação. Eventuais exceções constam do próprio texto constitucional ou das leis de âmbito nacional que dão densidade normativa aos preceitos que dependam desse complemento legal.
Há disciplina constitucional clara quanto a bens, serviços e servidores públi- cos. Todas as normas infraconstitucionais que conferem tratamento mais específico à matéria haurem sentido e alcance nos referidos princípios. Pelo princípio da hie- rarquia normativa, não podem ser interpretadas ou aplicadas em dissonância com esses núcleos mandamentais superiores.
Logo, numa primeira abordagem, assumindo seja contratual a natureza do contrato de gestão, se a licitação é pressuposto constitucional inarredável da con- tratação pelo ente público, por força, principalmente, dos princípios da legalidade e impessoalidade, ela não pode ser afastada quando houver sua celebração com a organização social.
Qualquer pessoa jurídica qualificada como organização social poderá partici- par do certame se cumprir as exigências legais e editalícias (princípio da legalidade).
A impessoalidade, consequência da isonomia, repudia preferências pautadas por subjetivismos, privilégios, pessoalidades no trato da administração pública com os indivíduos. Há, sim, escolhas, preferências. Todavia, os critérios regentes são pre- estabelecidos, públicos e aptos a serem satisfeitos por uma pluralidade de indivíduos (princípio da impessoalidade).
5. DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx, O princípio da supremacia do interesse público: sobrevivência diante dos ideais do neoliberalismo. In: DI XXXXXX, Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx; XXXXXXX, Xxxxxx Xxxxxxxx Xxxxx (co- ord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo, p. 102.
6. Esses são os explícitos. Há muitos outros, contidos implicitamente na Constituição Federal, como, por exemplo, o da proporcionalidade, finalidade, supremacia do interesse público, autotutela, hierarquia, motivação. A Lei Federal n. 9.784/99 (Lei Geral do Processo Administrativo), por exemplo, diz no seu artigo 2º que a Administração Pública obedecerá aos princípios da princípios da “legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídi- ca, interesse público e eficiência.”
Tomando de exemplo a Lei Federal n. 9.637/98 (aplicável no âmbito da união federal), toda e qualquer organização social dedicada a uma das atividades mencio- nadas no artigo 1º (ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, pro- teção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde) estará potencialmente apta a concorrer com outras visando a firmar contrato de gestão com o poder público.
O poder público não pode escolher uma organização social tão somente porque ela exerce uma das atividades previstas na lei como escopo social seu, se- gundo o ato constitutivo. Certamente há uma profusão de associações e fundações, qualificadas ou qualificáveis como OS, dedicadas ao ensino, à pesquisa, à cultura e à saúde, por exemplo.
Pinçando uma dentre várias, sem critério algum (só pela qualificação em si), o poder público agiria com reprovável ofensa à impessoalidade.
A sutil diferença entre o agir legítimo e o ilegítimo está na perspectiva que deve adotar o gestor com vistas à contratação. A perspectiva legítima é aquela que enfoca a necessidade pública como ponto inicial e final da contratação.
Tendo por norte a satisfação de necessidades públicas concretamente aferí- veis (objetivo impessoal) e escolhendo atendê-las por via de parceria com organiza- ção social (opção discricionária válida), vai ter que dirigir a escolha do parceiro por meios objetivos (instrumentos seletivos impessoais): aquele que se mostrar mais apto à consecução daquela necessidade está legitimado a firmar o contrato de gestão.
A diferença de perspectiva põe o foco no interesse público para ver, a partir dele, quem está mais qualificado para contratar com o estado, não o contrário (es- colher e qualificar uma organização social e, por causa da escolha, firmar contrato de gestão com ela).
No plano infraconstitucional, numa primeira abordagem, nenhuma das pe- culiaridades do contrato de gestão autoriza subtraí-lo da sistemática legal da licita- ção. Aliás, a Lei n. 8.666/93, no seu artigo 2º, parágrafo único, impõe sua incidência sobre “todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da administração pública e particulares, em que haja um acordo de vontade para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada”.
Pouco importa, portanto, enxergar a finalidade última do contrato de gestão como relação de parceria, fomento, colaboração, sugerindo certa horizontalidade e convergência de interesses entre a parte pública e a privada. A Lei de Licitações e Contratos Administrativos preocupa-se com a estrutura jurídica da avença, colo- cando sob seu âmbito de incidência “todo e qualquer ajuste (...) em que haja um acordo de vontade para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recí- procas”. As finalidades últimas do ajuste não são relevantes, num primeiro plano, para caracterizá-lo como contrato administrativo.
A conclusão a que se chega parece natural, mas há vozes abalizadas recu- sando natureza de contrato administrativo ao contrato de gestão e reclamando-lhe tratamento diferenciado.
O raciocínio que parece estribar esse argumento é o de que os contratos de gestão, tanto entre administração-administração (endógenos) quanto entre adminis-
tração-particular (exógenos), são acordos administrativos organizatórios ou colabo- rativos, abrangidos sob o novo gênero módulo consensual da administração pública, onde também estão albergados os contratos administrativos.7
Como se verá mais adiante, delineia-se no próprio Supremo Tribunal Federal entendimento de que o contrato de gestão não tem natureza contratual, mas de convênio, afastando o dever de licitar para escolha da OS.
No plano da discricionariedade, se o gestor público decide concretizar certa política pública8 adotando determinado conjunto de ações, terá à sua disposição meios diretos ou indiretos de fazê-lo. Poderá realizar o objetivo colimado utilizan- do os recursos materiais e humanos da entidade pública. Poderá também contratar terceiro para fazê-lo inteiramente por si. Por fim, poderá estabelecer parceria com pessoa jurídica qualificada como organização social para concretizar o intento. To- davia, em nenhuma das hipóteses, o interesse tutelado não perde a qualidade de in- teresse público, atraindo, desde a origem, a incidência do regime jurídico que lhe é peculiar, que está assentado no postulado da indisponibilidade do interesse público. E a licitação é justa e clara decorrência desse postulado, porque o proce- dimento licitatório dá concretude ao princípio da isonomia, raiz do princípio da impessoalidade, que é, por seu turno, um dos pilares do regime jurídico da admi- nistração pública. Todos têm direito de concorrer em igualdade de condições com vistas a contratar com o poder público. A licitação satisfaz, portanto, exigência ética
inafastável no plano da contratação pública.
O gestor escolherá a melhor forma de satisfazer o interesse público (decisão mais ou menos livre, conforme a situação concreta). No entanto, escolhendo trans- ferir os encargos da tarefa ao particular (ainda que o faça em regime de parceria), deverá submeter a relação jurídica que nascerá ao processo seletivo prévio.
A identificação pelo gestor público de uma necessidade coletiva a ser sa- tisfeita qualifica-a como de interesse público e, com isso, atrai imediatamente a plêiade normativa do regime público. A partir daí, qualquer um dos meios válidos à disposição da autoridade administrativa para satisfazer tal interesse é disciplinado pelo regime jurídico de direito público.
Isso é fundamental para compreender a impossibilidade de mutação desse regime jurídico em função da simples escolha de um dos meios postos à disposição do administrador para consecução da atividade pública. A gênese da política públi- ca já atrai a incidência daquele plexo especial de normas. Toda atividade adminis- trativa posterior de concretização dessa política pública, por encadeamento lógico,
7. XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxxx Xxxxxxx de. Contrato de Gestão, p. 252.
8. Recentemente, a doutrina tem tentado construir um conceito de política pública ‘servível’ ao Direito. Definição bastante apurada foi feita por Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx Xxxxx, para quem “políticas públicas são programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados” (XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx, O conceito de política pública em direito. In: XXXXX, Xxxxx Xxxxx Xxxxxxx (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico, p. 38).
estará subordinada ao regime original. Assumir o contrário seria inverter a ordem das coisas, subordinando e coordenando toda atividade administrativa à satisfação de um interesse pessoal qualquer, escolhido arbitrariamente (situação evidentemente escusa e ímproba).
Portanto, a licitação é pressuposto inderrogável da relação jurídica com o particular porque, antes de tudo, a atividade identificada como a melhor forma de satisfazer certa política pública está sujeita ao regime jurídico de direito público des- de o seu nascedouro. A opção pela sua execução através de terceiro (por delegação ou em parceria com a administração, tanto faz) é mera decorrência, não afastando aquele regime, que impõe a seleção pública.
A Lei de Licitações tem aplicação nacional por dar concretude ao preceito contido no artigo 37, inciso XXI, da Constituição:
Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da pro- posta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Não há como negar que o estado, via OS, presta serviço à população (um daqueles enumerados pela lei). O contrato de gestão contém obrigações a serem cumpridas pela entidade parceira para viabilizar a atividade. O instrumento prevê as condições dos pagamentos a serem feitos pelo poder público. Além disso, é im- prescindível apurar a qualificação técnica e econômica do ente para garantir o fiel cumprimento do ajuste. Assim, os elementos constitucionais e legais essenciais que justificam a licitação estão presentes também no novo modelo de parceria viabili- zado pelas OS.
4. A SOLUÇÃO PRECONIZADA PELOS MINISTROS XXXXX XXXXXX E XXXX XXX NA ADIN N. 1923/DF
Reagindo à disciplina trazida pelas Leis Federais ns. 9.637/98 e 9.648/98, em 1º de dezembro de 1998, o Partido dos Trabalhadores e o Partido Democráti- co Trabalhista propuseram Ação Direta de Inconstitucionalidade (n. 1923-DF) para questionar amplamente o modelo das OS e a celebração do contrato de gestão com dispensa de licitação (Lei n. 8.666/93, artigo 24, XXIV), aí abrangidos outros aspec- tos como transferência de servidores (regime remuneratório), contratação de pessoal pela OS (sem concurso público), contratos que a OS firma com terceiros (sem licita- ção), controle das contas (sem expressa submissão aos controles formais pelas cortes de contas e Ministério Público).
A Lei n. 9.648/98 alterou a redação do artigo 24, inciso XXIV, da Lei n. 8.666/93, tornando dispensável a licitação para contratação da OS para prestação dos serviços contemplados no contrato de gestão.
Diz o dispositivo:
Artigo 24. É dispensável a licitação:
(...)
XXIV – para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organi- zações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.
Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx explica que essa espécie de dispensa justifica-se pelo fato da contratação feita pelo estado não se nortear pelo critério da vantagem econômi- ca, mas visar outros fins.9
Tem-se norma que garante a possibilidade de OS já contratada ser dispensa- da de licitação para novos contratos com o mesmo ente público.10
Para o que interessa a esse trabalho, em primeiro lugar, vê-se que o legislador compreendeu que a figura do contrato de gestão não pôde fugir ao regime geral da Lei de Licitações. Caso se tratasse de ajuste totalmente estranho à disciplina geral dos contratos administrativos e ajustes similares, não haveria razão para colocação da norma nesse texto normativo.
Em segundo lugar, por se tratar de dispensa, tem caráter excepcional, in- terpretando-se sempre restritivamente como ensina tradicional regra hermenêutica. Assim, novos contratos com a mesma OS estariam isentos da licitação. Basta que: (a) os novos compromissos tenham pertinência com as atividades previstas no contrato de gestão e (b) seja a mesma entidade pública a contratar a OS. A contrario sensu, a contratação inicial, aquela que dá origem ao primeiro contrato de gestão, deve ser antecedida de licitação.
Em resumo, a interpretação legal mais consentânea com o espírito da lei conclui que para o ‘contrato-matriz’, original, inicial demanda-se licitação; para as contratações derivadas e subsequentes, não.
Na ação, o ministro Xxxxx Xxxxx, relator, e o ministro Xxxx Xxx apresentaram seus votos dando parcial procedência ao pedido de modo a conferir ao texto interpre- tação conforme à Constituição. Os votos estão sedimentados no pressuposto de que a Constituição estabeleceu margem de ação política para que o gestor público possa im- plantar novos modelos de ação estatal, principalmente na seara dos serviços públicos sociais (saúde, educação, ciência e tecnologia, meio ambiente) em que a titularidade é compartilhada. Segundo sustentam, respeitados certos limites, a via consensual da parceria com fomento público encontra campo legítimo para vicejar, já que o modelo tradicional de atuação estatal não é o único preconizado pela Constituição, não po- dendo se pretender seu engessamento pela corte constitucional.
9. Curso de direito administrativo, p. 408.
10. É o caso das “contratações derivadas do contrato de gestão, em que a organização social que previamente celebrou um contrato de gestão com o poder público poderia ser diretamente contratada por outros órgãos ou entidades dessa mesma esfera federativa, para a prestação de serviços.” (XXXXXXXX, Xxxxxxx Xxxxxxx de. As organizações sociais e o Supremo Tribunal Federal, Boletim de Direito Administrativo, p.159).
Ambos firmaram entendimento pela desnecessidade de licitar para celebra- ção do contrato de gestão (porque é convênio e não contrato administrativo) e con- cluíram serem constitucionais as dispensas de licitação insertas nos artigos 24, XXIV, da Lei n. 8.666/93 e no artigo 12, §3º, da Lei n. 9.637/98.
Todavia, ressalva Xxxxx Xxxxxx:
Diante, porém, de um cenário de escassez de bens, recursos e servidores públicos, no qual o contrato de gestão firmado com uma entidade privada termina por excluir, por consequência, a mesma pretensão veiculada pelos demais particulares em idêntica situação, todos almejando a posição subjetiva de parceiro privado, impõe-se que o poder público conduza a celebração do contrato de gestão por um procedimento público impessoal e pautado por cri- térios objetivos, por força da incidência direta dos princípios constitucionais da impessoalidade, da publicidade e da eficiência na Administração Pública (CF, art. 37, caput).
O problema da necessidade de um processo de escolha não escapou da análise do ministro Xxxx Xxx, que, em seu voto na Adin n. 1923, assim se manifesta:
Ora, no conteúdo do contrato de gestão, segundo os arts. 12 e 14 da Lei, pode figurar a previsão de repasse de bens, recursos e servidores públicos. Esses re- passes pelo poder público, como é evidente, constituem bens escassos, que, ao contrário da mera qualificação como organização social, não estariam dis- poníveis par todo e qualquer interessado que se apresentasse à administração pública manifestando o interesse em executar os serviços sociais. Diante de um cenário de escassez, que, por consequência, leva à exclusão de particulares com a mesma pretensão, todos almejando a posição subjetiva de parceiro priva- do no contrato de gestão, impõe-se que o poder público conduza a celebração do contrato de gestão por um procedimento público impessoal e pautado por critérios objetivos, ainda que, repita-se, sem os rigores formais da licitação tal como concebida pela Lei nº 8.666/93 em concretização do art. 37, XXI, da CF, cuja aplicabilidade ao caso, reitere-se, é de se ter por rejeitada diante da natu- reza do vínculo instrumentalizado pelo contrato de gestão.” (grifo no original).
Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx, ao comentar o julgamento da medida cautelar que antecedeu a propositura da Xxxx, preconizou a necessidade dessa seleção, es- clarecendo que “a Lei Federal n. 9.637/98 não submeteu essa escolha a um processo de licitação formal (arts. 5º a 7º), embora fosse indicada a exigência de um processo de seleção pública para a escolha da melhor organização social.”11
O procedimento público de escolha de que se fala nos votos é o da licitação enquanto gênero, ou seja, o procedimento formal tendente à escolha da proposta mais vantajosa. Na prática, isso significa adotar um processo seletivo prévio, pauta- do pela publicidade e por critérios objetivos de escolha, assim considerados aqueles que têm a aptidão de aferir qual organização social está mais qualificada para rece- ber e dar cabo do serviço até então prestado pelo ente público.
11. As organizações sociais e o Supremo Tribunal Federal, Boletim de Direito Administrativo, p.159.
A escolha, então, terá de se subordinar a crivo público e impessoal, segundo critérios objetivos, claros, técnicos e pertinentes com as necessidades públicas.
Partiram, os ministros, do pressuposto de que o contrato de gestão não é contrato administrativo, mas convênio, onde não há interesses contrapostos, com feição comutativa e intuito lucrativo, mas interesses comuns. Isso afastaria o acordo do âmbito de incidência do artigo 37, XXI, da CR, porque contrato não é. Ressalvam, no entanto, que a escolha da OS há de respeitar os princípios fundamentais previstos no caput do artigo 37 da CR, com destaque para os da impessoalidade (corolário da isonomia) e publicidade (transparência).
Ainda que de convênio se trate, isso não significa exclusão da incidência da Lei Federal n. 8.666/93, que se aplica expressamente a esse tipo de negócio jurídico (artigo 116).
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx adverte enfaticamente que “quanto ao convê- nio entre entidades públicas e entidades particulares, ele não é possível como forma de delegação de serviços públicos, mas como modalidade de fomento. Caracteriza-
-se este por ser uma forma de incentivar a iniciativa privada de interesse público. Difere do serviço público, porque, neste, o estado assume como sua uma atividade de atendimento a necessidades coletivas, para exercê-la sob regras total ou par- cialmente públicas; no fomento, o estado deixa a atividade na iniciativa privada e apenas incentiva o particular que queira desempenhá-la, por se tratar de atividade que traz algum benefício para a coletividade.”12
Outro aspecto clássico do convênio, apontado pela doutrina, é a ausência de vinculação contratual, de modo que os convenentes podem denunciá-lo a qualquer tempo.13 Essa característica sua é flagrantemente incompatível com o trespasse de ser- viço, a demandar amplo e detalhado feixe de obrigações, principalmente da OS, dado o longo tempo de duração do contrato de gestão nesses casos. É aceitável enxergar esse poder de ‘resilição’ quando há puro fomento; não o é diante da transferência de serviço. Como visto, não convence o argumento puro e simples do objetivo comum perseguido, estando ausente a contraposição de interesses, a fundamentar o fomento, para justificar o afastamento da licitação para escolha original da OS.14
12. Parcerias na administração pública, p. 232.
13. Por todos, cf. Xxxxxxxx Xxxxxxxxx, Direito Administrativo, p. 755. Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx repudia essa característica do convênio, alegando que o fato dele não ser contrato não impede que contemple obrigações recíprocas, não unicamente obrigações unilaterais para convenente e conveniado (Oscps e licitação: ilegalidade do decreto n. 5.504, de 5.8.05, Boletim de licitações e contratos, jan. 2007, p. 31).
14. Xxxxxxx Xxxxxxx xx Xxxxxxxx sustenta, ao contrário, que radica exatamente nisso a justificativa para afastar a licitação para que o estado possa firmar termo de parceria com as OSICPs. Segundo o louvado mestre, “não se trata de contratação administrativa, mas de uma nova modalidade de acordo administrativo, cujo objetivo consiste em fomentar a prestação de serviços públicos sociais e a promoção de direitos funda- mentais por entidades privadas não lucrativas qualificadas como OSCIP.” (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público: termo de parceria e licitação, Boletim de Direito Administrativo, set. 2005,
p. 1022). Abstraídas as diferenças de regime jurídico que há entre OS e OSCIP, a raiz do raciocínio é aplicável aos contratos de gestão. Todavia, anos depois, enfocando a prestação de serviços na área de
Xxxxx Xxxxxx Xxxxxxx Xx Xxxxxx deixa claro que o convênio não é meio idô- neo, por sua própria natureza, para que haja transferência de serviço público:
“O convênio não se presta à delegação de serviço público ao particular, porque essa delegação é incompatível com a própria natureza do convênio; na delega- ção ocorre a transferência de atividade de uma pessoa para outra que não a pos- sui; no convênio, pressupõe-se que as duas pessoas têm competências institu- cionais comuns e vão prestar mútua colaboração para atingir seus objetivos.”15
Sob a argumentação até agora delineada pelo Supremo, confere-se discri- cionariedade à autoridade para dispensar a licitação, desde que escolha a OS com imparcialidade e dê ampla publicidade ao processo seletivo.
Não parece muito simples encontrar justificativa concretamente objetiva, impessoal, para a escolha. É grande o risco de se enveredar pelo subjetivismo, ain- da que com verniz de impessoalidade. Diante de uma pluralidade de entidades capacitadas para encampar o serviço, quais critérios levam à escolha de uma em detrimento das demais?
São bastante sérias as implicações práticas do entendimento até agora espo- sado pela Corte Suprema. Veja-se, por exemplo, que nada impede que a gestão de uma universidade pública federal possa ser transferida a uma OS, já que são centros de ensino e pesquisa em nível superior, atividades abrangidas pelo artigo 1º da Lei
n. 9.637/98. Criada a OS, transferem-se os campi com todas as instalações (bens), os docentes (servidores públicos) e trespassam-se recursos financeiros para a ma- nutenção da atividade, estatuindo-se metas de desempenho no contrato de gestão. Aparentemente, algo do gênero ainda não foi cogitado apenas por pudor diante da sanha privatista dos governos.
Em caso que tal, seria justificável a simples dispensa de licitação para trans- ferir a atividade docente e de pesquisa a uma OS recém-criada da ‘costela’ de uma grande corporação de ensino privada?
O exemplo não está tão distante da realidade quando se toma de exemplo a Lei Complementar Paulista n. 846/98, que copiou em nível estadual, com algumas modificações, a Lei Federal n. 9.637/98, inclusive prevendo dispensa de licitação para assinatura do contrato de gestão original com a OS estadual, ao contrário do que dispõe o artigo 24, XXIV, da Lei Federal n. 8.666/93, que trata das contratações ulteriores (conferir o artigo 6º, §1º).
Eis um exemplo: com amparo em tal diploma, em janeiro de 2012, o estado de São Paulo transferiu (sem licitação) a gestão do Hospital Geral do Grajaú e do
saúde por XXXXXx, o mesmo autor ressaltou que o termo de parceria não é meio idôneo para transfer- ência desse tipo de serviço. Ressaltou que a parceria só autoriza atuação complementar por parte da OSCIP. Acrescenta que mesmo diante da prestação de serviços de maneira colaborativa deve haver um processo seletivo, já que existe possibilidade de concorrência. Seria decorrência do princípio da impes- soalidade (A prestação de serviços de saúde por OSCIPs. Palestra proferida em 6 de junho de 2008, no Seminário Nacional de Direito Administrativo, Boletim de Direito Municipal, jan. 2009, p. 7).
15. Parcerias na administração pública, p. 233.
Ambulatório Médico de Especialidades de Interlagos ao Instituto de Responsabili- dade Social Sírio-Libanês, Organização Social de Saúde (OSS). A operação prevê a transferência, em cinco anos, de mais de R$ 600 milhões à entidade, que é ligada a um dos maiores hospitais privados da América Latina, o Sírio-Libanês.16
A dispensa de licitação que embasou essa contratação certamente levou em conta a elevada competência técnica e administrativa do Hospital Sírio-Libanês, cuja expertise está, obviamente, incorporada à OSS a ele vinculada.
Entretanto, indiscutível que em São Paulo há inúmeros hospitais com enti- dades assistenciais a eles vinculados que possuem iguais condições de encampar a gestão daquele hospital público e daquele AME. Que fazer, então? Como justificar que aquela escolha teve caráter efetivamente impessoal, destituído de subjetivismo? Não é por outra razão que Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx expõe ser “perfeitamente pos-
sível que o aperfeiçoamento do convênio importe situação de excludência, em que existam instituições privadas em situação equivalente, todas pretendendo a associa- ção com o estado. Em tais hipóteses, poderá tornar-se obrigatória a realização de um convênio. Esse é o fundamento pelo qual se defendeu o entendimento de que os contratos de gestão com organizações sociais e os termos de parceria com as OSCIPS poderá exigir a realização de licitação.”17
A solução já sistematizada pelo ordenamento jurídico para a seleção da pro- posta mais vantajosa é a licitação, dada a potencialidade de concorrência.
As peculiaridades desse convênio (veste jurídica do contrato de gestão, se- gundo a orientação do Supremo) não permitem veicular a pretensão de transferência do serviço por intermédio das modalidades de licitação previstas no artigo 22 da Lei n. 8.666/93.
A Lei de Licitações foi talhada para contratar serviços e adquirir bens no mer- cado propiciando ao poder público a satisfação do seu interesse econômico ime- diato. Seus dispositivos estão imbuídos dessa lógica capitalista, e, por causa disso, convergem para a investigação da capacidade econômico-financeira da sociedade e da adequação do preço às práticas de mercado.
Esse espírito ‘econômico’ da lei, preocupada com as necessidades de consu- mo do ente público, a serem satisfeitas no âmbito do mercado, não se compatibiliza com a missão das associações e fundações, pois elas não atuam sob a exclusiva lógica de mercado, visando apenas ao lucro.
Por outro lado, Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx entende aplicável a Lei Federal n. 8.987/95 (Lei das Concessões de Serviços Públicos) para a celebração dos contratos de gestão, dada similitude entre a concessão de serviço público e a outorga de serviço a OS, pois em ambas “o particular se obriga a desenvolver certos esforços em relação a tercei- ros”. Todavia, o próprio autor deixa margem para dúvida quanto à aplicação dessa lei:
16. Íntegra do contrato e seus aditivos pode ser acessada através do site xxxx://xxxxxxxxxxxxx.xx.xxx.xx/xxxx- nizacoes.html (acesso realizado em 19/08/2012).
17. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 662.
“Ainda quando se supusesse inaplicável a licitação prevista na Lei n. 8.987/95, a contratação direta do contrato de gestão teria de ser antecedida de proce- dimento específico. Teria de promover-se oportunidade de disputa, ainda que não subordinada às modalidades específicas de algum dos diplomas pertinen- tes ao tema. Essa disputa seria norteada por ato convocatório simplificado, no qual estariam contidas as vantagens que o estado dispõe-se a conceder. Os particulares teriam de apresentar projetos de atuação, com previsão mi- nuciosa de seus deveres e responsabilidades. O critério de seleção terá de ser objetivo, tendo me vista as propostas apresentadas.”18
A Lei n. 8.987/95 autoriza a transferência à iniciativa privada de serviços públicos remunerados pelo próprio cidadão, ou seja, prestados em regime de eco- nomia de mercado (tanto que a matriz constitucional do dispositivo – o artigo 175
– insere-se no capítulo atinente aos princípios gerais da atividade econômica, do título concernente à ordem econômica e financeira).
As atividades estatais transferíveis às OS pelo poder público, das áreas arro- ladas no artigo 1º da Lei n. 9.637/98 (ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde) não são, ordinariamente, desenvolvidas no âmbito da economia de mercado, mas prestadas e fruídas gratuitamente.19
Tem-se nisso um primeiro entrave à completa aplicação da referida lei, já que a maioria dos serviços não exclusivos fornecidos pelo estado não é remunerada. Embora não seja inviável a cobrança pelo serviço (em alguns casos exigindo profunda mudança de mentalidade, como, por exemplo, no ensino superior, hoje amplamente gratuito), a fixação da tarifa e de outras modalidades remuneratórias deverá levar em conta que as OS são associações ou fundações, que, por natureza, não possuem finalidade lucrativa. Seus ganhos excedentes deverão ser aplicados no
próprio desenvolvimento da atividade-fim.
Não havendo contraprestação em dinheiro pelo usuário final, exclui-se a aplicação integral, pura e simples, da Lei n. 8.987/95 como texto legal fundamental a reger a licitação, sem embargo de servir como fonte normativa analógica.
A insuficiência manifesta da Lei de Licitações e da Lei de Concessões para re- grar a escolha das OS pode até ser considerada como lacuna, mas isso não autoriza o agir administrativo desapegado da legalidade, aqui considerada de modo amplo. Os princípios da administração pública é que vão informar e nortear o processo de escolha (artigo 4º do Decreto-lei n. 4.657/42 – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Cabe, então, a cada ente federativo disciplinar, por lei, o processo formal de escolha (licitação lato sensu) da OS, observando os princípios gerais da administra- ção pública. Trata-se de dever jurídico imposto ao administrador, sendo inviável a
18. Idem, p. 268.
19. Basta pensar nas universidades públicas, nos organismos de fomento à pesquisa científica, nos hospitais públicos, nos museus.
dispensa dessa ‘licitação’ pelo simples fato da entidade já ter sido qualificada como OS. O contrato de gestão, ainda que se entenda possuir natureza de convênio, terá de ser formalizado com observância da Lei de Licitações (artigo 116), prevendo to- das as cláusulas obrigatórias, além daquelas peculiares a esse negócio.
O ponto central é que o simples credencimento de uma associação/funda- ção como organização social não lhe torna formal ou substancialmente distinta das demais pessoas. Continua tendo a mesma natureza jurídica (de associação ou fun- dação); suas finalidades estatutárias tampouco se transmudam. Não é, portanto, a qualificação outorgada pelo ente público que lhe traz distinção a ponto de permitir sua escolha livre; é alguma nota distintiva de si mesma que – tal como referido no primeiro caso – autoriza a dispensa do processo de seleção.
Processo de dispensa motivado tão só pelo fato do ente ser qualificado como OS é nulo (contaminando o contrato de gestão) por ofensa ao princípio da impes- soalidade, já que a escolha em tais moldes é arbitrária (entender de modo diverso significaria assumir como legítimo o seguinte expediente: o poder público qualifica a entidade que quiser com o título de OS para, logo em seguida, dispensar a licita- ção e escolhê-la diretamente porque já qualificada como OS20).
Interessante notar que a doutrina justifica a dispensa prevista no artigo 24, XXIV, da Lei de Licitações pelo fato da vantagem econômica não ser o fim colima- do. Vale dizer, há outros interesses tão ou mais valiosos que justificam a contrata- ção direta. Contudo, a ponderação de valores deve concluir pela inaplicabilidade da licitação apenas quando houver nítida preponderância social do escopo não econômico, o que se avalia pela adequação do fim buscado, com a contratação direta, a objetivos e valores constitucionalmente albergados pela república. Exem- plo: é legítima a dispensa para contratação de associação dedicada ao amparo de portadores de necessidades especiais (Lei n. 8.666/93, artigo 24, XX) porque a mitigação das desigualdades através da inserção do deficiente no mercado de trabalho é objetivo fundamental da república (CR, artigos 1º, III, 4º, IV; 7º, XXXI, 23, II, 24, XIV, 227, §1º, II). Há relação de adequação entre o interesse tutelado e o afastamento do certame.
Todavia, a contratação direta da OS não parece se acomodar em qualquer caso ao argumento da existência de legítimos valores supraeconômicos a serem satisfeitos. Como ressaltado, essa possibilidade pode estar nítida na parceria com entidade já tradicional, reconhecidamente séria e que sobressaia por suas ativi- dades na área ambiental, científica, educacional, cultural ou de saúde. Analoga- mente não se pode dizer de uma associação recém-criada, com estatuto amplo e vago, de atividades desconhecidas ou de pouco relevo social. Não se pode pôr uma em pé de igualdade com a outra. Por causa disso, não se justifica escolher esta última – em detrimento da primeira – tão só pelo fato de ser qualificada como
20. Por mais que isso pareça simples e claro, ainda é possível extrair essa interpretação (evidentemente in- constitucional) do texto da Lei n. 8.666/93, artigo 24, XXIV, e da Lei Complementar Estadual n. 846/98, artigo 12, §3º, ambos dispensando licitação para contratação da OS.
OS. Mesmo sob essa perspectiva pragmática, inquestionável a necessidade de um processo de escolha.
Com isso, é possível concluir pela insuficiência, na maior parte dos casos, do procedimento administrativo de dispensa para justificar a escolha da OS, nas situa- ções em que há concreta possibilidade de disputa entre várias entidades.
Ao reverso, nas diversas situações onde não haja campo para disputa (pela ausência de entidades qualificadas, por exemplo) a licitação (rectius, procedimento público e impessoal de seleção) pode ser legitimamente dispensada.
Cabe licitação toda vez que houver transferência de serviço público. Des- cabe licitação toda vez que a atividade já for desempenhada pela OS, vindo, então a receber incentivo oficial do estado, via contrato de gestão, desde que inviável a competição, em razão das singularidades que cercam o caso concreto.
No primeiro caso, inegável a substituição do estado pelo particular, embora a atividade não deixe de ser pública, principalmente na área da saúde, onde a in- serção do ente no SUS garante isso com mais vigor. No segundo caso, a atividade é e não deixou de ser particular. Passa a ser fomentada pelo ente público, porque reconhecida a sua relevância pública.
Parece-nos em tudo aplicável o brilhante raciocínio dos ministros Xxxxx Xxxxxx e Xxxx Xxx quando dizem ser inaplicável o dever de licitar para celebração do con- trato de gestão na segunda hipótese acima mencionada, ou seja, naqueles casos em que a associação ou fundação já desempenha, particularmente, a atividade, a qual passará a ser fomentada pelo estado (reitere-se: desde que não haja campo para competição, diante do dever de manter impessoalidade no trato da coisa pública e da escassez dos recursos públicos).
Aqui há o fomento puro e simples, sem transferência de serviço público. O contrato de gestão terá natureza única de convênio. Ainda aqui, entretanto, haverá incidência expressa da Lei de Licitações, que atrai para si a disciplina geral dos con- vênios (artigo 116). E sempre devemos lembrar que a Lei de Licitações é lei nacional, de aplicação a todas as esferas políticas. Logo, a lei de cada pessoa política que estabelecer o regime jurídico de qualificação e contratação com as OS não poderá estabelecer tratamento divergente da disciplina nacional.
Em qualquer uma das hipóteses de fomento estatal via contrato de gestão, o estado nunca vai se demitir dos controles formais na execução deles, podendo res- ponsabilizar a entidade por danos causados ao erário ou aos usuários do serviço.21
21. Questão candente é a da responsabilidade civil das OS na prestação de serviço público. O tema foge dos limites desse artigo. Entretanto, como baliza para a reflexão, traz-se a opinião de Sílvio Xxxx Xxxxxxxx Xxxxx, para quem “... o Estado responderia objetivamente por prejuízos causados a terceiros pelas orga- nizações sociais, quando os prejuízos decorressem de atos ou omissões praticados por agentes do estado que a elas foram cedidos. O estado responderia subjetivamente por prejuízos causados a terceiros por maus serviços prestados pelas Organizações Sociais, quando demonstrado que a omissão em fiscalizá- las contribuiu para a ocorrência dos danos” (Terceiro setor, p.187).
5. CRIAÇÃO FRAUDULENTA DE OS PARA ENCAMPAR SERVIÇO PÚBLICO
Superada a questão central da necessidade de processo seletivo para escolha da OS, quando há campo para competição, é importante mencionar, en passand, que o perfil singular da parceria realizada entre administração e particular por con- trato de gestão permite, na prática, graves fraudes ao dever de licitar. Merece exame o caso das entidades que nascem do ventre da pessoa política e que são agraciadas com o título de organizações sociais com o fim de contratar com o poder público.22 A Lei Federal n. 9.637/98 autoriza a transferência de bens e recursos públicos
(artigo 12) e a participação direta de servidores públicos no conselho de adminis- tração em fração que pode chegar a 40% da composição desse órgão deliberativo (artigo 3º, inciso I, alínea ‘a’).
Essa lei federal serviu de modelo para as esferas estaduais e municipais. Cada uma deve editar lei específica para qualificar organizações sociais no seu âmbito territorial.
A autoridade política de ocasião poderá ficar tentada a fabricar uma organi- zação social com vistas a lhe transferir certo serviço público. Para tanto, arregimenta servidores e pessoas próximas a si, elaborando estatuto social e submetendo a nova entidade aos passos necessários para que se qualifique como organização social. Depois, abre rápido processo de escolha, com divulgação restrita, em que referida entidade terá ampla e indevida vantagem sobre as demais porque foi talhada quase que exclusivamente para ter atribuída a si a execução do serviço.
Muitas vezes, a fraude está no momento da qualificação da entidade, que coincide ou está temporalmente muito próximo do processo seletivo de escolha e transferência do serviço.
Casos há em que se vale da inexigibilidade porque só há uma entidade qualifi- cada como OS no âmbito do ente público, normalmente no âmbito municipal, e obvia- mente é aquela que havia sido recém-constituída justamente para açambarcar o serviço. Adverte Xxxxxx Xxxxxx Xxxxx que “é obrigatória a adoção de procedimento lici-
xxxxxxx para realização tanto do contrato de gestão como do termo de parceria. Não é facultado à administração escolher, sem prévio procedimento licitatório, uma determi- nada organização da sociedade civil para realizar um “termo de parceria” e, a partir daí, atribuir-lhe recursos para contratações as mais diversas não subordinadas a licitação. Isso seria a porta aberta para a fraude e a destruição da regra constitucional da obriga- toriedade da licitação. Bastaria a própria administração produzir o nascimento de uma
22.A lei federal das OS nasceu no seio da tecnocracia do Executivo. Não foi fruto de discussão ampla no Congresso. Ela própria transferiu as atividades realizadas pela Fundação Xxxxxxx Xxxxx e pelo Laboratório de Xxx Xxxxxxxxx a organizações sociais gestadas por ela mesma (ver artigo 21 e ss.). Aturdida com a novel legislação, a comunidade jurídica não foi capaz de debruçar-se sobre a constitucionalidade e nem conseguiu avaliar os impactos dessas transferências. Fica o mau exemplo para as demais entidades federativas, tentadas a acompanhar a onda privatizante (que ganhou o estranho nome de ‘publicização’). O assunto demanda maior reflexão.
“organização”, submetida a seu estrito controle, e dela se valer para realizar todo o tipo de contratação sem prévia licitação. Ou seja, as “organizações” civis ou sociais não podem ser transformadas nas novas “fundações de direito público” – figuras a que o estado recorreu largamente no passado com o intuito de escapar ao regime licitatório.”23 O problema ganha maior relevo e pode ingressar no plano da improbidade quando se vê que a grande maioria dos municípios brasileiros é pequena, com estru- tura administrativa enxuta. Eventual exigência, na lei municipal, de participação de representantes do poder público no conselho de administração da OS, nos moldes do artigo 3º, I, ‘a’, da Lei Federal n. 9.639/98, pode representar verdadeira brecha para a promiscuidade entre os negócios públicos e privados da autoridade política.
O robustecimento dos mecanismos de controle, a intensa fiscalização e a punição dos ilícitos são os caminhos tradicionais para coarctar os abusos.
A nós quer parecer que a Lei Federal n. 9.637/98 prestou grande desserviço ao autorizar a criação de OS para substituir os extintos Laboratório Nacional de Xxx Xxxxxxxxxx e Fundação Xxxxxxx Xxxxx, principalmente porque a medida tem escopo dissimulado de tentar fugir do regime jurídico de direito público, tal como se deu, outrora, com a criação das fundações de direito privado. De todo modo, o STF, até agora, deu seu placet a essa operação.
Em síntese, à exceção dos casos legítimos de dispensa ou inexigibilidade de li- citação, o afastamento injustificado do certame para escolha de organização social que vá firmar contrato de gestão com o poder público ofende os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade, podendo ser questionado judicialmente.
CONCLUSÕES
Do que foi exposto, ficam mais claros alguns pontos no tocante à nova mode- lagem de parceria feita via contrato de gestão com as OS, especialmente no tocante ao dever de licitar para escolha delas: (a) a Constituição não repudia, mas tende a acolher as novas manifestações do consensualismo na administração pública, ten- dentes a estabelecer parcerias entre o poder público e o terceiro setor (representado com primazia pelas OS) no campo dos serviços públicos não exclusivos; (b) a relação de colaboração caracterizada pelo fomento público à atividade através da transfe- rência de recursos materiais e humanos é uma das opções discricionárias postas à disposição do agente público para satisfação das necessidades públicas; (c) como toda ação administrativa, essa só estará legitimada se respeitar os princípios constitucio- nais reitores da administração pública, seja na seleção da entidade que irá firmar o contrato de gestão, seja na dispensa de licitação para novas contratações cujo objeto esteja contido no contrato de gestão, seja na disciplina dos direitos e vantagens dos servidores públicos, seja na regência dos bens públicos transferidos; (d) no que tange especialmente à celebração do contrato de gestão, deve ser precedida de processo
23. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, pp. 28-29.
seletivo impessoal, público, tendente à escolha que gere mais eficiência na satisfação dos interesses públicos, perante um quadro de competitividade e da natural escassez de recursos públicos. Esta é a tendência que vem se delineado no STF, por via do po- sicionamento dos ministros Xxxxx Xxxxxx e Xxxx Xxx; (e) toda dispensa de licitação para celebração inicial do contrato de gestão que esteja motivada tão somente pelo simples fato de a entidade ter sido previamente qualificada como OS ofende a Constituição;
(f) a opção pela transferência do serviço à OS não retira o caráter público do serviço por decorrência da supremacia do interesse público sobre o privado, incidindo, com temperamentos, o regime jurídico de direito público quanto à atividade-fim.
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Submetido: 30/10/2012 Aceito: 18/02/2013